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4° Tempo Vistas Urbanas nos Albuns llustrados por Viajantes Europeus do Século XIX Valéria Salgueiro * Introdugéo As primeiras vistas modernas de cidades na América Latina, eviden- ciando preocupagées com o registro do seu aspecto geral ¢ do seu encorno, do tragado, da arquitetura e da vida nas ruas, surgiram em grande ntimero com 08 viajantes curopeus do final do século XVIII e, sobretudo, da pri- meira metade do século XTX. Reunidas em colegses de 25 pranchas, em média, na forma de dlbuns ilustrados, essas primeiras imagens impressas de nossas cidades tormaram-se conhecidas pelo piiblico em obras publicadas A €poca em Londres ¢ Paris, tais como a Viagem pitoresca através do Brasit (Paris e Berlim), de Johann Moritz Rugendas, Vistas e costumes do Rio de Janeiro e arredores (Londres), de Henry Chamberlain, ¢ a Viagem pitoresca e Aistérice ao Brasit Paris), de Jean-Baptiste Debrer, para citar apenas alguns exemplos mais conhecidos € mais recentemente reeditadas em nosso pais. Sendo 0 album de vistas urbanas pelos viajantes europeus expressao ao mesmo tempo da cultura fatino-americana (quanto ao objeto retratado: a cidade) e da cultura européia (quanto & natureza do produto: 0 Album ilus- trado de vistas), sua hist6ria nfo pode estar divorciada da histéria mais ampla de vistas urbanas da propria Europa, ja que estas compdem sua matriz de origem. Com essa premissa, este trabalho coloca-se na busca de caminhos interpretativos da linguagem visual com que foram concebidas nossas pai- * Professora do Departamento de Urbanismo cx Escola de Arquitetura ¢ Urbanismo da Uni- versidade Federal Fluminense. Doutora em Histéria Social pela USP (1995). Artista plistica. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 103-123 103 Artigos sagens pelos viajantes curopeus da primeira metade do século XIX, bem como das possibilidades documentais das vistas urbanas pelos viajantes para a historiografia de nossas cidades. Vistas de cidades — uma produgao artistica moderna Se € certo que cidades possuem uma histéria, temos também como certo que vistas de cidades constituem uma produgao cultural cujas con- vengoes figurativas ¢ meios técnicos de expresso possuem também, em si, uma historicidade. Enquanto assunto na arte, vistas de cidades surgem na Europa num determinado momento, elaboradas segundo certos princi- pios técnicos ¢ artistico-expressivos: Por outro lado, o surgimento e o de- senvolvimento dessa atividade artistica — a de produzir vistas de lugares reais — apéia-se em determinados pressupostos socioculturais: nem sem- pre foram as cidades um interesse para artistas, editores e para o ptiblico. Poderiamos perguntar, entiio, quando a cidade insinua-se como objeto na arte © de que forma isso se deu. As primeiras vistas de cidades constituindo um interesse em si na composicao artistica, ¢ nao meramente um cenério para a narrativa visual de passagens da Biblia ou de outros episddios hist6ricos ou mitolégicos, surgem e se difundem na cultura curopéia, na forma impressa, em livros onde arte © geografia se unem no que veio a ser o embrido do atlas moder- no. Essa produgio dos primeiros atlas com gravuras de cidades ocorreu paralelamente ao processo de secularizagao na producio artistica, cujos fundamentos relacionam-se As novas atitudes de cidadania € ao capitalis- mo em seus tempos iniciais, com desenvolvimento do comércio e sua expansio em escala mundial no século XV. A nova imagem do mundo que comecava a configurar-se ao final do século XV brotava também de uma consciéncia mais forte do ambiente fisico das pessoas ¢, por outro lado, de um esforgo em plasmar esse ambiente em imagens. Em termos técnicos, esse desenvolvimento encontra-se intimamente ligado aos progressos na imprensa, que trouxeram consigo 0 avango nas técnicas de reprodugio de imagens ¢ 0 surgimento do livro ilustrado reunindo um ntimero de c6pias a partir de matrizes, num misto de atlas ¢ livro de viagens que retine tanto mapas quanto vistas de cidades, quer em perfil, quer em amplas tomadas panoramicas, 04 Vistas Urbanas nos Albuns Hustrados por Viajantes Europeus do Século XIX Na Alemanha, unindo atividade cientifica (geografia, cartografia) ¢ atividade arefstica (desenho ¢ gravura), surgiu, no final da Idade Média, 0 livro ilustrado sobre lugares com gravuras de madeira (xilogravuras) € co- bre. A gravura realizada com entalhe na madeira para a confecgao de matri zes, a partir das quais muitas cépias eram obtidas, foi desde o inicio um meio técnico de mediagao entre o conhecimento histérico e geogrifico. A obra Lieber cronicarum, de Hartmann Schadel, surgida em 1493, em Nuremberg, € um dos primeiros livros ilustrados com xilogravuras de cidades européias. Com quase duas mil gravuras pelos mestres Wohlgemuth e Pleydenwurff, essa obra, também conhecida como Grénica de Nuremberg, € wm vestemu- nho da cosmografia alto-g6tica onde vistas de cidades e mapas nao sao re- tratos exatos € sim representagdes que visam dar ao leitor uma visio plisti- ca dos locais a que se referem, dispensando todavia a correspondéncia di- reta entre a imagem e a realidade topografica.' Segundo Jacob, as vistas da Cronica de Nuremberg sto manifestagdes de identidade civil, de vontade de representagdo € de orgulho da realizacao do cidadao e poderiam ser inter- pretadas como uma forma de expressio hist6rico-cultural da burguesia co- mercial emergente, que comissionava artistas para produzir vistas das ci- dades que prosperavam com o comércio e que, com sua riqueza, eram motivo de orgulho para seus habitantes.? E nessa época também que surge na cultura curopéia o retrato como género artistico auténomo, quando prin- cipes, nobres comerciantes enriquecidos desejaram ser eternizados numa imagem, comissionando artistas para pintar-Ihes o retrato num vasto voca- buldrio de posturas, expressdes, emblemas e todo tipo de atributos que pudessem evidenciar seu poder ¢ sua esfera de influéncia? No século XVI surgiram na Alemanha varias obras pioneiras da car- tografia moderna ¢ da representagio visual de cidades, como a de Peter Alpian — Landtafel —, obra que consistiu numa das primeiras descrigdes topograficas da regido da Baviera.