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ameaca contra a serenidade da alma. Os poetas alexandrinos, contudo, exaltaram 0 amor, embora no fechassem os olhos diante de seus estragos. Eu jé insinuei, anteriormente, as ra- z5es de ordem hist6rica, social e espiritual dessa grande mu- danga, Nas grandes cidades apareceu um novo tipo de ho- mem e mulher, mais livre e dono do si. O ocaso das democra- clas € 0 surgimento de monarquias poderosas provocaram ‘uma retracdo geral em directo a vida privada, A liberdade politica deu lugar a liberdade interior. Nessa evolucao de idéias e costumes, foi decisiva a nova siuuagio da mulher. $a- bemos que pela primeira vez na hist6ria grega as mulheres ‘comegaram a desempenhar oficios ¢ fungdes fora de suas ca- sas. Algumas foram juizas, um fato que teria sido ins6lito para Plato ¢ Aristételes; outras foram partéiras, outras se dedica- ram aos estudos filos6ficos, & pintura, 4 poesia. As mulheres casadas eram bastante livres, como se nota pelas obscenida- des nas conversas das loquazes comadres de Te6crito e He- rondas, O casamento comegou a ser visto como um assunto que nao deveria ser resolvido unicamente entre os chefes de familia, mas sim como um acordo no qual era essencial a par- ticipagdo dos noivos. Tudo isso prova, uma vez mais, que a emergéncia do amor € insepardvel da emergéncia da mulher. ‘Nao hé amor sem liberdade feminina. Um ateniense do século V a.C. era, antes de tudo, um ci- dado; um alexandrino do século III a.C. era um stdito de Ptolomeu Filadelfo. “O romance grego, a Comédia Nova e, mais tarde, a elegia amorosa”, diz Pierre Grimal, “s6 podiam nascer numa sociedade que afrouxara os lagos tradicionais para dar ao individuo um lugar mais amplo... O romance abre as portas do gineceu e pula as muralhas do jardim onde passeavam as filhas das familias decentes*, Isso foi possivel porque se criara um espaco fntimo de liberdade e esse espa- 0 esiava aberto 20 olhar do poeta ¢ do paiblico, O individuo privado aparece e, com ele, um tipo de liberdade desconhe- 66 cida: "A tradig&o encarcera e determina o her6i trigico, en- quanto o herbi do romance é livre*”, Os deveres politicos, exaltados pela filosofia de Platio e Arist6teles, sto desloca- dos pela busca da felicidade pessoal, a sabedoria ou a sereni- dade, a margem da sociedade. Pirro procura a indiferenca, Epicuro a sobriedade, Zeno a impassibilidade: virtudes pri- -vadas, Outros buscam 0 prazer, como Calimaco ¢ Meleagro, ‘Todos desdenham a vida politica. Em Roma os poetas elegiacos proclamam com certa osten- tagio que servem a uma milicia diferente daquela que comba- te nas quest6es civis ou conquista terras longinquas para Roma: a militia amoris, Tibulo elogia a Idade de Quro por- ‘que, 20 contririo da nossa, “que ensangientou os mares e le- ‘vou a morte a todas as partes’, nfo conheceu a calamidade da guerra: “A arte cruel do guerreiro ainda no havia forjado a es- pada”. As inicas batalhas que exalta Tibulo em seus poemas sto as do amor. Propércio & mais desafiador. Numa elegia ele deixa a Virgilio a gléria de celebrar a vit6ria de Augusto em Accio; ele prefere cantar seus amores com Cintia, como 0 “vo- Iuptuoso Catulo, que fez Lésbia, com seus versos, mais famo- sa que Helena*. Em outra elegia nos diz com desenvoltura 0 que sente diante das facanhas patriéticas: “O divino César Augusto) se apressa a levar suas armas até 0 Indo... a subme- ter as correntes do Tigre ¢ o Eufrates... a levar ao templo de Jépiter os woféus dos partos vencicias... A mim me basta aplaudir 0 desfile na Via Sacra..." Todos esses testemunhos de Alexandria e Roma pertencem ao que eu chamei de pré-bist6- ria do amor. Todos eles exaltam uma paixio que a filosofia classica condenara como uma servidio. A atitude de Prop&i- clo, Tibulo e os outros poetas era um desafio a sociedade ¢ suas leis, uma verdadeira premoni¢o do que hoje chamamos ‘desobedigncia civil’. Nao em nome de um principio gersl, 5. Flere Grimal.Ieroduplo a Rome grecs et avis ibe dela Pade, Gatimard, 1958. o como no caso de Thoreau, mas sim por uma paixlo indivi- dual como @ do herbi de A idade de ouro, o filme de Bunuel e Dalf, Os poetas também poderiam ter dito que o amor nasce de uma atraglo involuntiria que nosso livre-arbitrio transfor- ma numa a¢do voluntiia, Este Gltimo sua condi¢ao necessa- tia, 0 ato que transforma a servidao em liberdade, Adama ¢ a aanta ‘A Antiguidade greco-romana conheceu 0 amor quase sempre como uma paixdo dolorosa e, apesar disso, digna de ser vivida e em si mesma desejivel, Esta verdade, legada pelos poetas de Alexandria e Roma, n&o perdeu nem um pouco de ‘sua vigencia: o amor é desejo de completude e assim respon- dea uma necessidade profunda dos homens. O mito do an- drégino & uma realidade psicolégica: todos, homens e mulhe- res, buscamos nossa metade perdida, Mas o mundo antigo no tinha uma doutrina de amor, um conjunto de idéias, prati- as € condutas encamnadas em uma coletividade e compai Ihadas por ela. A teoria que poderia ter cumprido essa funcio, © er0s platénico, na verdade desnaturalizou o amor e o trans- formou num erotismo filos6fico e contemplativo do qual, além disso, estava exclufda a mulher. No século XII, na Fran- $4, aparece por fim 0 amor, néo como um delirio individual, uma excegAo ou um extravio, mas como um ideal de vida su- perior. A apari¢ao do ‘amor cortés’ tem algo de milagroso, ois no foi conseqiiéncia de uma pregagio religiosa nem de ‘uma doutrina filos6fica. Foi a criagao de um grupo de poetas no seio de uma sociedade reduzida: a nobreza feudal do sul da antiga Galia. Nao nasceu num grande império nem foi fru- 69 to de uma velha civilizagio: surgiu num conjunto de senho- rios semi-independentes, num perfodo de instabilidade polt- tica mas de imensa fecundidade espiritual. Foi um antncio, uma primaveraO século XII fol 0 século do nascimento da Europa; nessa ép0ca surgem o que seriam depois as grandes ctiagbes de nossa civilizagio, entre elas duas das mais noté- vels: a poesia litica € a idéia do amor como forma de vida. Os poetas inventaram o ‘amor cortés’. Eles o inventaram porque era uma aspiracio latente daquela sociedade.!