You are on page 1of 51
CADERNOS ‘/INQUERITO” SERIE G CRITICA E HISTORIA LITERARIA XII GIL VICENTE, FLORESTA DE ENGANOS por VITORINO NEMESIO e EDITORIAL «INQUERITO», L.°A LISBOA ie Vala EAN TUES, FLORESTA DE ENGANOS tina e, dos titulos que a Copilacam de todatas obras de Gil Vicente me olerece, vivos como folhas do Triuufo do Enverno, ex- pressivos ¢ directos como os fustes das vinte quatro arvores dos autos, que se dispoem de maneira a dar a comica ilusiio de um bosque inteiro, escolho FLORESTA DE ENGANOS para nome dessa formidavel unidade. Bem sei que os aenganos» da comédia de Gil Vicente so puros disfarces, 0 que os franceses chamam déguise- ments: coisas de maneira ou de «guisa» mudada. Mas nem esse nem outros expedientes teatrais abafam a forga simbolica do tcatro vicentino, Como na Fragua de Amor que rejuvenesce a velha, essa forca transforma tudo a poder de alusiio ¢ de virtualidade, Os simbolos vicenti- A TRAVESSO mais uma vez a selva vicen- a VITORINO NEMESIO nos saem uns dos ontros como um mistério multiplicado. A sombra da Floresta de Enganos oigo uma voz feminina preguntar a Fr, Cigarra: «onde vai aqui a estrada onde os agravados vito?» Portanto: uma Romagem de Agravados no sto da Mloresta de Enganos: a humilde via- acra da povo portigués num universo de ilu- soes e de sombras: a nossa Comédia Humana, episddio da Divina Comédia. Assim eu construtria interpretativamente toda a profusa e densa signifi. obra, adormecida trezentos anos na meméria de um Portugal atordoado de humanismo livresco e,de escolistica derivada, Perdido na sua espléndida ubiqtidade ultramarina ou immobilizado em casa com tropos e mitos gastos, o pais embotou a sensibilidade capaz de lhe acusara propria in- quietagto e frescura. Nao entendia Gil Vicente, como nio entendia Fernfio Lopes. E o proprio Camées, gquantas vezes nto foi tomado como um simples notirio de gldrias, o nosso primeiro fabricante de matéria gramatical? O Romantismo protestou como pode contra éste estado de coisas, Sentiu debaixo das pas- tadas de retérica 0 misculo portugues. Veio Herculano com a sua picareta de bronze deitar baixo um bocado de gesso barroco. Foi ele o primeiro que, ouvindo a voz de Shakespeare, Jembrou de Gil Terron, Garrett pegou no ratte ase GYign VoL CoE iD B 9 vafapan do mondlogo do Vaqueiro para fazer auto novo, Saiu-lhe um «auto» grego, de «me- dida nova», novissima, compromisso raciniano com um Shakespeare trajado a Hugo,—no fundo uma obra prima e uma coisa déle: Fr. Luis de Sousa, Mas faltou a Garrett, para pegar com seguranga em toda a deixa de Gil Vicente, © profundo sentido do comico, uma maneira de achar os dramas naturalmente onde eles esto, € nfo condicionados pelo patriotismo ¢ pela gala, Assim, 0 resto do seu teatro ficou prati- camente morto. Mas eu falo aqui sobretudo de compreenstto de Gil Vicente, da consciéncia que tem havido em Portugal do sentido e valor da sua obra. A partir da justica que lhe prestou o Romantismo, a nossa eradigiio apoderon-se dele; fez déle uma querida carcassa. E’ claro que na historia do entendimento ¢ assimilagio de um autor velho ha sempre uma fase erudita, feita de sapa de arquivo. Brito Rebélo e Braancamp encheram honestamente a sua hora. Depois, D. Carolina Michatlis resolve magistralmente vastos pro- blemas de fontes, de bibliografia, de linguagem. Desde a campanha de Afonso Lopes Vieira até a0 Teatro dos Estudantes de Coimbra, dirigido por Paulo Quintela, muito se tem feito por Gil Vicente vivo. Mas a verdade ¢ que a arqueolo- gia vicentina ainda tenta mais gente do que a Jeitura da obra, Estamos ainda no cartorio 10 VITORINO NEMESTO espera do milagre de um documentozinio, Ota, € preciso passar do cartério vicentino para a rua € para os campos da Torre do Tombo para a Serra da Ii 'U chamaria a primeira parte de um itinerd- rio désses —Tragicomédia Pastoril, Auto Pastoril, Seria a viagem de reconheci- mento do lirismo vicentino. A altura de Man- teigas ou de Seia (para fazermos realmente uma viagem que nio seja metafora pura): presen nhos de pastores e pastoras. Vem ao caminho as raparigas das redondezas ¢ os almocreves das farsas, que jd em tempos de Fernio Lopes faziam «sua meijéada». {Como toda esta casta e acre poesia da terra portuguesa se fabrica solidiriamente, saltando de autor a autor como de um elo a outro elo, até ficar, pela variedade da colaboragao ¢ pe! insistencia das notas, quisi andnima, crese! de todos nos como uma filha! Uma mocinha da Beira ¢ a Fama Portuguesa e a sua voz civinda acorda a serra em todos os recessos, fala nas iguas das chuvas ¢ no granizo ironic as a Nas ver= duras do verio do Auto dos Quatro Tempos ¢ na pelagem preguigosa de lobatos e raposinhos. A serra estremece. Os vales siio roxos de frio lores na primavera. No-inverno os homens asalham-se com panos da Covilht, —. ei porque, 08 QuatroTempos fun- © parece que & sempre Natal, Talvez porque a Serra, em Gil Vicente, tem o relévo e a irradiagto de um presépio de Machado de Castro, feito com cortiga e mu mete Gil Vicente uma imagem da Virgem no feixezi- nho de Jenha de uma beira di encosta.., 0 Me- nino Jesus é um «cachopinho», um descendente de «Kiva tristes. Alias todo o céu tomou nesta exeursiio um ar docemente portugues, — digo o cén mistico que anda para 1a do azul, e onde os anjos langam em rosto uns aos outros pura ma- téria luminosa. —«Quando partistes dos céus, que ficav Deus fazendo?» — pregunta Gilberto ao Seralim, no Auto da Feira, —«Vicava vendo o seu gado». E Gilberto: Santa Maria! Gado ha 1a? Oh Jesus Como 0 ter o Senhor gordo e guardado!» Contente do nivelamento que descobre entre estrados tio altos eas rasas brutezas beiroas, Gilberto quere saber m «jf ha 1a boas ladeiras, como na Serra da trela?» 