You are on page 1of 16
00g CONTRIBUICOES DE HANNAH ARENDT E HABERMAS PARAA TEORIA DEMOCRATICA CONTEMPORANEA Marjorie C. Marona Douioranda em Ciéncia Plitia pela UFMG. Mestra em Filosofia do Direito Titular da cadera Teoria do Estado na Escola Sapetioe ‘Dom Helder Camara Resumo: Considerando que Hannah ARENDT antecipa uma série de con cepgdes que vio aparecer em paradigmas contemporaneos da Ciéncia Po- Iitica, promove-se um resgate do conceito de poder por ela reconstrufdo ~ em oposigio a WEBER — e dos consequentes debates acerca da politica e da distingao entre piblico e privado, que vio ser recolhidos por HABERMAS na construgio de seu conjunto te6rico, a partir do qual é possivel repensar parametros da democracia, seus participantes, instituigdes processos, agenda e campo de ago, para além do modelo fomecido pelas tradicionais teorias agregativas. Palavras-chave: Democracia, Deliberagio. Poder. Arendt, Weber. Habermas. CONTRIBUCIONES DE HANNA ARENDT Y HABERMAS PARA LA TEORIA DEMOCRATICA CONTEMPORANEA Resumen: Considerando que Hanna ARENDT anticipa una serie de conceptos que van a aparecer en modelos contemporineos de la Ciencia Politica, se fomenta un rescate del concepto del poder por ella reconstruido ~ en oposicién a WEBER ~ y de los consecuentes debates acerca de la politica y de la diferencia entre piiblico y privado, que van a ser recogidos por HABERMAS en la construceién de su conjun- to te6rico, a partir del cual es posible repensar los pardmetros de la democracia, sus participantes, instituciones, procesos, agenda y cam- po de accién para mas allé del modelo dado por las tradicionales conjuntos de teorias. Palabras-lave: Democracia. Deliberacién. Poder. Arendt. Weber Habermas. ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao a Introdugao presente texto tem por objetivo apresentar os principais desen- volvimentos da teoria democritica, a partir de HABERMAS, como o titulo anunci Para tanto, parte-se de uma breve excursio sobre o recente res- gate do liberalismo e do tratamento dado por RAWLS a questdes basilares dessa matriz te6rica, que permitiram um novo conjunto de debates sobre as principais questées que estruturam a teoria democrética contemporiinea Em seguida, considerando que ARENDT antecipa uma série de concepgdes que vio aparecer em paradigmas contemporaneos da Ciéncia Politica, promove-se um resgate do conceito de poder por ela reconstruido — em oposigtio a WEBER ~ e dos consequentes debates acerca da politica © da distingao entre ptiblico e privado, que vao ser recolhidos por HABERMAS na construgio de seu conjunto tedrico. ‘Trabalhando ja, especificamente, com a teoria democritica, apre- sentam-se, entdo, as principais correntes associadas & matriz liberal e, em oposigio, a proposta habermasiana, a partir dos pressupostos teéricos construfdos pelo autor a partir de um diélogo com ARENDT, Por dbvio, o presente texto nao tem a pretensio de esgotar 0 debate acerca da questo, mas, singelamente, busca, em linhas muito ge- rais, demonstrar que, a partir da teotia habermasiana, € possivel repensar os parametros da democracia, seus participantes, instituigdes processos, agenda e campo de agio, para além do modelo fornecido pelas teorias agregativas, todas fundadas em uma matriz liberal Pensar a ciéncia politica — e qualquer tema que & matéria interes- se —a partir do paradigma liberal se justfica nfo apenas pelo conjunto de instituigGes e direitos que estruturam a teoria democrtica a partir dai, mas também porque os mais recentes paradigmas politicos — Arendt, Habermas © os debates sobre o reconhecimento — daf partem. Para os desenvolvimentos propostos neste texto, importa resgatar principalmente a ideia de liberdade, de matriz liberal, que orienta a atuagio estatal perante uma sociedade tida como plural, a qual, sendo rediscutida por Arendt, sera adotada por Habermas na construgio de sua teoria politica. Com efeito, a espécie de resgate do liberalismo que se processou 6 Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha 00g muito recentemente apresenta o paradigma a partir da construgdo de uma ideia de liberdade, tomada em seus aspects positivo e negativo. (BERLIN, 2002) Em especial, a nogio de liberdade negativa se relaciona com a auséncia de barreiras, de constrangimentos para a ago, e antecipa a ideia de que o Estado é um limitador, a partir da clara distingio entre um espago privado, no qual nao deve haver interferéncia de agdes pablicas de nenhu- ‘ma ordem (administrativas, politicas,legais). Dé-se uma verdadeira