You are on page 1of 130
a. __ 0 DISCURSO[: ik: 7 En Sy ti ee ye Titule original: La littérature pornographique © Armand Colin, Paris, 2007 1SBN:978-2-2003-4718-5 EDICAO BRASILEIRA: Proseto anarico € cara: Andréla Custédio Eoigko e rrapucAo: Marcos Marcionilo Conse. Eorronatz Ana Stahl Zilles (Unisinos] arlos Alberto Faraco (UFPR] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP] Gilvan Miller de Oliveira [UFSC, pol Henrique Monteaguido [Universidade de Santiago de Compostela] Kanavili Rajagopalan Unicamp! Marcos Bagno (Uni) ‘Maria Marta Pereira Scherre [UFES] Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP] Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [Un8} ‘CIP-BRASIL, CATALOGACAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RU ees misig Maingueneau, Dominique O discurso pornogrsfico / Dominique Maingueneau ; tradugao Marcos Marcionilo, - Sio Paulo :Parabola Editorial, 2010, (Lingua(gem ;42) inclu bibliografia ISBN 976-85-7934-018-5 1.Anélise do discurso. 2, Literatura. |. Titulo. I, O discurso. pomogréfico. Il Sri 10-3226, cbb:410.41 cbU 8142 ee Direitos reservados & Pardbola Editorial Rua Sussuarana, 216 - Alto do Ipiranga 04281-070 Sao Paulo, SP pabx:[11] 5061-9262 | 5061-8075 | fax:[11] 2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou qusisquer meios (eletrdnico ou mectnico, incluindo fotocdpia e gravacéo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permiss4o Por escrito da Parébola Editorial Ltda, ISBN:978-85-7934-018-5 © da edigdo brasileira: Parabola Editorial, Sdo Paulo, setembro de 2010, SUMARIO NOTADO EDITOR 7 PREFACIO 9 1, UMACATEGORIAPROBLEMATICA 13 1. Problemas de definicao 2, Bscrita, sequéncia e obra pornogréfica 3. Dispositivo pornogréfico e género... 4. Um discurso atépico.... 2. PORNOGRAFICO, EROTICO, LIBERTINO 25 1. A obscenidade 25 2. O erético . 30 3.APORNOGRAFIAE OPROIBIDO 39 1, As trés zonas .... 2. A pornografia candnica 3. A pornografia nao candnica... 39 42 46 © DISCHIRSO PORNOGRAMCO —G — POMINTQUE MAINGUENEAU 4. AS RESTRICOES NARRATIVAS 51 1. Acena Bl 2. O encadeamento das cenas 3. Um pseudorrelato 4. Os “personagens" 5. Um relato tipico wu . AENUNCIAGAO PORNOGRAFICA 69 1. Exposicao e afetos... s 2. Uma euforia necess: 3. Um focalizador .. 4, O vocabulario. 6. DO REGIME IMPRESSO AO AUDIOVISUAL 1. O regime tradicional ... 2, O regime de transicao.. 3. O regime audiovisua 7. ATENTACAO PORNOGRAFICA DA LITERATURA CONTEMPORANEA 105 1, Literatura e "bem escrito’ 2. A “pornografizacaio" da literatura 3. Captacdo e subversao..... 4, Pornografia e literatura .. 5. O que quer esse texto’ conciusao: 125 Um futuro incerto.... LEITURAS INDICADAS 133 87 NOTA DO EDITOR 0 DISCURS pornogrdfico analisa os mecanismos, o lugar € as finalidades do dispositivo pornografico nas sociedades ocidentais. Em sua obra originalmentepublicadaem francés em 2007, Dominique Maingueneau aborda 0 texto pornogrdfico, relacionando-o a géneros textuais cujas condi¢ées de surgimento e cujo funcionamento podem ser claramente analisados. Ele apresenta as caracteristicas da escrita pornogrdfica, reconstitui sua evolugado desde o Renascimento e destaca as profundas transformagées pelas quais ela passa atualmente, com o desenvolvimento das novas tecnologias e com a crescente presenga das mulheres em um universo tradicionalmente masculino, O que poderia parecer um percurso drido se transforma em uma viagem iluminadora sobre um tema desde sempre estigmatizado e poucas vezes tematizado com a mesma clareza e coragem. Estamos convencidos da importancia da ‘categoria problematica’ que é a pornografia para leitores de muitas areas do conhecimento, desde estudantes ¢ pesquisadores em letras/linguistica, passando pela psicologia e pela psicanilise, até chegar a estudantes, pesquisadores € criadores na 4rea de cinema e televisdo, por exemplo, Estamos diante de uma muito rica contribuigao da andlise do discurso aos estudos literdrios e paraliterérios, Com este livro, um titulo ainda na fronteira da andlise discurso com os estudos literarios, pretendemos dar inicio a publicagao de titulos em teoria literdria, E a acreditamos que ndo poderiamos ter escolhido melhor autor, nem melhor titulo. Q discurso pornogréfico é, ainda por cima, resultado da colabora- go crescente entre a Pardbola Editorial e seu autor. Temos descober- to em Dominique Maingueneau um teérico com atuagéo consistente nos meios universitarios brasileiros e um autor cada dia mais atento A sorte de suas obras traduzidas para o portugués. Em nossas raépidas conversas, torna-se sempre mais evidente o bom conhecimento que ele tem do mercado editorial brasileiro em ciéncias humanas e os ob- jetivos que, como autor, ele tem em mente: fazer com que seus livros sejam editados e bem difundidos junto ao ptiblico leitor que ele vem construindo com seus textos e com suas Constantes vindas ao Brasil para cursos, palestras e langamentos de novos titulos. Com esta publicagao, que ven logo em seguida de Cenas da enun- ciacdo [2008], Géneses do discurso [2009] e Doze conceitos em andlise do discurso [2010], esperamos estreitar essa colaboragao para beneficio dos pesquisadores e estudiosos brasileiros, que encontram em cada novo livro de Maingueneau inspiragao e coragem. PREFACIO 0 ESTUD da literatura pornografica nao se faz sem dificuldades. Para comecar, o préprio termo “pornografia" designa uma realidade sobre a qual todos pensam nao haver mistério algum: se a "sexualidade” se beneficia da aura de um auténtico problema filoséfico, se o “erotismo" dé testemunho de um elevado grau de civi- lizagdo, a pornografia é tida na conta daquela que remete o homem Aquilo que ele tem de mais evidente e de mais elementar, Uma de- monstra¢do disso € 0 cardter eminentemente pejorative do adjetivo “pornografico”, cuja utilizagéo basta para desqualificar tudo aquilo a que cle esteja associado. Assim como a palavra “panaceia’, que s6 & uutilizada para dizer que algo nao é Gnico, a pornografia serve siste- maticamente de polarizacdo. Pretendendo elogiar um filme, algum jornalista pode escrever: “O cineasta nunca recorre a gramitica do cinema pornogréfico — nada de planos gerais explicativos, nada de intrusdes anat6micas brutais. Trata-se de filmar em torno do mistério do encontro entre dois corpos, transforme-se ele em celebracdo ou em colisdo!"!. “Mistério" versus “pornografia’, tudo esta dito. E quan- do se trata de pornografia no debate piblico, geralmente ninguém questiona sua natureza, porque o que se busca é determinar se con- "TT Sotinel, Le Monde, 9 de novembro de 2006, p. 28. oopwscunso rorNocKtrico YQ) pomuNiqur maINcUENLAN vém ou nao aplicar-Ihe uma regulamentagao, se sua difuséo maciga é perigosa para a juventude, se ela contribui para a violéncia contra as mulheres etc.? Mesmo nao sendo o objetivo deste pequeno livro entrar nesses debates, nao podemos ignora-los. Desembaracando-nos das representagdes espontaneas, que situ- am a produgao pornografica na parte mais inferior de todas as hie- rarquias de textos, nés a consideraremos como um regime discursivo especifico, cujas regras necessitam ser entendidas, De fato, aqui nao estamos interessados na pornografia em geral, mas exclusivamente na literatura pornograéfica. Uma denominacao que, contudo, suscita pro- blema: as nocées de “literatura” e de “pornografia" so compativeis? Se formos dar crédito a definigdo do filme adulto dada pelo comissé- rio do governo, M. Genevoix (1972), que, nesse aspecto, manifesta a opinido geral, a resposta é claramente negativa: "B de carater porno- gréfico o filme que apresenta ao piiblico, sem pesquisa estética e com uma crueza provocante, cenas da vida sexual e, especialmente, cenas de relacSes sexuais”’. Mas se nos concentramos no fato de que o ter- mo “pornografia” contém © elemento grafia, a expresso “literatura pornografica", longe de ser contraditéria, pode parecer redundante. A porno-grafia é, de maneira constitutiva, littera, inscrigaéo, Nao se trata de alguma pulsao, aquém de toda linguagem, mas de um conjunto di- versificado de praticas semiéticas restritas, inscritas na hist6ria, com uma finalidade social, distribuidas em tipos e em géneros associados a determinados suportes ¢ a determinados modos de circulagao. De todo modo, como se trata de paraliteratura, néo podemos adotar o ponto de vista literério tradicional que, ao privilegiar 0 valor estético, s6 se interessa pelos textos que escapam ao ordinario. E um pouco como se, ao ter de tratar de literatura sentimental, consideras- Desse modo, 6 livro de R. Ogien, Penser la pornographie, apesar deste seu titulo, nfo incide sobre a natureza da pornografia, mas sobre os argumentos, considerados falaciosos, que visam restringir sua difusto. * Citado pelo Dictionnaire de pornographie, p: 100. Grifo nosso, TL rmeracio semos obras como Romeu ¢ Julieta ou A princesa de Cleves, excluindo os titulos da colegao Harlequin. Aqui nos concentraremos especialmente na literatura pornografi- ca francesa, que, por sinal, influenciou enormemente a literatura por- nografica dos outros paises da Europa ocidental. Nao abordaremos as civilizagdes da india, do Extremo Oriente ou do Oriente Médio, mesmo sabendo que elas desenvolveram ricas tradigSes no campo da literatura de temética sexual, Dada a estreita relagdo existente entre a natureza das sociedades e as formas assumidas por suas produgdes pornograficas, temos evidentemente uma limitagao. Mas tal limitacgao nao 6 totalmente arbitraria, porque "é na Europa que o erotismo se transformou em um género literario determinado”*, que fez emergir essa maneira singular de representar a atividade sexual, cujo Apice é hoje a industria pornografica globalizada. “" §. Alexandrian, Histoire de la littérature érotique, p. 8. UMA CATEGORIA PROBLEMATICA 1. PROBLEMAS DE DEFINICAQ f DiFidL sill dizer algo aobre 6 teams “paciognita! geopelairignls dito. Ele € recente. Em francés, foi o escritor N. Restif de la Bretonne — por sinal, autor de textos pornograficos no sentido costumeiro do termo — que introduziu 0 termo “pornégrafo" em seu livro Le pornogra- phe ou la prostitution réformée (*O pornogréifico ou a prostituicdio reformada", 1769), que trata do controle da prostituigao pelo Estado. De fato, porné, em grego antigo, designa a prostituta. O derivado “pornografia" foi construido no inicio do século XIX. Progressivamente, a referéncia a prostituicéio desa- pareceu, € “pornografia" veio a designar qualquer representaco de ‘coisas obscenas’, O proprio Restif inspirou-se no grego antigo, no qual o substan- tivo pornographas designava “um autor versando sobre a prostitui¢do", as- sim como pornographia designava um género pictérico: a representacdo das prostitutas. Também podemos notar que, desde a Antiguidade, a "grafia" da pornografia oscila entre escrita e pintura. Do mesmo modo, no século XVIII, a nocdio de “quadro" nao ¢ exclusiva da pintura, mas constitui um dos termos chave dos textos pomograficos, Por exemplo, no marqués de Sade: OO DISCURSO FORNOGRAFICO [gp PomINIaNE MWINGUENEAY Ele me toma com brutalidade, ergue impetuosamente os véus que ainda ocultam aquilo que ele anseia desfrutar: pouco a pouco, ele me injuria... ele me seduz... ele me maltrata e me acaricia... oh! Que quadro, grande deus!' Cardoville nao pode resistir a quadros tio libertinos. Ao ver seu amigo completamente aéreo, vem se oferecer a sua luxtiria’. Hoje, tanto quanto no século XIX, a “pornografia" 6, ao mesmo tempo, uma categoria que permite classificar algumas produgées se- miéticas (livros, filmes, imagens...) e um julgamento de valor que des- qualifica quem pode aparecer em interagdes verbais esponténeas ou em textos provenientes de grupos mais ou menos organizados: uma asso- ciagdo de pais de alunos, uma comunidade religiosa, um grupo de mili- tantes politicos, uma comissao de censura etc. A isso se acrescentam as condenagdes fundadas em consideracdes parafilos6ficas ou filoséficas". As instituigdes que devem classificar algumas produgdes como “por- nograficas” t@m objetivos diversos. O aparelho judiciario apoia-se em cri- térios — necessariamente imperfeitos — que lhe permitem controlar a producaio e a circulagao de textos e de imagens; havemos de notar que a literatura pornografica é atualmente muito menos controlada do que os filmes, Qutras instancias sao levadas a recorrer a esse critério de classifi- cacéio; por exemplo, as redes de televisao e as revistas de programacaéo, os criticos de livros ou de filmes, os bibliotecdrios... Naquilo que diz res- peito a literatura, nunca howve critérios seguros: a fronteira entre 0 licito, 9 ilicito e o tolerado sempre foi flutuante. A depender dos lugares e dos momentos, o rétulo “pornografico" foi colado a produgdes que, em outros tempos ou em outros lugares, certamente nao seriam listadas nessa cate- goria: foi o que se deu, a época de sua publicagao, com As flores do mal, de Baudelaire, e Madame Bovary, de Flaubert. Eles foram julgados como pornograficos e, consequentemente, tratados pela justica como tais. 1 Margués de Sade, Justine ov les malheurs de la vertu. Paris: J.