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Tania Andrade Lima Departamento de Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro Tae citwcia mont + vol. 36 © nf 283 - ceramicas Tupiguaran e Marajoara elementos Jedi ae Ha cerca de 20 anos, 0 arquedlogo brasileiro José Proenca ey estruturais comuns der. Brochado construiu um modelo para a origem ¢ a dispersio dos grupos que produziram @ chamada ceramica Tupiguarani, defendido em tese de dou- torado apresentada a Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Combinando evidencias arqueol6- tgicas, etnograficas e lingiiisticas, ele considerou tais grupos origindrios do sudoeste da Amazénia, de onde teriam se dispersado em duas dirogdes distintas, contornando as terras altes do planalto brasileiro em um movimento de pinga ramo setentrional, associado aos Tupinambé, teria se expandido na direcio do leste, através das bacias hidrograficas, e ocupado a costa atlantica. O meridional, associado aos Guarani, teria deixado a regio do rio Madeira e, rumando para 0 sul, alcan= ado a drenagem dos rios Parand-Paraguai, disper- sando-se dai em diante pelas terras meridionais brasileiras rogides vizinhas na Argentina e no Uruguai. Em sua didspora, esses grupos, que em sua ori ‘gem - na Amaz6nia ~ produziam ceramicas poli cromadas, teriam levado consigo essa heranga cultural. Para Brochado, as manifestacOes mais setentrionais da cerdmica Tupiguarani, encontr das nas regides Nordeste e Sudeste, guardaram elementos dessa ancestralidade. ‘Sua hipétese fundamentava-se nas seguintes evidéncias * Do ponto de vista. das formas, as ceramicas ‘Tupiguarani setentrionais estariam mais proximas da cerimica Marajoara que da sua co-irmé meri- ional Giarani, ¢ mais préximas ainda das micas Miracangiiera, encontradas no médio rio ‘Amazonas. * Do ponto de vista da decoracio, a pintura po- Jicromada ocupa os mesmos campos na superficie ddas cerimicas amazOnicas e Tupiguarani, com a parte superior das bordas reforcadas recebendo ‘uma faixa fronteiriga circundante (paralela a aber- fura), e com o interior recoberto por intrincados ‘padrées docorativos. * A maior parte das técnicas decorativas ou das formas de estruturar a superficie dos vasos so as ‘mesmas na Amazdnia o no leste do Brasil, tragos ceulturais que teriam sido herdados, segundo o ar- quedlogo, de um ancestral comum na AmazOnia Central. Tais caracteristicas teriam sido perdidas ‘quando os portadores da cerdmica Tupiguarani di- ergiram da cultura Marajoara e a primeira tor- pou-se uma versdo simplificada da segunda * O grande nimoro de similaridades entre elas torna- fia absurda a hipétese da invencéo independente. Tentando aprofundar mais as idéias fecundas de Brochado, mas reorientando teoricamente a questo, encaminhamos as reflexdes agora em outra direcdo, com outras preocupacbes que nao as difu- sionistas, jé intensamente discutidas. Privilogian- do os aspectos estruturais, entendemos que, de fat, esquemas mentais muito semelhantes parecem estar por trés da organizagio dos campos decora- tivos de algumas cerémicas pré-hist6ricas da. Ama- 2onia eda cultura Tupiguarani, ordenados em mu tos casos a partir dos mesmos principios. Indo além de aspectos como a policromia e 0 preparo de fundos claros para receber 0s motivos em preto o/ou vermelho, identificamos esquemas cognitivos muito semelhantes regendo a produgéo dessas cerimicas. Como elementos estruturais co ‘uns aos campos grficos de ambos os grupos ceramistas, consideramos: * 0 campo decorativo 6 tripartido em fundo, faixa € borda, sendo corpo e bordatratados como unida- des soparadas (figura 1) * Hé freqiientemente um centro ordenador, a partir do qual 6 estruturado 0 campo decorativo, total e intensamente preenchido com motivos labirinticos ispostos com uma complexidade ritmica resul- tante de cuidadoso planejamento, evitando-se de todas as maneiras a formagio de ‘vazios’, como mostra a figura 1 i } : Figura 2. Decoraglo em banco Marajoara (A), do acervo do Museu Nacional (UFR); e fundo pintado de tigela Tupiguarani (B), do acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (UF)F) * Para esse preenchimento, so usados sistemati- camente os mesmos elementos bésicos, como mo- tivos medndricos, espiralados, om gregas etc., po- rém dispostos de forma sempre renovada, como ‘mostra a figura 1. * Observa-se rigorosa simetria bilateral, em cam- pos gréficos bipartidos ou quadripartidos a partir de dois elxos, explicitos ou implicitos (figura 2) Assimetrias, quando existem, sio ilusérias, tratan- do-se na verdade de simotrias invertidas, percep- tiveis somente a um segundo olhar. * As solucées de preenchimento dos campos ficos sto, nas duas ceramicas, fortemente