naturalizacio da ideia de liberdade, aproxi- ‘mando-a da liberdade de consciéncia, daquela parcela do ser que ¢ inerente a sua condigdo de humano e que, portanto, independe ~ e rigorosamente dispensa—a ago piiblica’. Por outro lado, a opgdo de RAWLS (1997) de construir uma teo- ria da justiga a partir de diteitos —e nao de liberdades — dé novos contornos a0 liberalismo, que é, enti, reconstruido a partir da presenga do Estado —e nfo de sua auséncia. Nessa perspectiva, os principios rawiseanos de justiga, apresen- tados como a estrutura basica de uma sociedade plural, sio razodveis — no necessariamente racionais ~, 0 que implica na capacidade deliberativa possibilidade de convivio e consenso entre individuos plurais. O pluralismo 6, de fato, um dos principais elementos da teoria rawlseana da justiga, pois afasta a ideia de bem comum, reconhecendo 0 conflito de interesses no seio das sociedades e partindo desse reconhecimento para construgio da teo- ria? Ademais, hd uma precedéncia do justo em relagio ao bem e iden- tifica-se a estrutura basica da sociedade com 0 objeto da justiga, ou seja, ‘A nogio de Iberdade positiva, por outro lado, pressupse a necessidade humana de agir na concrtizagio de objtivos ecumpre a fangdo de impor uma concepeao ao mundo, Ver BERLIN, Teaia. Op. Cit, pp. 2368 ‘0 conceto rawscano de sociedade pode esclarecer,além do pluralisme, © fato de que, mesmo sendo auto-sufcients e, portant, n36 dependendo de uma estutra hierarguizada de autridade ‘os individuos, vivendo em sociedadesaltamente hoizonalizads, reconhecem a necesidade de regras (de conduta) com vista 3 ordenacio socal, resras essa que espeificam um sistema de coopera, necessrio para a manstengio da propia sociedade. A partir dat impon saber como éstabelecerprincipios comuns de justia, fundamentas para manutensio da sociedade enquanto tum empreenimento cooperative que iss a vantagens mites, tendo em vista aplurlidade das Socicdades modernas. A resposta rawscana supra o contratuaismo, substituindo 0 pacto social or uma stuagdo que incorpora cera restrigdes de conduta baseadas em razdes destinadas a Conduit «um acordoincial sobre os principios de justia: uma stagio (poi) original em ‘ue os homens sio absolutamente iguais ene si, porque completamente ignorantes de sta Posigo na soccdade e também da posigio do outro, descnhecenda oF inersses em presen, (RAWLS, 1997, 936) ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao a importa a maneira pela qual as instituigGes sociais mais importantes distribu- em os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisio das vanta- gens provenientes da cooperagao social. Assim & que se aceita o fato de que a estrutura social gera pro- fundas desigualdades sobre as quais os princ{pios de justiga social devem agir, regulando a escolha de uma constituigao politica e os elementos princi- pais do sistema econdmico e social. Daf que a liberdade ¢, agora, politica, ou seja, demanda institucionalidade, pois uma sociedade bem ordenada ¢ aquela em que indi- ‘viduos livres sio capazes de consenso sobre principios de justiga que garan- tam um tratamento equitativo entre seres plurais. Essa politizagdo do liberalismo emerge justamente da ideia de que aliberdade € algo construido, de que os individuos buscam consenso, 0 que dé um caréter piblico ao liberalismo, contrariando, nesse ponto, a tradigio clissica liberal, que costumava naturalizar a liberdade. O liberalismo rawseano assume como pressuposto a capacidade dos individuos de construirem um consenso sobre princ{pios de justiga, os quais sio procedimentais? e devem ser incorporados pela ordem constituci- onal, que, nessa medida, funda a ordem piblica, situando-se acima das vati- adas concepgdes de bem caracterfsticas de uma sociedade plural e repre- sentando 0 consenso sobreposto que abarca valores politicos e nao politi- cos. A ideia de consenso sobreposto remete & possibilidade de a soci- edade concordar sobre determinados principios que sio neutros e geram estabilidade, ou seja, possibilitam a convivéncia dos diferentes pontos de vista acerca do bem; ea ordem constitucional, por outro lado, institucionaliza © consenso sobreposto e representa o conjunto de instituigdes (democriti- cas) que garante o uso da razio piblica, na medida em que expressa os princ{pios de justia. ‘A catacteristica distintiva do Estado Liberal € sua neutralidade, pois garante, em larga medida, a previsibilidade necesséria a efetivagio das ‘© plaralisme, cnquanio elemento emplrico da tora, que informa a escolhaprocedimental