208, I 12 VITORINO. NEMESIO O Serafim — «Sim». aVirgem, que faz ela? -— «A Virgem olha as cordeiras, e as cordei- ras a ela», tio Gilberto sente correr em si o sangue do bom vizinho; interessa-se pelo seu seme- Ihante celeste; pregunts —. A’s vezes penso porque ¢ que o destino nos nfo da o tergo de um Gundolf ou a simples metade de um Curtis para que Gil Vicente tenha enfim © seu explicador. Mas nao, O destino nfo da nada de graga a ninguém. O destino ¢ o espec- tro e a desculpa do preguicoso—entidade que, para a obra de Gil Vicente ser em tudo ¢ por Tay SL CUE ON E ” tudo a nossa Comedia Humana, nem falta nos Sells autos: estirado, lusitanissimo, feito de muisculo frouxo e de bocejo escancarado. Nilo quero embrenhar-me de mais na selva vicentina sem dizer desde ja o que entendo por dimensio funda deste homem: a sua poesia pes- mista, de um descons6lo moderado e indul- gente, mas corajoso e incisivo. Penso sobretudo na humanissima K'va do Aula da Histéria de Dens, na Oragito para Santo Agostinho do Auto da Alma, na concepeto da estalagem a meio do caminho da vida, ¢ até no viés trigico de que sfio feitas figuras como as alcoviteiras, a bebeda alfacinha, ete. Era preciso mostrar todos os lan- ces e tipos vicentinos por uma espécie de «lado de dentro» que a mim me parece aparentissimo, mas que talvez tenha escapado ao habito de sé se encontrar nos grandes criadores a linhazi nha pitoresca que se conhece de antemfo. Em pura poesia, também gostava de falar de um Gil Vicente que saltou o redil lirico dos nossos cordeirinhos posticos, prenunciando na estreiteza da sua «medida velha» uma boa por gio de valores que a poesia portuguesa s6 agora desenvolve e aviva. Falta-nos um dos maiores poctas no quadro oficial da lirica quinhentista: o do hino O Gloriosa Domina do Auto Pastoril Portugués; 0 do vilancete Adorai, montanhas e das falas de Job e de 5. Jono do Auto da Histé- ria de Deus; 9 da siplica da Cananeia, da noite a 18 VITORINO NEMESIO de Natal e da fala do Auto da F'é que comega por pér 4 vista o processo interior da ficcto: Pastor, fase tu assis Comega de imaginar... Enfim o da lastima de Cismena da Comédia de Rubena. («Que grande praga € cuidar, ¢ que tormento entender!»); 0 da Breve Contemplagéio sdbre 0 Nascimento, em Mofina Mendes, e de tantos outros lugares de lira e de elegia. Nao podendo demorar-me agora neste campo, —que a selva ¢ sombria e comprida e esta a espera de nds,—adianto meia diizia de direc- Ges que trazem a poesia portuguesa de Gil Vi- cente aos nossos dias. Versos para Jozo de Deus: Tao depressa, 6 delicada, Alva pomba, para onde is? Versos para Anténio Nobre: Pois sé de levar a crus tio pesada, Pela sora acima homem so delgado, Disto somonte ficard matado. E até a Lua «superioray de convento, Notre- GIL VICEN 19 -Dame-la-Lune de Laforgue, lua de Lecae Torre de Anto... Para Cesario Verde: Saivan: as veyateiras Em cardume de sardinhas, Nadando muito igeiras, Desvtiadas das carreiras, Por nifo topar co’as toninkas, Para Teixeira de Pai Oh eternal Criador, Oh temporal criatura, Que encobres com terra escure O divino resplandor E imensa formosura! até para o Torga de O Outro Livro de Job Que a minka pele, as carnes paslatas, Loxo a meu dss0 se achegard, E tambim simente 0 que jicard, Os beigos acérca das minhas queixadas, ¢Estard Gil Vicente aqui, na poesia portu- guesa de todos os tempos e cumieiras, ou no triste lugar comum de «o Planto portugues»? 20 VITORINO NEMESIO IL Vicente est no cruzamento das linhas que trazem ao homem moderno a sub tancia do cémico, Entre o teatro medie- val ¢ Shakespeare ¢ Moliére ¢ ele que se in- terpoe, Da um novo sentido a representagio hieratica; ennobrece as bulonarias dos arreme- dilhos ¢ dos momos dando-Ihes sentido e ver- dadeira matéria comica, Assimilou a alma medieval, retardada terra portuguesa com as suas vestiduras fan- {isticas, Desvendou o seu fundo mistico empre- gando instrumentos poéticos ao mesmo tempo desajeitados ¢ precisos, de uma precistio que a prépria pobreza de meios valoriza, Apesar de a sua obra se desenvolver ao longo de trinta e tal anos da primeira metade do século xVJ, Gil Vicente desconhece a cultura humanistica que se vai implantando em torno dele, O seu espirito permanece ingénuo ¢ fiel 4s nossas origens literdrias numa alma que ja tem a inquictagiio dos tempos novos, Dai a de modernidade e de sobrevi- uunho de uma tranha alianga vencia que sela a sua obra, teste GubatitVit 6x8 NUT or fatureza humana emancipada dos terrores me- dievais mas expressa numa voz ainda areaie: Apetece pedir a geografia a sua nomencla- tura e 08 seus métodos para falar de Gil Vi- cente, homem de horizontes e de relevos, ho- mem do tamanho de uma terra, A sua obra apresenta-se como a con{luéncia de duas épocas, Estas dramatis persona, com que vamos tratar daqui a pouco, parece que somem a sua coi rente pessoal numa grande margem neutra, es- pécie de limbo que o inferno medieval, de cha mas verdad limita por um lado, enquanto do outro cresce a arvore do bem e do mal no paraiso perdido. Eva, apesar de «triste», apetece 08 frutos novos, Verdadeira foz da dade Média no Renasci- mento, com saborosas alternativas de evasio de uma idade para a outra, Gil Vicente, sob 0 ponto de vista da sua formagio humana ¢ da sua pr paragto de escritor, é um retardado sobre a cultura eo espirito da sua época, Num Portu, que se entregou todo e e@do a experiencia vital do Renascimento, de que foi por assim dizer 0 pratico ¢ 0 perito-gedgrafo, Gil Vicente ficava atrasado, mesmo em relagto as conquistas bas- tante tardias do humanismo nacional. Terei que tocar mais vezes neste ponto, Adianto- para fazer notar porque prego Gil Vicente teve de pagar a originalidade do seu génio. Pagou-o com uma espécie de anacronismo pessoal. Ou somos 22 VITORINO NEMESIO nés que, senhores de uma perspectiva literaria j& arrumada e nitida, em que os éxitos e os ma- logros se esclarecem por si, gostariamos de ve-lo nascido um pouco mais tarde, dar toda a medida do seu génio numa expressio mais moderna, Foi com esforgo de imaginagio semelhante que um historiador inglés, Aubrey Bell, di que Gil Vicente se parece com o que teria sido Shakespeare nado no século xv. O mesmo cri- tico admite que Gil Vicente pudesse figu entre as leituras de Shakespeare; aproxima 0 naufragio do Triunfo do Lverno da cena inicial da Tempestade, em que passa a sombra de Pals~ tall; compara Inés