° A literatura sobre o ‘amor cortés’ é vastissinia. Aqui s6 to carei em alguns pontos que me parecem essenciais em rela- do 20 objeto destas reflexdes. Em outros textos tratei este as- sunto e mais dois outros a ele relacionados: o amor na poesia de Dante e na lirica do Barroco hispanico; neste ensaio no volto a falar sobre isso."" © termo ‘amor cortés' reflete a dife- renga medieval entre corte e villa, Nao 0 amor willaito— co- pulagio e procria¢do —, mas sim um sentimento elevado, proprio das cortes senhoriais. Os poetas nao o denominaram. ‘amor cortés’; usaram outra expressio: fin’ amors, quer dizer, amor purificado, refinado.’* Um amor que nao tinha por fim nem mero prazer carnal nem a reprodug&o. Uma ascética ¢ uma estética. Embora entre esses poetas houvesse personali- dades notéveis, o que conta realmente & sua obra coletiva.'* As diferencas individuais, embora profundas, nao impediram Taroeia proven um to ine to do pono devs Ingainco come as conngrdo plo coma. {fPfodor or eae gue mescion em segue aparece cm divert volumes de tminhar Obra complran aparece dest (ob de seal icmp {Bom Laer dea van, oro & Coelio de hee, pp. 22 Srna Ds de non kat amr de nf oro © Oss, Hk Gls Caps ones, pas cm Fae dene te ‘anor em provenga € vor fon. Coto para evr confuses, qua ‘bres onan so gino aris eave a met, doque de agen to pene pote proreng. ‘hue sel Nore, Borat Oe Venton, arma Suse eran de Bom ‘ven Se Di esi ocr, Pee Vial, Pee Cardcol. Sobre» poe Si provengl = ters & abundant Em canal tomes ma Ob funda Sag cer or rverr en hear} som, ar 70 que todos compartilhassem os mesmos valores e a mesma doutrina, Em menos de dois séculos esses poetas criaram um c6digo de amor, ainda hoje vigente em muitos de seus aspec- tos, € nos legaram as formas bisicas da lirica do Ocidente. Trés notas da poesia provencal: a maior parte dos poemas tem por tema’o amor, esse amor € entre homem e mulher; 0s poemas nao so mais escritos em latim: os poetas queriam ser entendidos pelas damas (Vita nuoud). Poemas nfo para serem lidos, mas ouvides, acompanhados por mésica, na cour do castelo de um gran senhor. Essa feliz combinagto entre a palavra falada e a mtisica s6 podia acontecer numa sociedade aristocritica amiga dos prazeres refinados, com- posta por homens e mulheres da nobreza, E nisso reside sua grande novidade hist6rica: 0 banquete platonico era s6 de homens ¢ 2s reuni6es adivinhadas nos poemas de Catulo € Propércio eram festas de libertines, cortesds € aristocratas de vida livre como Ciédia. . Varias circunsténcias hist6ricas tornaram possivel 0 nasci- mento do ‘amor cortés'. Em primeiro lugar, a existéncia de-se- nhorios feudais relativamente independentes e ricos. O sécu- Jo XII foi um periodo de afluéncia: agricultura préspera, inf- cio da economia urbana, atividade comercial nfo s6 entre as regides européias, mas também com 0 Oriente, Foi uma épo- ca aberta 20 exterion: gragas as cruzadas os europeus tiveram tum contato mais eetrelto com o mundo oriental, comn suas ri- quezas e suas ciéncias, por meio da culnsra arabe redescobri- ram Aristételes, a medicina e a ciéncia greco-romanas. Entre ‘0s poetas provencais alguns participaram das cruzadas. O fundador, Guilherme de Aquitinia, esteve na Siria e mais tar- de na Espanha. As relagdes com esta Gitima foram particular- ‘mente frutiferas tanto no dominio da politica e do comércio como no dos costumes; nfo era raro encontrar nas cortes dos senhores feudais bailarinas e cantoras frabes do Al Andalus. ‘Ao comegar 0 século XII sul da Franca foi um lugar privile- n giado no qual se entrecruzavam as mais diversas influ€ncias, desde as dos povos nérdicos até as dos orientais, Essa diver- sidade fecundou os espiritos e produziu uma cultura singular que nio é exagero chamar de primeira civilizago européia. © aparecimento do ‘amor cortés' seria inexplicével sem a ‘evolugo da condigio feminina, Essa mudanca afetou sobretu- do as mulheres da nobreza, que gozaram de maior liberdade que suas av6s nos séculos obscures. Virias circunstincias favo- Teceram essa evolugio. Uma foi de ordem religiosa{o cristianis- ‘mo outorgara a mulher uma dignidade desconhecida no paga- nismd, Outra, a heranga germfnica: Ticito jé tinha observado ‘com assombro que as mulheres germfinicas eram muito mais - ‘res que as romanas (De Germani), Finalmente, a situagio do mundo feudal. © casamento nfo era baseado no amor, mas sim ‘em interesses politicos, econémicos e estratégicos. Nesse mun- do em perpéna guerra, as vezes em paises longinquos, as au- sncias eram frequentes © os senihores eram obrigados a entre- ‘gar a suas esposas © govemo de suas terras, A fidelidade entre as partes no era muito rigorosa e hé muitos exemplos de rela- (G0es extraconjugais, Nessa época era muito popular a lenda ar- turiana dos amores adGheros da rainha Guinévera com Lance- lote, assim como a desgraga de Tristio e Isolda, vitimas de uma paixio culpavel. Por outro lado, aquelas damas pertenciam a familias poderosas ¢ algumas no vacilavam em enfrentar seus maridos. Guilherme de Aquitinia teve de suporiar o fato de ser abandonado por sua mulher que, refugiada numa abadia e alia- da a um bispo, nao descansou até conseguir sua excomu- nao." Entre as mulheres desse periodo destacou-se a figura de Leonor de Aquitinia, esposa de dois reis, me de Ricardo Cora- 40 de Ledo e patrona dos poetas. Virias damas da aristocracia foram também trovadoras;jé mencionei a condessa de Dia, fa- mosa érobairitz, As mulheres desfrutaram de liberdades no pe- AWA abaata de Fe uma ak a 144 sine de Fomevaut, govemaa por uma abadesta,Gutherme + cmon n riodo feudal e 2 perderam mais tarde pela aco combinada da Igreja e da monarquia absoluta. © fenémeno de Alexan- dria e Roma se repetiu: a historia do amor é insepardvel da historia da liberdade da mulher. Nao é facil determinar quais foram as idéias ¢ doutrinas que influfram no aparecimento do ‘amor cortés’. Em todo ‘caso, foram poucas. A poesia provencal nasceu numa socie- dade profundamente cristi. Contudo, em muitos pontos es- senciais o ‘amor cortés’ se afasta dos ensinamentos da Igreja € até mesmo se opde a eles. A formagao dos poetas, sua cultura e suas crengas eram cristis, mas muitos de seus ideais ¢ aspi- rages estavam em luta com os dogmas do catolicismo roma- no, Eram crentes sinceros ¢, a0 mesmo tempo, oficiavam num culto secular e que no era 0 de Roma, Nao parece que tal contradigdo tenha perturbado essa gente, pelo menos no no principio; por outro lado, ela nao passou despercebida pelas autoridades eclesiasticas, que sempre reprovaram 0 ‘amor conés'. E quanto a influéncia da Antiguidade greco-romana? Fol insignificante. Os poetas provengais conheciam os poetas latinos de maneira vaga e fragmentada, Havia, sim, prece- dente de uma literatura ‘neolatina’ de clérigos que escreviam ‘epistolas amatérias’ & maneira de Ovidio; segundo René Nelli “no tiveram influéncia nem no estilo dos primeiros trovado- res nem em suas idéias sobre o amor”."