rawlsean,algando 9 justo a uma posigio superior & do bem. na medida em que reintoduz um Conjunto de procedientos para ttar do politico ~ abicando do bem como ponto de partda Se coloca a questo de como tra insttuconaidade do Estado, tomando-o como fundamental para coordenaio das sociedadespluas. A grande contibuigo de J. Rawls para a eicia politica foi, som divida, a superagao do debate sobre os melhores modclosestatas,inoduzindo 0 squestonamento sobre os entrios de justiicagao de insituigesagdes plies, que € a marca da Teoria politica contemporines, ae Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha 00g liberdades individuais, justificando-se a partir do pluralismo e da discordincia racional, ou seja, partindo dos pressupostos de que nao hd um modo de vida intrinsecamente melhor do que outro, razo pela qual o Estado no pode promover nenhuma especifica concepgao de vida, tida como boa. ‘A neutralidade opera na base de um procedimento, isto é, consiste em limitar os fatores que podem ser invocados para justificar uma decisio politica, que serd, entio, considerada neutra apenas se no oferecer apelo presungio de uma intrinseca superioridade de qualquer modo de relacdo a outro. Enquanto ideal politico, a neutralidade governa as relages paiblicas, aquelas que se estabelecem entre as pessoas ¢ 0 Estado, enfatizando a igual liberdade de todos em perseguir seu ideal de vida boa, e nao implica em no interferéncia estatal, mas em néo interferéncia injustificada do Es- tado, ou seja, na liberdade de nao encarar um interferéncia estatal que re- monte & ideia de superioridade de um modo de vida em relagao a outro, (RAWLS, 2002) 2 A tradigdo liberal, que reconhece no Estado o aparato da adminis- tragio piblica, orientado no interesse da sociedade, tida, por sua vez, como um sistema estruturado em termos de economia de mercado, foi, sem dtivi- da, a responsdvel pela definigdo de cidadania a partir dos direitos que cada um tem perante o Estado e os demais, ou seja, 0 cidadio foi identificado com 0 portador de direitos subjetivos protegidos pelo Estado, os quais ga- rantem um Ambito de atuagdo livre de coagao externa injustficada. 3s direitos politicos — de idéntica estrutura se revelaram, ento, como a possibilidade do cidadio de fazer valer seus interesses privados até que se forme, na agregacdo com outros, uma vontade politica capaz de exercer efetiva influéncia sobre a administragao publica, 0 que demanda eleigdes de representantes no Parlamento e Governo, ‘A politica, nessa medida, tem por funcao agregar e impor os inte- resses sociais privados perante o Estado: um aparato administrativo especi- alizado no emprego do poder politico com vistas a garantia de fins coletivos. (HABERMAS, 1995) Com efeito, o projeto liberal plasmou alguns dos cdnones que sio frequentemente objeto de embates pela Ciéncia Politica Contemporiinea, dentre os quais a ideia de que o Estado € 0 locus da politica e de que a neutralidade de suas instituigdes garante a justica das ages politicas esta- ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao 2 tais, A neutralidade do Estado é, portanto, conditio sine qua non da justiga emum Estado de modelo liberal. ‘Ademais, o projeto liberal de Estado aprisiona no Parlamento, de forma exclusiva, a soberania justificadora de toda a ordem politica, a qual s6 pode se estruturar democraticamente a partir de mecanismos de represen- tagio, afirmando-se, sobremaneira, a neutralidade do Poder Judicidtio que funciona, tio somente, como executor da vontade politica expressa pela le. ‘A democracia, entendida como a tinica forma capaz de garantir 0 exercicio legitimo do poder politico, tomou-se hegemdnica, ao final do sécu- lo XX, em seu formato representativo liberal, 0 que, de fato, nao evitou 0 aparecimento das consequéncias negativas desse modelo democritico: as patologias da participagao — expressa pelos altos indices de abstencionismo nas eleigdes democraticas, a diminuigdo do mimero de trabalhadores sindi- calizados e também da mobilizag3o popular através de diferentes insttui- ges e da — representagio — sensagio que os cidadtios tém de no serem devidamente representados ~, 0 enfraquecimento das organizagdes sociais| e aincapacidade de garantir a tio anunciada inclustio econdmica e social de parcelas das populagdes — principalmente em paises periféricos ou semi- periféricos -, como é 0 caso do Brasil. (PEREIRA, 2008) E bem verdade que a referida hegemonia do modelo representati- vo liberal deveu-se & capacidade de resposta da teoria do