-J. Pauvert, 1966, p. 30. * Ibid., p. 399. * Podlemos citar o livro de D, Folscheid, Sexe mécanique. Paris: La Table Ronde, 2002, que se vincula ao platonismo, ou o de M, Dubost, La tentation pornographique. Réflexions sur la visibilité de Vintime, Paris: Ellipses, 2006, que convoca sobretudo o pensamento de Lévinas, carerito 5) uw exrrcom monznsrica Para as instituicdes académicas — de onde provém este livro — 0 rétulo “pornografico” é visto como uma categoria de analise e, como tal, estd submetido as mesmas exigéncias que categorias como “fan- tastico”, “lirico” ou “policial” aplicadas a literatura. Quando adotamos essa perspectiva, podemos ser tentados a suspender os juizos de valor pejorativos associados 4 "pornografia", para apoiar-nos em critérios definidores neutros. Mesmo assim, nao devemos esquecer que, por natureza, a literatura pornografica esta destinada a pro’ Contudo, os textos pornograficos pertencem a paraliteratura, se en- tendemos por paraliteratura uma producdo em série que visa provocar no leitor um efeito previamente determinado, permitindo-lhe fugir por um momento para um universo paralelo, liberado das restrigdes do mundo ordinério. Essa leitura é objeto de um contrato implicito, muito frequen- temente materializado pelo pertencimento a uma colegao: comprar um romance Harlequin é garantia de encontrar uma narrativa que visa, antes de tudo, suscitar determinado tipo de afetos mostrando personagens e situacdes em conformidade com os estere6tipos das relacdes amorosas. Por seu lado, diz-se que um texto pornografico deve ter como objetivo fazer nascer em seu leitor 0 desejo de gozar, instalé-lo em um estado de ten- sao e de falta, do qual ele precisard se liberar por um recurso extraliterério‘. O objetivo da excitacao sexual implica, desse modo, determinada atitude do leitor, como ressalta exatamente a definicao a seguir, que se pretende consensual: A pornografia representa, ou evoca claramente, um aspecto da natu- reza, ou da atividade sexual de um ou de varios seres humanos. E seu efeito principal (talvez tinico) é estimular a libido do usuario, seja qual for a intengao do criador*. A autocorregao do termo “representa” pela expresso “evoca cla- ramente” tende a ressaltar que a pornografia tende a ser direta, que + J-M. Goulemot, Ces livres qu’on ne lit que dune main, p. 127. * C.J. Bertrand e A. Baron-Carvais, Introduction & la pornographie, p. 31. opiscurso rornocrincs YG DOMINIQUE MAINGUENEAU ela recusa interpor véus entre 0 sujeito percipiente e o espetaculo de ordem sexual. Quanto ao esclarecimento “seja qual for a intencao do criador", ele evoca o papel essencial desempenhado pelo leitor. Na maior parte do tempo, os autores de textos pornograficos escrevem no interior de um circuito especializado, nao podendo, portanto, ignorar a intencdo pornografica vinculada a um texto que muito frequentemente é andnimo, impresso clandestinamente e difundido dissimuladamente. Mas determinado nimero de textos sao objeto de um consumo por- nografico, sem que o autor tenha tido essa intencdo. Por sinal, é nesse intervalo que atua a censura, que nao hesita em classificar como “por- nograficos” textos que os autores afirmam nao considerar como tais. 2. EscRITA, SEQUENCIA E OBRA PORNOGRAFICA Analisar a literatura pornografica é, inevitavelmente, distingui-la de outras praticas semidticas que também podem. derivar do pornogra- fico (gravuras, desenhos, fotos, filmes, revistas, espetaculos...), apesar de essas diversas praticas serem regularmente associadas: as obras porno- grdficas so frequentemente ilustradas, e o préprio mercado alimentou constantemente os amantes dos textos e os amantes de imagens. Isso vai além da mera complementaridade: os “quadros" de atividades sexuais representados nas narrativas pornogr4ficas estao calcados nos cédigos de representagao da imagem em um momento dado. Até muito recen- temente, o texto era da ordem do fluxo, enquanto a imagem era estati- ca; mas com 0 desenvolvimento do cinema, depois dos videocassetes € dos dvds, por fim, da internet, a imagem tornou-se, por sua vez, fluxo narrativo, baralhando a hierarquia entre texto ¢ imagem. Atualmente, na internet, os sites especializados mostram “iconotextos" que associam jntimamente imagens, fixas ou animadas, ¢ textos, escritos ou orais. No interior das produgdes pornograficas, devemos também. estabe- lecer uma distingdo entre 0 dispositive pornografico, que é compartilhado pelo conjunto das praticas semisticas pornogrficas, e a escrita pornografi- ca, que é reservada a representacao mediante signos verbais que formam caritte LEZ) UMA CATEGORIA PROBLEMATICA textos. Além disso, temos ainda de distinguir os géneros de escrita porno- "Histé- rias obscenas", cancGes lascivas, insultos, manuais de educacao sexual... Essas praticas dependem dos lugares e das épocas: nem todas as socie- dades tém uma literatura pornografica ou manuais de educagdo sexual. grafica e as outras praticas verbais que investem na sexualidade: No pr6prio interior da literatura pornografica, impGe-se uma di- visdo entre as sequéncias pornograficas e as obras pornograficas. Essa distincao permite administrar a diferenca entre os textos cuja inten- ¢ao global é pornografica, as obras pornograficas propriamente ditas, € os textos cuja intenco nado € essencialmente pornogréfica, mas que contém sequéncias pornograficas, ou seja, trechos de extensdes muito varidveis que derivam da escrita pornogrdfica e estéo, portanto, pre- dispostos a provocar um consumo de tipo pornografico. Dessa manei- ra, podemos considerar que alguns romances de Sade ou Sexus, de Henry Miller, sao textos que contém sequéncias pornograficas, sem poder falar propriamente de obras pornograficas. Entao, compreen- der a obra de Sade é, necessariamente, buscar pensar 0 vinculo entre as sequéncias pornograficas e o restante da obra em que elas figuram. Nao obstante, a nocdo de "intencdo pornografica” pode se revelar equivoca. Nao pode ser considerado como pornografico todo texto que provoque alguma excitacdo sexual nesse ou naquele leitor, Te- mos obrigatoriamente de nos restringir aos textos que se apresentam como decorrentes da escrita pornografica. Nada impede um leitor de encontrar estimulos sexuais em um texto que nao vise diretamente excitar seus leitores. Com efeito, tudo depende da maneira com que esses leitores se apropriam dele. Mesmo assim, essa distingao elementar entre “obra" e “sequéncia" nao permite explicar todas as representacdes; determinado numero de textos Ihe escapam. Por exemplo, Vénus erdtica, de Anais Nin, texto am- biguo que ndo é nem plenamente uma obra pornografica, nem uma obra que estaria isenta as restrigdes do dispositivo pornografico. Isso pode ser explicado pelas circunstancias da criagao desse livro. Tratava-se de uma Co pivcunso rowocnarico JG) POMINIQUE mAINGUENEAL série de novelas encomendadas per um amante da pornografia, cujo es- tilo “era mais ou menos tomado de empréstimo ds obras escritas por ho- mens sobre esse assunto". Mas como Anais Nin no péde se manter nesse registro ("em varias passagens, de maneira intuitiva, utilizei a linguagem de uma mulher, descrevendo as relagGes sexuais tais quais uma mulher as vive"), o texto, de algum modo, faz parte dos dois quadros. A possibilidade de isolar sequéncias pornograficas possibilita um modo de leitura singular, Enquanto a paraliteratura romanesca geralmen- te supde uma leitura Gnica e linear, voltada para o desfecho, os textos pornogréficos nao estiio necessariamente destinados a uma leitura linear voltada para um termo. Na verdade, varios leitores 36 leem as sequéncias pornograficas, e desordenadamente, Além do mais, eles frequentemente praticam leituras repetidas da mesma sequéncia, por menos que ela seja apreendida como particularmente excitante. Isso esta em acordo, é 0 que ‘veremos, com uma relagdo bastante singular com a narratividade, que hoje encontramos em seu paroxismo no consumo de filmes pornograficos. 3. DisposiITIVO PORNOGRAFICO E GENERO Aliteratura pornografica é geralmente considerada como um “gé- nero” da literatura ou da paraliteratura. Se com "género" designamos qualquer agrupamento de textos fundado em determinado critério, a literatura pornografica efetivamente constitui um género. Mas atual- mente, seja em teoria literéria ou em andlise do discurso, a tendéncia maior é fazer um uso mais restritivo da nogéo de género. Nessa pers- pectiva, a literatura pornografica deve ser considerada mais como um tipo de discurso (assim como 0 discurso politico, 0 discurso religioso, 0 discurso administrativo etc.) que recobre, em determinada época e para uma sociedade dada, diversos géneros. Deixemos claro que essa nogdo de género sé € pertinente no nivel da obra, e ndo no nivel daqui- © Venus erotica, Paris: GF, Livre de Poche, 2006, p. 14. cartmmol YQ unscareconiaimoncemaricn lo que classificamos de sequéncias pornogréficas. As sequéncias por- nograficas podem ser encontradas em géneros muito diversificados, inclusive, como vimos, em textos que ndo derivam da pornografia. As obras pornograficas nao sao necessariamente relatos. Frequen- temente sao citados os dezesseis “sonetos luxuriosos” de Pietro Aretino (1524), que foram escritos para ilustrar uma série de gravuras de Giulio Romano, que exibiam diversas posi¢des sexuais. Mas a imensa maioria das obras pornograficas sao relatos. Eles podem ser diretamente assu- midos por um narrador externo hist6ria, ou por um narrador que € também um personagem da histéria. Eles podem ainda se apresentar de maneira menos direta, por meio de formatacGes nao narrativas, que nao sao, propriamente falando, géneros, mas “hipergéneros", grandes formas de organizacdo textual: o didlogo, a carta, o diario intimo... Des- sa maneira, as principais obras pornograficas dos séculos XVI ¢ XVII sdio, em sua maioria, didlogos. E isso se explica pelo fato de que o did- logo é a forma dominante nessa época, quando se trata de expor ideias sobre todos os tipos de assunto. Além disso, como esses textos porno- graficos foram escritos por humanistas, eles se inspiravam no protétipo constituido pelos Didlogos das cortesas (etairikoi dialogoi) de Luciano de Samosata (século II d.C), nos quais mulheres experimentadas ensinam a arte da prostituicao a iniciantes. No século XVIII, € o romance que se impée definitivamente como formato para o relato pornogréfico: nao se trata mais de formar prostitutas, s6 episodicamente os personagens femininos sao profissionais da atividade sexual. A escrita pornogréfica, fundamentalmente, s6 funciona com ple- no rendimento em relatos em prosa. A poesia nao é uma forma de es- crita bem adaptada ao dispositivo pornografico; em contrapartida, ela convém perfeitamente ao erotismo e a libertinagem, como veremos adiante. Por natureza, a poesia poe efetivamente em primeiro plano a materialidade do significante verbal ali onde a escrita pornografica privilegia a transitividade da linguagem, tida como capaz de se apa- gar diante dos espetaculos que ela da a ver. Claro que essa tensdo é varidvel, a depender dos géneros e das correntes de poesia (a epopeia Co piscunso nomocrAnico 2.0 posmiqur MAINGUENTAU é radicalmente narrativa, j4 os sonetos simbolistas, nao), mas, de ma- neira geral, as caracteristicas da leitura pornografica fazem com que ela nao consiga se acomodar facilmente aquilo que venha se interpor entre os signos e o mundo representado. Quanto ao teatro, seu investimento na pornografia s6 pode ser mar- ginal. Se quiser ser realmente pornografico, ele tera de exibir atividades sexuais efetivas: os atores pornés seriam “hardeurs"’, enquanto um ator comum apenas simularia seu personagem. A isso se acrescentam diver- sos outros obstaculos: o dispositive pornogrfico supe uma proximida- de do consumidor-veyeur com relacaéo ao espetaculo, ele nao pode ser comparado a um espectador posto em meio a um ptiblico, Foi feita até uma tentativa de teatro pornografico no século XVIII*, mas essas pecas nao eram necessariamente montadas; e quando encenadas, isso se fazia privadamente. Além disso, pode-se duvidar de que os autores tenham efetivamente realizado 0 que as rubricas prescrevem. Na realidade, a 16- gica da pornografia faz com que 0 “peep-show", muito mais que o teatro, seja o que mais lhe convém: o espectador solitario 6 um voyeur que se encontra em proximidade imediata com os performers (em regra geral, as performers), sem ser visto por eles. Em alguns aspectos, 0 dispositivo do peep-show assemelha-se ao da leitura. Aescrita pornogréfica também é pouco compativel com as formas textuais que sio fortemente didaticas e taxonémicas, logo, com géne- ros como 0 tratado. As obras de erotologia (a mais célebre entre elas € o Kama sutra, traduzido para o inglés em 1883) provindas de civiliza- des tradicionais como a India, a China, o Japao... nao se originam na escrita pornogréfica, a menos que ela seja submetida a transformagées expressivas. O car&ter classificatério desses textos, a constante presen- Do inglés hard ("duro") com 0 sufixo francés -eur, Bsse termo deriva do fato de que a inddstria pornografica se segmenta em soft porn (‘erotismo") e hard porn {"pornografia"). “Hardeurs’, *hardeuses’ silo os atores e as atrizes de fitas pornogrificas [n, do tradutor). * Podemos fazer ideia disso na antologia dedicada ao Théatre érotique francais du XVUE siecle, Paris; J. Pauvert ¢ Terrain Vague, 1993, Ver 0 artigo de Céline Santini, *Theditralité et exhibition dans le théatre pornographique du XVIIle siecle’, Cahiers d'histoire culturelle, n° 5, 1999, Universidade de Tours, p, 39-48, on omit. Alban clo f cal: ap viol QI uma carrconia peoxtearica ca de consideragGes cosmoldgicas, religiosas, médicas, econémicas... sao dificilmente compativeis com uma intenc&o pornogréfica: Que se consulte a erotologia da india, da China, da Grécia ou de Roma, que no obstante diferem grandemente entre si, o que parece nos remeter ao sexo estd sempre englobado em um mundo que é uma ordem. Quando lemos esses tratados através da ética tinica do sexo, ficamos miopes®. Visto que a atividade sexual nao vale aqui por si mesma, dado que ela se inscreve em um cosmos, nesse género de texto, regras de higiene, normais sociais e sexualidade interpenetram-se profunda- mente. E desse modo que o Kama sutra enumera quinze categorias de mulheres com as quais ndo se devem manter relagdes sexuais: as mulheres expulsas de sua casta, as parentes proximas, as que cheiram mal etc. O carater didatico dessas obras impede que a excitagdio seja seu objetivo principal, Textos assim puderam passar por pornograficos em um Ocidente que radicalizara a oposicao entre carne e espirito, natureza e sobrenatureza, mas isso s6 4 custa de um mal-entendido, Até mesmo a literatura “ousada" dessas sociedades tradicionais nao visa apenas e diretamente excitar o leitor. O célebre romance chinés do século XVI, Jin Ping Mei, que o prefacio da edicao de la Pléiade afirma ser “o texto mais apimentado que a literatura chinesa pode oferecer’"®, contém poucos episédios de descricdo de atividade sexual, e os que ha esta@o longe de ser explicitos. Analisemos um, que € muito ilustrativo. A serva Yasmine, representante de um leitor- voyeur, olha por um buraquinho um casal fazendo amor: Asombra do brilho das lampadas, sob as tapecarias de seda de ondinas, vaivém, empurra e bate: um agita rapidamente os bracos, a outra eleva alto seus “lotus de ouro’, Um pia como o verdelhao, a outra canta como a andorinha: acreditariamos ser o donzel Junrui junto a sua senhorita Yingying, ou melhor ainda Song Yu no encontro secreto da divina. Eles se segredam ao ouvido juramentos mais profundos que o oceano, * D. Folscheid, Sexe mécanique, p. 117. © Gallimard, 1985, p, XL. Oo DECURSO RORNOGRAFICO DP poMINIaUE MAINGUENEAD compromissos mais durdveis que montanha. Tal qual a abelha ou a borboleta ébria de amor, ele ainda nao esta pronto para o abandono. Depois de um longo combate, ele afunda sob a onda vermelha; a gota da trompa maravilhosa a penetra até seu peito tenro™. Aqui, 0 acesso a cena é mediatizado por evocagoes indiretas, cla- ramente destinadas a um ptiblico de letrados: comparagdes com uma natureza codificada (cantos de pAssaros} e alusdes a um intertexto lite- rario (os dois heréis de uma famosa peca de teatro do século XIX, Xi- xiang, e um poeta do século IIT a.C.). Quanto a “trompa maravilhosa", trata-se de um simbolo da uniao dos coracées, desde que o poeta Li Shangyin utilizou essa imagem em um de seus poemas, no século IX. 4. UM DiscuRSO ATOPICO Mas a caracteristica mais evidente da literatura pornografica é€ sua insergdo radicalmente problematica no espago social: trata-se de uma produgao tolerada, clandestina, noturna... O julgamento de “por- nografia" supée a fronteira que separa as praticas dignas da civilizacdo de pleno direito e as praticas que se situam aquém disso. No ponto extremo, a rejeicdo a pornografia pode gerar férmulas violentas como a seguinte: "Entre a pornografia e os fornos crematérios, existe um caminho"”. Também podemos supor que a perplexidade manifestada por C. Millet em 1976 é fingimento: “Como é possivel que sendo todo mundo contra a censura, todo mundo (a direita, a esquerda, os movi- mentos feministas, os estetas e os proxenetas...) se declare pelo menos contra a pornografia?"’