Pereira, na sua docilidade conjugal, 48 megeras shakespearianas domesti- cadas pelos maridos Com o perfil de Shakespeare, cem anos mais tarde, ou Shakespeare com os tragos déle, cem anos mais cedo, Gil Vicente nao teria sido a genial hesitagio que foi entre o violento ape- tite portugues de criagio pottica ¢ 0 nosso ficar sempre aquém da forma precisa e actual. Para mostrar 0 aleance universal do génio de Gil Vicente nio devemos retirar a sua vida a sua obra do quadro nacional a que perten- cem, E’ ésse quadro que as condiciona e ex- plica; que Ihes da atmosfera, escolha de moti- vos, sentido de reacgdes. Tao depressa o meio enriquece ¢ estimula Gil Vicente dando-lhe a 28 \consciencia do que vale uma pintura de costu- thes para entreter as horas vagas da corte e do Ppvo, como lhe fornece simples estofo cémico, cOntradigdes e resistencias. O meio, enfim, cumpriu bastante bem o seu dever de meio, por oposi¢fio ou ajustamento, Sil Vicente nasceu cérca de 1465, nfo se sabe\ao certo onde, Conhece tio bem a fala e as cojsas da Beira Alta que podia ser de 1a. Também Lhe siio familiares o Ribatejo, a Lisboa la artaia miida e em geral terras e meios de almocreves, ciganos, gente avulsa, De maneira que ¢ inutil preguntar a sua obra pela pia do baptismo. Fle parece provinciano e lisboeta porque é portugues de raiz. F homem de qual- quer parte, O seu cosmopolitismo havemos de vé-lo logo. Agora o que importa notar é que Gil Vicente andava j4 perto dos quarenta quando Vasco da Gama foi a {ndia por mar e Pedro Alvares Cabral aproou ao Brasil. Se per- tence A geraglo que empreendeu as grandes nayegagdes, nfo tomou parte nelas nem teve, como escritor, a exaltagao da vida ultramarina. Nao foi marinheiro nem soldado: foi ourives. O ouro das primeiras pareas de Quiloa, com que Jé agora parece que f¢z a custédia de Belém, nfo Ihe ficou nos dedos, Se um filho segue Afonso de Albuquerque, ¢le fica, Qualquer dos cronistas ¢ poetas das exploragées portuguesas fez algum dia uma viagem: Jofo de Barros, oy VITORINO NEMESIO Camées, Fernfio Mendes Pinto. Dele nao cong tam senflo pequenas deslocagdes, um turisiho de presépio. Nem teve cultura humanistij capaz de suprir a falta de uma concepgito ca Iheiresca ¢ imperial dos destinos portugueses que the fizesse sentir a fundo os descobrinen- tos e conquistas. f Gil Vicente parece representar aque base da populagao portuguesa do comego ff sé- culo XIV que vivia recolhida aos campos ¢ que, identificada com a tradigfo agraria, cascira, di- ficilmente se adaptava ao ritmo febril da nova vida. Nao digo que lhe caiba na boca a fala do velho do Restélo. As vezes exalta a coragem ¢ as proezas dos nossos marinheiros. A Fama aturde um italiano com a gloria das rotas portuguesas empreendidas a custa da decaden- cia de Veneza. O Inverno exalta as «terras do sol» ¢ 08 avergéis de Oriente». A «nau de Lis- boa» descobriu tantas ilhas nfo subidas, der- rotou tantas frotas!. .. Mas se Gil Vicente segue a exaltacho colec- tiva do seu tempo a ponto de por em cena uma Exortagdo da Guerra, como que se ve uma vaga encomenda por detras, uma leve e oportuna sugest&o cortesa, Em todo o caso, é estranho que o seu Auto da India seja, em vez de uma apoteose dos novos argonautas, a pin- tura de um Jar de marinheiro enganado pela mulher enquanto éle anda em Calecute. Desde GIL Vicenre 95 bs aprestos de embarque que ela o quere ver pelas costas. A perspectiva de que a armada fique ancorada no Restélo transtorna-a, ¢Entao ela havia de ter amassado 0 biscoito para o diabo o nfo levar «A sua negra canela»? Gil Vicente prefere a um quadro é¢pico o tratamento humano e verdadeiro da condigao do mareante que sactifica tudo por uma proba: bilidade, Pste marido do auto é bom e previ dente até onde pode. Deixou na metrépole «trigo, azeite, mel e panos» para trés anos, Mas mau psicélogo, nao previne outras faltas. Se a mulher, «moga e formosa», nfo pode esperar que éle volte de meia légua a pesca, «quanto mais de Calecu! Partem em Maio dagui Quando o sangue novo atica... Um castelhano de boas falas insinua-se na casa, dois dias depois do embarque do Marido, e, A revelia, exproba-o: «Que mais fndias que vos»! Ela agrada-se; cede. As nove horas («as nove horas ¢ né mais»), éle que atire uma pe- drinha—. O agen- ciado das situagées Iembra-nos nfio sei qué de ondulante, de moderno. Cismena fala as vezes aos seus apaixonados uma linguagem subtil, de alta comédia, ou de um lirismo reservado, psi- colégico: Qualquer coisa que nos aproxima v; gamente do teatro raciniano, tanto quanto isto pode ser num primitivo. Infelizmente a experiencia dramitica de Gil Vicente foi materialmente excessiva, apressada pelas necessidades de consumo de uma corte festeira e¢ ambulante. O teatro de Gil Vicente nfo tina precedentes s6lidos. {Que direccies encontron ¢éle em Encina, seu precursor caste- Yhano, senfio as do auto de Natal, da técnica pastoril? Foi preciso inventar quasi tudo, por tudo a prova da cena e da tela, A tradigao, mesmo estrangeira, do teatro hieratico nao po- dia alimentar um auto que, respeitando o seu enderégo religioso, se alargava pouco a pouco GUL VICENTE 4 a comédia pelo desvio da farsi las inyolugées da digo ¢ das situa ticas. No milagre ¢ na «moralidader (designagho que, com as de «contemplagiio», «nova inven- gio», «entremes» e «perfiguragio» aparece na obra de Gil Vicente); no «milagre» e na «mora- lidade», digo, ja havia uma linhagem de tipos suficientemente caracterizados, mas nunca a verdadeira arquitectura de uma recriagto c6- mica, o laboratério dotado de largos utensilios para tratar choques, paixdes, reacgbes indivi duais. Gil Vicente tinha de resolver uma série de problemas de figuragiio cénica, de dosagem de ficgées, de graduagto de lingu: unfou de tudo com sagacidade sem precedentes. SO a verdadeira unidade de composigto Ihe faltou. Por esse lado, pelo recorte quasi sempre avulso dos lances que Ihe dito jogo cénico, ainda ¢ um medieval. Mas ha talvez do mistério medievs a0 seu auto um passo quasi tamanho como o que vai déle a Shakespeare. sto é que im- porta, para