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DAVIS, Darien J. Afro-brasileiros hoje. Sao Paulo: Selo negro, 2000. Capitulo 5 ~ Direitos civis, direitos étnicos, reconhecimento ¢ integracao: o Brasil e seus registros de ; Foca direitos humanos, p. 93-108, notas: 124-125. ss RECONHECIMENTO E INTEGRAGAO$ BRASIL E SEUS REGISTROS SOBRE DIREITOS HUMANOS Comparado a muitas outras nacdes, 0 Brasil tem um excelente registro de rati- ficagao de instrumentos internacionais de direitos humanos, assinados em va- rias convengdes proeminentes ¢ em muitos tratados da Organizacio das Na- ses Unidas (ONU) e da Organizacio dos Estados Americanos (OFA), dois im- portantes organismos internacionais dos quais participa. Em 1992, 0 Brasil assinou dois importantes ‘tratados da ONU: 0 Convénio Internacional de Direitos Civis e Politicos (ICCPR) e 0 Convénio Internacional em Direitos Econémicos, Sociais Culturais (Icescr). Entre eles, esses dois instrumentos sublinham muitos direitos delineados na Decla- taco Universal dos Direitos Humanos de 1948, incluindo a proibicao de discriminagao contra individuos sob qualquer pre- texto, o direito & educacao e ao trabalho, assim como 0 direito 4 autodeterminacao, considerado no Artigo r de ambos os Con- RASILEIROS HOJE vénios. Como em muitos outros tratados internacionais de di- reitos humanos, 0 monitoramento é feito pela Submissio de Relat6rios de Governo ao Corpo Monitor do tratado, para veri ficacdo de como os direitos esto sendo assegurados. 0 ICCD permite que individuos que consideram ter tido seus direitoy violados levem 0 caso a0 Comité de Direitos Humanos das Na- ses Unidas; 0 Brasil, no entanto, nao assinou o primeiro pro: tocolo opcional que permitiria acesso individual a esse frum, Tampouco assinou o segundy protocolo opcional do ICCPR que reivindica a abolicio da pena de morte, embora atualmente o pais nao tenha a pena de morte.' O governo brasileiro ratificou a Convensio dos Direitos da Crianca (1990) mas nao subme- teu seu Relatério de Governo — devido em 1992 — a0 Comité de Direitos da Crianca. Desde 1948, o Brasil assinou varios tratados intemacionais incluindo a Convencao de Prevencio e PunicZo 20 Crime de Genocidio (15 de abril de 1952), a Convencao de Consentimen- to a0 Casamento (11 de fevereiro de 1970), a Convencio dos Di- reitos da Crianca (24 de setembro de 1990), a Convencao dos Direitos Politicos das Mulheres (13 de agosto de 1963), a Con- vengio de Eliminagao de Todas as Furnas de Discriminacio Contra as Mulheres (31 de marco de 1981), a Convenco Inter- nacional de Eliminagio de Todas as Formas de Discriminacao Racial (27 de marco de 1968) e a Convengao Contra a Tortura € Outros Tratamentos ou Punigdes Cruéis, Desumanos ou De- gradantes (1989), em aditamento a Declaracdo Universal dos Direitos Humanos de 1948. O registro do Brasil € igualmente impressionante na Orga- nizagio dos Estados Americanos, tendo assinado a Convengio Americana de Direitos Humanos (20 de junho de 1978), 0 Pro- tocolo Adicional 4 Convengio Americana dos Direitos Huma- nos na Area de Direitos Econémicos, Sociais e Culturais (17 de novembro de 988), 0 Protocolo 4 Conven,iv Americana dos Direitos civis, DiREtTos érnicos 95 feitos Humanos para Abolicao da Pena de Morte (7 de ju- 10 de 1994) e varias convengdes interamericanas, incluindo a wwenco da Prevencdo e Punicio da Tortura (24 de janeiro de 86), a convensio sobre o Trifico Internacional de Menores '8 de marco de 1994) e a Convengao da Garantia dos Direitos das Mulheres que data de 2 de maio de 1948." _ O registro do Brasil nao é to bom em acordos interna- jonais anteriores a 1948. O Brasil nao assinou um dos mais figos instrumentos mternacionais contra a escravidao, a Con- cio da Escravidao, de 9 de marco de 1927, embora o pais ivesse oficialmente abolido a escravidao em 1888, Depois do inal da escravidao africana, muitas pessoas de descendéncia icana continuaram em servidao por dividas e pobreza, e mui- s imigrantes trabalharam, na pratica, como servos por causa los contratos de aprendizagem, uma pratica que se prolongou té 0 século Xx. Em 1992, 0 padre Ricardo Rezende Figueira, do estado do Para, por exemplo, apresentou um relatério as Na- ses Unidas documentando casos de trabalho escravo envol- ndo mais de 3 mil homens, mulheres e criancas, Em muitos estados, os trabalhadores migrantes so forcados a trabalhar € viver em condicoes semelhantes a escravidao.' Assim, embora Brasil tenha percorrido um longo camino em termos de sua ret6rica internacional de direitos humanos, precisa demonstrat compromissos mais completos para fazer cumprir os tratados que assinou. 