? Varios eriticos afir- mam que a pros6dia da poesia litirgica latina influiu na métri- ca e nas formas estr6ficas da lirica provengal. £ possivel. Seja ‘como for, os temas religiosos dessa poesia no podiam influir nas cangdes eréticas dos provengais. Por tltimo: © platonis- mo, o grande fermento erOtlco € espiritual do Ocidente. Em- bora ndo houvesse uma transmissio direta das doutrinas pla- ténicas sobre o amor, & verossimil que tenham chegado 20s poetas provensais certas nogbes dessas idéias por melo dos frabes. Esta hip6tese merece um comentirio a parte, 15. Ren€ Nall, Lorotique des troubadour, Toulouse, 1963. B ‘Ao falar das relagBes entre a ‘cortesia' arabe e a da Occit8- nia, René Nelli diz: “A influ€ncia mais prematura, profunda decisiva foi a da Espanha muculmana. As cruzadas na Espa- sha ensinaram mais aos bardes meridionais que as cruzadas no Oriente". A maioria dos entendidos admite que os poetas provencais adotaram duas formas poéticas populares frabe- andalazas: 0 zéjel* e a farcha, Menciono, em seguida, outro ‘empréstimo de grande significagio ¢ que teve conseqtiéncias ‘muito profundas no s6 na poesia mas também nos costumes nas crengas: a inversto das posigbes tradicionais do amante e sua dama. O eixo da sociedade feudal era o vinculo vert cal, 20 mesmo tempo juridico e sagrado, entre senhor e vas- salo. Na Espanha muculmana os emires ¢ os grandes senho- res haviam se declarado servidores e escravos de suas ama- das, Os poetas provencais adotam o costume frabe, invertem a relagio tradicional dos sexos, chamam a dama de sua se- nhora e se confessam seus servos. Numa sociedade muito ‘mais aberta que a hispano-mugulmana e na qual as mulheres gozavam de liberdades impensiveis sob o Isla, essa mudanca foi uma revolugio, Inverteu as imagens do homem e da smu- ther consagradas pela tradig2o, afetou os costumes, atingiu 0 vocabulério e, através da linguagem, a visio do mundo. Acompanhando 0 uso dos poetas do Al Andalus, que chama- vam suas amadas de sayyidi(meu senhor) € mawlanga (meu dono), 0s provencais chamaram suas damas de midons (meus dominis). E um uso que chegou até nossos dias. A ‘masculinizagio do tratamento das damas tendia a destacar a alteragio da hierarquia dos sexos: a mulher ocupava 4 posi- fo superior e o amante a do vassalo. O amor € subversivo. Podemos agora abordar o dificil tema do platonismo, Na cerética frabe 0 amor mais sublime & 0 puro; todos os tratadis- © Comporipio esréfica da mética popular dos mouros expanhbis (N. do T). a tas exaltam a continéncia e elogiam os amores castos. Trata- se de uma idéia de origem plat6nica, embora modificada pela teologia islimica. £ conhecida a influéncia da filosofia ‘grega no pensamento frabe. Os falasifos (twansctigao arabe de filésofos) logo tiveram acesso 3s obras de Arist6teles e al- ‘guns tratados platonicos e neoplatGnicos. Hé uma linha de fi- Iésofos 4rabes impregnados de neoplatonismo. £ bom distin- gulr entre aqueles que concebiam o amor como um caminho para a divindade ¢ 0s que 0 circunscreviam a esfera humana, embora com uma janela aberta para as esferas superiores. Para 2 ortodoxia is!4mica a via mistica que busca a unto com ‘Deus é uma heresia: a dist&ncia entre 0 Criador e a criatura € infranquedvel. Apesar dessa proibicio, uma das riquezas es- pitituais do Isla € a mistica sufi, que aceita a uniao com Deus. Entre os poetas e misticos sufis, alguns foram mértires e mor- reram por suas idéias. A tendéncia ortodoxa pertencia Mu- hammod Ibn Dawud, jurista e poeta de Bagda. Seu caso € singular porque Ibn Dawud foi também o autor de um livro, Ritab-al-Zabra (0 livro da flor), que € um tratado sobre 0 amor e no qual € claramente perceptivel a influéncia de O banguete e Fedtro: 0 amor nasce da visto de um corpo belo, 0s graus do amor vao do fisico ao espiritual, a beleza do ama- do como caminho para a contemplacio das formas eternas. Contudo, fiel 2 ortodoxia, Ibn Dawud rejeita a uniao com Deus: a divindade, eterna outridade, ¢ inacessivel. ‘Um século depois, na Cordoba dos Omeyas, 0 filésofo © poeta Ibn Hazm, uma das figuras mais atraentes do Al Anda- lus, escreve um pequeno tratado de amor, O colar da pomba, traduzido hoje em quase todas as linguas européias. Nés te- mos a sorte de contar com a admiravel versio de Emilio Gar- cia Gémez.' Para Ibn Hazm 0 amor nasce, como em Platéo, “agi Gach Ge, 0 lve defor € proven de 0 «0 cole da [onde Betoun Ensen ea otto 2 Corda patos Set arid 1971, Garcia Genes froma interesste comparasto ene as séias de The Hazm e as do Arciprese de Hi Hi 1 necessade de um ensalo raodemo sobre O fer do bom amor 5 da visao da beleza fisica. Também fala, embora de maneira ‘menos sistematica, da escala do amor, que vai do fisico ao es piritual. Ibn Hazm menciona uma passagem de Ibn Dawud que, por sua vez, é uma citagao de O banquete: “Meu parecer Gobre a natureza do amor) € que consiste na unido das almas que andam divididas, em relagao 2 como eram primeiro em sua elevada esséncia, mas nao como afirma Ibn (Deus tenha piedade dele!) quando, apoiado na opinific de certo filésofo, diz que as almas sto ‘esferas partidas’, mas sim pela relaglo que tiveram antes em seu altissimo mundo...” © filésofo Platdo e as ‘esferas partidas’ aludem ao discurso sobre os an- droginos em O banquele. A idéia de que as almas se procu- ram neste mundo pelas relagdes que tiveram antes de descer @ Terra e encarnar num