se Lhe dar uma boa pedra branca na hist6ria do teatro universal, Ourives da Rainha-Velha, Gil Vicente tor- na-se o verdadeiro fornecedor de divertimentos da Corte. As suas pegas, em numero superior a quarenta, seguem de perto os grandes aconteci- mentos oficiais, os casamentos principescos, as ferias cortesds. Era preciso cozinhar, conforme 4 VITORINO NEMESIO 08 casos, o elogio de Carlos V, uma vez que o Imperador era genro do rei; 0 elogio fanebre de D, Manuel, amostra de justign postuma ao filho e herdeiro; prognésticos natalicios aos rebentos reais, Ora, © apoio dos grandes, 0 servigo déles, so coisas caras, Havia os enjoos de altos per- sonagens a tirar por meio de achados cémicos, «nova invengfor as vezes demasiado apressada para poder sair sempre escorreita e feliz, De- pois, as necessidades de musica. A misica ia bem com o pastoril e o hieratico, Gil Vicente, como Garcia de Resende, como Bernardim Ri- beiro e Sade Miranda, teve bastante de musico, A filha Paula era tangedora em casa da In- fanta D, Maria; havia necessidade de trombetas e violas antes de se «cerrar a cortina». ,Quantas veres Gil Vicente nio teria sacrificado alguma coisa de estritamente dramatico ao vilhancico , as peas apresentam uma grande variedade de esquemas, As vezes mesmo varios numa tinica composigao. ; O sistema ternario de devisio da matéria das obras completas (da Copilacam) é niais uma I "7 certa perspectiva de arrumagio livresca, uma , hé-de dangar para o seu rapaz a ver. Mas, ao dar os primeiros passos, a bilha cai, ¢ la se vai o azeite,.. KE’ Mofina que tira a mora- lidade da fabula: Dac Pormais que a dita ine enjeite, Pastores, ndo me deis guerra; Que todo 0 humano deleite, Como o meu pote de ancite, § Hid-ds dar consigo en terra, 56 VITORINO NEMESIO Esta Mofina conquistou um lugar de elei¢ho na voga de Gil Vicente, Mas ndo ereio que se tenha tirado da f{abula todo o partido possivel como chaye de interpretagao da mensagem vi centina, Ora, parece-me que Mofina simboliza, mais do que a vanidade da ambigsio humana e o afundamento das vastas arquitecturas que. tem sen assento nela, 0 sagrado dircito ao Sonho, a perpetuidade da Hlusio, alma da Flo- resta vicentina, Além disso, Molina Mendes ¢ um simpatico exemplar da volubilidade que Gil Vicente adorava em todos os seres, ¢ sobretudo nas mulheres. Dir-se-ia uma especie de embri guez vital, de maleabilidade ao destino, que faz a vida mais delicada e feliz. Uma linha de me- nor resist¢ncia oferecida 4 dor ¢ a fatalidade, —e ninguém a conhece melhor que as mulhe- res, Na Floresta de Enganos (na comédia), Cu- pido diz (traduzo): O mutheres! 6 mulheres? Roubadoras das vidas, Crucis desconhecidas, Destruiedo de praseres! Curiosas, Ufanas, desamorosas, Autorieadas, volivels, E de tudo invejosa Que Wm coisas ter eis! ‘Sflo acusagdes graves, Mas o mesmo Cupido, Gig gv 1 CoP NETS 37 's adiante, emenda a mfo, As mulheres stio a coisa mais bela do mundo: «soberanas da terra, «presentes do céu>. Xi IL Vicente sé atinge o fundo do seu génio quando cai em flagrante delito de volu- bilidade e de poética contradigao. A obra de Gil Vicente é uma verdadeira demografia de Portugal no transe do século xv ao século XVJ. As personagens dos autos, apesar de uma relativa estratificagio social imposta pelos géneros (0 auto pastoril para os serranos, a farsa para os labregos e a arraia de cidade, a tragicomédia para as classes elevadas), desen- yolvem-se em multidao, acotovelam-se, esprei- tam-nos uns por tras dos outros, um pouco como 0s grandes iniciadores e comparsas das empre- sas maritimas que, menos de um século antes, Nuno Gongalves agrupou nos painéis. A com- posigfo, a gradagho cromitica, a «perfiguragio» (para falar em térmos vicentinos) tem um igual poder de representagio portuguesa nas duas obras-primas,—a do pintor e a do comico, ~ embora seja Nuno Gongalves quem, apesar da st VITORINO NEME sua prioridade cronologica, faz figura de «clas- sico» em face de um Gil Vicente «primitivo». A maior espontaneidade de agrupamento dos personagens vicentinos no grande poliptico dos autos tem a vantagem de nos fazer encon- trar, ao longo da Floresta, figuras que vao en- tregues ao puro capricho dos caminhos, e acampam nas clareiras A moda das feiras ciga- nas: velhas, burros lazaros, virgens, matuldes meninos, 3, @ propésito de feira: aqui esta um tra- tante que sabe tocar pandeiro, ste sujeito conhece muito bem chacotas e bailes da Beira: podem dangar os dois aqui diante de nos. Ca valo cinco duques, de romaria,2Véem esta raposa disfargada em deus pagio? E’ Cupido, Vimo-lo ha pouco fazer alternativamente de detractor e pregoeiro da gléria das mulheres. Aqui, um escudeiro faminto, disfargado de vidva, engana um negociante—o que ¢ raro. Ali, é um ermi- to alcoviteiro—o que, desgragadamente, é um pouco mais frequente... Quem quiser falatorio oiga estas duas peixei- ras, antepassadas das varinas de Cesario Verde, Apesar de passarem tio rapidamente em Gil Vicente, representam na sua obra a contribui- glo da populagao lisboeta para uma caractero- logia portuguesa, contribuicfio que culmina em Maria Parda, a «triste desdentada escura» das «tavernas da Ribeiray, que bebeu a mantilha NTE 59. Jamenta 08 poucos ramos que restam em portas de Alfama, detesta a 4gua do Pogo do Borratem ¢ o vinho de Obidos, e exalta os cascos do Seixal: Andava eu de ramo em ramo, Nao quero deste, mas deste... Sua irma na desgraca, a alcoviteira, também conhece todos os recantos de Lisboa: Santa Ursula nito converteu Tantas cachopas como ev Estas vidas de acaso, tecidas com um fio de velhacaria tragica e de poesia vagabunda, comovem Gil Vicente no mais escondido do coraglo, abalando e interessando as camadas mais vivas do seu génio. Dir-se-in que precisa ser tocado numa corda finissima, quasi desa- pereebida—a da alma de vadio latente no des- tino de todos os homens, Sé assim 0 seu forte poder de expressfio trasborda e vibra em unis- sono com a vida, entendendo os seres escarne- cidos e culpados: Maria Parda, Brigida Vaz, Branca Gil, Ana Dias, 0 frade tolo que ia