4 A Constituigao Brasileira de 1988 reflete um compromisso com os direitos humanos ¢ civis e é intolerante quanto ao racis- mo € ao preconceito social. A Constituicao considera a discrimi- nacao racial um crime federal, embora poucos casos cheguem 20s tribunais de justica. No entanto, a existéncia de leis que de- finem tanto 0 preconceito quanto a disctiminagao como crimes nacionais é um passo importante no Brasil, jé que antes de 1951 _ muitos brasileiros acreditavam que essas lels nao eram neces: satias. Desde a histérica Constituiglo de 1988, o governo bras leiro definiu melhor o racismo como crime, A Secio 11, Lei n?7.716 de 5 de janeiro de 1989, assinada Pelo presidente José Samney, definiu o crime de racismo em 31 artigos, garantindo aos cidadaos brasileiros que os crimes de Preconceito de raga e de cor “seriio punidos de acordo com a lei Além disso, essa lei define o preconceito de raca e de cor em doze maneiras especificas, desde “impedir ou obstruir acesso « qualquer posigao administrativa” a “impedir 0 casamento ea vila Jamiliar ou social”. & lei também define penalidades especificas Para cada ato de preconceito e discriminacto, que vao de um minimo de dois anos a um maximo de cinco anos de prisao, Mais ainda, o Artigo 16 torna possivel a servidores civis perde. tem seus empregos ou a empresas de negécios serem fechadas Por nao mais que trés meses.+ Essa lei foi elaborada mais deta. Ihadamente em 21 de setembro de 1990, quando o presidente Fernando Collor assinow a Lei n? 8.081, que estabeleceu os cri- ‘mes ¢ as penalidades por atos de discriminacio e preconceito praticados pela midia. Em 13 maio de 1997, 0 Congresso Brasileiro melhorou a Lei n? 7.716 com a Lei. n° 9.459 © uiudou 0 Codigo Penal (De- creto-lei n® 2.848 de dezembro de 1940, que permaneceu inal- terado na Constituicao de 1988). Essa modificacio efetivamente emendou o Artigo x de “Os crimes de preconceito de cor ou de raga serio punidos de acordo com a lei” para “Os crimes de discrimina. $40 ou preconceito segundo a raga, cor, etnia, religiao ou origem na. onal’. “Adicionalmente, o Artigo 20 enfatiza que quem ‘Praticar, induzir ow iniciar algum tipo de discriminacdo ou pre. conceito por raga, cor, etnia ou religiao, sofrerd pena de trés anos ‘multa”. O Congresso também modificou 0 Cédigo Penal, para impor pena de prisio por trés anos e multa por tal crimes Além das leis mencionadas, os brasileitos dispdem de le- aislacdo adicional indicando um conhevimento legal do valor Dircitos civis, DIREITOS EINICOS 97 s direitos civis ¢ humanos. Entre as mais importantes esté a i n® 8.069, de 13 de julho de 1990, que promulgou o Estatu- da Crianca e do Adolescente; a Lei n® 7.668 de 22 de agosto de 1988, que criow a Fundacao Cultural Palmares; a Lei n° 8.078, de 9 de setembro de 1990, que instituiu o Codigo de De- fesa do Consumidor, ea Lei n® 9.455, de 7 de abril de 1997, que define a tortura como crime (Artigos 1 € 2). © governo de Fernando Henrique Cardoso tem um recor- de impressionante em estabelecer foruns de discusstio dos teitos civis e humanos no papel. Foi este governo que ctiou 0 Programa Nacional de Direitos Humanos em 1995, juntamen- te com vérias outras instituigdes federais. Com a ajuda do Mi- nistério da Justica, o escritério da Unesco no Brasil também comecou a desempenhar um importante papel no monitora- ‘mento dos direitos humanos ¢ na implementacdo de um pro- rama nacional. Comparadas com as leis de muitas nades ocidentais, as leis brasileiras parecem ideais, mas poucas pes- Soas estio familiarizadas com a legislacio, e ainda menos bra- sileiros consideram a lei importante, em parte em decorréncia da crenca generalizada de que a policia, os funcionérios