corpo, também & de estirpe platéni- ca: € reminiscéncia. Hi outros ecos de Fedroem O colarda pomba: “Vejo uma forma humana mas, quando medito mais detidamente, creio ver nela um corpo que vem do mundo celeste das esferas". A contemplacdo da formosura é uma epifania, Encontrei outro eco de Ibn Hazm, ndo nos poetas provencais, mas sim em Dante. No primeiro capitulo de O colar da pomba lemos: *O amor, em si mesmo, é um acidente e ndo pode, portanto, ser suporte de outros acidentes” (“A esséncia do amor’). No ca- pitulo 25 da Vita nuova, quase com as mesmas palavras, se diz; “O amor ndo existe em si como substancia: 6 um aciden- te de uma substincia*, Em um e outro caso 0 sentido é claro: © amor no é nem um anjo nem um ser humano (uma subs- tincia incorpérea inteligente), mas algo que acontece aos ho- ‘mens: uma paixio, um acidente. A diferenga entre substancia eacidente é mais aristotélica que plat6nica, mas 0 que quero enfatizar é a perturbadora coincidéncia entre Ibn Hazm e Dante. A medida que passam os anos, parece-me que mais ¢ mais se confirma a idéia de Asin Palacios, o primeiro.a desco- brir a presenga do pensamento drabe na poesia dle Dante. 6 Teriam os provencais conhecido o tratado de Ibn Hazm? Embora seja impossivel dar uma resposta segura, hd indicios ‘que parecem mostrar @ influéncia do tratado drabe sobre o fin’ amors, Mais de 150 anos depois, André 0 Capelio escreve, a pedido de Maria de Champagne, filha de Leonor de Aquitdnia, um tratado sobre o amor: Dearte bonesta amandt, no qual re- pete idéias e formulas que figuram em O colar da pomba."” Nao € gratuito imaginar, além disso, que antes de escrito o trae tado de André o Capelio (1185), os poetas conheciam, ainda que de maneira fragmentada, as idéias da erética Srabe, 20 mesmo tempo em que assimilavam as formas métricas € 0 vo- cabulario amoroso de sua poesia. As afinidades sto numero- sas; 0 culto a beleza fisica, as escalas do amor, 0 elogio 4 castl- dade — método de purificaglo do desejo e ndo um fim em si mesma —e a visto do amor como a revelaglo de uma reali- ade transumana, mas no como uma via para chegara Deus, Este tiltimo € decisivo: nem 0 ‘amor cortés’ nem a erbtica de ‘Tbn Hazm sao uma mistica, Nas duas o amor é exclusivamente humano, embora contenha reflexos de outras realidades ou, como disse Hazm, ‘do mundo das esferas’. Conclusfo: a con- ‘cep¢io ocidental do amor mostra maior e mais profunda afini- dade com a dos 4rabes e persas que com a da fndia e do Ex- tremo Oriente. Nao é estranho: ambas sdo derivagdes ou, mais exatamente, desvios de duas religides monoteistas € compartlham a crenga numa alma pessoal e etema Q ‘amor cortés' loresce na mesma época e na mesma re- gill geognifica em que aparcee e sc estende a heresia cita- ra.8 Devido a suas pregagdes igualitdrias e @ pureza e integri- 19, ot of cour lm eo, wade wou de 3.) Pay, Nor York, 1s pe Mr postop Ato ot Sepoeniem cristae encase co oie Pepa pt ae nat Pena ar pork ae ores enignec cn mace Barge inch ae eee Se dade de costumes de seus bispos, o catarismo conquistou ra- pidamente uma vasta audiéncia popular, Sua teologia im- ressionou os letrados, a burguesia e a nobreza. Suas crticas a Igreja Romana alentaram uma populagzo cansada dos abu- 805 do clero e das intnusdes dos enviados papals, A ambiclo dos grandes senhores, que desejavam se apoderar dos bens da Igreja e se sentiam ameagados pela monarquia francesa, favoreceu também a nova f€. Por dltimo, um sentimento co- Jetivo que no sei se devo chamar nacionalista: 0 orgulho ea conscigncia de compantlhar uma lingua, costumes e culrara. Um sentimento difuso mas poderoso: o de pertencer a uma comunidade, a Occitania, o pais da lingua de oc, rival do pats da lingua de off. Duas sociedades, duas sensibilidades que hhaviam se cristalizado em duas maneiras de dizer ou (sim), essa particula que nos define nfo pelo que negamos, mas sim pelo que afirmamos ¢ somos. Ao se enraizar na Occité- nia, a religiio cftara se identificou com lingua ea cultura do pais. Muitos dos grandes senhores ¢ damas que protegeram 0s trovadores tinham simpatia por essas doutrinas. Embora houvesse trovadores cétaros — e nenhum deles escreveu poesias amorosas — é natural uma certa relagio entre o ‘amor cortés’ e as crengas dos cétaros, Mas no conteate com essa verdade inécua, Denis de Rougemont foi mais longe: acreditou que os poetas provencais tinham se inspirado na doutrina cétara e que dela vinham suas idéias basicas, De de- dusao em dedugao, chegou a afirmar que 0 amor ocidental era uma heresia — ¢ uma heresia que nfo sabia ser uma he- resia. A idéia de Rougemont € sedutora e confesso que du- ante algum tempo conquistou, sem reticencias, minha ade- sto. Depois nao concordei e explico por qué. Mais que uma heresia, 0 catarismo foi uma religido, pois, sva crenga fundamental é um dualismo que se opde a f€ cris- 18 em todas as suas modalidades — da cat6lica romana 4 bi- zantina. Suas origens esto na Pérsia, bergo de religides dua- B listas. Os cétaros professavam nfo s6 2 coexisténcia de dois principios —a luz e as trevas—, mas também, em sua versio mais extrema, a dos albigenses, a das duas criagSes. Como -varlas seitas gnésticas dos primeiros séculos, acreditavam que a Terra era criagio de um demiurgo perverso (Sata) e que a matéria era, em si mesma, m4, Acreditavam também na transmigrago das almas, condenavam a violéncia, eram ve~ getarianos, pregavam a castidade (a reproducdo era pecado), lo condenavam o suicidio e dividiam sua Igreja em ‘perfei- tos’ e simples crentes, © crescimento da Igreja cftara no sul da Franga e 20 norte da Itilia 6 um fen6meno assombroso, inexplicavel: 0 dualismo & nossa resposta espontinea 20s horrores e as injusticas da Terra, Deus no pode ser 0 criador de um mundo sujeito 20 acidente, a0 tempo, a dor ea morte; 86 um deménio pode ter criado uma terra manchada de san- 1e € regi a injustica. Santa ders exengas tea a menor fied com a do ‘amor cortés'. Na verdade, deve-se dizer 0 contririo: hi oposigio entre elas. O catarismo condena a matéria € essa condenagao alcanga todo 0 amor profano, Por isso 0 casa- mento era visto como um pecado: gerar filhos era propagar a matéria, continuar