* Diferentemente de outros tipos de texto, no que se refere A pornografia, a censura é realmente universal: todos os tipos de regimes politicos tragam uma linha de separagdo entre o aceitavel e 0 inaceitaével em matéria de representacao da sexualidade. E dificil imaginar que, no ensino médio, sejam estudados textos por- ‘Trad. para o francés de A. Lévy, livre II, “Fiole”, p. 261. "Jean Cau, Le Figaro, 10 de outubro de 1975. 8 “Art Press, n° 22, 1976, p. 3. CAPTULOL QR UMA CATEGORIA PROMLEMATICA nograficos, assim como se estuda qualquer outro corpus. Se isso viesse a acontecer um dia, seria uma prova de que a sociedade teria mudado profundamente, que ela se funda sobre a rejeicdo de outras praticas. Contudo, nao podemos nos contentar em oper, como se fossem dois blocos compactos, os discursos que pertenceriam plenamente a sociedade € os discursos que seriam proibidos, ou tolerados, desde que permaneces- sem na sombra. Entre os discursos reconhecidos pela sociedade, devemos distinguir imediatamente entre discursos topicos e discursos paratopicos"’. Os discursos "parat6picos" (particularmente os. discursos religioso, filos6fi- co, literario, cientifico} servem de garante aos outros, 0s discursos ’t6picos" , porque eles devem se localizar, simultaneamente, na sociedade e fora dela. Eles, certamente, participam da sociedade (ha igrejas, faculdades de letras, laboratérios...], mas eles s6 podem fazer isso porque se situam como exce- dendo essa sociedade, porque fazem fronteira com 0 indizivel e o Absoluto, porque seus falantes mais prestigiosos sao impulsionados por alguma forga transcendente. Um Sécrates pode ser condenado a morte, Galileu, condena- do, os grandes artistas podem ser malditos, mas os discursos que definem a Sabedoria, a Verdade, a Justiga, a Beleza... portam os valores da sociedade. Assim como os discursos paratépicos, a literatura pornografica atua na fron- teira do espaco social, mas nao se trata da mesma fronteira: enquanto os discursos parat6picos tém “direito de cidadania" (melhor, fundam o direito da cidade a ser uma cidade}, a produg&o pornografica nao é reconhecida pela cidade: idealmente, a sociedade nao tem conhecimento de sua existén- cia, nao se considera que a cidade deva conceder um lugar a pornografia; a cidade nunca erigiré monumentos para seus autores. Poderiamos classificar de discursos atépicos essas praticas que, tal como a pornografia, de alguma maneira, nao tém lugar para exis- tir, que se esgueiram pelos intersticios do espago social. A pornografia partilha essa atopia com outras praticas verbais, que variam segundo as sociedades: palavrées, cangdes lascivas, ritos de bruxaria, missas negras etc. séo outras tantas praticas constantemente atestadas, mas @ Para a problematica dos discursos paratépicos, cf. nosso livro Le discours littéraire. Paratopie et scdne d’énonciation. Paris: A. Colin, 2004 [ed. br: O discurso literdrio. Trad. A. Sobral. Sto Paulo: Contexto, 2006]. opiscunso rornoceines Qe bomINiaue MAINGUENEAL que sao silenciadas, reservadas a espagos de sociabilidade muito res- tritos ou a momentos muito particulares (cf. os carnavais de outrora). A literatura pornografica ¢, assim, flagrada em uma dupla impos- sibilidade: (1) é impossivel ela nao existir; (2) é impossivel ela existir. © primeiro impossivel é da ordem do fato: diante do que é uma sociedade, é inelutavel que esses enunciados serao produzidos nela. O segundo impossivel 6 da ordem da norma: se esse discurso tivesse pleno direito de cidadania, entdo nao haveria sociedade possivel. Essa tensao constitutiva se resolve por um compromisso que mostra perfeitamente a ambiguidade do verbo ‘existir’: € certo que a literatura pornogréfica existe, no sentido de que ela é massivamente atestada, mas ela nao existe plenamente, no sentido de que é clandestina, némade, parasita, ocultada...: 0 livro pornografico ocupa as estantes inferiores das biblio- tecas ptiblicas, ele se esgueira em miiltiplos esconderijos do domicilio privado, seu comércio é furtivo, “por debaixo do pano", Ainda hoje, 08 vendedores de produtos pornograficos a distancia garantem uma em- balagem discreta para suas remessas, © as programacées de televisao podem se dispensar de divulgar a programacao das redes pornograficas. Essa "atopia" pode ser exemplificada pela atitude de Aragon a respeito de seu livro Le Con d'Trene ("A buceta de Irene"), que ele publicara anonimamente em 1928. J.-J. Pauvert, no prefacio de sua reedig&éo de 1968, evoca nos seguintes termos a atitude "do autor", transformado em “fantasma": Sobre esse homem, que est ou nao esta mais vivo, 86 posso dizer o seguin- te: acho que o conhego — e posso estar enganado. Até agora, ele sempre recusou, ao mesmo tempo, reconhecer esse livro e dar sua autorizagao, mesmo ocultamente, a uma reedigao oficial. Posic&o desconfortével e ab- surda, embora na entrevista que tive, faz muitos anos, com esse fantasma, e durante a qual, enquanto editor, eu talvez estivesse falando com um autor de um livro que talvez ele tivesse escrito. Estranho encontro, ¢ reflexo de uma conversa possivel. Ele dizia “o autor" referindo-se (talvez) a si mesmo: "© autor sé recusa.., 6 autor proibe... € impossivel para o autor...""* 1 Prefacio a Iréne por Albert de Routisie, Paris: LOr du Temps Régine Desforges, p. XI. PORNOGRAFICO, EROTICO, LIBERTINO PARA circunscrever a especificidade daquilo que chamamos “a es- crita pornografica", € preciso levar em conta os dois outros modos de representagao das relagdes sexuais dos quais ela se destaca: por um lado, a obscenidade, por outro, o erotismno 1. A OBSCENIDADE A obscenidade € uma maneira imemorial ¢ universal de dizer a sexualidade. Sua finalidade nao é, em primeiro lugar, a representagio precisa de atividades sexuais, mas sua evocacdo transgressiva em si- tuacdes bem particulares. Ela se baseia em um patriménio partilhado pelos membros de uma mesma comunidade cultural. Suas praticas radicalmente conviviais, fundadas em uma conivéncia, enraizam-se na oralidade. £ claro que nada impede que cancOes ou brincadeiras depravadas sejam acessoriamente compiladas em um livro, mas sua realidade comunicacional fundamental é a de um prazer partilhado por um grupo de pares. A oralidade obscena evoca outra oralidade, a oDIscURSO vORNOGRAFICa JG _DOAUNIQUE MAINGUENEAU do alimento e da bebida compartilhados. Desse modo, a obscenidade mantém uma estreita relagéo com a literatura carnavalesca, que sis- tematicamente lanca mao da inversao de valores: o carnal no lugar do espiritual, o baixo no lugar do alto. Na festa dos desvairados, a parte de baixo da sociedade ocupa 0 trono, a “yerdade" da Natureza contesta as hierarquias sociais, julgadas como artificiais. A situagdo de comuni- cacio tipica da interagao obscena é, por exemplo, a refeigao oferecida por Gervaise e Coupeau em LAssommoir ("A taberna") de Zola: vinho, comida, brincadeiras e cangoes escabrosas contribuem para a euforia geral, permitindo a convivas pertencentes as classes populares con- testarem verbalmente a hierarquia social e a religiao. A obscenidade prosperou durante muito tempo nao apenas nos meios populares, mas também nos grupos consolidados pelos valores masculinos: soldados, estudantes de terceiro grau, adolescentes no ensino médio... Isso porque a diferenga sexual desempenha aqui um papel es- sencial. Os trabalhos de Freud sobre o chiste tendencioso destacaram 0 vinculo estreito entre obscenidade e sexualidade masculina. Para o autor de O chiste e sua relagdo com o inconsciente, a obscenidade seria originalmente uma estratégia de substituicado imaginaria, que satisfaz © locutor e 0 alocutério masculinos: A obscenidade visa na origem & mulher e equivale a uma tentativa de sedugdo. Quando, em uma reuniao masculina, um homem se compraz em contar ou em ouvir obscenidades, ele se situa pela imaginacao em uma situagao primitiva que as instituigdes sociais nao lhe permitem mais realizar, Aquele que ri de uma obscenidade ri como se fosse teste- munha de uma agressao sexual’, Uma substituigaéo dessas implica uma hostilidade para com a mulher. Freud propde 0 exemplo de um homem A que, desejando uma mulher B, vé a satisfacdo desse desejo entravada por um des- mancha-prazeres C; A conta, entdo, a C uma histéria obscena: 7 §, Freud, Le mot d'esprit et ses rapports avec Vinconscient. Paris: Gallimard, 1969, p. 149-144, caro 27% Porvocrinco, morico, 1BeRrINO Como impulso libidinal do primeiro s6 pode ser satisfeito pela mulher, transforma-se em uma tendéncia hostil voltada contra essa tiltima e recorre ao. terceiro, que era primitivamente seu desmancha-prazeres, como um aliado”, Ao relatar sua histéria obscena, o narrador da prazer a seu nar- ratario, posto assim em posicdo de avaliador da qualidade da enun- ciagdo tendenciosa, Tal enunciacdo implica um terceiro, a mulher, tornada objeto de uma transformagao: ela passou do estatuto de tu ao estatuto de 3° pessoa, ou melhor, de “nao pessoa", ou seja, de excluida da troca verbal. As praticas obscenas podem ser uma componente essencial de obras literdrias escritas. Conhecemos o caso das novelas do Decame- rdo (1349-1353), de Boccaccio, ou o dos fabliaux, romances medievais versificados dos séculos XII e XIII, provenientes em grande parte do norte da Franga. Esses relatos breves, de 50 a 1.500 versos (geralmente octossilabos), frequentemente sfo tachados de “pornograficos" pelos especialistas porque s&o copiosos em relatos escabrosos de maridos en- ganados ou histérias um pouco delirantes como aquela “de uma tinica mulher que servia com sua xoxota a cem cavaleiros de todos os pontos'. Contudo, nao é a descrigdo precisa da atividade sexual que constitui © nticleo do relato; trata-se de intrigas engenhosas nas quais os mais astutos conseguem satisfazer suas pulsdes 4 custa dos detentores do poder. A sexualidade primaria que esses relatos mobilizam se ope frontalmente 4 sexualidade, ao mesmo tempo, literéria e sublimada encarnada, na mesma €poca, pelo amor cortés. Portanto, ndo é de ad- mirar a hesitagao dos comentadores em falar de “literatura” quando se referem a esses textos, que exploram contudo os recursos da lingua- gem, especialmente sua capacidade de produzir o equivoco. A titulo de exemplo, consideremos 0 enredo do fabliau intitulado Le Prétre et la Dame ("O padre e a dama")®. Um padre se prepara para Thid., p. 148. * A edigao de referéncia dos fabliaux 6 0 Nouveau recueil complet des fabliaux em 8 volumes, editado por W. Noomen e N. Van den Boogaard. Assen: Nan Gorcum, 1983-1994, Le Prétre et la Dame figura no tomo VIII. onrscunse romvoaeinico BB) vowntaue saINcUENEAY se deitar com uma burguesa de Etampes, enquanto o marido dela esta viajando. O marido volta de repente; 0 padre se esconde em um grande cesto de vime, mas esquece seu manto no quarto. Ele treme tanto que ‘0 cesto vira. Quando se vé a descoberto, o padre finge ter vindo trazer 0 cesto, depois de ter deixado seu manto em penhor. A dama o convida para comer e empurra bebida no marido, que fica embriagado. O pa- dre aposta que o marido pode suspender trés pessoas de uma s6 vez. O marido topa a aposta. Ele se deita no chao, a serva e a esposa se deitam sobre ele. Enquanto ele esta imobilizado, o padre penetra sua mulher. Por fim, 0 padre diz que ele perdeu a aposta e vai embora. A moral da histéria é a seguinte: “A mulher é mais astuta em matéria de engano”. Um relato desses se organiza em torno da intriga feminina, segundo as formulas que 0 vaudevile explorara copiosamente; 0 texto ndo esta centrado na descricdo da relagéo sexual, mas no prazer de transgredir a lei (aqui, o casamento} para satisfazer os préprios desejos. No mundo contempordneo, as praticas literarias perderam muito de sua importancia, possivelmente por conta da muito menor sepa- rag&o entre o mundo dos homens e o das mulheres: o universo dos estudantes universitdrios nio é mais o mesmo em uma sociedade na qual a metade dos alunos de medicina, por exemplo, sao, na reali- dade, alunas. Mas subsistem tragos remanescentes dessas praticas nos espetaculos de alguns comediantes ou em obras como a série de aventuras do comissdrio San Antonio, de Frédéric Dard. Vejamos um episédio, aparentemente sucedido na Taildndia; ele contrasta forte- mente com o erotismo estetizante no qual se banha na mesma época a Tailandia que serve de ambiente para a série das Emmanuelle‘: Uma assembleia de jovens nuas, ninfas bronzeadas, 0 cercam, Riso- nhas, chilreantes, superexcitadas. Qual delas lhe acariciaré a haste, lhe elogiara o estofo (¢ o caso de lhe dizer), passeara a extremidade dos dedos pelas superficies sensiveis... Carfcias, toques indiscretos, traves- +" Emmanuelle 1 (1967), Emmanuelle 2 (1968), Emmanuelle 3 \1969), Emmanuelle 4 (1974), Brumanuelle 5 (1975), cariruLo2 29 Pornocrarico, exSt1co, LiERTING suras do amor que é apenas fisico, quase experimental, sensorial, e 56 Manipulagées eletrizantes. Elas se divertem, tao lindas. Quantas sao? Nao se mexa que eu conto; mas é complicado como Henry Bataille (se vocé nao pescou o sentido, ligue para René Clément) enumerar uma ninhada de passarinhos. E essas passarinhas buligosas, chanfradas, oni- presentes, nao se deixam contar, Oito? Nove? Que interessa? Ninguém tem de se meter, pois todas sao para meter. Para pegar ou para lamber. Para pentear ou tentar...