noite ao terreiro do trigo e que a canzoada nfo deixava cantar, A sociedade dos grandes e pequenos perso- hagens dos autos reproduz toda a escala da 60 VITORINO NEMESIO condigflo humana em Portugal. Frei Pago, 0 clérigo cortesio, confessa com descaro o seu desprézo da moral e um cinismo arranjista, O dr. Justiga Maior, magistrado do Supremo, é brejeiro. O fidalgo poetastro nao paga a sol- dada aos criados, Aste espanhol, aqui, ¢ vai- doso e arrogante; aquéle conde, soberbo e si barita, Vem a seguir os burgueses e a gente mitida: escudeiros, labregos, parvos, 0 campo- nio que nfo pode por demanda contra Deus porque nfio tem vintém; um diabo de unhas amarelas; um vendilhfo de galinhas de Tomar; um negro ladrio; uma mulata; um almocreve enganado, de Cornaga e Cucanha, indulgente para a queda da mulher, que sem parte ndo ¢ culpade; porge ela dormia sé E ew sempre ia dormir Crossmeus mus a meijoada, GIL VICEN XIV canalha ¢ a fina-flor dao as maos na Comédia vicentina. Para Gil Vicente nao ha sentio filhos de Adio, matéria de sofrimento, carne de dor e alegria, Ca esta a mulher dos ourégfos, que cura téda a casta de doenga. Estes fisicos tm uma linguagem douta, pré-molieresca. Mestre Filipe reserva a andlise de urinas para amanhd e esté sempre: «Enten- deis?» «Entendeis ?» Mestre Anrique, que sabe da «febre sincopal», 6 apressado ¢ demonstra- tivo: «Habeis mirado?» «Habeis mirado?» Me tre Torres ¢ vagaroso, condescendente: «Sim». «sim». E, agora, 0s judeus, Gil Vicente retrata-os édio, com grande justeza de tom. A maneira como surpreenden e di pitoresco das conversas, a labia onzeneira, as citages de sinagoga, tudo isto entre teatral e lirico, lembra aquéle poema de Guilherme Apollinaire nos Alcools, sobre um passeio de rabinos ao longo das margens do Reno. No Didlogo sébre a Ressurreicdo, os rabis Levi, Samuel, Aroz ¢ dois Centarios falam VITORINO NEMESIO sobre a Thora, o preco dos géneros, a Ressur- reigo, a sisa dos panos, A cartilha de Levi ¢ velha como os caminhos: Disia minha mde Gemitha saborida: Filho, nito comas, do vebentard: Disia meu pai Mosé Rabizara Nao comas quente, nido perderds o dente, Disia meu tio Rabi matogrado: Filho Jacob, 0 que fazes, disia, Jacob Badear, egiaste cd, quero-te ensinar : Nao sejas pobre, morrertis henrado : Fata com Deus, serds bom rendeiro : Quando perderes, pie-te de lado: Se nata ganhares, ndo sejas ciseiro, Nao se pode exigir mais a um decdlogo de classe, E digo «de classe» porque, aqui, o tipo «judeu» nao é necessariamente israelita. A mas- cara acertaria em qualquer mercador ou belfu- rinheiro alfacinha, numa época em que aastiicia era o melhor escudo dos fracos. Mas Levi, Samuel, Aroz, Franco, Zarto, Mosé, Jacob «lendroso» e Abrio «pelado» sto bem tipos, caricaturas, sombras de raga, gente de es- tréla e beta. Levi nfo pensa senfo em fazendas e azeites. Samuel, ao testemunhar a divindade de Cristo pelos milagres da sua morte, escolhe sobretudo aquéles que Ihe custaram prejuizos pessoais; o terramoto que deixou a cantarcira GIL vic 63 caida, a loiga quebrada, Rabi Aroz poe acima de tudo o despacho das suas mercadorias a Porta Redonda, e, abalado quanto as probabil dades do advento do verdadeiro Messias, o que mais teme é que ésse advento extinga o «foral» de umas alcagarias que seu pai deu de arrenda- mento no térmo de Vila Real. O seu estilo na dedugao de direitos & delicioso, como embru- Ihada judiciéria de colorido hebraico, e tem 0 sabor de uma revista do ano ou farsa de corro portugues, Mas Gil Vicente nao parece partilhar de nenhum preconceito de cla; nunca mostrou res- peitos sistematicos por classe alguma, mesmo a sacerdotal, Castiga indiferentemente o rabino avarento ¢ o sacerdote amoral ou supersti- cioso. Em 1531, por ocasifio de um tremor de terra que espalhara o terror no reino, insur- giu-se corajosamente contra a atitude dos frades de Santarém, que, abusando do pwlpito e da credulidade popular, atribuiam a catdstrofre a célera divina excitada pelos desregramentos gerais. Numa carta dirigida a D, Jofio Ill, que negociava nesse momento o estabelecimento da Inquisigao, Gil Vicente mostra-se intrépido em face da superstigaio dos religiosos e da sua fana- tica concepgio da moral pastoral. Esse docu- mento, uma das chaves do pensamento vicen- tino, é por assim dizer a contra-prova séria, , do guinhol de frades e padres labregos, 64 VITORINO NEMESIO grosseiros e astutos, que guiam as pobres ove~ thas vicentinas através da Floresta de Enganos. Mas nfio nos esquecamos de que também este clero @ «rebanhoy, e portanto uma greda com que Gil Vicente pode plasmar estatuetas comicamente dolorosas ou simplesmente diver- tidas. Aqui esta o Clérigo da Beira, que pre- gunta a seu filho Francisco para onde diabo foi amée, justamente quando éle precisa dela antes de se ir para a caga, O padre mistura as descom- posturas com as horas canénicas, numa espé- cie de calfo antifonico — de coroa mal mondada, com uma espingarda na mao. E o cura aldetlo abandonado aos seus instintos, tosco, quasi analfabeto, O tipo parece vulgar nessa época, pois Gil Vicente obriga os avarentos — natural- mente estéreis —a adoptar, na Roda dos Expos- tos, 08 filhos dos elérigos pobres. Segundo o pastor Silvestre, em Portugal havia mais padres do que homens. E, na opt- niflo de Apolo, Deus fez 0 mundo tio pequeno que mal pode abrigar um clero numeroso, O mesmo Apolo diz que, se tivesse ordenado 0 mundo, faria os frades de estopa, para arderem melhor, éles ¢ as suas celas. Plantaria com éles as terras sdlaras, enterrando-lhes as coroas na areia, pondo-os de pernas para cima, como quem dispée um pomar, E se nfo dessem limGes—fogo com éles! Nao param aqui as facécias ¢ irreveréncias GIL VICENTE 65 de Gil Vicente contra o clero. Um campénio que acolita um padre criou-lhe dois filhos. No Auto das Fadas, um clérigo que vem do inferno atreve-se a dizer que se entretinha a cantar o Te Deum, Uma velha gaiteira, que quere casar por forga, arranja uma bula do Nincio, O estado eclesidstico tornara-se um ideal de vida qualificada: 0 ristico quere que o