a obra do demiurgo Sata. Tolerava-se 0 ca- samento, para o crente comum, como pis aller, um mal ne~ cessario,[O ‘fin’amors’ o condena também, mas por uma ra- zo diametralmente oposta: era um vinculo contraido, quase sempre sem a vontade da mulher, por razdes de interesse material, politico ou familiat, Por essa razdo exaltava as rela- $e fora do matriménio, sob a condigio de que nao estives- sem inspiradas pela mera lascivia e fossem consagradas pelo amor, O eftaro condenava o amor, incluindo o mais puro, porque amarrava a alma & matéria: 0 primeiro mandametito da ‘cortesia’ era amor a um corpo belo, © que era santo Para os poetas era pecado para os cftaros. ro) ‘Aimagem da escala figura em quase todos os cultos. Con- tém duas idéias: a de subida e a de iniciagio. De acordo com a primeira, o amor é uma elevagio, uma mudanga de estado: 08 amanies transcendem, pelo menos por um momento, sua condigdo temporal e, literalmente, se transportam a outro mundo. De acordo com a segunda idéia, conhecem uma rea- lidade oculta. Trata-de de um conhecimento ndo-intelectual: © que contempla e conhece no € 0 olho do intelecto, como em Platdo, mas sim 0 do coragdo. f preciso acrescentar outro aspecto, derivado nao da tradi¢io religiosa nem da filos6fica, ‘mas sim da realidade feudal: 0 ‘servigo' do amante. Como 0 vassalo, o amante serve a sua amada. O ‘servigo’ tem varias ‘tapas: comeca com a contemplacio do corpo e do rosto da amada ¢ continua, conforme um ritual, com a troca de sig- nos, poemas, entrevistas. Onde e quando termina? Se lemos 0s textos, comprovamos que, durante o primeiro periodo da poesia provengal, nao havia erro possivel: a consuragio do amor era 0 gozo carnal. Era uma poesia cavalheiresca, escrita por senhores e dirigida as damas de sua classe social. Num segundo momento aparecem os poetas profissionais; muitos deles no pertenciam a nobreza e viviam de seus poemas, uns perambulando de castelo em castelo ¢ outros sob a pro- tego de um grande senhor ou de uma dama de alta linha- gem. A ficcdo potica do principio, que convertia o senhor ‘em vassalo de sua dama, deixou de ser uma convencio e re- fleci a realidade social: os poetas, quase sempre, eram de ca- tegoria inferior 4 das damas para as quals compunham suas cangdes. Bra natural que se acentuasse a tonalidade ideal da relago amorosa, embora sempre associada a pessoa da ama. A pessoa: sua alma e seu corpo. ‘Nao podemos esquecer que @ ritual do ‘amor cortés' era ‘uma ficpdo poética, uma regra de conduta e uma idealizaca0 da realidade social. Assim, € impossivel saber como e até que ponto seus preceitos eram cumpridos. Também deve-se con- 80 siderar que durante a segunda época do ‘amor cortés’, que foi seu apogeu, a maioria dos trovadores eram poetas de pro- fissdo e seus cantos expressavam nao tanto uma experiéncia pessoal vivida como uma doutrina ética e estética. Ao com- porem suas cangbes de amor, cumpriam uma funcio social, Mas é evidente, também, que os sentimentos ¢ idéias que aparecem em seus poemas correspondiam de algum modo 20 que pensavam, sentiam e viviam os senhores, as damas € os clérigos das cortes feudais. Isto ressalvado, enumero os irs graus do ‘servigo’ amoroso: pretendente, suplicante € aceito,® A dama, 20 aceitar o amante, o beijava ¢ com isso terminava seu servico. Mas havia um quarto grau: 0 do aman- te carnal (drutz). Muitos trovadores no aprovavam que se chegasse ao fach (ao fato: 2 copulagdo). Esta reserva se devia certamente & mudanga de categoria dos trovadores que ha- viam se convertido em poetas profissionais; seus poemnas 020 refletiam seus sentimentos e, além disso, era jé muito grande a distincia que os separava das damas, As vezes nao era so a categoria, mas também a idade: eles ou elas eram velhos. Fi- nalmente, pensava-se que a possessio matava 0 desejo € 0 amor. Coniudo, Martin de Riquier observa que a critica mo- dema "deixou claro que o fin’amors pode aspirar & unio fi- sca. Se tal aspiraglo nao existisse, ndo teria o menor senti- doo género chamado alba, que supée jd consumada a unio entre os amantes’.” Entre outras coisas, essas cangbes, fres- as como o amanhecer, iluminariam a lirica européia, desde 0s rouxinéis de Shakespeare até 0s péssaros de Lope de ‘Vega: Pareja de rutsefiores que canta la nocbe entera, yyo.com mi bella amiga bajo ta enramada en flor, 1: René Well, op. cl. 20.Manin de Riquier, op. En basta que grite el vigha en lo alto de la torre: jarrita, amantes, ya es bora, elalba baja del monte!™= A idéia de que o amor 6 uma iniciagdo implica que é tam- bém uma prova. Antes da consumacto fisica havia uma etapa intermedifria que se chamava assag ou assat prova de amor. Multos poemas aludem a esse costume e entre eles um da condessa de Dia e outro de uma trobairitz menos conhecida, Azalais de Porcairagues, Esta Gltima expressamente se refere 0 assat "Belo amigo... logo chegaremos & prova (asten ven- rema Vasa!) e me entregarei a vossa merce”. O assai abran- gla, por sua vez, varios graus: assistir ao levantar e ao deitar da dama; contemplé-la desnuda (0 corpo da mulher era um mi- crocosmo e em suas formas se fazia visivel a natureza inteira com seus vales, colinas e florestas); enfim, penetrar no ieito com ela ¢ entregar-se a diversas caricias, sem chegar A final Coitus interruptus)? Nosso poema “Raz6n de amos", que em seus primeiros versos alude expressamente a0 ‘amor cortés', oferece uma en- cantadora desciigio do assai Um jardim deliciosamente artii- ial: “o lugar ameno”. A Fonte, as Srvoresfloridas, os pissaros, as 10895, 0 lio, a sflvia, as violetas, as ervas arométicas: uma primavera balsdmica. Aparece um joven: é um ‘escolar’, vem da Franga ou da Itilia, procura alguém ¢ se deita ao lado da fonte: como faz calor, cleixa as roupas por perto e bebe a Sigua fia do manancial. Chega ua donzela de rara beleza, seus tra¢os fisicos ¢ seu vestido sto descritos com prazer: o manto eobrie| de seda, o chapéu, asluvas. A jovem avanga conando 2 Poene anime Minka ven € he * "Dos round que carta a noite toce/ cu com ch bela amiguich 0s then ers ast ue po ds wore pa os, aa or a mania decd cleat Ot do) pe cnn ams 8 2a. omen en critoin ns pga als de Aparincacesurde