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“FIZ ABORTO E NAO SOFRI” m 2012, no tltimo ano da faculdade de Jornalismo —Thamires Freitas da PUC-SP, eu e meus colegas recebemos 0 desafio cotoelaeutegnae Pe de achar uma fonte que tivesse feito aborto. A tarefa nao foi facil. Nao conheco ninguém que tenha feito aborto e por ser um tema delicado, dificilmente encontraria alguém disposto a falar sobre o assunto. Foi entiio que resolvi pesquisar sobre o tema na internet € cheguei até o blog “Es- ereva Lola Fscreva”, em que encontrei Walx' e seu relato sobre aborto*. Foi assim que a entrevista abaixo comesou. Walx fez um aborto em 2006, aos 28 anos, quando cursava 0 segundo ano da Faculdade de Direito. Ela morava em outra cidade e trabalhava 0 dia inteiro como estagiaria. Teve um affair de cinco dias e, num dos encontros, 0 preservativo foi mal eolocado pelo parceiro. “Nunca esquecerei aquela horrivel tarde de maio, Um pedaco de papel nas maos e eu so via a palavra ‘positive’. Sentei na escada do laboratério. Chorei.” Em momento algum Walx se sentiu mae e, de modo algum, desen- yolveu um vinculo afetivo com sua condicao, “Eu queria um futuro diferente. Viagens. Estudos. Escrever livros. E aquilo dentro de mim, naquele momento, nao era um filho, Era um problema a resolver.” O parceiro utilizou argumen- tos machistas para escapar da situagao. “E ainda ouvi a pergunta naturalmente cliché; “Sera que é meu mesmo?” Ele mandou dinheiro para realizar 0 aborto, dizendo que seria a primeira e tiltima vez. que ele mandaria dinheiro e me man- dou esquecé-lo. ” Walx comprou Misoprotol, conhecido por Cytotec, pela internet € contou com o apoio dos amigos durante o procedimento. Ela diz que tudo foi simples, como uma céli menstrual e, acima de tudo, nao sentia culpa. “A vida. seguiu, hoje viajo meio mundo, escrevo livros e luto pelos direitos das mulhe- > | A QUEM PERTENCE O CORPO DA MULHER? res. Faco a diferenca. Durmo tranquila. Nao tenho remorso algum. Sou serena hoje com a minha decisdo naquela época. Se acontecer hoje, a postura é outra, porque hoje o desejo pelo filho existe. ” - Como foi sua criagio e formacio? Possui religiao? Minha familia é constituida por mie, pai, trés filhas e um filho. Sou a filha mais velha, tenho hoje 34 anos. Minha mae e meu pai atualmente traba- Tham — e muito — como servidores ptiblicos, minha mae é enfermeira e meu pai é advogado. Meus pais sempre foram leitores vorazes, muito questionadores e transmitiram isso na educagdo que deram aos filhos. Eles sempre nos educa- ram para sermos seres livre-pensantes. Aprendemos com eles a perguntar os porqués, a nao aceitar respostas prontas, coisas do tipo “é assim mesmo e fim”. Fomos educados para sermos pessoas criticas e fomos incentivados a desen- volver talentos, gostar da pesquisa e da ciéncia, além de almejar uma carreira profissional. Eles sempre deixaram claro que familia e maternidade podem ser duas formas de realizago para uma mulher, mas nao sao as unicas. Ser mae nao 6 uma missio obrigatéria a ser cumprida por nés mulheres. Quanto A minha formagéio, eu e minhas irmas estudamos em colégio de freiras praticamente todo 0 ensino fundamental. No meu caso, foram sete anos, do pré-primério até a sexta série. Importante ressaltar o seguinte: meus pais nao pensaram em nos colocar nessa escola de freiras em virtude do ensino religioso. O objetivo deles era proporcionar a nés, suas filhas, acesso a um ensi- no de excelente qualidade, o que era uma realidade propiciada pela escola pri- vada onde estudamos boa parte de nossa formagao educacional basica. Eu nao sé ia as aulas como também frequentava as missas, fiz cursinho de catequese para a primeira eucaristia e, por estudar no colégio de freiras, co- gitei até me tornar uma delas. Depois meus pais transferiram eu e minhas irmas para um colégio piblico estadual, onde completei a s¢tima e oitava séries do ensino fundamental, antigo “primeiro grau”. A partir de entao nunca mais estu- dei em escolas particulares — exceto cursinho pré-vestibular que frequentei. Fiz dois anos de cursinho e fui aprovada no curso de Direito de uma das melhores Universidades Federais da