‘ A obra de Sebastian Miinster, publicada em torno de 1550 com 0 titulo Cosmographia, destaca-se como um esforgo ‘CE. C. Brockema, Deutschland vor drei Jahrhanderten: Seine Stade, Flisse und Wallder betrachtet von Willem und Joan Blawen, Georg Braun, Franz Hogenberg und Joris Hoefnagel, Berlim, Kartographisches Institut Bertelsmann, 1971, p. 294. 2, Cf. Franz-Dietrich Jacob, Historische Stadtansichten. Entwicklungs-geschichtliche und Quellenkundliche Momente, Leipzig, VEB E. A. Seemann Verlag, 1982, p. 149. >. Norbert Schneider, The art of the portrait, Colbnia, Benedikt Taschen, 1994, p. 6. +. C£. Broekema, op. cit., Deutschland vor drei Jahrhunderten ..., p. 294. 105 Artigos de descrever a ‘Terra em sua apar€ncia. Nela sio reproduzidos mapas € muitas vistas de cidades, buscando uma representagao visualmente mais proxima realidade topografica dos lugares, embora em muitos casos a imagem fosse gerada nao a partir da observagao da cidade in /oco, mas sim com base em textos descritivos. ‘A partir do século XVI amplia-se a produgio de vistas ¢ mapas na Europa. A Holanda tinha a supremacia nessa atividade ¢ a manteve até 0 comego do século XVIII. Destacamos aqui o editor Abraham Ortelius, de Antuérpia, que publicou, em 1570, 0 primeiro atlas mundial —o Theatrum orbis Terrarum (Teatro do mundo), obra que foi ampliada varias vezes até atingir sua quinta edicdo, em 1612. A publicagio da obra de Ortelius foi logo seguida por outra, Speculum orbis Terrarum, de Gerard de Jode; em 1595 surgiu a primeira edigdo do atlas de Gerard Mercator. Georg Braun, de Colénia, na Alemanha uma obra abrangente com vistas de cidades, em colaboragao com Franz Hogenberg ¢ Joris Hoefnagel — Civitares orbis ‘Terraram —, cujo primeiro nimero data de 1572. A obra foi ampliada acé sua versio completa em seis volumes (1618), € as vistas de cidades silo pro- duzidas a partir da observacao in situ, coma maioria das vistas tomada aodo- de-passaro.s Nessas vistas, 0s artistas procuraram representar as cidades € seus brasdes, como também seu entorno. Freqtientemente, posicionavam no plano da frente um staffage de figuras humanas em trajes tipicos da re- gido, ou os produtos dos oficios do lugar (fig.1: ver no final do artigo), numa fusdo de geografia ¢ cultura, expressas artisticamente segundo as conven- oes figurativas das vistas panoramicas que tanto proliferaram na arte de paisagem desde 0 inicio do século XVII no norte da Europa.* Um desenvolvimento semelhante ocorria nessa mesma época em Amsterdam, ento um importante centro comercial, onde se encontravam viajantes de todo o mundo. A arte ¢ a cartografia, assim unidas, abriam um amplo mercado para artistas topégrafos e gravadores, nao apenas em 5. Isto é, como se 0 observador fosse um passaro voando; 0 ponto de vista nesse caso permi- te uma visio dominadora da cidade ¢ de seu entorno, numa apreensao verdadeiramente globalizante do espaco, © CEC. Broekema, op. cit., p. 295. Sobre convencdes figurativas das vistas panoramicas na arte de paisagem holandesa do século XVII, ver Valétia Salguciro de Souza, “Vistas pano- rimicas”, in Gosto, sensibilidade e objetividade na representacdo da paisagem urbana nos dlbuns itustrados pelos viajantes europeus: Buenos Aires, Rio de Janeiro e México (1820-1852), 2 vols, Tese de Doutorado em Hist6ria Social, Universidade de Sao Paulo, 1995, vol. 1, eap. 2, item 2.4. 106 Vistas Urbanas nos Albuns Hlustrados por Viajantes Eurapeus do Séotlo XIX Amsterdam mas também em outras cidades da Holanda.’ A freqiiente pre- senca de mapas pendurados na parede e de globos terrestres sobre méveis € mesas na pintura de cenas de interior da arte holandesa do século XVII é um dos mais evidentes sinais da estreita ligagio entre cartografia ¢ arte. Um exemplo tfpico dessa associag’o pode ser colhido da obra do artista Jan Vermeer der Delft, A arte de pintar (Kunsthistorisches Museum, Viena) (fig.2: ver no final do artigo): a cena mostra o artista retratando sua modelo postada diante de um imenso mapa da Holanda pendurado na parede, cir cundado por vistas de cidades na forma de quadratura, na mais pretendida fusdo de arte e conhecimento. Nomes formavam-se nessa tradi¢Z0 como, por exemplo, o da familia Blauen: Guiliclmus Blauen fundou em 1604, em Amsterdam, uma editora de mapas terrestres € marftimos € a maior oficina de prensa de sua €poca, para impressio de livros e gravuras em cobre, ati- vidades que foram assumidas depois por seus filhos Cornelius ¢ Johannes Blauen. Suas mais famosas obras foram o Atlas major, que chegou a seis volumes em meados do século XVII, com um total de 434 mapas de varias partes da Europa e até da China, e a Geographia blaviana, editada em cin- co linguas curopéias com cerca de 600 mapas. Numa de suas publicagdes, o Klencke Atlas, de 1647, Johannes Blauen publicou um mapa do Brasil por Georg Markgraf, uma verdadeira historia mapeada em que o Brasil holandés € representado com seus assentamentos ¢ nativos trabalhando, O conhecimento para a produgao dessas obras Johannes Blaucn obtinha de uma ativa correspondéncia com pessoas ilustradas em varias partes do mundo; para os mapas da Alemanha, por exemple, contribufram 26 nomes. As caracteristicas barrocas do estilo dos mapas foram mancidas por todo 0 século, onde se destaca uma decoragao com os produtos préprios dos luga- res, surtindo um cfcito emblemitico de suas riquezas; sobre o mapa de Nuremberg, por exemplo, havia uma decoragio com produtos de cobre ¢ obre o do Brasil holandés, identificamos frutos tropicais, animais, ° de ferro,*s arquitetura de engenhos e escravi Areformulagio da visio medieval do mundo € a ascensao econémica © social da burguesia essencialmente urbana foram, nessa conexio, funda- mentos socioculturais importantes paraa produgio de vistas de cidades nos 3. Conforme reportado pelo florentino Ludovico Guicciardini, em 1567 havia na Antuérpia 169 padeiros, 78 acougueiros ¢ cerca de 300 pintores ¢ gravadores. Dados de Franz-Diecrich Jacob, op. cit., p. 154. */Cf. C. Broekema, op. cit., Deutschland vor drei Jahrhunderten ... p. 296. *, Ver Svetlana Alpers, The art of describing, Chicago University Press, 1983. 