publi- Cos ¢ outros no poder so imunes a lei. De fato, & claro que, como em outras partes do mundo, as leis nao eliminam o ra. cismo ou a discriminago ~ mas deveriam proporcionar meios legitimos de reparacao e, portanto, servir como parametro mo- tale elemento de dissuasao, Apesar de alguns ativistas encara- rem com ceticismo essas medidas, sua simples existéncia 6, ainda assim, histérica. De qualquer maneira, 0 governo preci- sa ser muito mais proativo e determinado para realmente pro- vocar mudangas. Muitos brasileiros realmente ainda nao compreenderam na sua totalidade a violenta hist6ria do pais ¢ a continua violén- cia engendradas pelo legado da escravidio e do racismo. Em- bora afro-brasileiros tenham sido sistematicamente vitimas de 98 AFRO-BRASILEIROS HOLE brutalidades e violéncias por parte de pessoas com autorida- de, a sociedade sé reage com indignacéo quando tais praticas afetam vitimas da classe média ou da elite. O massacre de afio- Drasileiros na prisio ou o assassinato de criangas de rua provo- ca muitos debates por causa de sua escala e da cobertura da imprensa internacional, mas numerosos casos de violéncia contra minorias, homossexuais e mulheres continuam sem ser noticiados.® Afro-brasilelros que sofreram discriminacav no traballio ou em outras arenas piblicas muitas vezes nao relatam os in- cidentes por medo de perder o emprego ou de sofrer represi- lias. Trés exemplos relatados na coluna “Olho Vivo" da revista Raca Brasil sio indicativos da crescente consciéncia entre os afro-brasileiros, que tentam relatar comportamentos racistas. Cada um desses exemplos ilustra que alguns brasileiros nao encaram seu comportamento racista como problematico; mais ainda, 0 fato de essas dentincias serem provenientes de cidadaos comuns € nao de ativistas indica que mais brasileiros estio se tornando conscientes de seus direitos e exigem que estes sejam respeitados. No dia 14 de maiv de 18, durante um exame de Dircito Civil na Universidade Bandeirante, em Sao Paulo, Marta To- ‘mazzi, jovem estudante branca, abordou Maria Célia Benedito Mello, estudante negra de 50 anos de idade. A srta. Tomazzi pa- recia irritada com a presenga da aluna negra e exigiu que a lista de presenca Ihe fosse entregue, observando, “Passe para cé a lista, sua negra. E por isso que eu ndo gosto da sua raga. Vocés todos deviam ser postos contra um muro e fizilados. Se fosse hd alguns anos eu teria Ihe dado uns tapas”’7 Outro caso envolveu Marcelo dos Santos Gerénimo, treinador do time de basquete do clube Pinheiros, de Sao Paulo, que insultou publicamente com epite- tos racistas um jogador negro do time de basquete do Flamen- 0, do Rio de Janeiro." Em setembro de 1997, Raga Brasil DIREITOS cIVis, DIREITOS ETNICOS 99 relatou um caso no qual uma professora de ensino médio, An- drea Regiane dos Santos, insultou a coordenadora das classes noturnas, Maria Teresa Minossi, casada com um professor ne- gto da mesma escola. A sra. Santos, que discordou da forma pela qual a coordenadora tinha decidido cobrar os alunos por fo- toc6pias na escola, observou para sua turma, constitufda por muitos afro-brasileiros: “Ela se enganchou com um preto ¢ vejam 0 que acontece”® Esses so somente trés exemplos publicados dentre milhares de quetxas, muitos das quais sao relatadas, 1a» nunca chegam aos tribunais, Todos os trés casos envolviam in- sultos verbais ptiblicos diante de testemunhas. Nao provocaram. necessariamente a perda dos empregos, nem resultaram em fe- rimentos ou violéncia fisica, mas eram ataques diretos destina- dos a minar o desempenho profissional e o estado civil de cada um desses individuos. As trés vitimas fizeram queixas formais, na delegacia de policia, as quais resultaram em penalidades, multas ou admoestagoes. 