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Falacias *O coragao tem raz6es que a propria razdo desconhece' - Pascal As personagens e suas caracteristicas: Pedro: adolescente astuto, intelectual, perspicaz. Nele, raz8o predomina sobre a emogo. Possui fortes “rez6es" para namorar Vera, uma vez que a emogéo, por si s6, nao o levaria a nada, Joao: jovem alegre, agradavel, mas de cabeca vazia; andava sempre junto de Vera, dando a entender um possivel namoro, Vera: uma gatinha de 16 anos, sempre na moda, € alegre. Na hora do recreio, no patio do colegio, Pedro aproxima-se de Joao pergunta: — Por que voce esta triste, Jodo? Esta doente? — No, cara, € que nao tenho uma moto. Ja pensou quantas garotas eu conquistaria. com uma 250 cilindradas? — Nenhuma, amigo, nenhuma do porte estético de Vera. Se vocé tivesse uma moto, s6 conquistaria “patricinhas” ou “peruas", pois as pessoas atraem pelo ue s&0 e no pelo que tem — respondeu Pedro. — Eu faria qualquer coisa para conseguir unia moto. Quaiquer coisa! Pedro sabia que Jodo e Vera eram muito chegados e, Por isso, perguntou: — Jodo, voce namora a Vera? — Acho que ela € legal, mas n&o sei se isso poderia ‘ser considerado um namoro. Por qué? Passado 0 més de férias, julho, ambos retomam ao colégio e continuaram a conversa: — JA conseguiu a moto, Joao? — Nao, Pedro, n8o tenho dinheiro para compré-ta, — Pois eu tenho uma moto. Meu irmao mudou-se para ‘0s Estados Unidos e deixou-a para mim. Como eu nao gosto de moto, — Mas que legal, cara! Quando posso ir buscé-la? — Hoje mesmo, se quiser. Mas, para ficar com ela, tera que me dar suas colegdes de livros e revistas. — Fechado, cara. Eu ndo leio mesmo. — Mas ha uma condigéo: néo me impega de tentar ‘conquistar a Vera —Fechadissimo, imma! Pedro, ajudado por Jogo, marca um encontro com Vera na quadra de peteca do colégio. Fica decepcionado ‘com a ignoréncia de Vera e decide ensinar-Ihe logica, ‘No encontro seguinte, Vera pergunta a Pedro: — Sobre 0 que conversaremos? — Légica. Logica ¢ a ciéncia do pensamento. Para pensar corretamente, devemos antes considerar alguns. erros comuns de raciocinio chamados sofismas ou faldcias. Primeiro, vamos examinar o sofisma chamado generalizagéo néo-qualificada. Por exemplo: ‘leite & bom para a sade. Por isso todos devem tomar fete” Eu concordo — disse ela, séria. — Acho que leite 6timo para todo mundo. — Vera, esse argumento € um sofisma. Quer ver? Se voce tivesse alergia a leite, ele seria um veneno para a sua sade. E so muitas as pessoas que tém alergia a leite. Por isso, 0 correto seria dizer. "leite geralmente bom para a saiide’. Entendeu? —Nao. Mas continue falando, — © préximo sofisma 6 chamado generalizagso apressada. Preste atengdo: “vocé ndo sabe falar grego. Eu no sei falar grego. Jodo néo sabe falar grego. Entéo, devo concluir que ninguém do colégio sabe falar grego" —"E mesmo? — perguntou Vera, Ninguern? — Este € outro sofisma, A generalizacao foi feita de maneira muito apressada. A conclusdo se baseou em exemplos insuficientes, — Ei, vocé conhece outros sofismas? E mais engragado do que dangar! — Ber, entéo escute um sofisma chamado ignorancia d “Alexandre viu um gato preto antes de escorregar. Logo, ele escorregou porque viu um gato preto” — Eu conhego um caso assim — disse ela — Bemadete viu um gato preto e logo depois 0 namorado dela teve um acidente — Mas Vera, esse