filho se nobilite pela Igreja, Um carpinteiro do arsenal _de Lisboa, tendo abragado a carreira eclesids- “ tica, vai a Forja de Amor tentar recuperar a antiga liberdade, pois ha mais frades em Por tugal do que cristios no mundo; o carpinteiro é de opiniao que os obriguem a fazer alguma coisa de util: 0 servico militar, por exemplo. Outro religioso, macerado de jejuns, é 0 proprio a levar um saco de carvao as costas para as despesas da fogueira do habito na Forja: quere tornar a ser mogo, dangar e amar. Ha frades faceiros e pagtos; um é mestre de esgrima; outro quere convencer o arrais da Barca do Inferno a deixa-lo entrar com a sua D, Florenga, Ha mesmo um frade nigromante, chegado directamente da gruta de Sibila, onde se afia a «sotileza» infernal, Magico, feiticeiro, mundano, astrélogo, tem tanta confianga nas suas malas-artes que se julga capaz de apanhar, © mais manhoso dos diabos e mandé-lo de pre- sente ao Infante D, Luis, O diabo da-lhe o tra- tamento de Bispo de Landeira! 66 VITORINO NEMISIO xv representagto da sociedade portuguesa na obra de Gil Vicente nfo se limita a uma escolha de tipos e de situages bem graduada ea uma vasta e decorativa exploragio do pitoresco: alarga-se a uma verdadeira critica de costumes, sem que se sinta a intromissto abusiva do autor no urdume das accoes, an nima pressiio sentenciosa ou judicativa, uma «tese> qualquer a demonstrar. Pelo contrario: a lei moral estd sempre sujeita as normas da fiegiio: nflo se define de fora para dentro— sulta clara das reacgées dos homens, é preci pitada pela propria experiencia em cena. O poder de figuragtio de Gil Vicente nfo ¢ s6 extraordintrio no que se pode chamar o re- trato, nos «sinais particulares» dos seus tipos: atinge todo o comportamento da pessoa, toda a sua zona de espontaneidade e de reaceso, Vamos demorar um pouco mais esta breve rovista a tipos e costumes da galeria vicentina, Gente folelérica ja conhecemos bastante: ven- dilh6es disto e daquilo, de favas de Viana, de ovos ¢ galinhas, a empacotadeira de bolos. O que importa sio os mondlogos e contracenas GIL VICENTE “1 que podem contribuir para um largo documen- tario’ social quinhentista. O escudeiro do fidalgo poeta de agua doce confessa que lt em casa a fominha ¢ geral: nem ¢le, nem o cavalo, nem o amo provamn nada, O fidalgo deixa-se bater, De dia dorme; 4 noite vela, pois nfo tem que vestir, Susten- ta-se de um bocado de pio com um rabanete =e, nisto, 0s depoimentos de Gil Vicente e de Clenardo concordam, Mas, apesar da negrura da farsa do quadro, o escudeiro assimila os ares que se da seu amo: espécie de Sancho deste Quixote da presungfio, espera entrar um dia para o servigo do rei 4 sombra do nome do fi dalgo... Outro escudeiro 6 teso ¢ gabarola: enche a boca de Anibal e Cipito, fala de Rogavales. Um simples judeu era homem para o deitar abaixo, No quere ir para a guerra, Tem prosi- pias de conquistador, mas anda de fato alu- gado. Na satira ao fidalgo pobre com pretengdes literarias Gil Vicente trabalha com a conscién- cia da sna arte e da autenticidade em poesia, imitando o preciosismo e a banalidade dos ver- sejadores do Cancionciro de Resende, Aires Ro- sado, o fidalgote versista da farsa Quem tem fa~ relos?, faz. serenatas a sua bela} os cles desatam a ladrar, Quando precisa dinheiro, empresta-lho © padre, 68 VITORINO NEMESIO © Mogo que se queixa do amo ao Juiz da Beira da um quadro flagrante da brotoeja lite- réria numa época de decadéncia: Esta noite, eu lanevando Sabre wna arca eas pernas fora, Ble acorda-me & uma hora: = Oh! se soubesses, Fernando, Que trova que fia agora! — Fas-me acender candeciro, E que the tenka o tinteiro, Bo seu galgo uivando, E ew em pa, ronegando Porque ao sono primeiro Esta meu senhor trovando. O capelto do fidalgo (Farsa dos Almocre- ves) é outra forma das situaces parasitirias ¢ ridiculas, Dormia de coroa no chfio, sem cabe~ gal; dizia a missa atabalhoadamente antes de irem para a caca, O amo mandava-o @ praca ¢ até a «outros cirregozinhos desonestos». Feito azemel pelos caminhos, «arre aqui e arre ali», tratava dos gatos, vigiava os negros, engraxava sapatos,.. Queixa-se de que jé podia estar ca- pelao de infante ou de rei e que tudo foi tempo perdido. XVI par da conviceto da radical maldade hu- mana, Gil Vicente tem um vivo senti- mento da decadéncia do mundo moral em relagio a tempos mais cristfios, mais herdi- cos. Cerca de 1523 — isto é, a uns vinte anos da Sua estreia dramatica — Gil Vicente deplora 0 tempo passado. O mundo esta perdido, nfo ha felicidade duradoira, anda-se a caga de dinheiro, 86 se pensa em gozar. O Serafim do Auto da Feira tem d6 das mulheres que nfo the com- pram virtudes e conclui que a preguica se apo- derou de todos. Os homens parecem avexados, © mundo enfeitigado, as almas doentes, apodre- cidas. Ja 0 filésolo da Morasta de Enganos ae ga~ bava de ter merecido a pristo por haver falado em Roma a linguagem da verdade, pois as cen- suras vio contra as convengées e o conformismo. Se la quis companhia, teve que aturar um tolo, dia ¢ noite, A manha e o ardil andam a uso difrio; s6 a verdade se emprega 14 uma yez por ano. No Auto da Atma, a natureza humana, de si tran- je VITORINO NEM SS1O sitéria e fraca, exgotou-se; ou, pelo menos, pa- rece que entrou em calma podre, estagnada, No Purgatério € 0 proprio diabo que confessa que a cobiga, a simonia, a inveja e a tirania nfo desarmam, Toda a Exortagao da Guerra, uma das mais antigas composig6es de Gil Vicente, represen tada a partida do Duque de Braganga para Aza mor, ainda no tempo de D, Manuel, ¢ na sua presenga (1513), € uma apologia da acefo contra a moleza ¢ o luxo. A propria rainha Pantasi- Iéia, que vem «penada» e «triste» do meio dos infernos exortar a cdrte A guerra, se apresenta como espelho vivo dos que levam vida errada, «nas guerras vazias». Apela para o «bem pro- fundo» do pais que o «céu> «favorece», acon~ selha A morigeragio ¢ A modéstia: deixem-se de «camaras douradas», «que é gastar sem pres- tars. Os portugueses castigos nilo devem copiar 68 Juxos italianos, mas viver a lei de seus