regiaio Sul do Brasil. No que concerme 8 religiao, hé oito anos sou budista. E 0 aborto acon- teceu quando eu ja era budista ha pelo menos uns trés anos. Mas farei aqui uma pequena retrospectiva sobre a questao da religiosidade dentro de minha familia. Nossa familia era do tipo “catolica-apost6lica-romana-relaxada” (ex- pressio criada pela minha mie). A familia se dizia cat6lica, mas estava anos-luz de ser efetivamente praticante. Eu e todos meus irmaos recebemos 0 batismo "FIZ ABORTO E NAO SOFRI” e fizemos catequese. Cheguei a frequentar um ano do curso para a crisma, que é uma preparacdo posterior a primeira comunhao. Nessa época tinha 14 anos, e foi nessa idade que deixei de ser catélica. Lembro-me de ter ido a aula para crisma num sabado & tarde e a professora falar algo extremamente preconcei- tuoso — nao me lembro exatamente 0 que ela disse. Mas até hoje nao me esque- co dos meus sentimentos e questionamentos acerca do que ela falou. Naquele momento tive um insight: “o que diabos eu estou fazendo aqui?”. A aula acabou naquele dia e eu nunca mais voltei, nem para 0 curso, nem para a Igreja Catoli- ca. Interessante relembrar esses detalhes porque percebi algo ao escrever essa resposta: como disse, estudei num colégio catélico até os 12 anos, que também foi o ano em que tive a primeira eucaristia. Nos dois anos seguintes, fui para uma escola piiblica e 14 nao havia aula de “religiéio”. Coincidentemente, esses dois tiltimos anos também seriam os anos do curso de crisma e eu, aos 14 anos, no Ultimo ano do ensino fundamental (oitava série), abandonei a crisma e a religiao catdlica. Dos 14 aos 23 anos fui praticante do espiritismo kardecista. Todavia, 0s questionamentos continuaram e, apesar de nao ter respostas satisfatérias, segui na pratica. Por fim, no ano de 2003, conheci o budismo através de um casal de amigos de um ex-namorado. No estava procurando religido alguma, simplesmente aconteceu, Naquela reuniao budista encontrei motivagao para muitas das aspiragdes e perguntas que sempre tive. Nao chamo budismo de religido, prefiro encarar a pratica budista como uma filosofia de vida. + Como numa sociedade fundamentada em principios cristaos e mo- ralistas, vocé escapou da culpa, dos medos e conseguiu formar uma opinifio tao clara e bem argumentada em relagao ao aborto? Como argumentei na primeira questio, tive uma certa “formagio re- ligiosa”, nem tanto trazida por meus pais, mas pela escola onde estudei. A me- dida em que fui me desligando da religido catélica, dos principios cristaos e moralistas, passei a entender o ser humano de um modo menos castrador, tal qual imposto por algumas religiées. Em relagdo 4 culpa e medo, desde muito jovem tive comigo o sentimento de que nao devemos oportunizar espaco para a culpa quando tomamos decisées baseadas naquilo que queremos e acreditamos independente de expectativas alheias. Pessoalmente sempre fui da opiniao de que a sociedade nfo sente minhas dores, portanto, sempre coube a mim decidir pelo que fosse melhor para minha vida, pois nus e bonus sempre caberiam a mim e ninguém mais. + Se o parceiro nao tivesse mandado dinheiro, o que vocé faria? Teria recorrido a amigos muito important quele momento. O apoio deles nao foi financeiro, e sim no sentido de estarem que me deram apoio na- comigo durante o procedimento, para me prestar socorro caso algo “desse erra- do”, Porém, se houvesse necessidade, eles teriam tido condigdes de me auxiliar financeiramente. + Se o parceiro quisesse a crianga e vocé nfo. O que vocé faria? Qual é a sua opiniao sobre a posse do bebé? O pai também tem direito a crianga ou, no final das contas, quem decide é a mulher? Acho essencial delimitar essa questao. Quando falamos em aborto, significa que falamos em interrupgao de uma gravidez. Ou seja, falar em aborto é falar de uma mulher que nao pode ou nao quer submeter seu corpo ao proces- so intenso fisico emocional chamado gestacdo. Entendo que uma pessoa, seja homem ou mulher, tem todo 0 direito de escolher se quer ou nao submeter seu corpo a essa ou aquela experiéncia. Se estamos falando em aborto, entendo de modo inquestionavel que nem Estado, nem familia, nem