0 fato de os delingtientes em todos esses trés casos terem usado essas observacées ofensivas em piiblico demonstra como insultos raciais ou piadas sio vistas como parte natural do teci- do social brasileiro. Igualmente alarmnantes sau delarayoes de policiais e de outras autoridades que usam expressdes como “aparéncia suspeita” ou “cara de ladrao” ou, ainda, “algo parece fora do lugar” para se referir & presenga de pessoas negras.” Mesmo brasileiros que se consideram progressistas usam ter- mos como negio, preto velho ou ganga velha para se referir a co- nhecidos ou até mesmo a amigos." Ainda assim, seria erréneo considerar essas palavras pejorativas. Tanto no espanhol como no portugués, termos raciais como negro ou negra (ou o néga, no Brasil) podem ser usados como termos de apreso. O caso do deputado Remi Trinta (PL-MA), que atacou ver- balmente Sergio Arquimedes Pacheco da Cruz, um piloto de 43 anus 4 buido de uma actonave no aeroporto na cidade de TOO AFRO-BRASILEIROS HOIE Belém, é mais desconcertante porque envolye um servidor pii- blico de alto posto. Trinta disse a Cruz que ele “tinha um com- plexo de inferioridade por causa de sua pele preta”, e continuou dizendo que “todos os pretos sito assim”, na presenca de muitas testemunhas. O caso causou agitacdo no Congresso ¢ provocou uma discussao sem precedentes sobre racismo na Comissao de Constituicao e Justica e Redacdo (CCJR), mas no teve como conseqiiéncia a rentncia do deputado nem uma desculpa pti blica, coma teria acontecido em muitos outros pafses.2 Quando os ativistas chamam atenc3o para comportamen- tos racistas, muitos brasileiros se defendem dizendo, como apontou um brasileiro: “Eu ndo posso ser racista porque minha ‘mie é negra’. De fato, Joo Garcia, um locutor da Radio Bandei- antes de Porto Alegre que criticou um Arbitro dizendo “Vamos ver se le fode na entrada ou na saida” (parafraseando o ditado ra cista “Negros, se ndo cagam na entrada, cagam na saida”), de- dlarou que nio era racista porque sua esposa era negra.” Essas reaces indicam que os brasileiros distinguem um “sentido geral de preconceitos a grupos” do comportamento individual social, e que, como observado previamente, 0 com- portamento preconceituosn on discriminatério pode nio ne- cessariamente inibir atividades sociais inter-raciais ou mesmo intimidade. Em seu importante trabalho sobre casos de discriminacdo sistema da justica criminal, Antonio Sergio Alfredo Guima- aes observou corretamente que todo os crimes raciais no Brasil se relacionam a praticas restritivas ou segregracionistas dificeis de serem provadas na sociedade brasileira, Segundo Guimaraes, a maioria dos crimes raciais no Brasil é de trés tipos: 1. quando a cor ou aparéncia de uma pessoa a torna sus- peita de um crime ou de algum comportamento anti-so- ial que ela nao cometeu: Dikeit0s civis, piREITOS Erwicos 108 2. quando a condigdo racial ou étnica de uma pessoa usada para diminuir sua autoridade, ou desmoralizé-la ou impedi-la de exercer uma fungao piblica ow algum trabalho ou tarefa; 3. quando uma difamacao racial ¢ usada como maneira de negat oti nao reconhecer a posicao social de alguém, li- mitando sua habilidade para executar ou desenvolver seu trabalho em piiblico ou vida social. Embora esses casos possam representar a maioria dos casos registrados no Brasil, a violéncia racial nio é tio inco- mum quanto se possa pensar." A pesquisa de Guimardes ilustra quantas ofensas raciais contra afro-brasileiros sao colocadas em diivida pelos perpetra- dores, pela policia e pelos jufzes responsaveis por demandas in- dividuais. Além disso, muitos dos crimes denunciados a policia nao podem ser levados a julgamento porque representam “ofen- sas pessoais contra a honra de alguém”, o que nao est coberto pela lei. Essa escapatéria permite que tanto a policia quanto os. juizes subestimem 0 mimero de casos sérios denunciados. As. deniincias registradas por mulheres sdo particularmente pro- pensas a serem categorizadas como “ofensas contra a honra pessoal” em vez de crimes de preconceito ou discriminacio. Se- gundo Guimaraes, 84% dos casos de discriminacio denuncia- dos por mulheres foram clasificados dessa maneira pelas autoridades. Desde 1995, as ofensas contra a honra pessoal tém sido averiguadas por delegacias especiais da policia, e nao sio usualmente tratadas como ofensas criminais. Um estudo reali- zado em Sao Paulo, no entanto, indicou que os afto-brasileiros sdo as vitimas de 80,4% desses crimes. Curiosamente, seis brasileiros que se identificaram como brancos registraram ofensas que ridicularizavam a pele escura do denunciante, ou um ancestral preto.'