107 Artigos séculos XVI ¢ XVII. Vistas urbanas em obras impressas em vez de repre- sentarem, abstratamente, um mero palco para dramas humanos ¢ passagens da mitologia crista, passaram a destinar-se cada vez mais & ilustragao de informagao geogréfica, atendendo a objetivos cientificos € praticos, como a navegaco © o reconhecimento de lugares. Além disso, comissionada por burgueses e por conselheiros ou prefeitos, a produgio artistica de vistas de cidades serviu também ao objetivo de representagao do ambiente do cida- dao, cuja consciéncia de fazer parte da comunidade, de possuir direitos ¢ obrigagées e de colher beneficios de seu status ensinara-o a valorizar a re- presentagao da cosmografia da sua cidade. Segundo Hyde, imagens de ci- dades em vistas panoramicas estao essencialmente ligadas a essa conscién- cia de cidadania ¢ ao orgulho ctvico, daf que o meio técnico da gravura te- nha sido uma técnica expressiva to utilizada, pois permitia a reprodugao da imagem em quantidade, tormando-a acessivel a muitos individuos, a0 contrério da pintura, que, por sua propria natureza, € para ser apropriada individualmente ou por grupos bem reduzidos." A reprodugao em quanti- dade a partir de uma matriz possibilitava 0 acesso & arte de vistas a um ntimero maior de pessoas, que podiam colecioné-las, presented-las, mostré- las a familiares ¢ amigos, ou simplesmente penduré-las na parede, desen- volvendo-se, enfim, uma sociabilidade em torno dessa modalidade de arte. Caracterizada como um tipo de trabalho realizado em geral a partir de um contrato entre 0 artista € 0 editor, a produgao de vistas de cidades contava, pois, desde o infcio, com um ptiblico ao qual se destinava e que constituia sua razao de scr. A arte de vistas de cidades foi, nesse sentido, um dos géneros mais populares e mais relacionados ao mercado dentre to- dos os géneros da arte, guardando grande intimidade com o gosto de um pUblico mais amplo, essencialmente urbano, ao qual devia scu patrocinio. Livros de vistas no século XVUL Com o desenvolvimento da ciéncia moderna € 0 estimulo do Tlumi- nismo dos séculos XVII e XVIII crescia o apelo a uma representagao topo- grafica exata e confiavel do ambiente natural e construido, levando ao estreitamento da relagao entre artista € cientista, como nas expedigdes cientfficas do século XVIII, em que artistas ¢ cientistas trabalhavam ladoa © Ralph Hyde, Gilded scenes and shining prospects. Panoramic views of british towns 1575- 1900, New Haven, Yale Center for British Art, 1985, p. 11. 4. Franz-Dietrich Jacob, Historische Stadtansichten, op. cit. 108 Vistas Urbanas nos Albuns Mustrados por Viajantes Europeus do Século XIX lado na produgao do conhecimento ilustrado. Existia, portanto, um apelo crescente da ciéneia a produgao artistica para fins de ilustragao do conheci- mento a partir do natural; também as expedigics cientificas curopéias a outros continentes, como as do capitio James Cook ao Pacifico, favoreci- am o retratar de paisagens habitos com objetivos documentais. Entretanto, tendéncias opostas no movimento do gosto ¢ da apreci- agio estética se insinuavam na propria Europa, abrigando uma tensao na arte de paisagem: por um lado, a demanda pelo trabalho do artista realiza- do com exatidao, produto de uma atenta observacio dos fendmenos, das formas e das cores dos objetos, na ilustragao cientifica que documentaria visualmente as aquisigdes do conhecimento ¢ auxiliaria na sua difusio; por outro, 0 culto estético a paisagem, sobretudo a paisagem natural ¢ a arqui- tetura de catedrais, de castelos ¢ de tudo o mais que pertencesse ao passa- do, cultivando na paisagem ora o sublime, ora 0 pitoresco, revelacio de uma visto estetizada da natureza, justamente numa época em que a paisagem natural real passava por profundas transformagdes com a Revolugao Indus- trial ¢ as inovagdes técnicas na agricultura e no transporte ferrovidrio. Assim, na grande produgao de arte topografica da Inglaterra da sc- gunda metade do século XVIII, enquanto alguns artistas cram chamados, como desenhistas oficiais de expedigdes, a produzir imagens que fossem registros visuais figis a realidade dos lugares, muitos artistas ¢ editores, por outro lado, trabalhavam para produzir ilustragdes de antiguidades, vistas pitorescas de propriedades rurais de gente nobre, jardins com caminhos sinuosos, templos e pontes sobre lagos, tudo dentro de uma linguagem que ia gradativamente se tornando 0 idioma da época nas artes visuais e cujos valores estéticos muito se aproximavam daqucles cultivados também pela poesia ¢ pela arquitetura paisagista, cheios de fantasia ¢ de nostalgia pelo passado, com seus planos segregados e distancias marcadas, cidades sem- pre a distancia c sem chaminés e fumaga, a recessao do espaco indicada por caminhos sinuosos € primeiros planos repletos de textura, numa atmosfera invariavelmente nostalgica e bucélica ” (fig. 3: ver no final do artigo). E nesse ©, Sobre esse amplo ¢ complexo relacionamento ver John Dixon Hunt, Gardens and the picturesque. Studies in the history of landscape architecture, Cambridge, The MIT Press, 1992; John Dixon Hunt & Peter Willis, The genius of te place. The english landscape garden 1620-1820, Cambridge, The MIT Press, 1988; Ronald Paulson, Emblem and expression, Londres, Thames and Hudson, 1975, especialmente capitulos I, “Visual and verbal structures”, e IT, “Alternative structures of meaning”. 109 Artigos desenvolvimento do gosto romintico a cidade sofria, em dois aspectos, al- guns deslocamentos na produgao de gravuras € de livros ilustrados com vistas: como objeto de interesse na representagio artistica da paisagem (as- sunto) e na prépria forma de ser expressa artisticamente. Dentre as principais publicagdes de topografia ilustrada na Inglater- ra desse perfodo — as trés tiltimas décadas do século XVIII— estao obras como as do editor Alexander Hogg, England display'd (1769), The complete english traveller (\TT\) e The modern universal british traveller (1779); a obra de Henry Boswell, Historical description of new and elegant picturesque views of the antiquities of England and Wales (1785); ea de G. A. Walpoole, New british traveller (1790). Conforme observa Russell, as gravuras nessas publicagdes ilustradas podem ser, na melhor das hipéteses, consideradas como indis- tinguiveis em relagdo aos lugares a que se referem, sendo que muitas delas foram usadas em mais de um volume, isto é, referindo-se a mais de um lugar,"® uma evidéncia de que, em muitos casos, 0 