Navel Doct), no volume Vi eas bas Ceol etn de 82 flores e enquanto as corta canta uma cangio de amor. Ele se Jevanta € vai a seu encontro: perguntrlhe se “sabe de amor’, ela Ihe responde que sim, mas que ainda nfo conhece seu amigo. Por fim se reconhecem pelos presentes que um en-. ‘viow a0 outro: ela é aquela que ele espera e ele € aquele que ela busca, Ambos slo adeptos da ‘cortesia’. Os dois se apr ximam, se abragam, deitam “so ef oltvar* 'debaixo das olivei- ras") ela tira 0 manto ¢ 0 beija nos olhos ¢ na boca: "tan gran- de sabor de mt habia/sol fablar no me podia" (tio grande sa- bor de mim havia/o sol queimar niio me podia"). Assim, acariciando-se, juntos durante longo tempo: “un grant pleza alls estanda/de nuestro amor ementando” (estando ali uma grande pega/o nosso amor comentanto") até que ela precisa se despedir e vai embora, com muita pena ¢ juramentos de amor. O mancebo fica sozinho e diz: "Deque la vi fuera del ‘buerto/por poco non fut muerto? (“Desde que a vi fora do hor- to/por pouco nao me vi morto"). ‘O texto que chegou até nés ndo parece completo; talvez seja fragmento de um poema mais longo. Hé certos elemen- tos que fazem pensar que seja uma alegoria. Entre os galhos de uma macieira o jovem descobre dois copos. Um é de prata e contém um vinho claro e vermelho, deixado para seu ami- 0 pela dona da horta. f:2 mesma que toma sol com 0 man- cebo '50 efolivar’ ou € outra, mencionada pela donzela e que também o ama? O segundo copo € de Agua fria. O jovem con- essa que a beberia de bor grado se nao fosse pelo medo de ‘que estivesse enfeiticada. Nao tentarei decifrar esse misterio~ 50 poema: eu o citei 6 para mastrar, com um exemplo da lin~ ‘gua espanhola, 0 ritual do assaf, a prova do amor. Entre 0 ‘amor cortés' e o catarismo hé pontos de contato que também existem com o cristianismo e a tradicao platéni- ca, Estas afinidades sio naturais: 0 assombroso e significativo € que o ‘zmor cortés’ desde o principio tenha se manifestado de maneira independente e com caracteristicas que profbem 8 confundi-lo com as crengas dos cétaros ou com os dogmas da Igreja catélica, Foi uma heresia tanto do cristianismo como das crengas cftaras ¢ da filosofia platénica do amor. Melhor dizendo, foi uma dissidéncia, uma transgressdo. Digo isso porque foi essencialmente secular, vivido e sentido por seculares. Eu 0 chamei de culto porque teve ritos e fis, mas foi um culto frente ou fora das igrejas e religides. Este € um dos tragos que separam o erotismo do amor. O erotismo pode ser religioso, como se vé no tantrismo em algumas seitas gn6sticas cristas; 0 amor sempre € humano. Assim, ois, a exaltacao do amor nio era nem podia ser compativel ‘com 0 rigoroso duslismo dos cétaros. No momento da gran- de crise do catarismo, que arrastou em sua queda a civiliza- ‘go provencal, o pais invadido pelas tropas de Simon de Montfort e as consciéncias violadas pelos inquisidores, & compreensivel que 0s poetas provengais, como 0 resto da populagio, tenham mostrado simpatia pela causa dos céta- 10s. Nao podia ser de outro modo: sob o pretexto de extirpar ‘uma heresia, o rei francés Luis VII, em cumplicidade com o papa Inocéncio Ill, que proclamou a cruzada contra os albi- genses, estendeu seu dominio 20 su! e acabou com a Occiti- nia, Naqueles dias terriveis todos os occitanos — cat6licos ctaros, nobres e burgueses, povo e poetas — foram vitimas da soldadesca de Simon de Montfort e dos cruéis inquisido- res dominicanos. Mas no € nenhumna loucura supor que se, por um milagre, os cAtaros tivessem triunfado, eles também terlam condenado o ‘amor burgués’. ‘As razOes da Igreja de Roma para condenar o fin’amers, embora diferentes das dos cétaros, ndo eram menos podero- sas, Antes de tudo, a atitude diante do casamento. Para a Igreja 6 um dos sete sacramentos instituidos por Jesus Cristo. Atentar contra sua integridade ou colocar em divida sua san- tidade ndo era unicamente uma falta grave: era uma heresia. 84 Para os adeptos do ‘amor cortés’, 0 casamento era um jugo injusco que escravizava a mulher, enquanto o amor fora do casamento era sagrado ¢ conferia aos amantes uma dignida- de espiritual, Como a Igreja, condenavam o adultério como lascivia, mas o convertiam em sacramento se fosse ungido pelo fluido misterioso do fin’amors. A Igreja tarnpouco podia ‘aprovar os ritos da cortesia amorosa; se os primeiros passos, embora pecaminosos, podiam parecer inécuos, nao se podia dizer a mesma coisa das diferentes ceriménias extremamente sensuais que compunham 0 assai. A Igreja condenava a unio carnal, mesmo dentro do casamento, se nio tivesse ‘como fim declarado a procriaga0. O ‘amor cortés’ nao s6 era indiferente a essa finalidade como seus ritos exaltavam um ‘prazer fisico ostensivamente desviado da reproduclo. A Igreja clevou 2 castidade ao nivel das virtudes mais al- tas, Seu prémio era ultraterreno: a graca divina e, para os me~ Ihores, até mesmo a beatificagio no céu. Os poetas proven- ais falavam muito de uma misteriosa exaltagao, 20 mesmo tempo fisica e espiritual, por eles chamada de jot e que era ‘uma recompensa, a mais alta, do amor. Esta foi nao era nema simples alegria nem 0 gozo, mas sim um estado de felicidade indefintvel. Os termos com que alguns poetas descrevem a jot fazem pensar que se referem a0 gozo da possessio carnal, ‘embora refinado pela espera ¢ a mesura: o ‘amor cortés’ nao ‘era uma desordem e sim uma estética dos sentidos. Outros falam do sentimento de unio com a natureza por meio da contemplagio da amante nua, comparando-o com a sensa- Ho que nos emociona diante de certas paisagens, como uma manha de primavera. Para outros, era uma elevagto da alma semelhante aos transportes dos misticos e a0 éxtase dos fil6- sofos € poetas contemplativos, A felicidade é, por esséncia, indizivel, a joi dos provengais era um género inusitado de fe- licidade e, assim, duplamente indizivel. 