igreja, nem parceiro, ninguém tem o direito de obrigar uma mulher a submeter 0 proprio corpo a um processo indesejado, no caso, uma gestacao. Entendo ser bastante insalubre usar a questo “crianca” quando se dis- cute aborto. O produto de uma concepgiio, dos primeiros instantes até a oitava semana de gestagiio, chama-se embriao. Esse embrido passa a ser denominado feto somente a partir da oitava semana de gestagao. Fssa denominagao seguira até o desfecho bem sucedido da gestagao, culminando com o nascimento com vida desse feto. Enquanto a gestaco nfo chega a termo, particularmente, nao vejo porque falar em “crianga”. O que existe é um “vir a ser”, que pode vir a ser um recém-nascido, posteriormente um bebé, uma crianga. Durante uma gesta- ao, toda a imagem de uma “crianca” esta presente no imaginario das pessoas a ela relacionada. Essa “erianga” é uma abstracao. S6 e somente ao existir uma crianga viva, pode-se falar entao da posse dela e exercer direitos e obrigagdes sobre essa crianca. Existindo uma crianga viva, cabe igualmente 4 mie e ao pai decidirem 0 que é melhor em relagaio ao bem estar dessa crianga, desde que essas decisdes nao impliquem em submeté-la a procedimentos que venham a ferir a autonomia e 0 direito a sua incolumidade. + Como ficou sabendo dos métodos e remédios abortivos? Vocé teve apoio nesse momento? Ja sabia da existéncia do medicamento conhecido como Cytotec bem antes de ter recorrido a ele. Na época pesquisei bastante na internet a respeito de como e onde comprar Misoprostrol — que é 0 componente ativo da medi- cacéo de nome comercial Cytotec. Quando descobri a gravidez, conversei com um professor de Medicina Legal da minha faculdade de Direito. Ele é advogado e médico. Contei a ele a respeito de meu problema e questionei se ele poderia conseguir a medicacio no hospital. Esse medicamento Cytotec é utilizado para tratamento de ilcera ¢ 0 uso fica restrito e controlado nos hospitais. | Meu professor lamentou minha situagao, mas disse que nao poderia me ajudar. Acabei recorrendo a um site na internet, entrei em contato via email, fiz o depésito do valor pedido e o medicamento foi enviado através dos correios. Numa sexta feira viajei para minha cidade natal e fiquei na casa de uma amiga. Ela havia viajado, mas deixou que eu ficasse la. Meus dois melhores amigos fo- ram me buscar na rodoviaria e eles ficaram comigo no dia que tomei e apliquei o medicamento. O apoio deles tornou nossa amizade ainda mais sélida do que jéera. Eles nao me julgaram, ao contrario, eles estiveram sempre ao meu lado. + Sua familia ficou sabendo do que ocorreu? Qual é posicionamento deles em relagao ao tema? Minha familia nunca soube. A tinica pessoa para quem contei recen- temente foi minha irma mais nova, com quem tenho um relacionamento muito profundo. Ela ficou muito zangada comigo por eu nao ter contado — “Por que yocé no me contou? Eu teria apoiado vocé também. Jamais teria te julgado, queria ter ajudado e sei que vocé fez a coisa certa. ” — essas foram as palavras dela. Expliquei anteriormente a opinido da minha mie, apesar disso, nao contei aela, Meu pai, embora seja uma pessoa inteligente, sensata e humana, é contrd- rio ao aborto por prinefpios pessoais e espirituais. Nunca pensei em contar para meus pais da mesma forma como jamais contei a eles o ntimero de homens que j4me relacionei sexualmente ou de minhas experiéncias afetivas com mulheres. Entendo que esses so assuntos de foro intimo e nao vejo motivo para contar a eles esse tipo de informacio a respeito de minha vida pessoal. + Vocé recorreu ao médico em algum momento? Por que? Nao fui ao médico em momento algum antes de decidir pelo aborto. Como disse, conversei com meu professor, que 6 advogado e médico, mas essa conversa foi no fim de uma aula e nao teve carater de consulta médica. Sempre busquei ter um grande conhecimento do meu corpo, bem como da minha se- xualidade. Conhego as nuances minimas do funcionamento do meu corpo e foi isso que me levou imediatamente a fazer um teste de gravidez quando minha menstruagao atrasou um tinico dia. O tinico contato com 0 médico se deu apos a realizagéio do aborto. Poucos