culto ao gosto poderia mesmo sobrepor-se A missao de documentar. O meio técnico mais freqiien- temente utilizado nessa época, que vai até o advento da litografia em esca- Ia comercial, por volta de 1820, era a gravura em cobre ¢ a reprodugao pelo processo da 4gua-tinta, esta tiltima uma técnica de reprodugao que muito se adequava & expresso da variedade da escala de valores tonais das com- posicdes aquareladas, entio bastante apreciadas pela sensibilidade roman- tica. ‘A cidade como tema na arte topografica do final do século XVIII € inicio do século XIX e como objeto de livros ilustrados com gravuras, em- bora ndo tendo sido totalmente ofuscada pelo interesse € pelo culto ao ce- nario da paisagem do campo, passou a dividir consideravelmente com a paisagem nfo urbana 0 intcresse de patronos € do piiblico consumidor de gravuras € livros ilustrados. Obras como a de Joseph Farington Views in cities ‘and towns in England and Wales (1790), eram langadas no mercado ao mes- mo tempo que publicagées como a de John Boydell, Collection of views in England and Wales (1790) c, do proprio Farington, Views and scenery on the river Thames (1794-96), estas duas recheadas de composig&es com forte apelo pastoral, Embora fossem muito admiradas as vistas de monumentos do passado classico na Itélia, como as vistas produzidas por Panini e Piranesi, as vistas de ruinas de castelos ¢ catedrais g6ticas, de mansdes no campo € 8, Ronald Russell, Guide to british topographical prints, Londres, David and Charles, 1979, p.33. HO Vistas Urbanas nos Albuns Iustrados por Viajantes Europeus do Séeulo XIX de parques e jardins tornaram-se, a partir de meados do século XVIII, 0 ilustra- maior interesse na arte topogrfica ¢ nos principais temas dos livros dos ingleses, para os quais muitos artistas eram comissionados. Na Franga, o culto a paisagem ¢ As antiguidades do pais em livros ilustrados iniciou-se um pouco mais tarde, no século XIX, com a publicagao da volumosa série Voyages pittoresques. Olivo de vistas na Inglaterra, com as caracteristicas que esse tipo de produgao cultural assumiu no século XVIII, era ainda um artigo caro e de luxo, mas a produgao de vistas de cidades e paisagens e sua publicacio em livros ilustrados caminhava para um formato cada vez menor, mais simples ¢ sem colorido (que nessa €época era feito 4 mao, prancha por prancha), re- fletindo 0 gosto cada vez mais popular por esse género de arte. Somente 0 artista topégrafo briténico John Britton, que foi também um importante editor de varias publicagées ilustradas de arte topografica, entre clas a Picturesque views of english cities (1826-7), escreveu resenhas de cerca de 150 livros sobre topografia c antiguidades para a revista inglesa Annual review, entre 1803 ¢ 1810, um importante indicador do crescente interesse do p blico pela arte topografica. A publicagao de livros de viagens ilustrados com vistas e paisagens, embora fosse sobretudo inglesa, atingia a um interesse e a um mercado consumidor que, de fato, estendia-se para bem além da Inglaterra. Outro importante editor inglés, John Boydel, por exemplo, comissionava traba- Ihos a artistas topégrafos visando, em sua maioria, a exportagao de livros ilustrados de vistas ¢ paisagens para a Europa continental. O pais que re~ presentava 0 maior interesse para a Inglaterra nesse comércio era a Franca, daf que o texto acompanhando muitas de suas publicagdes fosse apresen- tado em inglés € francés."* A obra Select views in Great Britain, publicada em partes entre 1784 ¢ 1792 €, mais tarde, em um tinico volume (1814), figura entre as mais conhecidas obras bilingiies da época." A Revolugio de 1789, porém, interrompeu esse comércio por um bom tempo, como também a circulagao de artistas topégrafos ingleses pela Franca. Na Alemanha, igualmente, havia uma demanda por livros ilustrados ¢ Albuns do género, mesmo antes dos 1800, conforme a familiaridade com a arte deixava progressivamente de se restringir aos cfrculos nobres € se 'Id., p. 53. "8 Id, ibid. Ut Artigos tornava cada vez mais uma pretensio de classe média."* Associagdes de arte (Kunstoereine), organizagdes que surgiram em grande niimero nao apenas na Alemanha mas em toda a Europa apés as guerras napoleOnicas, estimu- lavam a compra de arte ¢ a publicacao de livros ilustrados, revistas de arte calmanaques, nos quais as vistas de cidades eram um interesse, ao lado de outros tépicos.” Tornou-se comum, por exemplo, utilizar-se vistas dessas publicagées para a decoragao de paredes na cultura Biedermeier do século XIX. Essa demanda por livros ilustrados com reprodugdes a partir de de- senhos € pinturas por artistas amadores € profissionais, tanto desconheci- dos como de grande fama ¢ prestigio, ia formando uma nova modalidade de patronos, que até o século XVIII provinham exclusivamente do mundo cortesao ¢ de circulos nobres, tradicionalmente privilegiados também no desfrute da arte. A Revolucgao Industrial ¢ a classe média que ela criou fo- ram grandes responséveis por essa forma moderna de patronagem que, a0 invés de comissionar individualmente artistas para pintar, comprava traba- Ihos prontos, oferecidos na impessoalidade do mercado. Livros ilustrados Jo um bom exemplo desse desenvolvimento: consumidos em quantida- de, 0 patrocinio para sua produgio diluia-se em muitos e pequenos patronos, subscritores muitas vezes; tomava forma também, por meio da demanda do ptiblico expressa em dinheiro, um gosto coletivo, impessoal, a influen- ciara produgiio da arte segundo mecanismos diferentes dos que operavam na projegao do gosto do monarca ou do nobre de tempos anteriores. Livros ilustrados de viagens e seu publico O livro de vistas, como vimos, era uma forma de arte de paisagem reproduzida que, ao final do século XVIII, ja estava ha longo tempo esta- belecida na Europa. Nessa época — em que estava no auge o culto a pai gem, particularmente A paisagem natural, nao urbana, ¢ também se encon- trava em grande moda o gosto por antiguidades — popularizou-se na cul- tura européia um género de arte em livro, fusio do livro de vistas com livro de viagens, no que veio a ser conhecido como o livro ou o album ilustrado de viagens. Na forma impressa, a publicagio ilustrada com reprodugées de desenhos e de aquarelas de vistas por artistas viajantes ampliava 0 acesso ', Robin Lenman, “Painter, patronage and the art market in Germany 1850-1914", Past and present, 122 (maio/1989), Oxford, p. 110. 