° Numa passagem como esta, percebe-se nitidamente o entrelacga- mento do prazer verbal com o prazer sexual, por meio de uma enun- ciagéio apoiada em uma conivéncia prévia e que se busca também re- forgar por uma rede intrincada de alusdes-adivinhas. Os jogos sexuais sao pretexto para jogos com a linguagem. Se, na pornografia, o leitor é interpelado enquanto sujeito desejante individualmente considerado, na obscenidade, ele é interpelado antes de tudo como participante de uma maliciosidade coletiva. O relato atribuido a San Antonio, apesar de resultar de uma leitura individual, esforca-se constantemente para pér em cena um terceiro ctiimplice: personagens, narrador, leitor sao considerados como membros de uma mesma comunidade, fundada sobre valores hedonistas assumidos de maneira ostentatéria tanto na hist6ria quanto na narracao. O recuo da obscenidade tradicional e a difuséo massiva da por- nografia esto inegavelmente ligados. Aliés, propriamente, a literatu- ra pornogrdafica origina-se no universo da obscenidade. Com efeito, gracas a tipografia, o texto pornografico péde se libertar das restrigdes da interacéo oral e da convivialidade, Nela se encontram os trés pa- péis da historia obscena que a analise freudiana avalia (o contador, o alocutario cimplice, a mulher agredida), mas o contador tem atras de si um escrevente invisivel, que nado tem mais relagdo imediata com 5 A prendre ou a lécher, Fleuve noir, 1980, p. 104-105. OREM roRNOMrCS BO voMINIQUE MAINGURNEAU o alocutario, transformado em leitor solitério. Além disso, ali onde a enunciacéo obscena geralmente se contenta em retomar com algu- mas eventuais alteragdes enunciados ja partilhados pela comunidade {estoque de brincadeiras, de relatos, de cangées, de trocadilhos...), 0 relato pornografico situa 6 autor em posicdo de criador soberano que divide seu mundo com um leitor cimplice, mas inacessivel. Realmente, se dermos crédito a Freud, 0 processo de autonomiza- cao do texto que a pornografia implica ja esta desencadeado na histéria obscena. Em O chiste e sua relagdo com 0 inconsciente, ele considera efe- tivamente que a histéria obscena estaria originalmente vinculada as ca- madas populares: a mulher que se trata de intimidar com a hist6ria obs- cena est presente. Mas essa pratica popular se transformaria na medida em que fosse passando para outros meios sociais: entéo, ela passaria a implicar a auséncia das mulheres, Nesse caso, “ndo é mais a mulher, mas ao espectador, ao ouvinte, que a obscenidade passa a se dirigir”’. A pornografia impulsiona 0 processo para mais longe ainda, ao suprimir © ouvinte e ao modificar profundamente as relagées com o destinatario: em vez de buscar suscitar 6 riso, que constitui um prazer substitutivo do gozo sexual, 0 texto pornografico pretende desencadear diretamente uma excitagdo sexual. E isso tende a tornd-lo radicalmente sério. 2, O BROTICO Muito mais que a obscenidade, a pornografia é regularmente con- traposta ao erotismo, com o qual ela faz dupla. A valorizacao do erotis- mo, alids, permite a muitos condenarem a pornografia, julgada como elementar, sem incorrer na pecha de puritanos. Com efeito, cada uma dessas duas nogoes se legitima por meio da rejeigdo da outra: 0 erético nao para de demonstrar sua superioridade por conta de sua capacida- Op. cit, p. 147. captro1o 2 5 PornocKArica, tROMICS, LINERTING de de nao ser pornografico, enquanto 0 pornografico se situa como um discurso de verdade que se recusa hipocritamente a “tapar 0 sol coma peneira", que pretende nao esconder nada. O erotismo é, entéo, perce- bido de maneira ambivalente: 4s vezes como uma pornografia enver- gonhada, que nado tem coragem de dizer seu nome, outras como aquilo em que a pornografia nao conseguiria se transformar’. Por isso, nao é evidente que pornografia e erotismo. sejam simétricos e que haja uma separagdo estanque entre os dois regimes: "O erotismo se diferencia, se separa da pornografia. Mas como imaginariamos que a pornografia possa se separar absolutamente do erotismo?"* A distincao entre pornografia e erotismo é atravessada por uma série de oposigées, tanto nas afirmativas espontaneas quanto nas ar- gumentag6es elaboradas: direto vs. indireto, masculino vs. feminino, selvagem vs. civilizado, grosseiro vs. refinado, baixo vs, alto, prosaico vs. poético, quantidade vs. qualidade, chavo vs. criatividade, massa vs. elite, comercial vs. artistico, facil vs. dificil, banal vs. original, univoco vs. plurivoco, matéria vs. espirito etc. Reinvestindo em uma oposi¢do cultural propria aos anglo-sax6nicos, po- deriamos enunciar que a pornografia deriva do low, enquanto o erotismo faz sinal para o high. Ou ainda: pornografia e erotismo, low e high, baixo e alto, ignobil e nobre. A partir de um contetido representativo comum — acarne sexuada —, a imagem pornogréfica e a imagem erética dife- rem pela finalidade, pelo modo de gerir o cédigo, a escrita visual. Escri- ta visual: [...] a imagem pornografica pretende ser totalmente univoca, massivamente “unéria’, Ela 6 fornece uma mensagem — extremamente simples por sinal —, recusa-se A ambiguidade e a equivocidade. E ¢ exa~ tamente nessa recusa, tanto ética quanto estética, que se manifesta mais perfeitamente sua oposigao & imagem erética’. Fncontraremos boa exemplificagio disso no livro de Etiembre, L'Bvotisme et Amour. Paris: Arléa, 1987, ® Pp Baudry, La pornographie et ses images, p. 54, » DP, Baqué, Mawvais genre(s). Evotisme, pornographie, art contemporain. Paris: Editions du Regard, p. 43-45, erescumeraxncasince ay mommapeniineiesan Nao se pode negar qu e o erdtico vai no sentido contrério ao do pornografico: Quanto mais pornd & 0 por nO, menos erético ele €, porque ele exclul os elementos constitutivos ( a tensio entre o nu € a vestida, a seclucdo, ‘a satisfagaio do desejo na contemplacia, as preliminares do ato ete:)-"" Dessa constatagao, passa-se facilmente a ruptura, visto que © erotismo é um modo de representagaio da sexualidade compativel, dentro de certos limites, com 05 valores reivindicados pela sociedade ‘e dado que ele constitui uma espécie de solugio de compromisso entre a repressdo das pulsées imposta pelo vinculo social ¢ sua livre expressdo. Esse jA nfo € 0 caso da pornografia, que nao mascara suas tendéncias sexuais agressivas. A desvalorizagiio do pornografico em proveito do erético recebe, entéo, uma acolhida mais que favordvel. Mas quando analisamos seus respectivos funcionamentos, vemos que vale mais considerar cada qual em sua ordem prépria, em vez de enxergar em um uma grosseira degradacao do outro. Em toda socie- dade, vemos que coexistem praticas de tipo pornogréfico e de tipo erdético ¢ devemos evitar medir umas pela medida das outras. Ha por tras desses esquemas espontaneos, qu © situam 0 erotismo no alto e a pornografia na parte inferior da mesma escala, o pressu- posto de que © Sujeito nfo € confrontado com uma heterogeneidade Inredutivel de sua relagao com a sexualidade, que ele pode dominé-la s anified-la definindo alguma dialética ascendente ne qual o erético constituiria a etapa intermedidria entre a pornografia e o amor verda- deiro, Reencontramos nisso a divisao jmemorial do corpo entre uma parte animal, uma parte intermediéria ¢ ume parte espiritual elevada (ventre/peito/cabeca, boca/nariz/olhos...), popularizada pela Repablica Ge Platao e que € dominante na mitologia dos povos indo-europeus. A comparagio opera tanto mais em detriment da pornografia quanto mais a ideclogia espontéinea dos profissionais da literatura ou do Tp. Falscheid, Porno, in Dictionnaire de la pornographic, p. 373. cartrULo2 "BR PORNOGHAFICO, CROTICO, LIBERTING: pensamento os situa naturalmente no campo do erotismo, que por natu- reza tem um projeto comum com a estética, o duplo sentido, a indirecao etc, Nao se tem certeza de se aqueles que desvalorizam a pornografia a consomem menos que os demais, mas é muito dificil reservarem a ela um julgamento positivo sem fragilizar seu estatuto e a legitimidade de sua enunciagao. A literatura, particularmente, mantém uma relagaéo pri- vilegiada com 0 erotismo, que, como ela, joga com o deslocamento e 0 embelezamento para seduzir um espectador ou um leitor. O texto erdtico é sempre tomado pela tentagdo do estetismo, tentado a transformar a sugestdo sexual em contemplagao das formas puras. Considerar erotismo e pornografia cada um em sua ordem é tam- bém admitir que um e outra possuem critérios de qualidade especificos. Tanto quanto um "thriller" ou romance policial, uma obra pornografica pode ter mais ou menos éxito, Hé um "belo" pornogréfico e um "feio" er6tico, se com isso entendemos que pode haver uma adequa¢gao mais ou menos bem-sucedida entre o texto e a finalidade 4 qual sua existén- cia est4 submetida. Alias, essa é uma propriedade de qualquer literatura de género: mesmo que cada texto seja regido por um conjunto de obri- gagdes muito restritivo, os amantes do género no tém a minima dificul- dade em definir nisso uma hierarquia de qualidade. £ o que representa, de maneira ir6nica, a ceriménia dos "Hots d'Or""' que, paralelamente ao Festival Internacional do Filme de Cannes, premia os "melhores" filmes e os “melhores” atores do cinema pornografico. O contraste entre as respectivas estratégias de escrita do erotis- mo e da pornografia € patente. Podemos fazer ideia disso pela com- paracaio de duas passagens do mesmo livro, Le Roi des /ées ["O rei das TOs “Hots d'Or" [Os fogosos de ouro] sdo prémios cinematograficos dedicados a nelistria do filme pornogréfico, Foram criados pela revista francesa Hot Vidéo e entregues consecutivamente, de 1992 a 2001, tanto em Cannes {a margem do festival de Cannes, que confere 08 Ursos de Ouro), quanto em Paris, Depois de um intervalo de oito anos, 0s Hots d’Or voltaram a ser entregues em 2009, em uma ceriménia extraordinaria, por ocasiio dos vinte anos da Hot Vidéo, A semelhanga do cinema tradicional, as categorias sdo melhor ator, melhor atriz, melhor diretor, melhor filme, melhor dyd ete, [nota do tradutor] opiscomo ronnoanirce 4) BOMINIQUE AMINGUENEAU fadas"], de M. Chodolenko". Esta obra é interessante porque justa- poe, sem nenhuma transicéio, passagens eréticas sobrecarregadas de marcas de literariedade e passagens fortemente pornograficas. O livro é dividido em trés partes. A primeira e a terceira sio claramente er6- ticas, a parte central é pornografica. A unidade do conjunto é asse- gurada pelo fato de que o texto se apresenta como uma sucessao de fantasmas cuidadosamente elaborados pelo narrador, o “rei das fadas" que governa em seu imagindrio uma coorte de fémeas submissas. A passagem a seguir, extraida da primeira parte, é tipicamente erética: ‘Toda tarde, a luz raiada, ela fica de sunga, seus seios se acariciando a cada um de seus movimentos, Ao cair do dia ela esta {sic}, 0 rapido rocar do tecido contra a pele depois 0s cabelos o antincio, o tempo de passar do saldo para 0 quarto as omoplatas lisas e, & altura da porta, @ curva inferior daquele da direita, 0 torso nu. Toda tarde, por tras das cortinas, ela se vai, os seios se mexendo sob uma camiseta um pouco suja, de aposento em aposento. Enquanto o calor ia baixando, ela se levantou do canapé e caminhando para © quarto, nuca curvada, algo passou pela sua cabega. Perto do leito, surpreendida por minha entrada, ela se virou, vivamente ¢ depois veio em minha direcao com 0s bracos ao longo do corpo para apoiar seus seios nus em meu pelto, No apartamento de cortinas abaixadas para o calor da cidade, ela passou toda a tarde vestida com uma velha camiseta branca descoberta em meu armério, Na medida em que a luz baixava, ela saiu da cozinha, veio para ‘0 sofa onde eu me acomodava. Bracos erguidos: “Voce me levanta?" Por vezes, em meu sono, minhas maos pegam suas ancas, encontram-se em seu ventre e sobem até achar seus seios"®. £m um texto como este, a funcao poética é amplamente solicita- da por um jogo de repeticdes de um paragrafo a outro. O acento esta todo na beleza visual do conjunto, nos movimentos fluidos: rogar TM. Chodolenko, he Roi des fées, Paris: Christian Bourgois, 1974 2001}, Chedolenko ganhou 0 prémio Médicis em 1976 por Les Blats du desert, Paris: Flammarion, 1976 [1992}. 