conver- ‘gentes, como: (a) 0 escurecimento de segmentos de modo a criar a ilusio de um fundo escuro, com a finalidade de destacar 0 motivo principal, como Figura 3. Vaso Marajoara(A), ‘do acervo do Museu Nacional (UFR); ‘efundo pintado de tgela Tupiguarani (@),domesmo acervo corre sistematicamente com © motivo em ondas, tanto na coramica Maraoara quanto na Tupiguarant (tal efeito 6 bom mais discreto na cerimica Tupi- suarani que na Marsjoara, imitando-se a pontos fssenciais, de modo a colocar as ondas em desta- ‘que, mas 0 principio 6 o mesmo) (figura 3); (6) & condicio futuante, no campo decoratvo, de deter minados padrdes, como no caso do conhecido pa- drio pole de jaguar, que aparece recorcentemente na cerémica Aris do baixo Amazonas e quo, tam: bém na cerimica Tupiguarani, futua da mesma forma no campo decorativo: (c) as composigbes estruturadas em tomo da justaposicio de faixas largas ¢ linhas finas, em miiltiplas combinagdes para as quais Brochado jé havia chamado a aten= Gio (figura 4); () as linhas paralelas,segmontadas 2 intervalos curtos ¢ regulares, em movimentos * Alguns elementos prosentes na cerémica pinta- dda Tupiguarani aparentam ser vestigios de expres- ses mais complexas na cerimica Marajoara. £ 0 caso, por exemplo, das ‘aspas' (Linhas duplas. cur- tas, rcorrentemente aplicadas a intervalos rogula- res, em posicto vertical ou horizontal, mas com Cariter acess6rio, secundério, no campo decorat- vo). Na corimica Tupiguarani nao hé ‘spas’, mas tragos ou pontos choios, igualmente aplicados a intervalos regulares, no que parece ser uma versio abreviada, ou simplificada, das “aspas’ Marajoara (tigura 5). Mais que sugerit uma origem cl x0es entre as culturas que produ micas ~ para 0 que ainda mio hd comprovagéo su i ficiente -, entendemos que é pre- Bis investiga ainda quo ash iptiteses cxfstontes venham a ser cect er BI erorceatd§pntcia do fesquemas ments tao somelhan tes, em grupos do todo distancia dos entre si, No caso da corimica Marajoere, uma porsistncia de séculos, em uma regio relative. frente crcunscrita, No exso da Gerimica Tupiguaran, uma per Uimpressionane dispersto especl ce ort a wul do pata Tupiguarani (tanto 0 setentional, ssociado por Brochado aos Tupinambé, quanto o meridional, a notivel diversidade cultural que esses rétulos unificadores encobrem, ainda muito mal discernida, Em lugar dessa suposta homogeneidade, 6 preciso que se comece a trabalhar no sentido de se reco nhecor a variabilidade ai existente. Figura 4. Urna Guarita(®), oacervodo institute Hisiérco 1 Geografico do Amazonas; fragmento detigela Tupiguarani(8), doacervo do Centro da Memoria do Oeste e Santa Catarina i a Anqueotocia Figura 5. Detathe (A) da tigela Marajoara da figura 2; e detalhe de fundo de tigela Tupiguarani (8), ‘do acervo do Museu Nacional (UFRI) A persisténcia de um mesmo esquema mental, ainda mais em um quadro de tamanha diversidade cultural, é digna de nota e precisa ser investigada. Esse € o fendmeno que mais merece a atengao dos especialistas nesse momento, buscando-se substi- ‘wir agora a énfase nas conexées externas entre esses grupos por um olhar mais atento as suas conextes internas, Nossas questdes so, portanto, de outra ordem: por que razo os portadores da ce- imica Tupiguarani, ao se disper- sarem por grande parte do territ6 rio brasileiro, mantiveram prati- camente inalterados esses esque- mas mentais? Qual o motivo dessa estabilidade? Como se explica tal continuidade? Conexées externas podem explicar a transmissio, mas 86 conexées internas podem explicar a persisténcia, como as- sinalou 0 antropélogo francés Claude Lévi-Strauss, e esta é a que mais nos interessa aqui, SuGEsToEs PARA LEITURA sR 0cHA00.°.An Reprodusindo suas palavras, | “saogeamas quando se referiu a possveis rela. | &itesad Gées entre a arte da costa noroeste | sprucio ericana e a da China antiga, nao estamos era norteamer da China antiga, ndo est sete procurando apontar “tragosindependentes viglan- | (™% ag do cada um por sua conta, desprendendose von- | Mngt tade de uma cultura para vir se agregar a outra’. | Estamos falando de esquemas mentais estru- | wcewsuc turadores no apenas de estlos, mas também de | BHETG‘C8 outros aspectos da vida social, @ que podem ser | MSE potencialmente percebidos também em outras ins- Ae onion, tan Essassio as quest6es que mais nos interessam | _ mt roa lovantar agora, 20 kentifcarelomentos strut. | LBA rals comuns entre a cerimica pintada Tupiguarani | wie 25 cerdmicas policromadas da AmazOnia, A ar- | Sra.” queologia precisara trabalhar, nos préximos anos, 2 no sentido de respondé-las. . marge de 2005 » CIENCIA MOVE * 33

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