7 1d., p.110-11 W112 Vistas Urbanas nos Albuns Ilustrados por Viajantes Europeus do Século XIX a experiéncia do puiblico europeu a locais distantes. Seu alvo cra, pois, um ptiblico bem mais amplo do que aquele reduzido grupo de pessoas que podiam conhecer locais distantes por experiéncia prépria, viajando, ¢ que nao tinha acesso a portifélios de originais produzidos em viagens € reuni- dos por colecionadores amantes desse tipo de arte. Livros impressos de viagens pitorescas, como era comum serem de- signados, geralmente de grande formato e em edicdes muitas vezes luxuo- samente encadernadas em couro e decoradas a ouro, ofereciam ao leitor uma série de vistas dos locais visitados numa viagem, em seu préprio pais, em outros paises da Europa, ou em outros continentes, como a América, con- siderados pelo artista viajante dignos de serem retratados para um deleite que se supunha compartilhado com o ptiblico. Compreendendo reprodu- ges de paisagens, de arquitetura, de cenas de rua povoadas com tipos lo- cais em seus trajes tipicos c de monumentos, procuravam dar ao leitor, com 0 auxilio de descrig5es explicativas que costumavam acompanhar as ima- gens, a sensagao de estar vendo, sentado confortavelmente na poltrona de sua casa, a prépria paisagem retratada, como se 0 espectador fosse também, um viajante. Era o prentincio da viagem virtual, hoje tao familiar aos usué tios de CD rom ¢ da Internet. O gosto por livros de viagens tornou-se uma paixAo a partir da tiltima década do século XVIII na Inglaterra, quer na forma de relato de viagem, com uma narrativa continua eventualmente ilustrada, quer na forma de Album ilustrado, com uma nota introdut6ria sobre 0 conjunto das imagens c breves descrigdes para cada prancha. Nos anos de 1830, colecionar aquz relas ¢ lembrangas sentimentais em Albuns por amadores tornou-se um habito da moda no pais, marcando o surgimento de uma clientela inteira- mente nova para o mercado de desenhos ¢ pinturas em papel, assim como de reprodugdes — a mulher colecionadora."* Essa clientela estava longe de ser constituida, porém, por trabalhadores e grupos desfavorecidos da soci- edade, pois poucos dcles podiam, na primeira metade do século XIX, ler € entender até mesmo um jornal.”? Os livros ilustrados, que poderiam dis- "8. Scott Wicox, British watercolours. Drawings of the 18th and 19th centuries from the Yale Center for British Arc, New York, Hudson Hills Press, 1985, p.14. 8, Edward P. Thompsom, A formagdo da classe operdria inglesa, vOl. Il, Rio de Janeiro, Paz Terra, p.298. Segundo o autor, a maneira comum de leitura de noticias por trabalhadores nessa época era a leitura por alguém alfabetizado, em vor alta, nas ferrarias, barbearias ¢ tavernas. Uma boa parte das novidades era ainda divulgada pelos vendedores de cartazes ¢ pelos cantores de rus. u3 Artigos pensara capacidade de Icitura diante da preponderancia da imagem, tinham no preco um fator proibitive ao consumo pelos mais pobres.”” Nas primeiras décadas do século XIX, uma geragao de artistas ingle~ ses, como por exemplo John Skinner Prout (sobrinho do artista Samuel Prout), ganhava a vida cxecutando desenhos de cidades € paisagens no continente (Franga, Itélia, Alemanha), que eram depois reproduzidos ¢ reunidos em annuals — colegbes de paisagens relativamente baratas, que costumavam ser produzidas na década de 1830-40. Gragas 4 recente inven- iio da gravura em ago, um metal bem mais duro do que 0 tradicional co- bre, podiam ser obtidas ¢ vendidas a prego baixo milhares de impressées de annuals como, por exemplo, o Heath's picturesque annual. Bssa forma de publicagao possibilitava a ampliagao do interesse do publico pela paisagem para além da paisagem britanica, proporcionando também ocupagio € po- pularidade para um grande ntimero de artistas aquarelistas viajantes ¢ gra~ vadores. O comentario abaixo sobre esse interesse crescente pela paisagem longinqua revela muito sobre o gosto da €poca ¢ sua relago com os meios de reprodugao de imagens: Um novo tipo de arte topografica havia surgido, mais adequado ao gosto cosmopolitano da época. Estes [artistas] no se limitavam mais, como ha muito tempo atras, as “propriedades de geatlemen” e as “belezas” da Ingla- terra, mas retratavam cenas de terras estrangeiras mais Ou MEeNnos remotas... obras desse tipo, mais para serem exibidas sobre uma mesinha numa sala de estar do que para irem para a prateleira da biblioteca, multiplicavam-se incessantemente.*t Por toda a Europa expandia-se 0 mercado de arte em papel, gragas ao interesse crescente da classe média em utilizar reprodugdes de desenhos e aquarelas de vistas topogrificas na decorag%o das paredes de suas resi- déncias. Muitos livros de vistas receberam edigées bilingiies em Londres 2, Conforme Eric Hobsbawm, embora 0 progresso na educagao € no ensino fosse surpre- endente nas primeiras décadas do século XIX, o ntimero total de pessoas “instrufdas” con- tinuava pequeno diante do total da populagdo dos paises. A Gra-Bretanha, a Franga ¢ a Bél- gica tinham cerca de 40 a 50% de analfabetos na década de 1840, a situagio da alfabetiza- Go era ainda muito mais precéria entre os alemics, holandeses, escandinavos ¢ sufgos. Povos como os espanhéis e portugueses podiam mesmo ser considerades como analfabetos na primeira década do século XIX. Cf. Erie J. Hobsbawm, A era das revolugies. Europa 1789- 1848, Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1991, pp. 154-5. #, Comentirio de 1891 por J.L. Roget em A Aistory of the old “Water-Colour Society”, apud Michael Clarke, Tike tempting prospect. A social history of english watercolours, London, British Museums Publications, 1981, p. 68, 114 Vistas Urbanas nas Albuns Ilustrados por Viajantes Europeus do Sécula XIX ¢ Paris, pretendidos assim para os mercados inglés ¢ francés, e mesmo para um ptiblico europeu mais amplo que falava francés, como era moda no sé culo XIX. O interesse em colecionar imagens era tao grande que algumas vezes 0 texto explicativo era até mesmo dispensado, como no caso do al- bum ilustrado de William Gore Ouseley sobre a América do Sul (Views of South America), embora para os livros de vistas de terras