também é um sofisma. Gatos n&o dao azar. Alexandre néo escorregou_simplesmente Porque viu um gato preto. Se vocé culpar o gato, sera acusada de ignorancia de causa, = Nunca mais fare isso, zangado? — Nao, no fiquel — Entdo fale mais sobre os sofismas. — Certo. Vamos tentar as premissas contraditérias, — Sim, vamos. Deus @ capaz de fazer qualquer coisa, pode criar uma pedra 40 pesada que Ele proprio nao consiga carregar?” — Claro! — Ela respondeu prontamente, — Mas, se ele pode fazer qualquer coisa, também pode levantar a pedra, — E mesmo! Bem, ento acho que ele ndo pode fazer a pedra, —Mas Ele pode fazer tudo? Ela balangou a cabeca — Eu estou toda confusa! — Claro que esta. Sabe, quando uma das premissas de_um argumento contradiz @ outra, no pode haver argumento, Pedro consultou 0 reldgio e disse que era melhor parar por ali. Recomegaram no dia seguinte. — Hoje, nosso primeiro sofisma chama-se por misericordia. Ouga: "um homem se candidatou a um ‘emprego. Quando 0 patrao perguntou sobre as suas qualificagées, ele respondeu que tinha esposa e seis filhos, que a mulher era aleijada, as criangas néo tinham ‘0 que comer, nenhuma roupa para vestir, nenhuma cama, nenhum cobertor e © inverno estava chegando” Uma lagrima rolou pelo rosto de Vera. = Oh, isso ¢ horrivell — Sim, € horrivel — concordou Pedro — mas no é argumento. O homem apelou para a misericérdia e a Piedade do patréo. Usou o sofisma por misericérdia Entendeu? = Voce tem um leno? — Choramingou ela. — Agora vamos discutir falsa analogia. Por exemplo: ‘deveria ser permitido aos estudantes consultar livros durante as provas. Afinal de contas, cirurgiées tem raios X para guié-los durante as operacées; carpinteiros surpresa. — Prometo. Voc ficou usam plantas quando vao construir casas. Entdo, porque os estudantes nao podem consultar livros?” — Puxa, essa é a idéia mais genial que ouvi nos lltimos anos! — Vera, 0 argumento esté errado. Médicos e carpinteiros n&o esto fazendo provas para saber quanto aprenderam, mas os estudantes esto, As situagSes so completamente diferentes, por isso 0 ‘argumento no tem valor. — Eu ainda acho que é uma boa ideia. — Quer conhecer 0 sofisma chamado hipétese contraria ao fato? — Isso s0a delicioso! — Esoute: “se madame Curie nao tivesse deixado uma chapa fotogréfica numa gaveta com um pedaco de uramita, © mundo hoje néo conheceria nada sobre 0 radio” — Claro! Voce viu que a televiséo sobre isso? Foi Inorivell — Se voce esquecesse a televiséo por um momento, eu mostraria que essa afirmagao € um sofisma, Talvez madame Curie ndo tivesse feito sua descoberta, Talvez muita coisa pudesse ter acontecido. O certo, porém, & que ndo se pode partir de uma hipétese que nao verdadeira e dai querer que ela sustente conclusdes. Pedro, ja sem esperancas de que Vera pudesse pensar logicamente, resolveu dar-Ihe a ultima chance: — 0 préximo sofisma chama-se envenenando 0 pogo - disse, com ar de frustrado. — Que engragadinho? — "Dols homens estéo prestes a iniciar um debate. O primeiro levanta-se e diz: — meu adversério € um grande mentiroso. Nao se pode acreditar no que ele diz..." Agora pense, pelo amor de Deus. Pense firmemente. O que esta errado? — Nao ¢ justo. Quem vai acreditar no segundo homem se 0 primeiro 0 chama de mentiroso antes mesmo que ele comece a falar? — Certo! — gritou Pedro, vibrando de alegria — 100% certo! Nao é