0 Op. cit, p. 24-25. cartmo2 HP PorNocntrico, exonco, usernno de tecidos, descolamentos do corpo, caricias... Sao as transicdes, as ambiguidades que sao privilegiadas, e isso em diversos planos: ves- tido/desvestido, corpo de mulher/roupa de homem, cair do dia, luz velada. Isso vai paralelamente a fixacdo do olhar sobre uma regido se- xualmente carregada (os seios), mas que nao sao diretamente orgaos sexuais. O leitor é situado a uma distancia que permite conservar um estatuto estético 4 cena representada. Essa prosa poética monitorada esta em aberto contraste com a escrita das sequéncias pornograficas, que exibem uma auséncia de pontuagao e uma forte oralidade, muito mais préxima da excitacdo sexual que, segundo o que se presume, o narrador deve levar seu leitor a partilhar, Nessa cena, por exemplo, o enunciador se masturba elaborando uma fantasia a partir de uma foto de publicidade de um aparelho de massagem: onde passou a m4quina esse troco de massagem pela agua fria isso € muito chato como foto para fazer a gata bem inclinada sobre a pia ela fica isso com 0 seio ela o olha dé pra ver um pedacinho de sua calcinha ela chega nao se chateia muito ela tira a roupa ela fica um pouquinho de calcinha e de sutia meia taca ela me vira as costas ela abre ele ela deixa ele cair ela vai para a pia poe o aparelho no seio faz pose me olha ta bom assim? ela veste uma calcinha transparente da pra ver suas coxas faco algumas fotos sem dizer nada eu me aproximo eu enfio a mao em sua calcinha eu lhe acaricio as coxas ela nao se mexe eu passo um dedo pelo rego ela afasta um pouco as coxas cla pée o aparelho ela apoia as duas maos na borda da pia eu pego os seios dela por tras. lambo os seios com fome na Iingua tiro todo 6 suor eu a levanto faco seu maid escorregar até os pés sua bucetinha me ajoelho lambo-a chu- po-lhe os pentelhas ett a viro eu lambo as coxas t4o quentes tao suadas me sento na banqueta ela se senta em meus joelhos ela se requebra toda em cima dos meus joelhos abre os labios antes ela vai ¢ vem me controlando pela cintura ela se requebra em cima dos meus joelhos eu a beijo e agarro seus peitos™*. Ibid., p. 161-142. OPNCURO FORNOGEAMCO BG ONINIQUENANSGUENIAL Acena se encerra com uma ejaculagao, termo inevitaével do processo: eu gozo em sua barriga sua calcinha ainda vestida sua méo ela agarrou minhas bolas ela sente a porra saindo'’. Enquanto as passagens eréticas fazem os véus proliferarem, no sentido préprio e figurado (metonimias, metaforas...) & multiplicam as mediagées (evocagao de civilizagSes exdticas, recurso a uma imagéti- ca estetizante), o pornografico inclina-se aqui para a eficécia maxima: aceleragao progressiva do ritmo, transparéncia da representagao. O confronto entre um registro de escrito literario (erético) e um registro “falado" no presente do indicativo (pornografico) é revelador: estamos préximos do mondlogo interior no presente. Mas aqui nao se trata de um presente que narra uma hist6ria j4 acontecida (presente narrati- vo) ou que evoca acontecimentos que se desenrolam no momento da enunciagao (presente déictico): esses enunciados no presente criam © que eles pretendem descrever em um universo de fantasias no qual o narrador é, ao mesmo tempo, criador e ator. Se Le Roi des fées opera uma simples justaposicao do erético e do pornografico, na mesma época, a série de romances Emmanuelle buscava principalmente uma integrac&o entre os dois. Alias, foi essa integracao que permitiu aos livros serem mais livremente difundidos, O erotismo é 0 que domina neles, mas, em alguns momentos, ele cede lugar a uma pornografia bastante suavizada, soft, associada a atmosfe- ra de uma Tailandia de folheto turistico, Essa integragao exprime-se, por exemplo, na passagem seguinte, na qual os convidados de uma festa veem descer “uma tela de fina seda branca" iluminada por pro- jetores, atrés da qual silhuetas desfilam. Na cena que se segue, as espéduas eretas de uma mulher alongada em uma cama alta estio recobertas por seus cabelos, que escondem também seu rosto em sua massa obscura. A gravidade incha seus seios. Suas nddegas se erguem, como se estivessem entorpecidas, Seus joe Ibid. p. 143. cartruio2 BIZ PoRNOGRANICO, EROTICO, LIBERTINO Thos sobem a altura de suas coxas, Ela se apoia nos antebragos, como um animal selvagem 4 espreita. Surge um homem. Ele toma entre suas maos, com gestos nitidos, o tra- seiro oferecido, puxa-o para si ¢ o penetra — até o fim, E, de repente, se imobiliza, A mulher parece ter virado de pedra’®. Esse véu de seda mostra e mascara ao mesmo tempo, é o proprio relato: ele evoca uma cena que poderia ser pornografica se ndo tives- se sido transformada em espetaculo estetizante. O consumidor é cha- mado a assumir uma posic¢do de contemplador, e nao de voyeur, como no dispositivo pornografico. No momento em que algo da ordem do pornogréfico se esboga, quando o homem penetra a mulher, “ele se jmobiliza", e a mulher se torna "de pedra". Essas poses esculturais bloqueiam o desenvolvimento da excitagao sexual. ‘Arsan, Emmanuelle 2, 10/18, 1974, p, 318. — A PORNOGRAFIA EO PROIBIDO 1. As TRES zoNAS z ATE A U nao enfrentamos a questéo do contetido das cenas iy, pornogrdficas. Todos os tipos de relacdo sexual sido passiveis de serem representadas nelas? Em O vermelho eo negro, Julien Sorel aperta furtivamente a mao da Senhora de Rénal, mas esse gesto ndo ¢ passivel de figurar em uma sequéncia pornografica, a no ser a titulo de preltidio, para anunciar que outras acées vao se seguir. Isso porque a pornografia € radical- mente transgressiva; ela pretende dar visibilidade maxima a praticas as quais a sociedade busca, ao contrério, dar visibilidade minima, quando nao, para algumas delas, visibilidade nenhuma. Ao distin- guir de maneira mais ou menos precisa o que pode ser mostrado em sociedade € o que nao pode aparecer, os bons costumes citcunscre- vem, num sé movimento, 0 espaco do pornogréfico: 0 pornografico da-se o direito de mostrar tudo, mas esse “tudo” é na realidade tudo opncuroromocmince 40) vommwiqtit saiweuneesu aquilo que nao deve ser mostrado. O dispositivo pornografico — pelo proprio fato de ser um dispositivo de representaedo para um leitor posto na posicdo de voyeur — transgride as proibicdes ao introduzir terceiros no espacgo intimo § claro, entéo, que a pornografia vai ser naturalmente considerada “obscena”: Para além da pratica a qual ela remete, a obscenidade exige testemu- nhas, uma presenca exterior exigida, uma exibicao, uma espécie de encenacio destinada a tornar particular sua percep¢ao por um olhar ex- terior convidado, certamente, mas que permanece estranho. Ela pode ser relacionada com 0 teatro, do qual deriva em muitos aspectos". Mais precisamente, segundo C.-J. Bertrand e A. Baron-Carvais*, a pornografia mostra: } o que nao pode ser feito em publico (relagdes sexuais comuns); > o que geralmente no se faz (por exemplo, as orgias) ; > o que a maioria das pessoas nunca faz (o estupro, por exemplo). Mas nem por isso qualquer atividade sexual cuja exibic&o é proi- ida é necessariamente digna de figurar em um texto pornografico. Um casal que cumpre a minima seu dever conjugal ou 0 desempenho de um ejaculador precoce nao sao atividades de interesse para o cé- digo pornografico, mesmo que elas nao sejam mostradas em ptiblico: a atividade sexual que é mostrada deve, de uma mancira ou de outra, ser espetacular, € isso em dois sentidos: (a) ela deve constituir um espetéculo; (b) ela deve escapar ao comum, ser sexualmente performatica. Mas € preciso ir ainda mais longe. Contrariamente a um pre- conceito muito difundido, a produgao pornogréfica € organizada com referéncia a normas sociais mais ou menos explicitas, que permitem regular seu mercado. M. Goulemot, Préface, in Cahiers d'histoire culturelle, n° 5, p. 5. Bertrand e A. Baron-Carvais, Introduction a la pornographie, p. 31-32. canmuioS Ad) A vornocnans £0 menntbo A maior parte de sua producao pode ser considerada canénica, visto que ela representa atividades compativeis com os principios ge- rais da vida em sociedade. Por exemplo, o fato de que uma interacao social, de qualquer natureza, deve chegar a satisfazer o conjunto de seus participantes 6 um principio de base que a pornografia candnica yespeita: se um personagem chega até a satisfagdo sexual, o mesmo deve ocorrer com seu ou seus parceiros. Mas esse carater "canénico” vai ainda mais longe. Com efeito, o principio de satisfagao partilhada pode acomodar comportamen- tos sexuais que a doxa julga “perversos", "bizarros" etc., como o sa- domasoquismo, por exemplo. A pornografia canénica nao inclui o sadomasoquismo; com efeito, ela pretende estar em conformidade, ao mesmo tempo, com normas gerais de interagdéo e com uma doxa sobre o que é uma conduta sexual “normal”. Contudo, essa fronteira entre 0 normal ¢ 0 patolégico esta sujeita a variag&o: é o caso da ho- mossexualidade, masculina ou feminina, que atualmente passa por normal, depois de ter sido fortemente reprimida, Nessas condigées, convém distinguir duas zonas entre as prati- cas sexuais que nao sao ilicitas: a zona da pornografia que acabamos de classificar como “canénica" e, as margens, a zona da pornografia to- lerada. Para além dessa fronteira, encontra-se a pornografia interdita. A pornografia "tolerada” é aquela que nao contravém ao prin- cipio de satisfacaéo compartilhada, mas que mostra praticas julgadas “anormais’. O dispositivo pornografico nfo se modificou, mas isso tem uma incidéncia direta sobre a difusdo de textos: a pornografia canénica néo é assunto para comunidades mais ou menos fechadas, enquanto a pornografia tolerada é estruturada em redes, tribos, co- munidades unidas por sua marginalidade. Encontramos aqui a distin- ¢ao classica na imprensa entre os peridédicos “generalistas" e aqueles que visam ptiblicos especializados. Quanto 4 pornografia “interdita", ela infringe o principio de satis- fagao compartilhada e/ou cai sob o tacdo da Lei. £ esse 0 caso especial- prpiicunse torNoanArico QDp poMINIauE MAINGUENERU mente das relagées de tipo pedéfilo, dos estupros etc. Essa producio, que representa praticas que nao sdo realizadas “entre adultos consenti- dores’, circula A socapa, no interior de redes mais ou menos fechadas. Pornografia Satisfagao compartilhada | Normalidade Legalidade canénica + tolerada interdita 2.A PORNOGRAFIA CANONICA Como jA dissemos, a pornografia candnica ndo se opée frontal- mente aos valores sociais dominantes: ela pretende ser apenas um discurso permissivo, que sé desdobra em um universo sem culpabili- dade. Ela se apoia na ficgao de uma compatibilidade com 0 universo social usual: bastaria que os individuos assumissem plenamente seus desejos para que tudo fosse possivel. Pelo proprio fato de que ela parece aderir As normas sociais de cooperacao, ela da ao leitor o sen- timento de que representa praticas sexuais comuns, enquanto aquilo que ela encena frequentemente esta bem longe de corresponder aos costumes efetivos. Mesmo assim, nado se pode negar que @ represen- tacdo dessas praticas tem um efeito normalizador: os leitores pensam que ai se encontra determinado “standing” sexual, cuja realidade eles ndo podem evidentemente verificar no interior de sua esfera pessoal, mas do qual eles acham que muitos outros se beneficiam. A pornografia can6nica apoia-se, em regra geral, em um garante, a Natureza, que autoriza um discurso de tipo higiénico: ha uma inocén- cia profunda do desejo, cuja satisfac&o € necesséria para & satide moral « fisica dos seres humanos € cujas modalidades de satisfacdo s40 obje- tivaveis; e isso autoriza processos de transmissao, de ensino- O relato pornografico sé desenvolve, dessa forma, em um mundo no qual todo caviruio 3 —4P3) A roRNOGRAriA £0 PROIBIDO desejo é legitimo e recebe regularmente a resposta de um desejo cor- respondente. A sociabilidade reivindicada por essa pornografia can6ni- ca se manifesta no relato pelo estabelecimento de um contrato mais ou menos explicito entre os individuos, que, desse modo, transformam-se em parceiros voluntarios. A proposta de manter uma relagao sexual nao se preocupa aqui com credibilidade, dado que o verdadeiro contra- to é, de fato, aquele que se estabelece entre o narrador e o leitor, que deve ter a certeza de que ha de encontrar na obra um ntimero suficien- te de sequéncias pornograficas bem-sucedidas. Nesse ponto, é nitida a diferenca entre as verdadeiras obras pornograficas e as obras em que ha apenas algumas sequéncias passiveis de uma leitura pornografica: em obras que nao séo pornograficas, a presen¢a de episddios resultan- tes da escrita pornografica deve ser cuidadosamente motivada. Em um livro dos anos 1970, Une Femme tres spéciale ("Uma mu- lher muito especial"), de Henri de Canterneuil, temos um modelo do género. A narradora yiu em um café um homem que lhe agrada; ele se levanta de repent O porco vai se masturbar no banheiro. Eu me levanto ¢ me junto a ele, no momento em que ele vai descer a escada que leva aos we: Trata-se de algo que posso perfeitamente fazer s6... Desejo vocé*. Aqui a proposta dispensa até uma cantada do parceiro masculi- no, a partir do momento em que a narradora afirmou, para justificar acena, que ele vai se masturbar. Mas acontece que um dos personagens parece disposto a resistir um pouco aos avancos de um outro. Em Anti-Justine, de Restiff de la Bretonne, temos o caso da jovem Conquette Ingénue, filha do nar- rador, que, calculistamente, quer se casar virgem. Por isso é que ela aceita se deixar lamber*. Eu a lambi com furor, espreitando o instante da emissao de seu liquido virginal, para me lancar sobre ela e fodé-la. Ela geme a partir do sexto * Henri de Canterneuil, Une Femme trés spéciale. Paris: Michelle Thibaud, 1970, cap. 1. * Restif de la Bretonne, Anti:Justine, op. cit., p. 44; ed. br.: Anti-justine. Porto Alegre: L&PM, 2005. opiseursoronvoceinico Gide DOMINIQUE MAINGUENEAU golpe de minha lingua, de uma maneira que eu nao podia acreditar. Mas Jogo seus tremores me convenceram. Entdo, deixando a xoxota, me lancel sobre ela. Embriagada de prazer, tenho certeza de que ela me terla deixa- do fazer de tudo; mas seu jovem cabaco, embora bem umedecido de seu liquido ¢ de minha saliva, ndo péde ser penetrado. A experiéncia de que se necéssita, para foder certas virgens, de pomada ou de manteiga fresca eu ainda nao adquirira, Por fim, ela pegou meu pau para me desentocar. Pressionado por sua mao macia e branca, ele ejaculou ¢ cobriu de um es- perma azulado sua buceta, seu ventre, suas coxas € Sua mao! De inicio, parece que 0 desejo nao esta sendo partilhado, mas, uma vez encetada a relac&o, a jovem, particularmente dotada para a atividade sexual, assume um papel ativo. A emissao de “liquido" pelos dois parceiros vem atestar sua satisfacdo e legitimar uma inte- ragdo que, de inicio, poderia parecer assimétrica. Como ressalta, com toda a justeza, J.