elitismo demoeré tio, que resolveu a questio da estabilidade do processo politico & custa da redugio da participago dos cidadios ao voto eleitoral periddico. (SHUMPETER, 1952) 0s desdobramentos posteriores apresentados por DOWNS (1957) e mesmo aqueles trazidos por PATEMAN (1970) e MACPHERSON (1978), apesar de, respectivamente, assumir pressupostos da escolha racional, dis- cutir questdes referentes 8 necesséria ampliago da participagio dos cida- dios no processo democratico e, mesmo, questies relevantes para 0 at- mento da qualidade dessa participago, nfo superam o marco das teorias, agregativas, as quais tomam as preferéncias dos cidadios individuais nos processos de decisio como dadas, fixas, centrando sua atengiio no modo ais justo de agregé-las, sem, contudo, dedicar uma andlise sobre a manei- ra como tais preferéncias foram constitufdas. Trata-se de um modelo te6rico centrado no voto, que restringe a legitimidade da democracia & busca do melhor meio de agregagio de inte- resses, que deveriio ser garantidos contra possiveis abusos do Estado, justa- mente, por meio da politica 50 Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha 00g Em todo caso, 0 Estado é, conforme ja referido, tido como um aparato administrativo especializado em alcangar objetivos comuns que se formam na sociedade civil, a partir da competicao estratégica de grupos que desejam o poder politico, através de um procedimento baseado no sistema eleitoral, que visa a garantir a igual participagao dos cidadios, sem qualquer distingdo de cardter econdmico, étnico, social ou religioso. Por outro lado, a tentativa de superar 0 modelo hegem@nico da democracia representativa liberal fundamenta-se, basicamente, na inversio da tendéncia de centrar a andlise no voto, substituindo-o pelo didlogo, pois em vez de trabalhar com preferéncias fixas dos individuos, buscando a me- Thor maneira de agregé-las, trabalha com os processos comunicativos de formagio das opiniGes e preferéncias que ocorrem antes do voto. Ocupa-se, portanto, do processo de formagao da vontade politica, ou seja, dirige seu olhar para além dos limites do Estado. 3. Conjugando a tradigio liberal e a republicana — que reintroduz uma pauta ética e busca o bem comum — foi que HABERMAS (1995, 1997) procurou desenvolver um modelo democratico no qual as normas juridicas e as decisdes politicas fossem legitimadas através da institucionalizagio de procedimentos discursivos. Embora sua obra possibilite diversos didlogos, aqui nos interessa, como ponto de pattida, aquele promovido com a teoria arendtiana, ou seja, aquele de vies comunicativo, destinado a aferir a dimensao da agao na poli- tica, A questio da dimensio da agio politica € colocada por HABERMAS (1980) a partir do problema da determinagio da diferenga entre poder e violéncia, quando busca utilizar 0 conceito arendtiano de politica, sem abrir mao, contudo, do Estado weberiano, caminhando para a ideia de que a politica pode ser reconstrufda em um espago nio estratégico, ou seja, fora do Estado, que é a instituigdo de poder funcionalmente diferen- ciada da sociedade, que permite a administragdo e que & necesséria no Ambito de sociedades complexas. ARENDT antecipa um conjunto de concepgdes que vio apare- cer em paradigmas contempordneos da Ciéncia Politica, estruturando suas preocupagdes sobre a politica a partir da critica sistemitica e ruptura com a tradiglio ~ de Weber a Shumpeter -, reconstruindo 0 conceito de liberdade ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao a €, a partir daf, a ideia de pablico, a qual serd recolhida por Habermas. Com efeito, partindo de suas categorias estruturantes — labor, obra © acto‘ — busca reconstruir a politica como a atividade humana que trans- cende 0 ciclo da vida do individuo, como a construgao coletiva comum, como uma pritica acessivel a todos, ou seja, reconhece que, na interagio entre dois ou mais individuos, existe o didlogo, a partir do qual o novo politico pode se estabelecer. A teoria arendtiana estabelece a liberdade como a razio de ser da politica e a ago como seu dominio de experiéncia, ou seja, a liberdade & vivida, basicamente, na agio. conceito de agao de que ARENDT se utiliza como fundamento da politica e do piblico é aquele utilizado pelos gregos, mais especificamen- te aquele construido pelo pensamento ateniense, 0 qual a autora retoma para estabelecer uma critica vigorosa ao marxismo e & consequente predo- minancia do conceito de fabricagio no mundo moderno — 0 que realiza a partir da diferenca entre