justo. © primeiro homem “envenenou o ogo" antes que alguém pudesse beber a agua Vera, estou orguihoso de voce! = Oh, obrigada! — Agora, vejamios a peticao de principio. Por exemple: *O cigarro prejudica a saéde porque faz mal ao organism —E claro que a afirmativa € infantil, E como se dissesse: “prejudica porque prejudica’. Nao explica nada — Vera, vocé € um génio. Esse sofisma toma como verdade demonstrada justamente aquilo que ja esta em discusséo. Veja, minha querida, as coisas no s&o to dificeis. Tudo 0 que vocé deve fazer é se concentrar, pensar, examinar, avaliar. Bem, varios rever tudo que aprendemos, - Esta bem, Cinco dias depois, Vera sabia tudo sobre légica. Pedro estava orgulhoso, pois ele, @ s6 ele, ensinara-a pensar corretamente. Agora sim, ela era digna de seu amor. ‘Assim, ele decidiu revelar seus sentimentos. — Vera, hoje n8o vamos mais conversar sobre sofismas. Oh, que penal — Minha querida, nés j& passamos cinco dias juntos. Esta claro que estamos bem entrosados. — "Generalizagéo apressada’ — ela disse — Oh, desculpe! jeneralizagao apressada’ — repstiu ela. — Como voce pode dizer que estamos bem entrosados baseados apenas em cinco encontros? — Minha querida — falou Pedro, acariciando-the a mao. — Cinco encontros so suficientes. Afinal de contas, voce nao precisa comer o bolo para saber se ele € bom, — ‘Falsa analogia’ — disparou ela — Néo sou bolo, sou uma moga. Ai, Pedro resolveu mudar de tatica, — Vera, eu te amo. Vocé 6 0 mundo para mim. Por favor, meu amor, diga que vai me namorar firme. Porque, do contrario, minha vida néo tera sentido. Eu definharei. Vou me recusar a comer. — "Por misericérdia’ — ela acusou. — Bem, Vera — disse Pedro, forgando um sorriso — voo8 aprendeu mesmo os sofismas. —E, aprendi. —E quem 0s ensinou? Voce — Esta certo. Entdo, me deve alguma coisa, nao deve? Se eu no a procurasse, voc8 nunca teria aprendido nada sobre sofismas, — "Hipétese contratia a0 fato”. — Vera, vocé no deve tomar tudo ao pé da letral Sabe que as coisas que aprendeu na escola no tém nada a ver com a vida — "Generalizacéo nao-qualificada’. Pedro perdeu a paciéncia, — Escute, vocé vai ou nao ser minha namorada? — Nao vou. —Por que nao? — Porque, esta manha prometi a Jodo que seria a namorada dele. — Aquele rato! — gritou Pedro, chutando as flores do Jardim. — Vocé nao pode namorar esse cara, Vera. E ‘um mentiroso. Um chato. Um rato, — “Envenenando 0 pogo” — disse Vera — e pare de gritar. Acho que gritar também € um sofisma, Com um tremendo esforgo, Pedro baixou a voz, controlou-se e disse: — Esta bem. Vamos analisar esse caso logicamente. Como voce poderia escolher 0 Joao? Olhe para mim: um aluno brihante, um tremendo intelectual, bonito, um, cara com 0 futuro garantido. Othe para 0 Joao: um cara-de-pau vazio, um vagabundo. Pode me dar uma azo légica para ficar com ele? — Claro que posso. Ele tem uma moto — respondeu Vera, correndo para montar na garupa da motocicleta de Jogo, Pedro, com profunda tristeza, gritou com raiva para quem pudesse ouvir: =O amor é um sofisma porque amar é sofismar! — "Petig&o de principio" — berrou Vera, agarrada & cintura de Joao, na moto que arrancava velozmente. Texto adaptado do original de Mcix Shuhnan. “O amor 6 uma falacia", in As calcinhas cor de rosa do capitéo e outros contos.»=—humoristicos, © p.——62-90.

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