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A
Divaldo P.F. Júnior Física e a Matemática possuem surpresa, nenhum deles conseguiu
Colégio Classe, Goiânia, GO uma forte relação de interdis- chegar à resposta certa, o mesmo
e-mail: portilho_jr@yahoo.com.br ciplinaridade em seus conteú- ocorrendo, posteriormente, com al-
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ dos, principalmente no Ensino Médio. guns colegas nossos, professores de
Fábio M.S. Lima Isso fica claro para o aluno desde o Física de outras escolas. Após apresen-
Instituto de Física, início, quando ele se defronta com os tar a resolução correta do problema e
Universidade de Brasília primeiros problemas de cinemática, conversar com os alunos, constata-
e-mail: fabio@fis.unb.br
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ tendo que calcular, tipicamente, mos que isto se deu por falta de conhe-
espaços, velocidades e acelerações, o cimento de um pré-requisito mate-
que requer conhecimentos matemá- mático que, de fato, raramente tem
ticos prévios, relacionados às funções sido ensinado nas aulas de Matemá-
de 1° e 2° grau e seus respectivos grá- tica: as frações contínuas.
ficos. Em seguida, no estudo da dinâ- O problema em questão é um
mica, o conceito de vetor e as noções exercício de eletricidade envolvendo
básicas de trigonometria (principal- uma associação mista de resistores
mente no cálculo de projeções) serão idênticos, cada um com resistência R,
fundamentais para um bom apren- conforme ilustrado na Fig. 1. As reti-
dizado das leis de Newton. Na verda- cências horizontais indicam que o
de, essa relação interdisciplinar será número de sub-malhas quadradas
mantida ao longo de todo o Ensino (malhas menores envolvendo quatro
Médio, de forma que cada novo tópico resistores, um em cada lado do qua-
de Física vai, em geral, requerer o drado) é muito grande, podendo ser
aprendizado de novos pré-requisitos considerado como infinito. O exercício
matemáticos por parte do aluno. consiste em determinar a resistência
Dessa forma, fica claro que a ausência equivalente entre os terminais do
de alguns temas no currículo de circuito (à esquerda da Fig. 1).
Matemática pode prejudicar o apren- Antes de resolvê-lo, faremos uma
dizado dos tópicos de Física a eles rela- breve introdução às frações contínuas,
cionados. Há casos, inclusive, em que uma das mais importantes ferramen-
O tema frações contínuas tem recebido pouca o não conhecimento de determinados tas em Análise Numérica, Teoria dos
atenção por parte dos professores de Matemá- temas impossibilita os alunos de resol- Números e Matemática Computacio-
tica do Ensino Médio, sendo que alguns nem ver problemas correlatos. Neste texto, nal [1]. Isso porque, apesar de ser con-
sequer tocam neste assunto em suas aulas. Em vamos relatar um destes casos, o qual ceitualmente simples, esse assunto
conseqüência, a grande maioria dos alunos não
consegue resolver problemas usando este im- ocorreu recentemente conosco ao não tem recebido o devido destaque
portante “pré-requisito” matemático. Neste propormos um problema de eletrici- nos livros-texto usualmente adotados
artigo, apresentamos um problema de eletrici- dade aos nossos alunos. Para nossa no Ensino Médio.
dade que foi considerado impossível pelos nos-
sos alunos, e mesmo por alguns professores
colegas nossos. Após uma breve introdução às
frações contínuas, mostraremos como elas po-
dem ser usadas para representar números
irracionais, tipo , com r e s sendo nú-
meros naturais. Usando a representação em
frações contínuas desses irracionais, o problema
proposto é, então, resolvido de forma simples Figura 1. Associação mista de resistores. Observe que o circuito é formado por um
e criativa. número muito grande de sub-malhas quadradas.