distantes as expli- cagdes, mesmo que sumirias, fossem sempre apreciadas pois complemen- tavam a informago proporcionada pela ilustragao com algum dado a mais para satisfazer a curiosidade do puiblico. Como grande aumento do ntimero de viagens na era pés-napole6nica, a novidade ¢ 0 ineditismo converteram-se no alvo de muitos dos numero- sos artistas que buscavam atender ao gosto do priblico das décadas de 1820, 30 ¢ 40 na Inglaterra. A Espanha, pais relativamente proximo da Inglater- ra, mas que havia permanecido até entao ignorado pelos ingleses, passava agora a ser descoberto por viajantes com um olho no exético € outro na compensagio financeira que esperavam ter ao retornar com seus esbogos de paisagens andaluzas. O artista David Roberts, que viajou para a Espa- nha em 1832, afirmou: “Apesar da dificuldade dos mosquitos ¢ da quaren- tena da célera naquele pais, meu portifolio esta ficando rico — os assuntos so nao apenas bons mas muito novos em carater.. ne Livros ilustrados com aarte de viajantes a Asia e a Africa comegaram a ser publicados a partir de 1785 ¢ fizeram sucesso até 1860. J sobre a ‘América Latina, livros ilustrados com vistas ¢ tipos urbanos comegaram a ser publicados um pouco mais tarde, no século XIX. Sobre a Argentina muitos livros comegaram a ser publicados j4 na primeira década dos 1800, por ocasiao das invasdes inglesas de 1806 € 1807. O primeiro grande livro ilustrado com vistas urbanas da América, porém, foi o do viajante britanico Emeric Essex Vidal, Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Montevideo, publicado em Londres, em 1820. A publicagao desse tipo de livro ocorria sobretudo visando gratificar 0 gosto pela paisagem de uma sociedade cul- ta, a qual tornou o desfrute do cendrio fornecido pela paisagem a ocupagiio principal de sua sensibilidade ¢ que escolheu também formar ¢ conduzir seu gosto de acordo com conceitos sofisticados, emprestados da pincura, derivados da estética do pitoresco ¢ do sublime.” 2, Apud Michael Clarke, op. cit,, p. 68. 2 Sobre a estética do sublime e do pitoresco ver Valéria Salgueito de Souza, “Gosto, sen- sibilidade c culto a categorias estéticas na paisagem dos artistas viajantes”, in Gosto, sensibi- Lidade .., op. cit., vol. 1, cap. 5. HS Artigos A natureza era agora percebida como se fosse ela, a natureza, um ar- tista, e seus acidentes cram apreciados e cultivados como se fossem uma pintura, tudo isso sempre acompanhado de muitas convengées na organi- zacio do espago, no repertério de elementos das composigées e seu trata- mento formal, tipicamente linear, € no significado por clas veiculado, de modo que os “lugares-comuns” das composig6es paisagisticas eram facil- mente assimilados pelo ptiblico. Dentre esses lugares-comuns destaca-se a divisio tripartite do espago pictérico, convengo herdada da arte de pai- sagem do norte europeu, com suas distncias bem marcadas em planos — plano da frente, plano do meio, plano do fundo —, em cujo primeiro plano foram abordados os aspectos de singularidade ¢ localidade também de nos- sas paisagens, esquema figurativo que tao bem serviu ao sentido cénico da paisagem do viajante (fig. 4: ver no final do artigo). O sentido de beleza natural que se desenvolveu era fortemente in- fluenciado por um sentimento associacionista: ruinas decascando e monu- mentos antigos estimulavam o espectador para uma reflexio sobre o pas- sado e sobre o sentido de transitoriedade do tempo, enquanto as forgas da natureza selvagem, como ventos e tempestades, despertavam cultivadas sensagées de terror, tio ao gosto da estética do sublime. O gosto que se desenvolveu entre as pessoas cultas, longe de desaprovar a arquitetura ¢ os hAbitos exéticos de terras distantes, apreciava ativamente suas formas pré- prias, que costumavam ser qualificadas como “romAnticas ¢ pitorescas”.* O enquadramento da paisagem em dlbuns ilustrados pelo olhar romantico criou mesmo uma visualidade digerivel ¢ propria, que tornava consumiveis as mais diversas realidades topogrdficas da Inglaterra, da {ndia, da Patag6nia, de Cingapura e de que outro lugar fosse. O singular de cada lugar era sub- metido as convengoes figurativas dessa visualidade que funcionavam como se fossem filtros: satisfaziam a curiosidade do puiblico, sem contudo ferir- lhe a sensibilidade. Os livros de viagens ilustrados eram quase sempre em papel da me- Ihor qualidade, sendo os custos para produzi-los, em geral, pulverizados por um niimero de subscritores. Esses assinantes costumavam ser convidados pela imprensa local a integrarema lista de subscrig&o de uma dada edigao,* ocasiao na qual cram logo esclarecidos detalhes como, por exemplo, o niime- *, Mildred Archer & Ronald Lightbown, India observed. India as viewed by british artists 1760-1860, London, Victoria and Albert Museum, 1982, p. 80. Com frequéncia o titulo dos livros ilustrados compreendia a dupla qualificagdo de “romanticas ¢ pitorescas” vistas ... ct. 1d., p. 81 116 Vistas Urbanas nos Albuns Iustrados por Viajantes Europeus do Steulo XIX ro total de pranchas da obra ao final da publicagao, a técnica de reprodugio e de colorido das imagens, a qualidade do papel das pranchas e da capa, detalhes de decoragio de capa e lombada como, por exemplo, titulo em letras douradas, tamanho da pagina (félio imperial, félio grande, folio crown), existéncia ou nao de notas explicativas as imagens, além do que parece ter sido uma informagio fundamental para uma sociedade que apren- deu a amara ciéncia: o fato de os esbogos de base terem sido produzidos a partir do natural, com a presenga do artista é situ. Nessa ocasiaio ficavam também logo claros detalhes sobre a forma de pagamento, valor de cada parcela, no caso de publicaciio em assinaturas, isto €, em fasciculos, ¢ toda informago a mais que se fizesse necesséria. Para atrair um numero de subscritores que viabilizasse a edigo do livro minimizasse o risco do investimento até que ele chegasse ao puiblico, algu- mas providéncias eram tomadas para fazer o marketing da publicagao e se- duzir os investidores para o negécio. O artista David Roberts, por exem- plo, para promover a publicagao de sua famosa obra The Holy Land, Syria, Idumea, Arabia, Egypt and Nubia (1842-49), teve 72 de seus desenhos origi- nais exibidos ao péiblico em pontos de encontro de Londres.