-M. Goulemot, 0 relato pornografico jamais pée em cena uma resisténcia ao ato de amar. Ha apenas cor- pos oferecidos, desejos esponténeos ¢ voluptuosidades imediatas. se ele evoca uma resisténcia, é para pintar melhor um esbogo de estupro, uma espécie de estimulo, por sinal sem grande consequéncia, por que a vitima logo consente*. Encontramos aqui, no nivel da interacao sexual, algo que esta na base das teorias pragmaticas da interacao verbal, o “principio de cooperacdo”, do qual o filésofo da linguagem H. P. Grice deu a seguinte formulacao: Faca com que sua contribuigdo conversacional corresponda ao que se exige de voce, no estagio atingide por ela, para 0 propésito ou a direcao aceita pela troca conversacional da qual vocé participa*. Basta trocar “conversacional" ou “falado” por “sexual” para ter um prinefpio de cooperagao quase igualmente valido para a interacao pornografica canénica, na qual os parceiros sio solicitados a fazer ‘ ‘Goulemot, Ces livres qu’on ne lit que d'une main, p. 62-63, i * TL Grice, Logique en conversation (1975). Communications, 1979, n° 30. caritucoS =45) Arorxoararia FO rroripo © necessério para que a relacéio seja bem-sucedida. Mas, diferente- mente do que ocorre nas interacées efetivas, que se submetem com um sucesso varidvel a essas restrigdes, as interacdes pornograficas tendem a exemplaridade. Os parceiros sexuais no conhecem o pudor {ou entdo, ele é apenas provis6rio, no inicio do processo de iniciacao) nem a inabilidade. Todos contribuem para intensificar a troca, sem digressao nem tempo morto: podem acontecer cenas longas ou cenas curtas, mas todas proporcionam uma satisfacao completa. Além dis- 80, 0 respeito 4s normas da interag&o nao deve aqui tomar o sentido de uma tarefa imposta: como em uma conversacao bem-sucedida, exige-se dos participantes que eles deem a impressdo de estarem agindo espontaneamente. Encontramos aqui as normas da conversa- cdo mundana do século XVII, que estabelece o “natural” como nor- ma. Tanto em um caso como em outro, o natural funda idealmente o abandono a natureza e a adesdo as normas da coletividade. Ficticia- mente, é seguindo unicamente a propensio de seu desejo que cada qual se torna milagrosamente capaz de contribuir para a satisfacao de seu ou de seus parceiro(s). Essa harmonia nao é apenas pressuposta, ela deve também ser constantemente reafirmada e expressa no decorrer da troca. Muitos enunciados de valor confirmativo contribuem para inocentar uma li- teratura sobre a qual pesa ima suspeicao irredutivel. Desse modo, a senhora de Guaé diz no Anti-Justine de Restiff de la Bretonne: A abundancia e o doce calor da porra também me fizeram falar, mas com um prazer, impulsos, transportes incriveis! Eu clamava: “Querido Amante! Divino amante... eu morro... de felicidade... ¢ de volipia... Eu o adorol...” Essas afirmativas, proferidas por uma mulher, vém atestar que nessa cena 0 principio de cooperacao foi plenamente respeitado e, além disso, que o conjunto do dispositivo pornografico € legitimo. 7 Restif de la Bretonne, Anti-Justine, op. cit., p. 171. opicurso ronnogranco GG DOMINIQUE mAINGUENEAD 3, A PORNOGRAFIA NAO CANONICA Aexisténcia de uma pornografia can6nica permite aos autores & aos consumidores desculpabilizarem a maior parte dessa producao, estabele- cendo uma divisdo entre o que seria uma “boa” e uma “ma" pornografia. A distingao entre a pornografia canGnica e a pornografia nao ca- nénica é relativamente clara para 0 cinema pornografico contempo- raneo, Na Franga, por exemplo, os filmes difundidos pelas redes de televisdo — em altas horas € com algumas limitagoes técnicas — deli- mitam implicitamente as praticas que podemos considerar como pro- venientes da zona can6nica. Diferentemente da internet, a televisao nao poe em programagao filmes pornograficos produzidos na zona to- lerada. Essa exclusao sé explica, ao mesmo tempo, por necessidades comerciais (trata-se de reunir 0 ptiblico mais vasto € de administrar a censura) e por restricdes ideolégicas: a canonizagao de praticas “per- versas" alteraria fortemente a suposta transparéncia da sexualidade, ela tornaria problematica a jarmonia postulada entre a Natureza, a sexualidade e o pertencimento ao corpo social. Contudo, quando se trata de textos escritos, a diferenga entre essas trés zonas nao é tao nitida quanto no cinema. Isso se explica por diversas ordens de razoes: > um filme esta fortemente inscrito no universo social, € um produto cuja producao e distribuigdo sao caras e que envolve um grande numero de intervenientes: do patrocinador ao dis- tribuidor, passando pelos atores, pelos técnicos, pelos criticos etc, Os profissionais tendem a perfilar suas produgdes em fun- fio da organizacao do mercado e das normas de distribuicao. Isso nao existe no caso do escrito, que tem um custo baixo — ou quase zero atualmente na internet — ¢ a inscricdo social € muito fraca; > como um filme mostra a atividade de corpos reais, exibe in- dividuos em carne ¢ osso, atores que sdo sujeitos de direito carro 4% Avonnoanaria to more capazes de mover processos ou de se beneficiarem de indeni- zacgdes se se sentirem lesados. Isso nao acontece no caso dos personagens de papel; > além do mais, no cinema, tudo aquilo que infringe o principio de cooperagao se traduz fisicamente: a violéncia, 0 sofrimento se veem. O consumidor 6, portanto, mais facilmente remetido a uma culpabilidade, a uma responsabilidade, Em contraparti- da, no caso do escrito, 0 leitor que dé corpo aos personagens, e€ a ficgaio permite um jogo das pulsdes agressivas mais livre. Essa forma de devaneio desperto que é a leitura conduz o leitor A instabilidade e a polivaléncia de suas fantasias: bem poucos leitores de Sade suportariam ver no cinema um grande ntimero de cenas que eles leem com prazer certo em seus romances. Por sinal, basta reforgar o caréter ficticio do relato com sinais muito nitidos de inverossimilhanga para que se instaure uma maior liberdade. £ 0 que vemos, por exemplo, em Anti-Justine. No prefacio, © autor denuncia as obras de Sade; ele diz efetivamente ter escrito um livro no qual a libertinagem nao tem nada de cruel para o sexo das gracas, e pretende antes Ihe dar a vida do que lhe causar a morte; no qual o amor reduzido a natureza, isento de escrdpulos e de preconceitos, apresenta apenas imagens risonhas e voluptuosas. Idealmente, trata-se de um livro “que as esposas poderao fazer seus maridos lerem, para serem por eles mais bem servidas” (p. 17). Encontramos aqui, muito exatamente, a ideologia que acompanha a distribuigado da pornografia candnica. Na realidade, esse romance de Restif encobre uma boa dose de violéncia, justamente porque 0 en- redo fundamenta-se nas praticas incestuosas do narrador com sua filha crianca, adolescente e adulta. Mas como os personagens tém nomes fantasiosos ("Montencon", "Mme. Poilsoyeux", "Brideconin", "Vitnégre",..) ¢ porque as cenas representadas frequentemente raiam ao delirio, produz-se uma desrealizagéo que eufemiza essa violéncia. Opiscunso rorNoctArico 4B DOMINIQUE AAINGUENIAL De todo modo, nao vamos exagerar na divergéncia entre os dois ramos da pornografia, candnica e nao canénica, sobretudo quando se trata de literatura, Elas se nutrem das mesmas energias, mas as exploram diferentemente. Por sinal, se formos seguir Freud, a obsce- nidade é agressiva em sua raiz. fa resisténcia da mulher A agressdo masculina que a suscita, provocando uma excitagao sexual: Entéo, a agressdo muda de cardter; ela se torna diretamente hostil € cruel, ela chama em seu auxilio, para superar o obstéculo, a componen- te sddica do instinto sexual", A pornografia herda essa agressividade sexual, ela se move atra- vés dela por um jogo incessantemente renovado de desnudamento e de manipulacao dos corpos. Se as coisas se passam assim, também compreendemos por que a pornografia can6nica tem um estatuto privilegiado. A partir do mo- mento em que a pornografia, assim como a obscenidade da qual ela deriva, participa de uma agressividade sexual contrariada, é essencial para ela negé-lo, mostrando uma reciprocidade sem fratura entre 0 desejo dos parceiros, particularmente do desejo das mulheres e do desejo dos homens. A produgo canénica aparece como uma for- ma de compromisso entre as restricdes impostas pela sociabilidade e pela agressividade sexual, compardvel ao compromisso associado por Freud a histéria obscena, que seria um compromisso entre as tendéncias sexuais agressivas masculinas e as resisténcias com que elas se chocam; elas se desviam do obstaculo extraindo prazer dessa fonte de prazer, a mulher, que inacessivel. Com a difusdo massiva da pornografia na sociedade, esse trabalho de denegacao eufemizante 56 se reforca, uma vez que 0 ptiblico-alvo inclui doravante uma parte nao negligenciavel de pablico feminino, que no deveria ser objeto de uma agressao muito explicita, cuja forma extrema €0 estupro, Se a literatura pornografica, em matéria de escrita, é relativa- mente homogénea, qualquer que seja a zona considerada (candnica, * §, Freud, Le Mot d’esprit, p. 146, cariruos AQ 4 SRNOGRAFIA FO PROLIDO tolerada ou interdita), em contrapartida, no que diz respeito a seus contetidos, notamos uma divergéncia entre duas vias, muito bem re- presentada pelo par de titulos antagdnicos: Justine (Sade)/Anti-Justine (Restif). A pornografia candnica pretende inscrever a sociabilidade sexual na érbita de alguns valores sociais fundamentais, ao passo que a pornografia interdita entra deliberadamente em conflito com as normas sociais dominantes. Por isso, as duas nao estao situadas no mesmo plano: a pornografia canénica esta destinada a ser dominan- te, Claro que, com o passar do tempo, a dimensao associal de textos como os de Sade é menos evidente para os leitores, que os percebem preferentemente como testemunhos de uma época passada, mas nem por isso devemos anular aquilo que os separa da pornografia canéni- ca da mesma época. & significativo que em Sade as exposi¢ées filos6- ficas detenham um espaco t&o consideravel: a partir do momento em que o autor renuncia ao principio de satisfagdo partilhada, que ele questiona a harmonia natural que é postulada entre desejo sexual € sociabilidade, ele deve redefinir a Natureza como violéncia. Compreendemos também por que Sade despertou mais interesse entre os especialistas em literatura do que os pornégrafos canénicos contemporaneos dele: de certo modo, o autor de Justine esta em dis- sid@ncia com a pornografia dominante de sua época, assim como a literatura em geral pode estar em dissidéncia com 0 uso comum da lingua, Os textos de pornografia nao canénicos, ao suscitarem a ques- tao da legitimidade das prdticas que eles descrevem e da legitimidade de sua propria escrita, participam do poder de toda literatura, que é inevitavelmente reflexdo em ato sobre aquilo que funda suas proprias regras: pelo simples fato de ela definir soberanamente suas normas, ela precisa, simultaneamente, construir seu mundo ¢ legitima-lo. Os universos fechados (subterraneos, castelos...) que Sade constréi mi- nuciosamente para que os libertinos saciem suas paixGes sdo tomados em um jogo de espelho com as obras literarias que, na estética deriva- da do romantismo, também sao concebidas como mundos minuciosa- mente regulados por um ordenador todo-poderoso. — : AS RESTRICOES NARRATIVAS 1. A CENA “6 ?? pornografico estrutura-se segundo as restrigdes 0 RELATO de uma sexualidade falica que investe metodica- mente no intervalo que vai do nascimento do desejo a sua satisfacao. © relato consiste em adiar metodicamente a necessidade do surgi- mento do orgasmo: “A pornografia ndo é ilustracgao do desejo, mas de sua resolugao”!. Entre a mitua apresentagao dos parceiros sexuais e 0 orgasmo, inscréve-se aquilo que podemos chamar de uma cena, que em geral coincide com uma sequéncia, mas nao necessariamente, visto que uma sequéncia pornogrdfica pode encadear varias cenas. Normal- mente, a cena nao é interrompida antes de chegar a seu termo: isso faz parte do contrato tacito entre o autor do texto pornografico e o leitor. Assim como também faz parte dele a obrigacao de o autor for- necer uma quantidade suficiente de cenas, que nao sejam nem curtas, Roges des Roches, La jeune ferme et la pornographie, Paris: La Musardine, 2005, p. 139. opiscurso rorvocrinco 5) paNINIQuE MAINGUINEAU nem longas demais. Claro, pode acontecer de uma cena ser adiada, mas de modo algum anulada. Em Vénus erética, de Anais Nin, mais exatamente na novela intitulada Elena, a heroina ep6nima comeca fazendo-se acariciar por uma amiga, Leila, mas a cena esbocada é interrompida porque as duas mulheres so incomodadas por um ter- ceiro; Leila pede a Elena que volte a sua casa no dia seguinte, mas Elena nao volta. Esse duplo fracasso é apenas superficial: trata-se, de fato, de uma maneira de preparar a cena completa que, alguns dias mais tarde, traré satisfacdo as duas parceiras. Ao organizar seu relato em torno dessas cenas, a escrita pornogra- fica inverte aquilo que durante muito tempo constituiu a norma da li- teratura “visivel”, aquela que tem direito de cidadania. Consideremos, por exemplo, o extrato a seguir do romance Une Page damour ("Uma pagina de amor") de Zola, Um homem casado e uma jovem vitva, que esto apaixonados um pelo outro, terao uma tinica relac&o sexual, evocada nos seguintes termos: Entdo, como que tomada por uma necessidade de sono, ela se deixou cair sobre 0 ombro de Henri, ela se deixou levar. Atras deles, a outra cortina da portinhola escapou da bragadeit Quando Héléne voltou, de pés nus, a procurar seus sapatos diante do Fogo que morria, ela pensava que eles jamais tinham se amado tdo pou- co quanto naquele dia*. O relato pornogrfico propriamente dito se desenvolveria no vazio tipograficamente traduzido pelo espaco entre os dois pardgrafos, um va- zio que corresponde a uma cena. O romance de Zola marca exatamente seus limites (‘ela se deixou levar” e “quando ela voltou..."). De fato, o branco é preenchido no texto, mas de maneira alusiva: por um lado, gracas a sucessdo metaférica “sono” (= abandono ao desejo) > “se dei- xou cair sobre 0 ombro" (= unido fisica) > “se deixou levar* |= orgasmo); por outro lado, gracas a uma metéfora mais sintética (a cortina que es- * Livre de poche, TV, 4, p. 359. cartroio 4 BB Aswrstaicous Nawexevas capa da bracadeira como metafora da mulher que cede). Esse recurso a alusao abre para o registro erético, que é recusado pela pornografia. Ao esclarecer que “ela pensava que eles jamais tinham se amado to pouco quanto naquele dia", o narrador reafirma a doxa que opde sexualidade a amor verdadeiro; algo que justifica obliquamente a elisdo da cena. A cena pornogrfica constréi néio um quadro nico, que poderia ser estabilizado em uma tnica imagem, mas uma configuracéo dina- mica de diversas relacdes entre varios atores, pelo menos uma relacao se houver autoerotismo. Podemos