26 Usando frações contínuas em eletricidade Física na Escola, v. 7, n. 1, 2006


Comecemos por verificar como sentados em frações contínuas, isto o que implica que . Desta
podemos usar uma fração contínua é, a fração contínua será do tipo [a0; forma, 2 < y < 3.
para representar um número racio- a1, a2,...], conforme mostrado por
nal. Por definição, número racional é Moreira [2]. ii) Podemos escrever y como ,
todo e qualquer número que pode ser Estamos particularmente interes-
com z > 1, logo , o que
escrito como uma razão p/q, onde p é sados em obter a fração contínua
um inteiro p e q é um natural (q > 0). equivalente a um irracional do tipo
implica em z ser igual a , que é
Para obter a representação em fração , com r e s naturais e s ≠ m2
contínua de um tal número, basta que (m ∈ ù), assim como em obter o irra- o v do passo i), acima.
se façam aplicações sucessivas do cional a partir da sua represen- Note que este processo torna-se
algoritmo de Euclides para a divisão tação em fração contínua infinita. cíclico, indo do passo i) ao ii) e do ii)
de inteiros. Assim, fazemos p =a0q + Para tal, comecemos com uma ta- ao i), repetidamente. Isto fornece:
r 0 , com r 0 < q, sendo únicos os refa mais simples, qual seja obter a fra-
inteiros a0 e r0. Logo, ção contínua equivalente a para o
caso em que n e um número natural
. (n > 0) porém n ≠ m2 (m ∈ ù), ou seja,
um número irracional quadrático.
Conforme discutido por Carneiro [3],
Usando o mesmo raciocínio para isso pode ser feito seguindo-se um ,
a fração q/r0, teremos um único par algoritmo bastante simples. Tomemos
de inteiros a1 e r1 tais que q = a1r0 + como exemplo o número . Observe
r1, com r1 < r0 < q, o que nos leva a que 3 pertence ao intervalo aberto (1,
4), cujos extremos são quadrados per-
. Logo, ou seja, = [1; 1, 2, 1, 2,…], a qual
feitos. Assim, 12 < < 22 e, con-
seqüentemente, 1 < < 2. Portan- é uma fração contínua infinita. Note
. que ela é também periódica, pois os
to, pode ser escrito na forma 1 + u,
. onde u é algum número irracional elementos (com exceção de a0) apare-
positivo e menor que 1. Ou seja: cem de forma repetida (neste exemplo,
i) Existe um número v > 1 tal que dois a dois). De fato, pode-se mostrar
Usando o mesmo tratamento para a
que todo irracional quadrático possui
fração r0/r1, e assim sucessivamente,
. Logo , o que nos representação em fração contínua in-
teremos:
finita, porém periódica [1]. Vejamos
permite acrescentar que v < 2. Usan-
. do este fato, podemos escrevê-lo como como esta seqüência converge para
analisando os valores numéricos dos
, com y > 1. Assim, , quocientes parciais (também chama-
dos de convergentes), na Tabela 1. No-

Tabela 1.
Elementos somados Quocientes parciais Valor numérico
Isso mostra que todo número ra- 1 1 1
cional possui uma representação em
fração contínua que lhe é equivalente. 2 2
Os números ai, com i = 0, 1, ..., n,
são chamados de elementos da fra- 3
ção contínua, os quais podem ser or-
ganizados na forma [a0; a1, a2, ..., an]
para representar a fração contínua na,
assim chamada, notação simplifi- 4
cada. As propriedades dos números
racionais permitem mostrar que todo
número racional possui uma expan-
são em fração contínua com um
número finito de elementos (ou se- 5
ja, um número finito de somas e divi-
sões), como pode ser visto em Moreira . . .
[2]. Por outro lado, os números irra- . . .
cionais requerem um número infini- . . .
to de elementos para serem repre- ∞ [1; 1, 2, 1, 2, 1, 2,...] 1,73205080...