an- tepassados, morar em «casas pardasy. E este grito, verdadeiro programa de rearmamento Alabardas, alavardas! Espingardas, espingardas! Aquiles, por sua vez, aduz 0 exemplo de Roma empenhada na conquista da terra: donas e donzelas romanas despojavam-se das jdias, Que as mulheres de Portugal Ihes sigam o GIL VICEN exemplo e rezem por bugalhos, usem pérolas em vez de camarinhas, ponham résteas de alhos a lingir de firmais, E os padres que vendam os brevidrios e comam rabanetes, Um dos trabalhos da Forja de Amor sera rejuvenescer e endireitar a Justiga, yelha cor- cunda, hedionda, de vara quebrada, E ela pro- pria que pede umas maos pequeninas, nao por coquetaria, mas para roubar meno! AVerdade do Auto da Festa «nunca cuidou que em Portugal» «andasse tio abatida, ea men- tira honrada ¢ com todos cabida por muito me- Ihor». E Braz, 0 «pastor inclinado a vida con- templativa», verdadeiro duplo de Gil Vicente na écloga dramatica que 6 0 Auto Pastoril Caste- Yano, tem: satdades do tempo de «Juan do- mado», 0 Principe Perfeito, ¢, sem se alongar em grandes motivos de queixa, sempre vai pre- guntando, sombra da ficgo pastoril, que ¢ feito do . EB no mais triste ratinho Se enxergava una alegria Que agora ndo tem caminho. Porque tudo bago, choroso, «carregado de fadigas». E mais vivo ¢ poético que todos os brados—o brado da Fé no Auto da Mofina Mendes, contra os que «sem meméria nem cui- dado dormem em cama de flores, felta de pra- zer sonhado: Todo 0 mundo estd mortal, Pésto em to escuro porto De uma cegueira geval, ‘Que nem foyo, nem sinul, Nem vontade: tudo é morte, ~ A GIL VICENTE ” XVII A vimos com que desenvoltura e realismo Gil Vicente trata o clero. O Auto da Feira é em boa parte um verdadeiro panfleto contra Roma, ea sua significag’o acentua-se se reparar- mos que foi representado a D, Joo Ill no Natal de 1527. A bela e veemente fala do Serafim honra quem a compos e o piedoso rei que a ouviu, E um nobre e instrutivo documento das relagoes entre uma politica apostolico-romana perseve- rante e um catolicismo austero e franco. A Ansia de verdadeira reforma da Igreja nfo rompe as linhas da ortodoxia, O inquieto cris- ttlo que foi Gil Vicente acrisola a sua catolici- dade ao fogo de uma violencia justiceira e sin- cera, que nao poupa o proprio rei: O Principes altos, império feeundo, Guardai-vos da ira do Senhor dos ¢ Para la da farsa do clérigo grosseiro ou me- lifluo e da satira aos altos dignitarios da Igreja, Gil Vicente impregna a sua obra de uma reli- giosidade profunda e poética, cheia de acentos “4 VITORINO NEMESIO pessoais, A fronteira em que éle religiosamente se exprime, entre a {6 tradicional, ortodoxa, e uma maneira livre e peculiar de crere ter dou- trina, & por isso mesmo dificil de tragar. O certo é que estamos em presenga de um cristo verdadeiro, trigico, que cré ¢ pensa sem outro temor que o de Deus, A. sua coragem em condenar os desvios € superstigdes do clero tem um excelente abrigo no tom chocarrei cémica, © na irre- verencia verbal do povo para as coisas religio- Aqui esti um exemplo désse simples pito- resco irrespeitoso: Depois da comovedora e poética narrativa do parto da Virgem, feita pela personificagaio da Fé, um pastor niio acha nada mais sito para contar do que isto: quando a sua patroa deu a luz, comeu todos os ovos que havia em casa! Deste realismo grosseiro ¢ ingénuo Gil Vie cente atingira gradualmente passos mais atre- vidos. Os pastores do Auto Pasiorit Portugués nflo se preocupam com o facto de ignorarem determinadas oragbes: entendem que, cantando a alvorada a Nossa Senhora, a boa intengio os salva, Cada qual dé o que tem. Mais claras stio as palavras de Cristo no Auto da Canawea sobre a inutilidade da acumu- lagio de preces sem sentido. [ preciso rezar (. Fol assim mesmo: ardeu; ardeu, por si, 0 fogo ateado & assoprado por Miranda... Alguns anos depois, surgem- -lhe discipulos por todos os cantos. Antes disso, porém, deve ter pereorrido o completo ealvairio do perfeito ino- vador: 0 esendalo, 0 combate, a desisténcia,.. Até os melhores espiritos do tempo the terio movido guerra, Jorge Ferreira de Vasconcelos, por exemplo, jamais 46 “onciliou com os novos metros. O préprio Jofio de Barros esperava que a «moda» se no impusesse © que fosse srestituido a este Reino 0 uso das trovas». como terao reagido og outros, aqueles de quem néo reza a Histéria gente ¢ gentinha da Corte, oficiais do. mesmo oficio, pe- dantes de viria easta—, todos aqueles, om suma, que ? afiguram, por vezes, na errada perspectiva de um coe. HOSPITAL DAS LETRAS 35 tneo, enrregadissimos de importincia...? Foi dura a prova, com certeza, Sf de Miranda nfo a esqueceu: in« cessantemente se Ihe hé-de referir; até em cireunstin- cias que nem sempre parecerfio as mais adequadas ou as encontri-la-emos na Begin dedicada a Ant6nio Ferreira. Bota elegia 6 a resposta a outra que Ferreira Ihe ey ay Por ocasiio da morte do filho (do filho de Miranda, morto em Ceuta pelos mouros), ¢ nela 0 nosso ee aproveita o ensejo para igualmente prantear 0 fi Ne morto. Pura troca de condoléncias, dir-se-4; e com toda a razio. O facto de pésames e agradecimentos se expri- mirem em decassilabos denota jf, sem davida, a presenga de convencional artificialismo nos préprios sentimen- tos... Mas nao fiea por aqui a convencéio: antes de en- trar no againto da morte do filho, S& de Miranda ee- praia-se (no longo de dez tercetos!) em. consideragdes acerea da , dos &xi- tos que esta ultima obtivera em ‘Hapanha e das pe com que, entre nés, fora acolhida: «3 logo aqui ms perto com que gosto / de todos, Bosco, Lasso, ergu ram bando, / fizeram dia, j4 quase 901 posto!». Poderdi ficilmente notar-se, nestes versos, 0 tee alids legitimo, do conierciante que viu a tenda do ie Drosperar, enquanto @ sun na gombra se arrastara.. ‘ qualquer modo, a referida Elegia nao aera primeira vista, o local mais indicado para eee deste teor, Ao cabo de trinta versos, 0 proprio a a se apercebe do caso: «Tornemos a0 desastre, a aa dl be roso...», E deseulpa-se, subtilmente: ene ee dor, qu’inda ameaga / como