dias apés o procedimento, fiz novamente um exame de sangue para confirmar o fim da gravidez. Os dois exames de sangue que fiz — que indicou a gravidez e o que fiz para confirmar seu fim — foram em laborat6rios diferentes. O primeiro laboratério simplesmente informava “posi- tivo” ou “negativo”. O segundo laboratério, no qual fiz o exame apés 0 aborto, nao trazia esse tipo de resultado e sim os valores do horménio Beta HCG en- contrado na amostra de sangue. Logicamente eu nio estava mais gravida, mas ainda tinha o horménio Beta HCG circulando em meu sangue. Nesse momento agendei um ultrassom para acabar de uma vez com a tormenta. O médico que realizou o procedimento disse que as paredes uterinas estavam ligeiramente espessas, mas normais. Perguntei a ele a respeito de gra- videz, disse que minha menstruacao havia atrasado um tempo, que eu estava com um sangramento e que suspeitava de um “aborto espontaneo”, embora nao tivesse ido ao médico. Ele entio me mostrou a cavidade uterina e disse “vocé nao esta gravida, veja aqui a cavidade uterina esta vazia. Se vocé estivesse gravida, haveria um ponto escuro grande ali, indicando a presenga de um saco gestacional.” Era o que eu precisava ouvir, Duas semanas depois do ultrassom, fiz. um novo exame de sangue e finalmente a quantidade de horménio havia sido reduzida drasticamente. Esse foi o tinico contato com médico que tive durante todo 0 processo. + Vocé passou a lutar pelos direitos das mulheres antes ou depois do aborto? Passei por um processo de descoberta do meu feminismo. Apesar de hoje saber que sempre fui feminista, eu néio me enxergava dessa forma. Hoje sou militante e pesquisadora na Area de direito das mulheres, em especial, estou trabalhando as questées do feminismo negro. Também sou militante e ativista dos movimentos pelos direitos das pessoas negras, em especial das mu- Iheres negras. +O corpo da mulher continua sendo territério do Estado e da Igreja atualmente? Infelizmente, ainda hoje as mulheres sao privadas do exercicio de uma autonomia plena em relacaio a seus corpos. Eu diria que o corpo da mulher nao se limita apenas a ser um territorio do Estado e da Igreja. Incluo nessa lista a propria sociedade que, sendo machista e miségina, determina nao somente como os corpos femininos devem ser, mas dita ainda para o que devem ser des- tinados e o valor da mulher reside nesse corpo e ndo em sua intelectualidade, sejam elas brancas, negras, indias, ricas, pobres, heterossexuais, homossexuais, cissexuais, transsexuais, praticantes de alguma religiao ou ateias. + O que vocé tem a dizer as pessoas que sao contra 0 aborto e sua legalizagio? As pessoas tém o direito a ter opiniao. Ha pessoas que sao contrarias ao aborto. Ou seja, se elas acham o aborto um crime, pecado, que vao sofrer e se arrepender amargamente, simples: nao fagam o aborto. Ao mesmo tempo, ‘ha pessoas que nao acham o aborto errado, nao acham o aborto pecado — ha pessoas que nem acreditam em pecado. HA pessoas, como eu, que nao sofreram e nao se arrependeram da decisaio tomada. Porém, as pessoas nao tém o direi- to de impor suas opinides a outras pessoas que nao compartilham da mesma opiniao que elas. E ao Estado cabe respeitar 0 direito que as pessoas tém de ter suas opinides acerca do aborto, respeitar essas opinides e, principalmente, proporcionar, de modo seguro e humano, que cada uma delas exercite o direito de viver sua opinidio pessoal. Uma mulher esta gravida e quer viver essa gestacdo? Que o Estado assegure a ela meios para concretizar uma gestagdo saudavel, um parto digno que a essa mulher e seu bebé sejam assegurados todos os direitos humanos e constitucionais. Uma mulher est4 gravida e nao quer continuar essa gestagao? Que o Estado assegure a ela os meios para que ela interrompa essa gestacio indesejada, que tenha apoio psicol6gico se necessdrio — que essa mulher seja respeitada, nao criminalizada e que lhe sejam assegurados igualmente todos seus direitos humanos e constitucionais. NOTAS Nome ficticio 2 Fonte: http.//escrevalolaescreva.blogspot.com.br/201/02/quest-post-fiz-um-aborto- e-nao-sofrintm!

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