naturalidade e artificialidade — e, ainda, & individualizagio do conceito de liberdade -, que no mundo antigo é uma categoria coletiva e implica aexisténcia de um projeto comum. (AVRITZER, 2006) Ainda que a tradigio filos6fica tenha tornado a liberdade um atri- buto do pensamento ou uma qualidade da vontade, deslocando-a de seu lugar originério—o ambito da politica e dos problemas humanos em geral — para um dominio interno —a vontade -, originariamente era ela entendida como 0 estado do homem que o capacitava a se mover, a se encontrar com outras pessoas, em palavras e ages. Para ser livre, portanto, o homem deve ter-se libertado das neces- sidades da vida e, ainda, estar na companhia de outros homens em mesmas condigées, em um espaco ptiblico comum, ou seja, um mundo politicamente organizado, no qual cada homem pode inserir-se em palavras e agGes. ideal da agao ateniense é, portanto, baseado em uma igualdade intrinseca, pois, contrariamente, onde os homens convivem, mas no consti- tuem um organismo politico, 0 que rege suas ages e sua conduta no é a {Xvid foi dada ao homer sob a congo da propria vida, da mundanidade e da plualidade e a cada uma das condiges coresponde uma espeifeaavidade~ labor, obra ¢asio. A plralidade revel fato de que homens ~ ¢ soo Homcm ~ vivem na Ter, e corresponde,espcifiament 2 condisio de toda a vids politica. A agao € « alividade politic, por excelencia,e liga-se intimamente 4 uma condigio mais humana mais genévica, qual sj, a naalidade, porque © nove comeso, inerente a cada naseiment, se pode fazer sentir no mundo Somente porque © rece thegado € capaz de agi. (ARENDT, 1958) 52 Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha 00g liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupagio com sua preservacio, conceito de ago em ARENDT rompe com a dialética do reco- nhecimento — que esta na base das teorias hegelianas € marxianas — de acordo com a qual ¢ possfvel um reconhecimento do outro enquanto igual em toda e qualquer atividade humana, na medida em que se situa na interse- Gio entre a igualdade e a diferenga e restringe o ato de reconhecimento do outro enguanto igual as atividades puramente humanas, afastando-o das atividades de fabricagao e labor. ‘A pattir daf, supondo que a ago s6 pode se desenrolar no espago piiblico —onde hd igualdade e pluralidade —, reconstr6i o conceito de politica, que 86 nesse espago constituido em comum pelos individuos pode ter lugar. Em oposigao, a teoria arendtiana reconhece 0 labor como a ca- tegoria que da lugar esfera privada, que é 0 local da hierarquia, da domina- io, da necessidade, opondo-se assim ao liberalismo, que reconhece af um espaco de liberdade, 4. Precisamente a partir da distingdo entre publico e estatal, HABERMAS desloca a origem do poder que pelo Estado € gerido, para a esfera piblica, qualificando-o como comunicativo. HABERMAS trabalha a dimenstio da acdo na politica a partir de um dilogo com a teoria arendriana, que parte do problema da distingio entre poder e violéncia para situar a politica no pablico, diferenciando esse dominio do estatal.. Contrapondo-se a WEBER (2000), que havia identificado poder, coergio e Estado, caracterizando esse tltimo, justamente, pela constante presenga da possibilidade do uso da forga, identificando, assim, poder violencia, ARENDT diferencia violéncia — que é o exercicio cotidiano do arbitrio sobre os individuos de modo a que percam sua pluralidade — de poder — que é a capacidade humana de construgio do coletivo -. ‘Ambos - ARENDT e WEBER - reconhecem no poder um po- tencial que se atualiza em ages, mas baseiam-se em um modelo de agio distinto, quer dizer, enquanto WEBER parte do modelo teleolégico da agio*, * Comsidera ese modelo que os individuosesabelecem objetivos escolhem os mis apopriados para realizi-los, de sorte que o sucesso da ago consist em peovocar no mundo um estado de foisas que corresponds 20 objetivo proposto c, na medida em que ese sucesso depeade da vontade do out, deve o ator ter a sua dispsigao mci que induzam © euyo ao comportamento deseado. ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao 33 ARENDT parte do modelo comunicativo. (HABERMAS, 1980, p. 100) Para WEBER, poder € a capacidade de disposicao sobre meios que permitam influenciar a vontade de outrem, enquanto que ARENDT identifica tal definigao com o conceito de violéncia e preceitua que o poder resulta da capacidade humana de unir-se a outros ¢ atuar em concordancia com eles, ot seja, na formagio de uma vontade comum, numa comunica- ¢do orientada para o entendimento recfproco. ARENDT especificamente distingue 0 poder, inerente & comuni- cagio Linguistica unificadora, da violencia, exercida instrumentalmente, con- trapondo, portanto, a capacidade de gerar consenso de uma comunicagio voltada para o entendimento mtituo dessa violencia, tendo em vista que um acordo genuno constitui um fim em si mesmo, nao podendo ser instrumentalizado para outros fins. (O entendimento reciproco dagucles que deliberam entre si com vistas uma ag comum. de acordo™ “a opnio em toro da qual muitos se puseram publicamente significa © poder, na medida em que este rpousa sobre a Persuasio c, portant, naguelaimposigaosingularmente nio-impostiva atra- vvés da qual as intuigdes se concretizam. (HABERMAS, 1980, . 102) Resumidamente, se pode dizer que o poder das conviegdes co- ‘muns, que é comunicativamente produzido, origina-se do fato que os partici- antes orientam-se para 0 entendimento recfproco e nao para seu préprio sucesso, 0 que, definitivamente, desprende o conceito do modelo teleolégico da agio. poder é um fim em si mesmo e serve para preservar a agio da qual se originou, consolidando-se em poder politico através das insttuigdes que asseguram formas de vida baseadas na fala recfproca, ‘A partir do conceito comunicativo de poder, ARENDT fz remontar 0 poder politic exclusivamente a pris, fala reciproca ¢ & ago conjunta dos individues, porque delimita a pravis, por um lado com relagio as atvidades apolitieas da producto e do trabalho e, por outro lado, om relago ao pensamento, (HABERMAS, 1980. p. 110) ¢, € justamente essa limitago conceitual do politico ao pritico que tem por consequéncia, dentre outras, a exclusio da esfera politica de todos os elementos estratégicos, definindo-os como violencia, a Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha Para ARENDT, portanto, a agio estratégica — equiparada & agio instrumental a partir do exemplo da guerra, que, para os gregos, era algo que acontecia fora dos muros da cidade — € essencialmente apolitica, vio- lenta e instrumental, situada fora da esfera do politico. Nesse ponto, HABERMAS (1980, p. 11), langando mio de um outro exemplo —o da luta pelo poder, na concorréncia por posigdes vincula- das a0 exercicio do poder legitimo -, discorda de ARENDT e afirma que no se pode excluir do politico o elemento da agio estratégica. Para tanto, uilizando-se do conceito de violencia exercida por meio da agio estratégica como a capacidade de impedir outros individuos/grupos de defender seus interesses, conclui que a violéncia sempre foi parte inte- grante dos meios para aquisigao e preservacao do poder. Exercicio, aquisigao, preservagao e gestagao do poder politico sto coisas distintas para HABERMAS, que entende, ademais, que somente no que diz respeito a gestacdo (origem) desse poder é que o conceito de praxis poder auxiliar. Se € verdade que as confrontagdes estratégicas em torno do po- der politico nem produziram nem preservam as instituigdes nas quais esse poder est enraizado, nao é menos certo que — especialmente a partir do Estado moderno, que normaliza a luta pelo poder politico pela institucionalizagio da ago estratégica — a ago estratégica se apresenta como meio para aquisicao e preservacio desse poder. O conceito do politico deve estender-se para abranger também a competicdo estratégica em torno do poder politica e a aplicagao do poder a0 sistema politico. (HABERMAS, 1980, p. 115) Para HABERMAS, portanto, 0 poder politico tem duas dimen- sdes: uma comunicativa, relacionada com sua gestagdo (origem, criagio), que se desenvolve na esfera piiblica, e outra estratégica, relacionada com sta gestio, que ocorre no Estado. 0 sistema politico, estuturado no Estado de direto, diferencias, interna ‘mente, em dominios do poder adminisrativo e comunicativo, permanecendo aberto ao mundo da vida, Pois a formacdo institucionalizada da opinigo eda vvontade precisa abastecerse nos contextos comunicacionais da esferapubli- a, nas associagiese na esferaprivada. Iso tudo porque o sistema de ago politico esti embutido em contextos do mundo da vida. (HABERMAS, 1997, p84) ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao 35 00g = vasa. 220 Com efeito, para HABERMAS a agio politica ¢ estratégica, mas também é comunicativa, eo poder comunicativo, que se desenvolve no mundo da vida, se contrapde ao mercado e ao Estado e se processa na rede comunicacional da esfera piblica, de sorte que as comunicagées destituidas de sujeitos formam arenas nas quais pode acontecer uma formagio mais ou ‘menos racional da opinido ou vontade acerca de matérias relevantes para sociedade e que necessitam de regulagio. A legitimidade das decisoes politicas e das normas juridicas € ga- rantida pela transformago do poder comunicativo oriundo da esfera paibli- ca, de sorte que o processo discursivo que ocorre na esfera piiblica deverd ser captado e absorvido pelas principais estruturas constitucionais demo- craticas. conceito de esfera piiblica € histérico (HABERMAS, 1994), ‘mas transformado em argumento analitico, na medida em que € colocado como marco das sociedades modemas, apresentando a questo de quando e sob que condigdes argumentos de sociedades complexas podem tornar-se bases legitimadoras para agio politica. A esters publica pode ser descrta como uma rede adequada para comunica- 0 de conteudos, tomadas de posi¢io © opinides: nela os fluxos ‘comunicacionas so illrados esintetizados, a ponto de se condensarem em ‘opinides publics enfeixadas em temas especificos. (HABERMAS, 1997, p 92) A importincia da esfera publica esta no seu potencial de se trans- formar em um modelo de integracao social baseado na comunicagao, que se apresenta, entdo, como uma alternativa ao dinheiro € ao poder como base dessa integragdo, gerida, respectivamente, pelo mercado e pelo Esta- do. Com efeito, a partir do resgate de um espago piiblico onde os individuos pudessem interagir e se posicionar de uma forma critica perante © Estado, com énfase na construgdo argumentativa das preferéncias em detrimento da mera agregagao de interesses, registrou-se um efetivo salto qualitativo no que tange as teorias democriticas contemporaneas. Partindo da pluralidade das formas de comunicagao em que a vontade politica (comum) pode se formar, a politica deliberativa habermasiana propde um entrelagamento da politica dial6gica republicana e da politica instrumental liberal no campo das deliberagdes, quando as cor- 56 Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha 00g respondentes formas de comunicagio estiverem suficientemente institucionalizadas. ‘A questo, entio, se desloca para o exame das condigdes de co- municagio e procedimentos que legitimam a formagao institucionalizada da opinio/vontade politica. ‘A sociedade civil representa uma ligagdo entre a esfera piiblica e o sistema politico, a qual, através de seus canais institucionais, transmite os fluxos comunicativos oriundos daquela para esse, procurando condensé-los € tomé-los interesses generalizéveis para toda a sociedade: os temas produ- zidos na esfera piblica e tomados como fundamentais devem atingir, via fluxos comunicativos, o sistema politico. (0 seu nicleo institucional [da sociedade civil] ¢ formado por associagies © organizagGes ives, io estatase no econdmicas, as quaisancoram as estru- turas de comunicasio da esfera publica nos componentes socais de mundo da vida. A sociedade civil compae-se de movimentos organizagies € assoc g0es, 0s uals eaptam os ecos dos problemas sociais que ressoum as esfe- ras privadas, condensam-nos eos transmitem, seguir, para aesfera publica politica. (HABERMAS, 1997, p.99) A legitimidade das decisdes impositivas depende de sua regulagio por fluxos comunicacionais que partem da periferia e atravessam as com- portas dos procedimentos prdprios & democracia e ao Estado de Direito, antes de passar pela porta de entrada dos complexos institucionais parla- ‘mentar ou judicial. E bem verdade que intimeras criticas foram dirigidas a0 modelo habermasiano de democracia, tanto em relagio a dificuldade ou impossibi- lidade do consenso quanto & ortodoxia das formas de comunicagio, que, impondo um modo discursivo racional, acabam por excluir sistematicamen- te um conjunto de atores sociais da participago efetiva na politica demo- crética, quanto ainda em relagao A sua proximidade com o modelo liberal, na medida em que se verifica uma restrigdo da ideia de democracia aos pres- supostos do modelo representativo liberal, desconsiderando a andlise da democracia para além do espaco institucional da politica e que evidencie as relagGes entre Estado, instituigdes politicas e sociedade, tomando-as como fundamentais para o desenvolvimento de um movimento de construgio da democracia. Contudo, foi, sem diivida, a partir da teoria habermasiana que se ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao 37 pode repensar os pardmetros da democracia, seus participantes, insttuiges processos, agenda e campo de agio, para além do modelo fornecido pelas teorias agregativas, todas fundadas em uma matriz liberal. Conclusiio