um parto ao fugir mais p 36 DAVID MOURAO- ‘ERREIRA Tigo». $6 depois se lanca, entiio, no motivo elegiaco, onde logra, por vezes, indiscutivel forea emocional, Coneluir, deste facto, que og sentimentos paternats de Miranda scriam frouxos, on poueo sinceros, niio p: saria de pura incompreensiio, Deveremos antes concluir Aue © mau acolhimento obtido, de inicio, pelas suas re- formas pocticas constitufu, para elo, no plano intelectual, desgosto tio grande quanto, no plano afectivo, a morte violenta de um filho bem-amado, E néo deixa de gor Sintomético que $4 de Miranda tenha reunido, na mesma [ilegia, estes dois temas de pesar,—penas de natures io diversa, mas porventura de intensidade equivalente, VIRTUOSISMO im muitos outros passos (nas dedicatbrias de alstue tins Belgas, por exemplo) igualmente aproveita Si do nda, sempre que pode, o ensejo para aludir, de modo veladamente polémico, ora expiicito ora implicito, a ease Problema da introdugio das novas formas— que, como 1 nos tanto Ihe pesava no coragiio. No entanto, deseor: tinamos, logo na écloga Alexa, 0 desejo de disfarear, ou Sublimar, esse mesmo polemismo. Com isto se relaciona, i nos#o ver, aquele excesso de virtuosidade, que tio ‘de ele manifesta, como que no propésito de eriar Teuldades téenicas ¢ de espectacularmente as exibir. tla dificultad no tiene por sf misma valor estético, ni de ninguna otra clase», observou Antonio Machado, Pela pena do seu heterénimo Juan do Mairena, , e ae 08 metros numa. mesma com- eae ae o oe descoberto Francoise Babillod? fanto a nés, nfo o vislumbrdamoy ner, 1 em Garellaso; sequer em Ronsard ou Poetas da Pléinde; tho-pouco em tugueses contemporiineos de Mir, Posteriores a ele, pee as Sglogas de Garcilaso oy as éclogas de ra, as de Caminha ou as de Bernardes, Prio Cambes: numas © noutras se veri ‘ até o fim, a adopgiio de um t ente, com 0 herdico quebrado) ¢, tam. lade no que respeita 20 de- ! artida, duas das écloga; pas Mates Hincantamento) apresentam cee sas le Te (mescla de versos de «medida vethay redida nova») ¢ duas outras (Nemoroso, Epitata. mio Pastoril), caprichosa variedade estr6tica, 1 rie pols, que Si de Miranda decide exibir m em Boseéin, nem em qualquer dos algum dos poetas por- ‘anda ou imediatamente as do pré- - Dir-se-ia, mitice na Fdbula do Mondego, haviam constitufdo novi. Ade © matéria de escéndalo, Recordemos, do simile uti. () Francoise Babillod, 12 home Babillod, L’tglogue de PEnchantement de $4 Me Miranda, in Biblos, XI, Coimbra, 1936, p. 574 ne HOSPITAL DAS LETRAS. 39, lizado pelo pastor Turibio, o valor atribufdo A insistén- cia, como processo de persuadir os paladares mais re- fractirios... SA de Miranda, convencido de que era este © modo de impor a aceitagio das novas formas, resolve insistir, persistir e esmerar-se na persisténcia, — tal qual © mestre de culinaria que, tendo preparado novo pitéu, desconhecido até entio («unos como pies de cabras»), ante 0 fraco éxito obtido se dispée a preparé-lo melhor, com sobrecarga de molhos e temperos, téctica mais h&bil de condimentos e de guarnigées, na esperanga de que o manjar, assim, se torne mais atraente e apetitoso. Na esperanea, sobretudo, de ver a sua reputacio dofini- tivamente firmada, POLBMICA E PEDAGOGIA A par do excesso de virtnosismo, encontramos, logo também a partir da écloga Alewo, uma tendéncia peda- gogica— a qual igualmente constitui, entre outras coi- sas porventura, um produto derivado do gosto de inovar ¢ um meio de sublimar 0 polemismo. O préprio excesso da virtuosidade, pela intengio que a animava, subenten- dia ja, sem divida, essa preocupagio didictica, , na chacota com que habitualmente se recebe qualquer inovagio. 1 $4 de Miranda aponta-o, do seguinte modo:., encerrar no mesmo saco os que estiio desper- tos e Os que nfio estiio, os que tém consciéncia e og que @ nfo tém. Qualquer reforma estética, particularmente entre nés, tem de contar com esse inimigo dissolyente; e, talvez por isso, inovadores mais recentes agem directa mente pelo escfindalo, deliberadamente provocam a , Por um desvio, ou sublimacio, da intengio polémica, Si de Miranda nio desistiu, por- tanto, de pedagdgicamente incitar os seus compatriotas a uma tentativa de universalizagio do lirismo portugues, Este, sem diivida, 0 aspecto positive —e a todos os titulos digno de aplauso —do polemismo a que as circunstin- cias 0 constrangeram. Mais tarde (na dedicatéria da écloga Encantamento), recordando, de novo, os maus momentos que passara, ¢ em que tinha arrostado, de um lado com a ira, do outro com o riso de muitos dos seus contemporineos, $4 de Miranda confessa, sem rebuco, que chegou a «ter medo», © que nfo deixa de sugerir-nos que 86 0 exemplo de ou- tros mais afortunados the tenha enfim trazido renovado estimulo: «Andando apés a paga, houve aos sisos / gran medo, que confesso, ¢ a uns pontosos, / de rostos car- regados, e de uns risos / sardénicos, ou, mais claro, ma- 8». De qualquer modo, bem pode, nessa altura da sua vida, sentir-se orgulhoso com a obra realizada, arri- mado & consciéneia do dever cumprido, seguro do valor © do aleance das inovagées a que se votara. Bem pode HOSPITAL DAS LETRAS 43, mesmo, sem jactincia, mas também gem falsas modé: tias, objectivamente comparar o seu papel de inovador 40 de Horfcio, que em Roma introduzira alguns dos me- tros gregos: «... Jé que fiz / aberta aos bons cantares peregrinos, / fiz o que pude, eomo por si ‘diz / aquele, um 86 dos Ifricos Latinos; / provemos esta nossa linguagem, 7, 20 dar da vela ao vento: Boa viagem>. Siio palavras calmas, trespassadas de ponderada bo- nomia, daquelas que se proferem quando por fim triun- fou a causa em que por longo tempo se esteve empenhado, Mais um passo, e descobre-se (ou j4 se descobriu) que ha outros assuntos em que pensar. Na obra de Sa de Miranda, brilha ainda, como complemento ou reverso do inovador, a face do moralista. Aqui, também, seria neces- sirio averiguar enfadonhos pormenores de datas, Mas niio parece crivel que o autor das Cartas e da écloga moral tenha precedido 0 apologista do

You might also like