*” A edigio em partes, ou em nimeros, como costumava ser chamada, era também uma maneira de tornar a aquisicio menos custosa ao puiblico. Inicialmente a pagina da frente costumava receber a decoragao de uma vinheta sugestiva, como na célebre obra de Thomas ¢ William Daniel, Oriental scenery. Mais tarde, porém, em torno de 1820, quando a litografia tornou-se a técnica predominante de reprodugao de vistas em livros, uma pagina de titulo litografada, desenhada por um artista, em geral, abria o livro, como um fron- tispicio, tal como no atlas de ilustragdes acompanhando a obra de von Spix © von Martius sobre o Brasil, Reise nach Brasilien (Viagem pelo Brasil), assim como na obra do viajante inglés a0 México, John Phillips, Mexico illustrated. 2%, Os termos referem-se ao formato de um livro, de acordo com a nomenclatura especiali- zada. O formato usual dos livros ilustrados da época era o folio grande. O formato folio di respeito a livros impressos sobre folhas de papel dobradas uma tinica vez, cada folha inteira fazendo portanto duas folhas do livro, ou quatro paginas. O termo folio € tradicionalmente usado como um indicador do tamanho de um livro, usualmente de 30 cm de altura, mas que pode chegar até 2 50. em, dependendo do tamanho da folha de papel e da mancira como € dobrada. Torna-se necessirio, por isso, mais alguma informagao para uma indicagio pre- cisa de tamanho: imperial folio, large folio, crown folio, por exemplo. Cé. Leonard Montagne Harrod, The librarians’ glossary of terms used in librarianship and the book crafts and reference book, New York, Seminar Press, 1971. », Michael Clarke, The tempting prospect, op. cit., p.71 7 Artigos A partir dos anos de 1830, com a adogao predominante do processo de reprodugao artfstica por litografia, cuja matriz é em pedra desenhada com um giz de cera, mais barato do que o da 4gua-tinta e o da gravagio em li- nhas em chapa de ago, e diante da possibilidade de tiragens em maior nti- mero (podia-se chegar até o numero de trés mil boas c6pias litogrificas de um desenho com uma tinica matriz), ampliou-se cada vez mais 0 ptiblico desse género de livro, até entio reservado a um grupo muito restrito. Mui- tas vezes recebendo cuidadosa encadernagao em couro verde, vermelho ou preto, passou a ser uma prdtica comum na Inglaterra presentear € possuir livros de vistas, que costumavam ser dispostos sobre mesinhas em salas de estar, e que cram considerados éomo uma das mais adequadas diversées para damas ¢ gente jovem das camadas médias da sociedade com preten- sdes de ascensfo cultural.* A forma litografada tornava assim mais popular o costume de colecionar imagens, redefinindo o habito cultivado desde 0 século XVIII por ricos colecionadores de desenhos e aquarelas de montar originais com vistas e paisagens em um portiflio, como um 4lbum, para serem usufruidos na privacidade de suas bibliotecas” por um reduzido e seleto ntimero de pessoas de seu circulo. O répido crescimento de imagens impressas no século XIX devido ao avango técnico, significava que agora, por exemplo, também uma certa faixa da populagéio podia adquirir repro- dugées de desenhos ¢ aquarelas por artistas que haviam estado nesses lo- ainda que impossibilitada de viajar para a Grécia, para o Egito ou para scinacao para o ptiblico europeu cristao por cai Jerusalém, locais de grande fas suas associagdes biblicas. Essas condigdes de reproduzir desenhos e aquarelas em grande nui- mero € mais barato para um piiblico mais amplo, segundo as convengées figurativas de composi¢ao da paisagem romintica e os padrées de gosto ditados pela estética do sublime — um prazer por sensagdes de medo —e do pitoresco — um gosto pelo exético, pelo singular e por tudo que se afas- tasse dos canones da beleza classica—, retinem, enfim, uma série de pres- supostos que fundamentam a produgio dos primeiros registros visuais de nossas cidades. E nessa complexidade de renovadas possibilidades técni- cas € de séculos de tradigao no género, associados as novas tendéncias do 2. Mildred Archer & Ronald Lightbown, India observed, op. cit., p. 118. Observou 0 editor alemao Rudolf Ackermann, em Londres, em 1813: “A biblioteca tor nou-se, entre os circulos mais polidos, 0 local de diversio refinada em longas noites, tanto em suas moradias na cidade, como também durante sua residéncia no campo”. Apud Michael Clarke, op. cit., p. 125. us Vistas Urbanas nos Albuns Hustrados por Viajantes Europeus do Século XIX gosto, do mercado, de formas de sociabilidade ¢ habitos da sociedade eu- ropéia da primeira metade do século XIX, que a aparéncia de nossas cida- des € pela primeira vez plasmada artisticamente ¢ tornada conhecida do puiblico curopeu. Consideragées Finais ‘Ao debrugar-se sobre a produgio de vistas urbanas em Albuns ilus- trades, este trabalho focaliza uma produgao cultural que possui o duplo atributo de ser arte ¢ documento visual de cidades € cuja historicidade nos interessa aqui em especial, sobretudo porque acreditamos que, quanto melhor a compreensao que tivermos dessa historicidade, melhores serao as condigdes tanto de apreciarmos seus atributos artisticos como também de colhermos beneficios de suas possibilidades documentais para a histo- riografia de nossas cidades enquanto descris A historicidade da produgao de vistas em livros ilustrados e voltados para 0 mercado envolve, entre outras, questées de ordem especificamente artistica, como problemas de representagao do espago, de técnicas ilusio- nistas no tratamento da forma e da cor (perspectiva linear € aérea), de es- quemas figurativos (perfis, vistas panoramicas, panoramas, vistas parciais), entre outros recursos adotados pelos autores, ao longo do tempo, para re- solver artisticamente a questiio essencial do género: representar numa su- perficie bidimensional a tridimensionalidade da paisagem real. O desen- (0 visual de uma época yolvimento de solugdes na abordagem visual da paisagem desde 0 século XVI consticui um legado e uma base sélida, com séculos de tradigao, a par- tir da qual desenvolveu-se a arte de retratar a fisionomia das nossas cidades pelos viajantes europeus. Seu trabalho focalizando a tematica da paisagem urbana impressa em livros ilustrados assenta-se, pois, sobre uma pritica de séculos, conforme acreditamos ter