Em conclusio pode-se dizer que a teoria democrética contempo- nea estruturou-se a partir do paradigm liberal, reconhecendo no Estado o aparato da administragao piblica, orientado no interesse da sociedade, limi- tando a politica & fungao de agregar e impor os interesses sociais privados e 0 Ambito estatal — identificado com o espago piiblico, por exceléncia esse contexto, a democracia — tnica forma capaz de garantir 0 exercicio legitimo do poder politico se consolidou em seu formato repre- sentativo liberal, € nem mesmo os desdobramentos posteriores (DOWNS, PATEMAN, MACPHERSON) foram capazes de superar 0 marco das te- orias agregativas, que centram sua atengaio no modo mais justo de agregar as preferéncias fixas dos cidadios, individualmente considerados nos pro- cessos de decisio. A partir de HABERMAS foi possfvel superar teoricamente 0 ‘modelo hegem@nico da democracia representativa liberal — ov, ao menos, reconhecendo sua insuficiéncia, construir uma alternativa. Invertendo-se a tendéncia de andlise — antes centrada no voto, agora visando ao dilogo — pode-se trabalhar com os processos comunica- tivos de formagao das opinides e preferéncias que ocorrem antes do voto, 0 que demandou a ampliagao do conceito de politica e consequente redefinigio do espago piblico. Com efeito, a partir da reconstrugio do conceito de liberdade, ARENDT pode redefinir os limites entre as esferas do piblico e do privado e, abrindo os paradigmas (matrizes) politicos contemporineos, possibilitou 0 debate sobre a redefinicio do papel de uma esfera publica. privado foi definido como o espago da dominagio — em contraposigio a tradicao liberal que o afirmara como espaco de liberdade — e nao da politica, que foi situada em um dominio pablico, estreito, restrito, que niio inclu nem o social HABERMAS ampliou 0 piiblico arendtiano na construgao de seu conceito de esfera piiblica e redefiniu as relages entre Estado e socie- dade civil, apresentando uma alternativa aos modelos normativos democr 58 Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha 00g ticos (liberal e republicano) a partir do argumento da cooriginalidade, ou seja, da criagio simultanea do pablico e do privado. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: ARENDT, Hannah. A condigdo humana, Rio de Janeiro: Forense Univer sitdria, 2001. ARENDT, Hannah. Entre 0 passado e o futuro. Sao Paulo: Perspectiva, 2007, AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia, Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. AVRITZER, Leonardo. Agdo, fundagdo e autoridade em Hannah Arendt. In: Lua Nova, n. 68, 2006. BERLIN, Isaiah. Dois Conceitos de Liberdade. In: Estudos sobre a hu- manidade, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 226-272, BENHABIB, Seyla, Models of Public Space: Hanna Arendt, Liberal Tradition, and Jtirgen Habermas. In: CALHOUM, Craig (Org). Habermas and the Public Sphere. Massachusetts, MIT Press, 1996, p. 73-98. COHEN, Jean L.; ARATO, Andrew. Civil Society and Political Theory. Massachusetts. MIT Press, 1994. DOWNS, Anthony. An economic theory of democracy. New York: Harper & Row Publishers, 1957. FRASER, Nancy. Rethinkig the Public Sphere: A Contribution to the Cri- tique of Actually Existing Democracy. In; CALHOUM, Craig (Org). Habermas and the Public Sphere. Massachusetts: MIT Press, 1996, p. 109- 12. HABERMAS, Jiitgen. Trés modelos normativos de democracia. In: Lua Nova—Revista de Cultura e Politica, Rio de Janeiro, n. 36, 1995, p. 39-53. HABERMAS, Jiirgen. 0 Conceito de Poder em Hannah Arendt. In: Habermas: sociologia. Si Paulo: Atica, 1980, p. 100-118. ‘eee arbre anoerine vein Hips520. Jamie rao 38 HABERMAS, Jilrgen. Further Reflections on the Public Sphere CALHOUM, Craig (Org). Habermas and the Public Sphere. Massachusett MIT Press, 1996, p. 421-461. MACPHERSON, C. B. A democracia liberal — origens ¢ evolugio. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, PATEMAN, Catole. Participation and democratic theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. PEREIRA, Marcus Abilio; CARVALHO, Emani, Boaventura de Sousa Santos: por uma nova gramética do politico e do social. In: Lua Nova, 2008, 1.73, p.45-58. RAWLS, John. Uma teoria da Justica. Sio Paulo: Martins Fontes, 1997 RAWLS, John. O Liberalismo Politico. Sio Paulo: Atica, 2002. SCHUMPETER, Joseph. Capitalism, socialism, and democracy. London: George Allen & Unwin, 1952. WEBER, Max. Ciéncia ¢ Politica: duas vocagdes. Si Paulo: Ed,Cultrix, 2000. 60 Vertue in Boa ade eon Hp AGO ne ha

You might also like