56 a poesia podia aludir a esse sentimento. Outra diferenca: a jot nfo era um 85, prémio post-mortem como o outorgado a abstin€ncia, ¢ sim Juma graga natural concedida aos amantes que haviam depu- rado seus desejos. “Todas essas diferengas se conjugavam numa outra maior: a elevacio da mulher, que de sddita passava a ser senhora, O ‘amor cortés’ concedia as damas o senhorio mais apreciado: © do seu corpo e sua alma. A ascensio da mulher foi uma re- volugio nao s6 na ordem ideal das relagdes amorosas entre (08 sexos, mas na realidade social. £ claro que o ‘amor cortés’ niio conferia as mulheres direitos sociais ou politicos; nao era ‘uma reforma juridica: era uma mudanga na visio do mundo. ‘Ao transtornar a ordem hierarquica tradicional, tendia a equi- librar a inferioridade social da mulher com sua superioridade no dominio do amor. Nesse sentido foi um passo em diregio A igualdade dos sexos. Mas, aos olhos da Igreja, a ascensio da dama se traduzia numa verdadeira deificagto. Pecado mortal: amar a uma criatura com © amor que devemos pro- fessar ao Criador. Idolatria, confus4o sacrilega entre 0 terres- tre e 0 divino, o temporal e 0 eterno. Compreendo que Rou- gemont tenha visto no amor uma heresia; também com- preendo que W, H. Auden dissesse que o amor era ‘uma doenga do cristianismo’. Para os dois nao havia nem pode hhaver sate fora da Igreja. Mas compreender uma idéia nto é compartilh-Ja — penso exatamente o contratio. Em primeiro lugar, o ainor aparece em outras civilizagbes: ‘o.amor também é uma heresia do budismo, do taofsmo, € do Isla? Quanto ao amor ocidental, o que os teélogos ¢ seus se- ‘guidores modernos chamam de deificacdo da mulher, foi na verdade um reconbecimento. Cada pessoa & tinica e por isso nfo é abuso de linguagem falar da ‘santidade da pessoa’, A expressio, além disso, é de origem cristt. Sim, cada ser hu- mano, sem excluir as mais vis, encarna um mistério que nto seria exagerado chamar de santo ou sagrado. Para 0s cristios e os muculmanos 0 grande mistério é a queda: a dos ho- 86 mens, mas também a dos anjos. A grande queda, o grande mistério, foi o do anjo mais belo, o lugar-tenente das milicias celestiais: Luzbel. A queda de Luzbel prenuncia e contém a dos homens. Mas Luzbel, até onde sabemos, € iredimivel: sua condenagio € eterna. O homem, ao contritio, pode pa- gat sua falta, ransformar a queda em vo. O amor é 0 reco- nhecimento, na pessoa amada, desse dom do v8o que distin- gue todas as crfaruras humanas, O mistério da condigio hu- mana reside em sua liberdade: & queda ¢ € v6o. E nisso também reside a imensa seduglo que exerce sobre nés 0 amor, Nao nos oferece uma via de salvagio e muito menos é uma idolatria. Comeca com a admiragao diante de uma pes- soa, vem depois o entusiasmo e tudo culmina com a paixdo que nos leva 2 felicidade ou ao desastre. O amor € uma prova que a todos, felizes e desgracados, enobrece. © fim do ‘amor cortés’ coincide com’o da civilizag20 pro- vengal. Os tltimos poetas se dispersaram; alguns se refugia- ram na Catalunha e na Espanha, outros na Sicilia e no norte da Itilia. Mas antes de morrer a poesia provencal fecundou 0 resto da Europa. Por sua influéncia as lendas celtas do ciclo arturiano transformaram-se ¢, gra¢as a sua popularidade, 2 ‘contesia’ se converteu num ideal de vida. Chrétien de Troyes foi o primeiro a inserir na matéria épica tradicional a nova sensibilidade. Seu romance em verso sobre os amores ilicitos de Lancelote com a rainha Guinévera foi muito imitado. Entre todos esses relatos, destaca-se 0 de Tristdo e Tsolda, arquéti- po até nossos dias do que se chamou de amor-palxio. Na hist6ria de Tristao ha elementos barbaros € magicos que lhe ‘conferem uma grandeza sombria, mas que a separam do ideal da ‘comtesia’, Para os provencais, que nisso’seguem Ibn Hazm e erética Srabe, o amor € 0 fruto de uma sociedade refinada; no & uma paixio trigica, apesar dos sofrimentos e penas dos apaixonados, porque seu fim Gltimo & a fof, essa felicidade 87 que resulta da unido entre 0 gozo € a contemplago, © mun- do natural e 0 espiritual, Nos amores de Tristio com Isolda os elementos migicos — a pogo que bebem inadvertidamente ‘0s amantes — contribuem poderosamente para realgar as forcas irracionais do erotismo. Vitimas desses poderes, os amantes nfo tém outra saida sendo a morte. A oposi¢o entre esta visio negra da paixdo e a da ‘cortesia’, que a vé como ‘um processo purificador que nos leva & iluminago, constitui ‘a ess€ncia do mistério do amor. Dupla fascinagao diante da vida ¢ da morte, o amor é queda e vbo, escolha e submissio. ‘A influéncia dessa literatura, que misturava as lendas bar- baras com a ‘cortesia’, foi imensa. Um célebre epis6dio da Di- vina comédia ilustra o poder que exerceu sobre 08 espiritos. Dante encontra, no segundo circulo do ‘Inferno’, o dos luxu- riosos, Paolo e Francesca. Interrogada pelo poeta, Francesca The conta que um dia, enquanto ela e Paolo liam juntos um li- vyro que narrava os amores de Lancelote ¢ Guinévera, desco- bbriram o amor que sentiam um pelo outro ¢ que 0s levou & morte, Ao chegar no trecho em que Lancelote ¢ Guinévera, ‘unidos por sua paixto, beljam-se pela primeira vez, pararam a leinura ¢ olharam-se perturbados. Entdo questi, che mai da me non fia divlso, Ta bocca me basci tremante”* Francesca comenta: "Quel giorno pitt non ui legemma avan- te..." CNaquele dia, ndo mais continuamos a ler...")*, Dis- ‘cutiu-se muito se Dante teve pena ou nfo da sorte do infeliz casal, O certo &.que, 20 ouvir sua hist6ria e vé-los no inferno, desmaiou. Em boa teologia, a sorte dos pecadores 86 pode nos ins- pirar desgosto ou repugnéncia. O contririo seria uma blasfé- 35 Bi ert apd 1 cep oe anda "Ete, de quem jamais me separarel, / a mink boca bejo,fremente (N. do). 