* 102 AFRO-BRASILEIROS HOIE Usando casos denunciados pelos principais jornais brasi- leiros, Guimaraes tentou determinar se a discriminacao racial ocorre mais freqiientemente em Areas de maior densidade populacional ou de maior porcentagem de negros. E dificil determinar em que extensio 0s casos so representativos de determinados locais; de qualquer maneira os ntimeros ofere- cem um ponto de comparacio entre “casos denunciados pelos principais jornais” e a populacao negra. Queixas de discriminagdo (denunciadas em jornais) por 100 mil habitantes negros ‘Niimero de casos % de negros denunciados em jornais Area metropolitana na populacZo_por 100 mil habitantes negros Rio de Janeiro 10,5 555 Sao Paulo 46 65 Salvador 15.6 423 Belo Horizonte 83 5:78 Porto Alegre 60 5.90 Recife 56 243 Brasilia 37. mst Curitiba 25, 987 Belém 26 405 Fortaleza 20 0,00 Fonte: Guimaries Antonio Sérgio Alfiedo. Preconccito ¢ discriminagdo. Quei >xas de ofensas tratamento desigual dos negros no Brasil, Salvador, Bahia: Novos Toques, 1988, p. 105 Guimaraes sugere que Brasilia, Curitiba e Sao Paulo témo maior ntimero de queixas de discriminacdo em relagao ao ntt- mero de habitantes negros. No entanto, essa hipétese deve ser tratada com algum cuidado. Pode ser mais correto sugerir que em lugares como Biasilia ¢ Curitiba a populagio negra denun Dikeitos civis, DiREITOS ETNICOS 103, ‘ie atos de discriminagio racial mais convincentemente, e os jomais da cidade so mais propensos a publicar essas historias. De qualquer maneira, outra pesquisa esta comecando a confir- mar 0 que muitos afro-brasileiros sabem ha muito tempo: que eles ndo tém acesso igual a lei. Os réus negros nao dispoem de recursos para ter assisténcia legal, e muitos ndo conhecem seus direitos. Como regra geral, os negros recebem sentengas mais duras do que os brancos. Muitos no movimento negro, portan- to, continuam a lutar por direitos iguais em todos os setores da sociedade brasileira. |_Criangas e Educag Lo Futuro Em todos os indicadores sociais, as criangas afto-brasilei- ras, como seus pais, estao em desvantagem. Pobreza, educacdo deficitaria e falta de modelos: tudo contribui para os muitos problemas que as criancas e os adolescentes afro-brasileiros en- frentam. Se os direitos dos adultos nao sio respeitados, assegu- rar os direitos das criangas ¢ ainda mais problematico. Durante a década de 1990, varias organizacées de direitos humanos pro- testaram contra a tortura, 0 abuso e o assassinato de criancas, particularmente nas Areas urbanas. Segundo 0 Ministério Pa- Dlico, por exemplo, entre 1988 € 1991 5.664 jovens entre 5 € 17 anos foram vitimas de mortes violentas. Em 1994, 0 Humans Rigths Watch denunciou que criangas eram rotineiramente as- sassinadas por grupos policiais e paramilitares, mas “o que se tornou conhecido como matanga de criancas é, na maioria dos casos, a matanca de adolescentes do sexo masculino, entre 14 ¢ 17 ‘anos, dos quais uma parte desproporcional é negra”.° De todos os homicidios de menores ocorridos de 1988 a 1990, 82% das vitimas eram negras. Em Sao Paulo, a taxa de 104 AFRO-BRASILEIROS HOJE homicidio de afro-brasileiros € desproporcionalmente alta, so- mando 51,7% das vitimas, de acordo com 0 Nticleo de Estudos da Violéncia (Nev), da Universidade de Sao Paulo. Nem todos os assassinados eram criancas de rua, nem foram todos mortos pela policia ou pelas forcas paramilitares, mas a estatistica ex- plica parcialmente o medo que os afro-brasileiros tém da poli- cia. Quase todas as vitimas eram pobres e, segundo alguns relat6rios, as consideragdes de classe so mais importantes do que as raciais.” O assassinato, em 1993, de oito criancas que dormiam nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, conhecido como “massacre da Candelaria”, criou uma comocio piblica e uma reavaliacdo das leis brasileiras que protegem as criangas. Muitos brasilei 10s, no entanto (influenciados pelas descriges sensacionalistas das criancas de rua na midia), consideram as vitimas afro-bra- sileiras vadias, justificando assim 0 tratamento severo ¢ até mesmo seu exterminio. Incontaveis hist6rias