Física na Escola, v. 7, n. 1, 2006 Usando frações contínuas em eletricidade 27


te que os resultados se aproximam do Note que as frações obtidas na co- Novamente, podemos fazer Fn-2 =
valor exato alternadamente por falta luna da direita são exatamente as ra- Fn-3 + Fn-4 e gerar mais um elemento
e por excesso, comportamento este zões Fn/Fn-1, n ≥ 2, entre dois números da fração contínua, e assim sucessi-
característico das frações contínuas consecutivos da “seqüência de Fibo- vamente, o que nos leva a:
(ver demonstração na seção 10 da nacci”, a qual recebeu especial atenção
por parte da Dona Fifi [5]. Lembremos .
Ref. [1] e na Ref. [4]).
Embora a convergência não seja que essa seqüência é definida de forma
tão rápida quanto a fornecida por ou- recursiva, tomando-se F1 = F2 = 1 e
tros métodos numéricos mais com- Fn = Fn-1 + Fn-2, œ n > 2. Note que a
plexos, o algoritmo é bem simples e convergência é lenta, fato já observado
sempre fornece uma representação pe- por Dona Fifi quando ela afirma que
“talvez o número Φ seja o mais irra- Tomando o limite n → ∞ para a razão
riódica para quando esta raiz não
cional dos números irracionais” [5],
é exata. Pode-se mostrar, inclusive, , temos:
referindo-se justamente à lentidão
que, quando n for do tipo m2 + 1 ou
com que os quocientes parciais se
m2 - 1 (m ∈ ù), a representação em
aproximam de Φ, cujo valor exato
fração contínua de será e com dez casas decimais é dado na últi-
, respectivamente [3]. ma linha da Tabela 2. Usando a fór-
Vejamos, agora, como obter o nú- mula recursiva para a seqüência de
mero irracional , com r e s racio- Fibonacci, temos:
nais, correspondente a uma dada fra- ,
ção contínua periódica. Tomemos co-
.
mo exemplo um caso interessante, de-
vido a aspectos de convergência, que é e portanto, .
o da fração contínua que representa o
número irracional Φ (proporção áu- Como Fn-1 = Fn-2 + Fn-3, então:
rea), o qual foi discutido em detalhes
em um artigo recente da Física na Es- .
Portanto, , ou, equivalen-
cola [5]. Observe, na Tabela 2, os valores
2
numéricos dos quocientes parciais. temente, x - x - 1 = 0. Esta equação
do 2° grau tem duas raízes reais:
Tabela 2.
. Como x > 0, pois ,œn≥
Elementos somados Quocientes parciais Valor numérico
2, então podemos desprezar a raiz
1 1 1
negativa, restando . Esta
2 2
solução também pode ser escrita

3 como , forma em que ficam


evidentes os valores de r e s, os quais
desejávamos obter.
4 Vejamos, agora, como podemos
usar as frações contínuas para resol-
ver o problema proposto no início des-
te artigo. Lembremos que a associação
em série de duas resistências R1 e R2
5 leva a uma resistência equivalente
Rs = R1 + R2, ao passo que a associa-
ção em paralelo leva a uma resistência
. . .
. . . equivalente Rp dada por ,
. . .
10 [1; 1, 1, 1, 1, 1, 1, 1, 1, 1] ou seja, .
. . .
. . . Montemos o circuito da Fig. 1
. . . gradativamente. Chamaremos de Rn
∞ [1; 1, 1, 1, 1, 1, 1, ...] 1,6180339887... a resistência equivalente do circuito

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apresentado no n-ésimo passo. Assim: n-ésimo passo:
1° passo: Observando o padrão recursivo
dos passos anteriores, temos:
.

Chamando de x o valor da resis-


tência equivalente do circuito quando
R1 = R + R + R = 3R. n tende ao infinito, temos que:
2° passo:

3° passo:

logo , o que nos leva a

x2 - 2Rx - 2R2 = 0, que é uma equação


do 2° grau com duas raízes reais. São
elas . Obviamente, x não
pode ser negativo, o que nos obriga a
, escolher como solução.
ou seja, . Esta é a resistência equivalente deseja-
da. Por fim, para escrever esta solução
na forma de uma fração contínua,
basta usar o resultado que obtivemos
4° passo: para no início deste artigo, de modo
que , o que nos
permite escrever:
.

Referências
[1] A. Ya. Khinchin, Continued Fractions
(Dover Science, New York, 1997).
, ou seja, [2] C.G. Moreira, Eureka! 3 , 43 (1998).
[3] J.P.Q. Carneiro, Revista do Professor
de Matemática 34 34, 36 (1997).
[4] N. Beskin, Frações Contínuas (Ed.
. Unijuí, Ijuí, 2001).
[5] M.E.G. Alencar (Dona Fifi), Física na
Escola 5 (2), 4 (2004).

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