também abordar essa configuracéo segundo dois pontos de vista: em dado momento, como uma espécie de quadro, ou através do encadeamento dos quadros, na dindmica da cena. A evolugdo da cena pode corresponder a uma mudanga no modo de conjuncdo entre os mesmos parceiros, ou a uma mudanga na distribuigdo dos parceiros. & preciso entender que a nogdo de enredo nao tem aqui pertinéncia real: depois que X faz uma felagéio em Y, ou que ¥ despe X, @ priori nao importa o que pode acontecer, a sucessao dos atos é contin- gente. Mas essa gratuidade dos encadeamentos é mascarada pela exis- téncia de cédigos nao escritos: por exemplo, a felagdio tende a ser loca- lizada antes da penetrago vaginal, que precede por sua vez a sodomia ete. Nesse dominio, existe também determinado niimero de rotinas que funcionam como horizontes de expectativa e que restringem conside- ravelmente os possiveis. Os autores veem-se constantemente divididos entre 0 cuidado de respeitar os cédigos que estruturam a leitura e 0 cui- dado de se desembaragarem deles, para evitar que o cardter previsivel dos encadeamentos acabe amortecendo a excitagao, R. Barthes* propés uma hierarquia para as unidades de composi- cao da cena sadiana, que pode ser ampliada para o conjunto dos relatos pornogréficos. Sua unidade minima é a postura; combinadas, as posturas compdem uma operacdo, que exige varios atores. A operacdo pode ser " _R. Barthes, Sade, Fourier, Loyola, Paris: Le Seuil, p. 3-4. Ed, br.: Sade, Fourier, Loyola, Sio Paulo: Martins Fontes, 2005. ooscusso romnoceincs 5A: DOMINIQUIEMAINGHENEAL apreendida como figura, isto &, como quadro, conjunto de posturas; ela pode também ser dinamicamente apreendida como episddio, sucessdo de posturas. © englobante tiltimo é a cena ou sessdo. A “figura” é restringida pelo espago, pelos lugares onde se encontram os atores e pela anatomia destes tltimos; o “episédio” se desenvolve no intervale entre dois gozos. Alguns atores, Sade particularmente, tendem a desenvolver o ima- gindrio combinatorio até seus limites, estabelecendo configuragoes. de corpo que mobilizam um grande namero de atores. Como ressalta Bar- thes, a pornografia sadiana € regida por “uma regra de exaustividade”: Em uma “operagdo", € necessério que 0 maior niimero de posturas seja realizado simultaneamente; isso implica, por um lado, que todos os atores presentes sejam empregados ao mesmo tempo © se possivel, no mesmo grupo (ou, em todo caso, em grupos que se repitam); ¢, Por outro lado, que em cada sujeito, todos os lugares do corpo estejam ero- ticamente saturados*. Sade constitui um caso extremo, caracteristico de um universo no qual ha mestres todo-poderosos que organizam as relacgées dos corpos dos atores. Ainda falta muito para que essa mania combinaté- ria torne-se a regra nos relatos pornograficos. De todo modo, quanto a esse ponto propriamente, a divergéncia entre literatura € fotografia ou filme pornografico é evidente: a imaginacdo do leitor pode con- ceber ordenamentos de corpos que seriam impossiveis na realidade, seja porque cles sao incémodos ou ridiculos, seja porque seu estabe- lecimento e sua ativacao seriam tao trabalhosos que eles iriam contra © prazer que se espera deles. A ficedo escrita, em contrapartida, ndo entrava a onipoténcia da fantasia. Mas nao podemos nos limitar a esse recorte algo mecAnico. Para além da descontinuidade das “operacdes”, 0 conjunto da cena é impul- sionado pela energia sem fissura daqueles que colaboram ativamente para seu éxito. O desejo dos participantes da cena pornografica nao *" R. Barthes, op. cit. p- 35. canminio4 “SS Asnistragors Nanwarivas esta submetido a variacdo, ele é sempre inteiro, constantemente dis- ponivel, indiferente aos objetos sobre os quais se fixa, Os participantes ajustam suas atividades pondo-se a servico de um projeto integrador que os transcende e cujos garantes sao 0 autor € 0 leitor. Uma espécie de “supradestinatério" invisfvel, para retomar um termo de Bakhtin, regula seus comportamentos; € esse supradestinatario o depositario das normas do que é uma "boa" cena. Mas, em nenhum caso, a inten- sidade do desejo deve desembocar em alguma dilatagéo infinita, pela qual pudesse se abrir uma inquietude metafisica, Se o desejo deve ser intenso para justificar a cena e seu desenvolvimento, indefinidamente renovado para que as cenas se multipliquem, ele deve também e sobre- tudo ser satisfeito. © dispositivo pornogréfico visa 4 plenitude. 2. O ENCADEAMENTO DAS CENAS Como encadear as cenas em uma obra? A priori, o autor dis- poe de duas estratégias principais: a primeira consiste em justap6- las, renunciando a qualquer verdadeiro enredo. E esse especialmente © caso quando o narrador se contenta em descrever uma série de fantasias. Como vimos, essa é a técnica utilizada em Le Roi des fées. Nessa forma de organizagdo elementar, os episédios tendem a ser permutaveis. £ o que vemos perfeitamente em um livre mais recente, LAmie ("A amiga"), de Gilles de Saint-Avit’, que se apresenta como uma série de cerca de cinquenta textos curtos (entre 2 e 5 paginas). Essa maneira de nao encadear as diversas cenas, de renunciar a um enredo propriamente dito, é mais recente; ela é contemporanea do surgimento do filme pornografico que, em contrapartida, voltou a uti- lizar massivamente os esquemas de relatos da literatura pornografica. 7 Gilles de Saint-Avit, LAmie, Paris; Spengler, 1994; 0 livro foi reeditado em 2000 por Le Cercle de Poche, Oo pIscURO roRNOGHACO GG _ poMMIQLE saINGUENTAL A simples justaposigao de fantasias apresenta alguns inconve- nientes: ela destaca pesadamente a dissociacao entre um real frus- trante e o imaginario, remete 0 leitor a sua condigao efetiva, em lugar de lhe propor ficgdes compensadoras que se apresentam como ins- critas na realidade. Dessa maneira, quase sempre se recorre a outra técnica de justaposicéo: um narrador homodiegético — isto é, um narrador que também € um personagem da histéria — narra suas aventuras sexuais a um terceiro; reencontramos aqui um dispositivo de narragao absolutamente classico. © outro modo de encadeamento das cenas implica um verdadei- ro enredo, no qual as sequéncias nao sao permutaveis. Para construir esse tipo de relato, o mais cémodo é apoiar-se em um esquema de iniciacdo, esquema ao qual se submete a maioria dos relatos porno- graficos. Nesse tipo de relato, 0 Oponente assume, entao, a forma mais simples do preconceito ou da ignor4ncia; 0 relato se apresenta como a busca de um Objeto de valor — nesse caso, o pleno desenvol- vimento das capacidades sexuais do heréi — por meio de uma série de etapas, que coincidem com as diferentes cenas. O Adjuvante assu- me, geralmente, a figura do iniciador. Nada impede esse tipo de relato de se apresentar como a evocacao de lembrangas, mas nesse caso as lembrangas sao organizadas segundo um esquema de progressao. Por exemplo, em Q didlogo de Julia e Madalena’ (c. 1525), uma cor- tes experimentada, Jiilia, conta sua vida A ignorante e jovem Mada- lena, comecando por suas primeiras experiéncias sexuais. O “relato” faz coincidir a iniciacio de Jtilia com a exposi¢ao didatica das diversas formas de atividade sexual: da masturbacao as cenas com miiltiplos parceiros. O conjunto se conclui com uma lista de 44 posic6es sexuais. ‘Trata-se, nesse caso, de um esquema candnico, dado que a verossimi- Ihanga psicologica e a coeréncia didatica vio em um crescendo feito 7 ii Piacevol Ragionamento de U'Aretino. Dialogo di Giulia ¢ di Madalena, manuscrito editado por C. Galderisi, Roma: Salerno, 1987. Sua atribuicao ao Aretino é muito incerta. careruiod BI As nesrnigoes wannarvas imagem daquilo que acontece em cada cena, onde h4 um aumento con- tinuo da excitagéo. Esse esquema de aprendizado tem a vantagem de construir um enredo com meios exiguos. Ele opera ainda uma espécie de ordenamento implicito das praticas sexuais, da mais facil de realizar As mais improvaveis, aquelas que estao fora do alcance dos leitores. Esse esquema elementar pode corresponder a dois exemplos dis- tintos: por um lado, as iniciagdes por meio das quais o ator passa da ig- norancia a uma atividade sexual completa, por outro, as iniciagdes por meio das quais 0 heréi passa de uma atividade sexual decepcionante a uma atividade desenvolvida. O primeiro é 0 mais frequente; € 0 proce- dimento adotado pela Philosophie dans le boudoir ou les instituteurs im- moraux de Sade (1795) ["A filosofia na alcova ou os mestres imorais"], constitufda de sete didlogos entremeados com exposicées filoséficas, ¢ também pelo Didlogo de Jtilia e Madalena, no qual a narradora, reco- nhecidamente prostituta desde o inicio do relato, conta as etapas que, do estado de virgem, conduziram-na até ali. O segundo exemplo, o do aperfeigoamento da vida sexual, é caracteristico dos textos posteriores a Segunda Guerra Mundial, textos que se apoiam em uma ideologia da plenitude sexual como componente obrigatéria da personalidade. Uma maneira de dramatizar a iniciagdo sexual é introduzir ver- dadeiros Oponentes, no caso, censores ou interditos, Mas se, nesses relatos, O Destinador (a Natureza, a felicidade...), o Objeto de valor (a plenitude sexual) e 6 Adjuvante (0 iniciador) sao levados a sério, © mesmo nao acontece com o Oponente. O dispositivo pornografico canénico, efetivamente, s6 funciona se esses censores forem desqua- lificados: os Oponentes serao, entao, personagens ridiculos, automati- camente excluidos do universo sexual, ou hipécritas que vio se reve- lar grandes adeptos daquilo a que eles fingem se opor. Mostrar que 0 interdito mantém um vinculo essencial com o desejo desestabilizaria © dispositive pornografico "candnico", que se apoia na plenitude de uma Natureza radicalmente inocente, de um desejo que basta liberar para se atingir a felicidade. opscurso rorNodaaricn “SB DONENIQUD MAINGUENEAL A iniciagdo sexual tem como efeito oferecer ao leitor, simultanea- mente, procedimentos de formalizacao e de satisfagao de seus dese- jos, ¢ a desculpabilizagao deles. Nao é um dos menores paradoxos do dispositivo pornogréfico apresentar como normais praticas que resultam, para o comum dos mortais, do repreensivel. A historia nar- rada, ou seja, a descoberta por um heréi de suas plenas capacidades sexuais, funciona ininterruptamente como processo de legitimacao da propria enunciagéo pornografica, logo, de sua leitura: idealmente, o heréi que atinge a felicidade justifica o caminho que 0 levou a plena satisfac&o, e os valores que subjazem ao consumo pornografico, Ha ali algo de crucial para um tipo de enunciagao atépica, marcado pelo rétulo do desvio e da culpabilidade, Para além dos personagens de iniciadores que figuram no relato, é efetivamente o proprio relato pornografico que funciona, para 0 lei- tor, como um mediador. Enquanto a leitura pornografica esta, por na- tureza, submetida a um interdito, ela faz seu leitor entrar em histérias que suspendem esse interdito. O texto pornografico, que formula e ordena as fantasias em obras das quais se imprimem miltiplos exem~- plares, socializa o desejo. Aquilo que ele representa se mostra parti- lhdvel, como demonstra, de maneira performativa, o préprio ato de leitura, que une © narrador e 0 leitor, bem como os leitores entre si. 3. UM PSEUDORRELATO Mesmo quando narra uma histéria, o relato pornogrffico s6 pode ser um pseudorrelato. Isso se verifica tanto no nivel de cada cena como no nivel do conjunto do enredo. A economia do relato 6, com efeito, minada pela primazia conce- dida as cenas. As peripécias do enredo nao passam de pretexto para a introducio das cenas que 0 leitor tem o direito de esperar. Qualquer que seja o cenario, quaisquer que sejam os personagens, sejam quais EAvrHNO 4 HQ As nestiugwes ramesrevas forem suas motivagées, de toda maneira, é sempre a isso que se vai chegar. Nesse sentide, uma compara¢ao com a série de romances que constituem as Viagens extraordindrias de Jalio Verne é esclarecedora, Os enredos desses romances podem ser considerados como um pre- texto para "transmitir" determinado ntimero de conhecimentos de tipo enciclopédico, pois se trata de romances que pretendem ser educati- vos: o leitor que embarca no Nautilo de Vinte mil léguas submarinas, de fato, esta ali para descobrir a flora e a fauna marinhas, portanto, para ler descrigées interminaveis. Poderiamos cair na tentagao de dizer que o mesmo se pode afirmar a respeito do leitor de relatos pornogréficos: o enredo nao passa de um pretexto para ler cenas. Mas o resultado nao tem termo de comparacao. Feitas as contas, o leitor de Julio Verne apaixona-se pelo sombrio destino do capitaéo Nemo ou pelo ataque do polvo gigante e tende a ler em diagonal ou a pular as exposigdes sobre 08 peixes, os crustéceos ou o fundo do mar. Em contrapartida, o leitor do relato pornografico aceita o contrato pornografico e vai ler em dia- gonal ou passar por cima dos episédios que se intercalam entre duas cenas, seguro de que, de certa maneira, eles sfo apenas “enchimento", Para falar claramente, o relato pornografico nado pode ser verda- deiramente romanesco. As cenas ali sféo mal e parcamente articula- das por um simulacro de enredo apoiado em motivagées psicolégicas ou sociais As quais o leitor nado chega realmente a dar crédito. Se acontecer de os personagens de um relato pornografico se declararem apaixonados e de esse amor motivar suas atividades sexuais, as cenas se desenrolariam exatamente da mesma maneira se os atores nao es- tivessem apaixonados. Nesses relatos, nao poderia haver tensao entre amor e pornografia. E 0 se o enredo estabelece uma relagdo amoro- sa entre dois individuos, isso em geral acontece por que esse amor, longe de fazer os dois amantes se virarem para si mesmos, torna-os disponiveis para relacdes com outros parceiros. Uma figura classica € ado amante que, por amor, “se oferece" ao dominio dos outros; é isso 0 que vemos com toda a nitidez em Hist6ria de O, que se apoia opscursoromocninco 6 pomique sumcuexeau em rituais masoquistas. O proprio amor se vé assim paradoxalmente invocado a legitimar um dispositivo pornografico que, por natureza, no quer conhecer nada dele. Podemos, entao, nos perguntar por que os relatos pornograficos nao se contentam em construir uma imensa sequéncia pornografica, por que eles se obrigam