de violencia con- tra jovens afto-brasileiros — abusos em 6nibus, revistas impro- visadas e surras — podem ser contadas pelos moradores das favelas do Rio de Janeiro, de Sao Paulo e de Salvador, trés das maiores cidades do pais. Tudo isso apesar de o Brasil ter apro- vado em 1990 o Estatuto da Crianca e do Adolescente. Desde 0 Primeiro Congresso Nacional de Criancas de Rua, em Brasilia, em 1986, varias organizacbes ¢ ativistas tém luta- do para chamar atencZo para a dificil situacao das criancas de rua, entre elas o Movimento Nacional de Meninos ¢ Meninas de Rua (MNMMR), 0 Naicleo de Estudos da Violencia (NEV) € 0 Instituto Brasileiro de Andlises Sociais e Econémicas (Ibase) Em conseqiiéncia, o Brasil foi um dos primeiros paises a ratifi- car a Convengio dos Direitos da Grianga, e usou os debates constitucionais de 1988 para incluir muitos dos principios da Convengio dos Direitos da Grianga das Nagdes Unidas em sua Contstituigav. No entanto, a implementagao das leis € mais difi- Direiros civis, DiREITOS ETNicos ToS cil que seu estabelecimento, ¢ seu cumprimento no Brasil ain- da deixa bastante a desejar."* Embora o governo tenha de fazer as leis do pais, os ativis- tas que trabalham na comunidade e no campo da educago con- tinuam a tentar forjar um didlogo sobre os direitos humanos e 0s das criancas, no esforco de fomentar uma cultura na qual os direitos humanos sejam universalmente reconhecidos e aceitos ena qual 0s abusos sejam rotineiramente denunciados. A esse respeito, o Ministerio da Educagao esta comecando a desempe- nhar um papel crucial desde 0 langamento dos Parametros Cur- riculares Nacionais (PCNs), em 1997. Os princfpios dos PCNs tefletem anos de trabalho de educadores compromissados com as idéias de cidadania participativa e encorajam o respeito a plu- talidade cultural. Segundo Betty Mindlin, coordenadora do Instituto de Antropologia e do Meio Ambiente e defensora dos direitos hu- ‘manos, 0s PCNs forjaro uma visto do mundo, na qual a cida- dania, a justia social, a valorizacao da diversidade cultural, os direitos humanos e a participacdo em todas as decisdes pabli- cas ¢ coletivas sio fundamentais. Os PCNs sio particularmen- te inovadores na area da pluralidade cultural, pois estimulam uma afirmagio positiva da diversidade cultural como “um te- souro humano a ser explorado, como uma fonte de conhecimento ¢ pesquisa a ser usado em todas as disciplinas", em vez de trans- formar a pluralidade cultural em uma curiosidade folclorica.” Nas préximas décadas, novos livros didéticos brasileiros aju- darao a fomentar essa nova visio. Publicagdes como Sou crian- a: tenho direitos j& fornecem orientagbes pedagogicas para a introducao dos direitos humanos nas escolas primatias. A filo- sofia simples da publicacdo ~ “Ver, saber, celebrar e se compro- meter” — jé recebeu elogios de educadores, mas a publicacio ainda é desconhecida por muitos professores de éreas pobres do Brasil. TO6 AFRO-BRASILEIROS HOIE Além disso, como a revista Educagiio demonstrou, muitos professores continuam a tratar os estudantes negros como ci= dadaos de segunda classe nas salas de aula, Gilberto Gil lem- bra, nao sem dor, que quando era estudante um professor 0 chamou de “menino preto de boca grande’, ¢ mandou que fi casse quieto. Isso foi, no minimo, ha duas geracdes, mas tal comportamento continua até hoje. Segundo Eliane Cavaleito, pesquisadora do Departamento de Educacao da Universidade de Sao Paulo, o maivt problesa € que muitos professores ainda no admitem que o preconceito racial e a discriminacio exis- tem no Brasil. Essa conclusio tem sido confirmada por varios estudos indicando que tanto os alunos quanto os professores acreditam que entre eles nao existe preconceito. Na realidade, muitos estudantes tém receio de expor seus proprios preconcei- tos e muitas vezes fazem grandes esforgos para esconder suas proprias diferencas e pobres condicGes de vida. O mito da de- mocracia racial continua a existir, apesar dos resultados das pesquisas concluirem 0 contrario.