24, Ne etna mas desde es stam. ide) 88 ‘mia: duvidar da justiga divina, Mas Dante era também um pe- cador e seus pecados eram sobretudo de amor, como Beatriz co faz lembrar mais de uma vez. Talvez por isso e pela simpa- tia que sentia por Francesca — era amigo de sua familia — ‘mudou um pouco a historia; no romance € Guinévera quem primeiro beija Lancelote. Dante se propunha unir 0 teélogo ‘0 poeta, mas nem sempre conseguiu isso. Como todos os poetas do dolce sill nuovo, conhecia ¢ admirava os proven- gais. No episédio de Paolo e Francesca alude duas vezes 2 doutrina do ‘amor cortés’. A primeira é um eco de seu mestre, Guido Guinizelli, que via o amor como uma aristocracia do coracio: “Amor, eb’al cor gentil ratio s'apprend**Amor, que ‘20 coracdo gentil velozmente se apega”). © amor & uma con- fraria espiritual e $6 aqueles de alma generosa podem amar realmente. A segunda repete uma maxima de André 0 Cape- lio: “Amor, cb’a nullo amato amar perdona” *Asmor, que todo amado exige amar"). Amor manda e desobedecé-lo, para a alma nobre, € impossivel. Francesca, 20 repetir esta maxima, ndo se desculpa de seu amoroso pecado? E essa desculpa nao é também um novo pecado? Que ters realmen- te pensaclo Dante de tudo isso? Dante mudou radicalmente o ‘amor cortés' a0 coloci-1o na teologia escoldstica. Dessa forma reduziu a oposiglo entre ‘amor € 0 cristianismo. Ao introduzir uma figura feminina de salvagdo, Beatriz, como intermediaria entre 0 céu e a terra, transformou o carfter da relagao entre o amante e a dama. ‘Beatriz continuo ocupando a posi¢io superior, mas 0 vincu- To entre ela e Dante mudou de natureza. Alguns se pergunta- ram: era amor realmente? Mas se no era, por que ela interce- dia por um pecador em particular? © amor € exclusivo; a cari dade ndo é: preferir uma pessoa entre outras € um pecado contra a caridade. Assim, Dante continua preso pelo ‘amor cortés’. Beatriz cumpre, na esfera do amor, uma funcdo anélo- ga a da Virgem Maria no dominio das crengas gerais. Muito 69 bem, Beatriz nao € uma intercessora universal: & movida pelo ‘amor a uma pessoa. Em sua figura hé uma ambigtidade: Bea- triz € amor e caridade. Acrescento outra ambigtidade, nao menos grave: Beatriz é casada. De novo Dante segue o ‘amor cortés’ — e numa de suas mais ousadas transgress6es da mo- ral crista. Como justificar a solicimde com que Beatriz cuida da satide espiritual de Dante se ndo & pela intervencao do amor? ‘Também era casada Laura, a amada de Petrarca Caliés, an- tepassada do marqués de Sade). Nao se trata, naturalmente, de uma coincidéncia: os dois poetas foram fiis ao arquétipo do ‘amor cortés’. O fato é particularmente significativo se pen- samos que Dante ¢ Petrarca nao s6 foram poetas de genio dis- tinto, mas que suas concepgdes sobre o amor também eram diferentes. Petrarca & um espitito menos forte que Dante; sua poesia no abarca a totalidade do destino humano, suspenso pelo fio do tempo entre duas eternidades. Mas sua concepg30 do amor mais moderna: nem sua amada € uma mensageira do céu nem entreabre os mistérios sobrenaturais. Seu amor & ideal, nfo celeste; Laura € uma dama, nao uma santa. Os poe- mas de Petrarca nao relatam visbes sobrenaturais; sto andlises sutis de paixo. O poeta se compraz nas antiteses — 0 fogoe © gelo, a luz e a treva, 0 vS0 € a queda, o prazer ea dor — porque ele proprio é 0 teatro do combate de paixdes opostas. Dante ou a linha reta; Petrarca ou 0 continuo ziguezague. Suas contradigdes 0 imobilizam até que novas contradligdes 0 coloquem de novo em movimento. Cada soneto é uma arqui- tetura aérea que se dissipa para renascer em outro. O Can- zionere, diferente da Divina comédia, no € 0 relato de uma peregrinacao e uma subida; Petrarca vive e descreve um in- termindvel debate com ele proprio ¢ em si mesmo. Vive para dentro e nao fala a nao ser com seu interior, £ o primeiro poeta modemo; quero dizer, o primeiro que tem consciéncia de suas contradigbes e as converte em substincia de sua poe- 90 sia. e toda a poesia européia do amor pode ser vista sr ene sete de gloss, varagoese wanspressGes do Can- zionere. Muitos poetas superam Petrarca nisso ou naquilo, fembora poucas vezes na totalidade. Penso em Ronsard, Don ne, Quevedo, Lope de Vega e, enfim, nos grandes lirics do Renascimento e do Barroco. Ao final de sua vida, Petrarca so- freu uma crise espiritual e renunciou a0 amor: julgava-o um ‘extravio que havia posto em perigo sua salvacdo, segundo nos conta em suas confissdes (Secretum). Seu mestre foi San- to Agostinho, outro grande apaixonado € mais sensual que ele, Sua retratagao foi também uma homenagem— um reco- nhecimento dos poderes do amor, © legado provencal foi duplo: as formas poéticas € as idéias sobre 0 amor, Por meio de Dante, Petrarca € seus su- cessores, até 0s poetas surrealistas do século XX, esta tradi- ‘glo chegou até nés. Vive néo s6 nas formas mais elevadas da arte e da literatura do Ocidente, mas também nas cangbes, ros filmes e mitos populares. A principio, a transmissao foi direta: Dante falava 0 Jemosim, e no Purgatério, quando apa- rece Amaut Daniel, o faz falar em verso ¢ na lingua de oc. Também Cavalcanti, que viajou pelo sul da Franca, conhecia ‘© provengal. O mesmo aconteceu com todos os poetas dessa ‘geraco. Embora hoje s6 um grupo de pessoas fale a lingua de og, a tradigao que fundou a poesia provengal nio desapa- receu. A hist6ria do ‘amor cortés’, suas mudangas ¢ metamor- foses, nao é s6 a de nossa arte e Iteratura: & a hist6ria de ni sa sensibilidade e dos mitos que incendiaram muitas imagi- nagdes desde 0 século XII até nossos dias. A hist6ria da civilizagto do Ocidente. on Un sistema solar Se fizermos uma retrospectiva da literatura ocidental du- rante 0s oito séculos que nos separam do ‘amor cortés’, logo comprovaremos que a imensa maioria desses poemas, pecas de teatro e romances tém 0 amor como tema, Uma das fun- g6es da liceratura € a representagao das paixdes; a preponde- rncia do tema amoroso em nossas obras literarias mostra que o amor tem sido o tema central dos homens e mulheres do Ocidente. Outro tema & o do poder, desde a ambi¢ao polt- luca a sede de bens materiais ou de honrarias. No curso des- tes oito séculos, teria mudado o arquétipo que nos legaram (03 poetas provengais? A resposta a essa pergunta exige mais, de um minuto de reflexto, As mudangas foram tantas que & quese impossivel enumeré-las, no menos dificil seria tentar uma andlise de cada tipo ou variante da paixao amorosa, Da dama dos provengais até Anna Karenina muitas foram as mu- dangas; comegaram com Dante e continuam até os dias de hoje, Cada poeta e cada romancista tem uma visto propria do amor; alguns até tém varias, e encarnadas em persona- ‘gens diferentes. Talvez o mais rico em personagens seja Sha- kespeare: Julieta, Ofélia, Marco Antonio, Rosalinda, Otelo... 3

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