evidenciado com os muitos exemplos de publicagdes que tivemos a oportunidade de citar, consolidada quanto aos recursos composicionais no ambito estritamente artistico. Nessa producio de vistas das nossas cidades o novo seria a paisagem, o especifico e o singular que nela habitavam, mas nunca os recursos artisti- cos utilizados para descrevé-la por apressados viajantes em expedigoes € missées que integravam. Eram justamente as formulas artfsticas consagra- das que viabilizavam a abordagem visual do desconhecido — os lugares exdticos para os europeus. ug Artigos Como arte reproduzida em livros ilustrados destinados ao mercado, a historicidade da produgao de vistas urbanas envolve outra ordem de ques- tes, relativa as técnicas de reprodugio de imagens propriamente. Vimos que a disponibitidade de meios de reproducdo e de multiplicagao de dese- nhos € esbogos coloridos variou desde que essa necessidade especifica se colocou, no século XVI, até meados do século XIX. Esse esforgo em res- ponder, em termos técnicos, a moderna necessidade social de consumir imagens de lugares, esforco de séculos de tentativas erros, de experién- cias € solucdes, constitui-se em outro legado aos viajantes do século XIX em suas tomadas de nossas cidades, fornecendo-lhes possibilidades ¢ limi- tes. Sem diivida, as aquisigoes técnicas para a reprodugio de originais, trans- mitidas por geragées e geragdes de artistas e gravadores, acabavam por con- dicionar, também, o resultado final das imagens que produziram os viajan- tes de nossas cidades, pois delas dependiam as solugdes técnicas a proble- mas artfsticos na descrigiio visual como, por exemplo, o da valorizagao to- nal, das texturas, do brilho, do colorido das cépias, entre outros. Praticas sociais varias, sucedendo-se com o passar do tempo ¢ rela~ cionadas & produgo e ao consumo desse género de arte tdo ligado ao mer- cado foram, por sua vez, tornando mais denso o tecido de influéncias trans- mitidas na maneira de ver e de retratar a cidade, até os viajantes do século XIX a América Latina, cujo puiblico visado pelos buns ilustrados era ex- clusivamente europeu e, mais especificamente, formado por pessoas das classes mais altas ¢ da emergente classe média dos principais pélos cultu- rais — Londres e Paris. Essa circunstancia, associada aos aspectos artisti cos € técnicos destacados acima, aponta para algumas diregdes que a pes- quisa da arte de vistas urbanas dos viajantes europeus ainda pode explorar. Dentre essas diregdes queremos destacar, primeiramente, 0 papel desempenhado por esse gosto do ptiblico europeu na abordagem pict6rica de nossas cidades, considerando que © puiblico consumidor de albuns ilus- trados de vistas indicava ao artista ¢ ao gravador de esbogos originais cen- suras, preferéncias € ansiedades de sua época no ambito da produgdo da imagem. Nao se tratava mais, na primeira metade do século XIX, de um seleto € aristocritico ptiblico que havia formado seu gosto no desfrute da pintura dos paradigmaticos paisagistas do século XVII, Claude Lorrain, Gaspar Dughet e Salvator Rosa, € na leitura de poemas topograficos por ‘Thomson e Dyer. Tratava-se agora de um ptiblico progressivamente mais amplo, diversificado ¢ heterogéneo que, entrando no mercado em ascen- 120 Vistas Urbanas nos Albuns Hustrados por Viajantes Europeus do Século XIX (0 de livros ilustrados, exercia uma decisiva influéncia sobre a arte de pai- sagem reproduzida em papel, inclusive a arte dos viajantes. Ao projetarem no mercado seu gosto, sua sensibilidade, suas preferéncias ¢ recusas, na forma final de sua demanda expressa por seu poder de compra, forneciam aos artistas mais uma vez parametros para serem incorporados em sua lin- guagem. Esses parametros acabavam por retornar ao ptiblico na forma do discurso que o ptiblico queria ouvir, sendo esse dado uma garantia de iabilizagao do investimento na edigdo do livro ilustrado, projetado na ima- gem € renovado pela sensibilidade artistica em busca de aprovagio, isto é, compra, por consumidores. Uma aprovagio que garantisse, afinal de con- tas, a finalizagao dé ciclo de produgao e consumo dessa arte essencialmen- te moderna e urbana. Esse dado, nada secundario, mas, a nosso ver, fundamental na pro- dugao artistica destinada ao mercado, sem diivida jogou papel fundamen- tal na veracidade topografica das vistas produzidas pelos viajantes europeus, relativizando-lhes 0 sentido documental, de onde provém 0 carater contra~ ditrio dessa produgao cultural gerada numa sociedade otimista ¢ que acre- ditava na ciéncia e no progresso, mas que, por outro lado, necessitava do sonho e da fantasia tanto para ver 0 outro como para ver a si prépria. Isso conta, certamente, para que sejam tao semelhantes as paisagens dos livros ilustrados produzidos entre o final do século XVIII ea primeira metade do século XIX, qualquer que seja a regiao do globo terrestre ¢ 0 motivo da imagem: a diversidade da paisagem deveria ser “ajustada”, homogencizada numa linguagem assimildvel por um piiblico ao qual se destinavam os li vros ilustrados com vistas de lugares. Nao eraa diversidade da paisagem, mas o tipo de piiblico a quem ela se dirigia, que terminaria por determinar seu aspecto final. Daf a ne dade de reflexao e de mais pesquisa sobre a densidade histérica, quer no nivel técnico-artistico, quer no plano das demandas estético-figurativas do ptiblico consumidor europeu, que permeia a produgao dos retratos de nos- sas cidades executados pelos artistas viajantes europeus na primeira déca- da do século XTX, na busca de maiores e melhores possibilidades interpre- tativas desses registros visuais tio importantes para nés, tanto como pro- dugio artistica em si, quanto como documentos visuais para a historiografia de nossas cidades. six (Recebido para publicagto em novembro de 1996) 121 Figura 1: NIJMEGEN in Braun und Hogenberg, Civitates orbis terrarum, vol. II, p. 29 Figura 2: JAN VERMEER, “The art of painting” (deralhe). Kunsthistorisches Museum, Viena. 122 Figura 3: JOHN BRITON, “View of the city of New York”, in Picturesque views of the English Cities. London, 1828. Figura 4: EMERIC ESSEXVIDAL, “General view of Buenos Ayres from the Plaza of Toros”, in Picturesques Ilustrations. London, 1820. 123

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