a organizar laboriosamente pseudoenredos. De fato, nesses relatos, ndo se trata apenas de representar atividades sexuais: também é necessério dar-lhes limites. A alternancia entre se- quéncias pornograficas ¢ sequéncias de “enchimento” permite reinter- pretar indefinidamente a passagem da fronteira entre © universo nor- mal, o da repressdo das pulsdes sexuais, e os das relagdes sexuais sem restrigdes, O leitor € um pouco como a crian¢a de que Freud fala em “Além do principio de prazer": para conjurar a auséncia de sua me, ele joga o pido e o puxa de volta pelo cordao, transformando, gragas & brincadeira, o evento sofrido em evento controlado. Do mesmo modo, o leitor entra nas passagens nao pornogrdaficas, maneja para afastar a realizagdo de seu prazer, que ele sabe com certeza que ha de voltar algumas paginas adiante. Ao se afastar momentaneamente das cenas, ele mantém o controle, vive a frustragao 4 maneira de simulacro. © “enchimento” entre as cenas permite, além do mais, insistir no carater instantaneo, quase magico, de seu desencadeamento. As res- trigdes da verossimithanca implicam uma submissao a um principio de realidade que a pornografia tem de ignorar. Saber que, a qualquer momento e externamente a toda restri¢ao social ou psicolégica, uma cena pode surgir € uma das atribuicdes essenciais da leitura desses textos. Efetivamente, o relato pornografico nao cessa de tornar possi- veis as relagdes impossiveis de que se tece o cotidiano. Os persona- gens estdo sempre disponfveis, independentemente da relagdo que se possa estabelecer, nao importa onde, em que momento, ¢ chegar a seu termo, para a maxima satisfacdo dos parceiros. Desse ponto de vis- ta, podemos dizer que a pornografia é radicalmente transgressora, no sentido de que esta destinada a subverter a multiplicidade de frontei- careruio 4+ (GIP As nesreigons narnarivas ras sociais e psicolégicas que estruturam as relacdes sexuais efetivas. A inverossimilhanca do relato pornografico nfo dever ser considerada um defeito, como se os autores nao tivessem sabido elevar 0 nivel de sua escrita: ela é, antes, uma condigdo de seu funcionamento. Contudo, a questdo da verossimilhanga nao é enfrentada da mes- ma maneira em todos os relatos. Trata-se de fantasias exibidas como tais, opera-se em principio uma suspensao de toda verossimilhanga. A fala se torna, ent&o, estritamente performativa: dizer € fazer. fo caso da seguinte passagem do Roi des fées: As cavernas, muito tempo depois, sucederam-se os castelos, para cenas mais intimas. Eram salées de verao, sombrios é silenciosos. Varias vezes por semana, as primas declaravam, depois da refeigao, que tomariam café sozinhas na saleta amarela, e a familia ndo via nisso nada de estranho. Quando eu entrava, elas néo levantavam nem a cabeca. Eu punha a ban- deja sobre a mesinha de centro diante de suas poltronas ¢ me ajoelhava, Eu tirava meu sexo de minha calga e esperava, porque eram elas que, a partir daquele momento, decidiam 0 menor de meus gestos. Diante de mim, em voz alta, elas discutiam o que viria a seguir: eu devia tocar punheta com a mao direita, com a mao esquerda, ou com as duas? E faria isso sentado, ajoelhado ou de pé? Ou, ao contrério, iria rogar meu sexo contra o tapete, no pé de uma cadeir | nas cortinas, em cima de uma mesa?” fi diferente o caso dos relatos em que o enunciador pretende evocar uma histéria independente de sua narragao. De todo modo, as situacdes so muito diversas. Num polo extremo, podemos situar os textos que acumulam indicios de realidade, no outro polo, os textos que exibem os signos de sua inverossimilhanca. £ 0 caso, por exem- plo, em Anti-Justine de Restiff de la Bretonne, no qual vimos que a mera mengio do nome dos personagens ("Poilsoyeux", "Connette", “Vitnégre"...) € o bastante para desrealizar 0 mundo representado: eles sao inicialmente apresentados como simples personagens de re- lato pornogréfico. Aliés, nesse texto, é 0 conjunto do enredo que é 7 Op, cit., p, 80-81. OopIKCURIO PORNOGKAMCO “Gp POAINIQUE MaLNGUENNAL dado como fantasista: os personagens masculinos sao seres de anato- mia monstruosa e as relagGes incestuosas sao generalizadas. Contudo, o relato pornografico no se acomoda perfeitamente a mundos feéricos: com efeito, ele funciona melhor quando pode criar alternativas no interior do mundo cotidiano, aquele que frustra seus leitores. Essa é uma das condigées da identificagdo do leitor com os personagens, fundamento da leitura pornografica, O relato deve tam- bém administrar um equilibrio muito delicado: um excesso de realis- mo reduz o leitor ao mundo ordindrio do qual ele pretende se libertar, mas um excesso de fantasia apaga nele o sentimento de libertagao das limitacgdes de que é tecido o mundo ordinario. 4. Os “PERSONAGENS” Os personagens sao submetidos a restrigdes da mesma ordem. Para além da diversidade dos tempos, dos lugares, das experiéncias individuais, das pertinéncias sociais, eles sao apreendidos exclusiva- mente como seres desejantes. Sua “psicologia" esta subordinada a esse tinico aspecto, condigéo sine qua non da existéncia das cenas. Isso nao significa que todos os personagens sejam idénticos, mas que suas dife- rengas devem se manter na superficie. As tinicas propriedades que in- teressam sao aquelas que tém alguma incidéncia sobre o funcionamen- to da cena; ser homem ou mulher, alto ow baixo, ter tal 6rgdo com tal conformagao, ter essa ou aquela preferéncia nas praticas sexuais etc. Esse tipo de personagem mutito semelhante aos personagens dos didlogos filoséficos classicos que, animados por uma boa vontade in- defectivel para a busca da verdade, fazem abstragao de qualquer outra consideragao e se dedicam totalmente A argumentacao em didlogos que so o equivalente das "cenas" do discurso pornografico, Vejamos, por exemplo, como Descartes descreve Eudoxo, um dos personagens de seu didlogo A busca da verdade pela luz natural: "Um homem de espirito me- LO 4G] Ay nesraicoes NaRRATIVAS diocre, mas cujo julgamento nao é pervertido por nenhuma falsa crenga € que possui toda a razdo segundo a pureza de sua natureza"’. Essas caracteristicas bastam para definir o papel que se considera reservado a Eudoxo no didlogo. Do mesmo modo, em Anti-Justine, 0 personagem, altamente fantasista, de Fysitére se reduz a suas aptidGes sexuais: Fysitére era um desses homens peludos, que descendem de uma mis- tura de nossa espécie com a de homens de cauda do istmo do Panama eda ilha de Bornéu. Ele era tao vigoroso quanto dez homens comuns, quer dizer, era capaz de derrotar dez outros homens com as mesmas armas que ele e precisava, s6 ele, de tantas mulheres quantas seriam necessarias para dez homens?. Trago revelador: os personagens dos relatos pornograficos rara- mente dispd6em de um nome completo (nome e sobrenome}, que os inscreveria com preciséo no espago social. Geralmente eles se conten- tam com um prenome (“Justine”, "Madalena"), com uma letra inicial, ("0"), com um nome fantasia sexualmente motivado ("Joao Pauzao"), com um apelido (*Lu"), até mesmo com um pronome ("ele"); por exem- plo, nas sequéncias pornograficas do Roi des fées, ha apenas dois actan- tes: o "eu" do narrador e o "ela/elas" das criaturas que ele imagina. Algo perfeitamente compreensivel: 0 sobrenome revela uma origem, uma familia, ancestrais, uma insercao social; 0 prenome, em contrapartida, esta ligado a intimidade, individualiza sem individualizar, dado que em uma coletividade todos os tipos de pessoas tém o mesmo prenome, ja a simples inicial, popularizada pelo titulo Historia de O, pode parecer motivada por uma Preocupagao com a discrigdo, algo frequente nos romances do século XVIII, mas ela também facilita a reducao das pro- priedades dos personagens unicamente a sua funcionalidade sexual. O personagem canénico do relato pornografico é ativo no decor- rer de uma cena ou de uma série de cenas, e desaparece, Tanto quanto pene Descartes, La Recherche de Ja vérité par la lumiére naturelle, in Geuvres philosophiques. Paris: Classiques Garnier, tomo II, p. 1108. ° Op. cit., p. 152. © DISCURSO PoRNOGHAFICO GA) DOMINIQUE MAINGUFNEAU os personagens, o relato nado deve construir efetivamente uma mem6- ria. Acrescenta-se a isso uma restrigdo ligada as proprias condicdes de possibilidade do discurso pornografico: a permanente troca de parcei- ros, O desejo esta la, o tempo todo disponivel, sem que tenha impor- tancia quem é capaz de entrar em relagéo com quem quer que seja. Muito frequentemente esses personagens nao estéo isolados, mas inscritos em comunidades de individuos que se retinem de maneira mais ou menos duravel para atividades sexuais. Com efeito, a comu- nidade pode ser efémera (pode acontecer de varias pessoas estarem no mesmo lugar, na mesma hora, e estarem disponiveis para uma interagdo sexual); ela também pode ser duravel: 0 caso extremo & ento, o da confraria fundamentada em um cédigo simbélico proprio. Essas comunidades durdveis, que poderiam ser chamadas de comunidades “instituidas", organizam as atividades sexuais segundo principios partilhados pelo conjunto de seus membros. Diferentemen- te da comunidade efémera, esse tipo de comunidade esta estreitamen- te ligada aos enredos fundados em um percurso de iniciagao: tal enre- do se opera integralmente no interior da comunidade. Esses dois tipos de comunidade sao reveladores de uma ambiguidade constitutiva do dispositivo pornografico, que oscila entre duas op¢ées: ele pode pro- mover a utopia de um mundo comum no qual a satisfagao dos desejos seria imediata, ou entéo circunscrever no mundo "normal" espagos reservados, imunes a suas restrigdes. De fato, essas duas solugdes sao cumulaveis, composigées entre elas séo possiveis. Por exemplo, se os personagens sao convidados a uma festa que acaba em orgia: a festa permite acumular as vantagens da comunidade efémera e alguns as- pectos da comunidade instituida, ela define um espago a parte da vida social cotidiana, mas que nao tem a estabilidade de uma confraria. Em um relato pornografico, todos os personagens no se situam no mesmo plano. Em geral, hé um herdi, em torno do qual o enre- do se organiza, Na realidade, a maioria desses heréis sfo heroinas. Isso pode parecer paradoxal no caso de produgées geralmente tidas cartruio 4 §GS) AS RESTRIGOES.WARRATIVAS como submetidas as restricdes da sexualidade masculina. Mas, ao final das contas, trata-se de uma escolha coerente no interior do préprio universo masculino. A doxa atribui ao homem uma libido liberada, de certa maneira, espontaénea, e 4 mulher, uma relagdo problematica com sua prépria sexualidade, que se presume que ela deve descobrir, Reencontramos aqui a figura arquetipica do mediador, que é 0 principe encantado, cujo beijo desperta a jovem adormecida para a sexualidade. Os psica- nalistas, com uma linguagem muito diferente, teorizam essa necessi- dade de um tornar-se mulher. Nessas condicées, é facil compreender que o homem, que se presume alcance imediatamente 0 gozo falico, seja um candidato menos indicado para a iniciagéo do que a mulher. Além do mais, o fato de ser a mulher que é a iniciada permite justificar proprio dispositive pornogréfico. Ali onde a cultura insiste obstinadamente no "mistério" irredutivel que a sexualidade feminina representaria para © homem, a pornografia se engaja em nega-lo; ide- almente, a mulher que chegou ao termo da iniciagdo esté em perfeita hharmonia com a sexualidade falica que organiza os relatos cujo persona- gem central é ela, Dessa maneira, a mulher é incessantemente convoca- da a confirmar a legitimidade da sexualidade que a toma como objeto. Quanto as mulheres ja iniciadas, elas mesmas atestam, com seu comportamento, que nao ha nada de inquietante na diferenca sexual, que o gozo félico esta no centro de suas preocupacées. O conjunto do dispositivo pornografico apoia-se hess pressuposto. Temos bom exemplo disso no inicio de Une Femme trés spéciale ("Uma mulher muito especial"), onde a narradora exprime um desejo que deve ser satisfeito por todos os meios, isto é, por nao interessa qual homem: Bu sou uma mulher que foge sem encontrar ninguém. O tirano que carre- go em mim, que eu arrasto ao longo de paredes cinza e de janelas fecha- das, € meu sexo. Ele me revira 0 ventre, queima meus passos ¢ vai além de mim [...]. Nao ouso olhar para as pessoas, com medo de ser atraida...'° © Op. cit., cap. 1. oviscurso rornoaririca GG DOMINIQUE MAINGUENEAD O texto pornogréfico tem necessidade de mostrar uma populacao feminina que estaria, enfim, liberada dos interditos falaciosos que a sujeitavam: as mulheres “liberadas" que ali aparecem comportam- se de acordo com o universo masculino porque fica postulado juri- dicamente que toda mulher se torna tal se assumir seu desejo. Ao pretender revogar toda e qualquer censura, a escrita pornografica, na realidade, sé funciona a partir de outra, mais secreta, aquela que anula a irredutibilidade da sexualidade feminina. Segundo esse ponto de vista, a literatura pornografica se situa nos antipodas de outro tipo de exploragao da diferenca sexual: a mitologia da mulher fatal, tal como desenvolvida no fim do século XIX. Efetivamente, essa mitolo- gia situa no centro do enigma da diferenca sexual a incapacidade do masculino de dominar o feminino, ela mostra a destruicgéo do homem no ponto em que a pornografia mostra uma mulher cuja sexualidade esta a altura da sexualidade do homem. 5. UM RELATO TIPICO A titulo de exemplificacao, passaremos a considerar uma obra pornografica tipica, publicada em 1976, Couples mariés en partouze [‘Cénjuges em orgia"}"!, assinado pelo mesmo pseudénimo ("Henri de Canterneuil") que assina Une Femme trés spéciale. Seu enredo € um pretexto para mostrar diversas "cenas", ao mesmo tempo narradas e ilustradas com fotos de plano geral e cores vivas. O esquema é o da iniciagdo, que leva de uma sexualidade insatisfatéria a uma sexualida- de desabrochada pela abertura do casal a outros parceiros. O herdi € a propria narradora, como é frequentemente 0 caso nesse tipo de relato. Os personagens, reduzidos a setis prenomes (Sonia, Michel.,.), nado tém posicao social precisa, nem perfil psicolégico determinado. Se por aca- U Henri de Canterneuil, Couples mariés en partouze. Paris: Michelle Thibaud, 1976. cavirnod

You might also like