°° Programas educativos alternativos como os institufdos pelo Mle Ayé comegaram a desempenhar um papel importante na educagio das criangas. Com a ajuda de cducadures, 0 [é Aye desenvolveu e publicou varios livros educativos que enfatizam © papel dos afro-brasileiros na historia e na sociedade. Esses textos so extensdes mais elaboradas das composigdes musicais do Ilé Ayé, com 0 objetivo de educar os jovens, Escolas como as de Mae Hilda, na Liberdade, que recebeu o nome de uma das fundadoras originais do grupo ¢ sacerdotisa do candomblé, ofe- rece modelos populares positivos para toda a nacdo, Existem poucos livros infantis que focalizam temas afro- brasileiros, ¢ os jovens tém poucos recursos aos quais recorrer quando tém perguntas sobre a identidade racial, a escravidao, a cultura africana ou religiosa. Historias da preta, de Heloisa Pires Lima, que inclui historias sobre a Africa, a terminologia racial, Dikcit0s civis, DIREITOS ETNICoS 107 0 candomblé e outras tradigdes culturais africanas; Cidadania em preto e branco: discutindo as relagdes raciais, de Maria Apare- “cida da Silva e Maria Aparecida da Silva Bento; e Felicidade nao tem cor, de Jalio Emilio Braz, sao trés exemplos.” Publicidades de outros livros ocasionalmente aparecem em revistas como Raca e Povo Negro, mas essas publicacbes sao dificeis de se en- contrar, apesar de sua importancia, Um projeto que dard frutos no futuro envolve o setor priva- do, o governo e a comunidade de ativistas: ¢ o chamado Gera- ‘Gdo XXI. O objetivo do programa é simples: preparar jovens negros adolescentes para entrar no século x1 como cidadaos produtivos. O BankBoston comprometeu recursos financeiros ‘¢ tempo durante os préximos nove anos para assegurar que 21 jovens negros de Sao Paulo continuarao seus estudos. O pro- ‘grama oferece bolsas de estudos aos jovens, transporte, ajuda de custo para alimentagdo e seguro médico e dental, que nor- malmente eles nao teriam. Segundo Maria Aparecida da Silva, “diretora do projeto, sem esse apoio a maioria dos estudantes seria forgada a deixar a escola e trabalhar em empregos de baixa yemuneracio na cidade. Além do apoio financeiro, que Ihes ‘permite que se concentrem nos estudos, os estudantes também. participam de varios foruns como aulas depois da escola e de palestras que geralmente incluem os pais e membros da comu- nidade, Funcionarios do BankBoston so encorajados a colabo- rar em varios projetos que beneficiam os estudantes.* 0 projeto Gerago XXI é uma iniciativa importante que ser- vird como um modelo para o futuro. Os organizadores esperam mostrar que, quando recursos so investidos em comunidades negras, os afto-brasileiros prospéram. Ao mesmo tempo, em- presas progressistas como 0 BankBoston tém demonstrado acreditar que a comunidade empresarial tem um compromisso fundamental com as grandes questdes sociais na comunidade. © projeto é, em alguns aspectos, um pequeno exernplo de ago RASILEIROS HOJE afirmativa em pratica no Brasil, pois reconhece a situacio espe: cialmente precéria dos estudantes negros pobres, que fazemn parte da grande porcentagem de brasileiros incapazes de com: pletar a escola secundaria.” __ Em setembro de 1997, um grupo especial de trabalho sobre discriminagao publicou 29 recomendagées a0 governo, muitas delas controversas (por exemplo, a criagio de programas de acdo afirmativa nas universidades e nas contratacdes governa- mentais). Embora o presidente reconheca a necessidade dessas recomendagdes, 08 programas oficiais de acio afirmativa até hoje continuam muito problematicos e politicamente delicados para ser implementados. Este relatério apresentou varios indica- dores sociais, econdmicos e culturais importantes sobre os afro-brasileiros. Estes © seus aliados tém muito sobre © que fazer campanhas, mas também cexistem motivos para um otimismo cau- teloso. A questio “Quem sao os afto-brasilei- xos e como contribuiram para o desen- volvimento da sociedade brasileira?”, este relatério deu varias respostas. Pri- as meiro, os afro-brasileiros nao séo um grupo monolitico. Como outros grupos étnicos brasileiros, cles se identificam pelas regides. Além disso, os afto-brasi Jeiros herdaram um sistema cultural que historicamente dis- tinguiu as pessoas pela cor de sua pele. Embora a maioria dos africanos tenha entrado no Brasil em uma posicdo so- cialmente inferior, os africanos e seus descendentes ajuda- ram acriar a cultura brasileira. Sua influéncia nas artes ena misica, na arquitetura, na culinaria, na lingua e na religiio é incgavel. 124 AFRO-BRASILEIROS HOJE 19. “Na segunda classe”, Veja, maio de 1997, pp. 22-30. 20, Entrevista gravada com Maria Aparecida da Siva, diretora da Geracio 221, Sto Paulo, Brasil, 19 de junho de 1999. at. Ver wow centraldeconcursos.com.br 22. “Aqui a cor nfo conta", Rega, novembro de 1998, pp. 48-5. Entrevista sgravada com Eliza Argolo Benicio, Universidade Federal da Bahia, 6 de julho de 1999. 25. United Nations Development Programme. Human Development Repert 1ggt. Nova York: Oxford University Press, 1991, p. 136. Human Rights Watch The Struggle for Land in Brazil: Rural Violence Continues. Nova York, Washington, Los Angeles, Londres. Human Rights Watch, 1992, pp. -2. Dirt Humanos no CCotdiano, p. 190. 2g. Ver Raga, setembro de 1997, pp. 79°84. 25. BRooKs, J “Brazil's police enforce a law: death", Naw York Times, 4 de novembro de 1992, fc. Ap. 2. BROOKE, J. “Head of Security in $30 Paulo is dismissed, New York Times, 9 de outubro de 1992, sec. A.,p. 3. 26. uS Department of State: Brazil Country Report on Human Rights Practice Jor 1997, tp://www.state gov/www/global/human_rights/1997_hrpreport/ brazil. |_ 5 Direitos Civis, Direitos |Etnicos, Reconhecimento | e Integracao: o Brasil e seu | Registro de Direitos Humanos 1 wonw.1.Jumm.edu/humanets/instee/ainstlst.im. Meus agradecimentos 4208 estagidrios do Geonomics Center no Middlebury College, Vermont, que me ajudaram a localizarinformacoes sobre esses tratados. 2. Ibid 3, Padre Ricardo Rezende Figueira, Rio Maria, ard, “Vioagio dos Direitos Humanos dos Camponeses no Brasil’, artigo apresentado na 48! sessdo da Co- ‘missfo de Direitos Humanos das NagOes Unidas, 5 de fevereiro de 1992, Gene bra, Sulga. 14. Consttuisdo Federal (2988), Lei n?7716, 5 de janeiro de 1980. 5, Lei n* 9.459, promulgada pelo presidente Femando Henrique Cardoso ‘em 1 de maio de 1997. 6. Direitos humanos no cotidiano, p. 87. Entrevista gravada com Luis Mott presidente do Grupo Gay da Baba, 4 de jullu deayyy. Notas _ 135 7. Raga Brasi,julho de 1999. 8. Raga Brasi,junho de 2999. 9. Roca Brasil, setembro de 1997. 10. Veja 0 caso publicado no jornal Folha da Tarde (S40 Paulo), em 16 de julho de 1991, citado em Guimaraes, A. S. A. Preconceito e discriminacdo: queixas e ofensas ¢ tratamento desigual dos negras no Brasit Salvador, Bahia, Novos To- ques, 1998, pp. 13-7. Enquanto fazia pesquisas para esse relatério, o autor foi de- tido duas vezes por poiciais, uma em Salvador ¢ outra no Rio de Janciro, porque se enquadrava no perfil de “suspeito”. 11 Gostaria de agradecer a ajuda de Luiza Benicio, de Salvador, Bahia, na compreensio desses termas 12, Depoimento, “Nasce uma revolta..”,Irohi (Acompanhamento Legisla tivo, Executivo e Judictétio), vo. 4,n™ 4-5, pp. 23. 13, “Carldo Vermelho para oradialista gaiicho", Raga Brasi, outubro de 1998, p98. 14, GUIMARKES, op cit PP. 33-4: 15, GUIMARKES, op. cit, pp. 43-64 € 100-1. 16, Huwaw Riciers Warcu. Final Justice: Police and Death Squad Homicides of Adolescents in Brazil. Nova York, Washington. Los Angeles e London, 1994. Pp. ira, 17. Ibid, p. 3. 18, Ibid, pp. 15-22, 19. MINDLIN, B, “O Ministério da Educagio e a pluralidade cultural", O Esta- do de S.Paulo, 27 de outibro de 1997. 20. Lorez, I. *A flor da pele: pesquisa revela despreparo de professores em lidar com as questBes raciais na escola", Educagdo, vol. 26, n¢ 218, pp. 20.2 21. Ver Lin, H. P. Histrias da preta. Sao Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. 22, Entrevista gravada com Maria Aparecida “Cidinha” da Silva no escrit- tio da Geragio x14, Sto Paulo, Brasil, 30 de junho de 1999. 23, “Geragio xx", Educagdo, junho de 1999, p. 22. | Concluséo 1, HANCHARD, M. G. Orpheus and Power: The Movimento Negro of Rio de Ja- neiro and Sao Paulo, Brazil, 19452988. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1994: 2, Entrevista gravada com Roseli Fischman, So Paulo, Brasil, 28 de junho de 1999.

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