You are on page 1of 13
BAKHTIN, GINZBURG E A CULTURA POPULAR Karina Kuschnir RESUMO:Neste trabalho, apresento as visdes de Mikhail Bakhtin ¢ Carlo Ginzburg sobre cultura popular e a sua relagio ‘com uma teoria da cultura mais geral, de interesse direto para a discuss4o antropolégica. Dest ambos em resgatar uma cultura popular “subterrane: se a preocupagtio de através do levantamento de material literdrio e hist6rico, integran- do-a e fazendo com que @ sua compreensio ilumine 0 contexto cultural de uma época. UNITERMOS: Cultura Popular - Bakhtin - Ginzburg - Antropologia Uma das caracteristicas mais notaveis da antropologia tem sido a capacidade de dia- logar com autores das mais diversas tradigdes disciplinares. Passando pela literatura, histéria, filosofia, lingiiistica, encontramos incorpora- dos nessa tradi¢do Mikhail Bakhtin ¢ Carlo Ginzburg — dois autores, ndo antropélogos, no sentido estrito do termo, com trabalhos fun- damentais para a compreenso do que chama- mos cultura popular. Ao aproximé-los, temos a oportunidade de entrever como cada um de- les chegou, através de trajetdrias intelectuais diversas ¢ distantes varias geragdes, A discus- so desse tema comum, com novas perspecti- vas ¢ questdes de grande interesse para a an- tropologia!. Mikhail Mikhailovich Bakhtin nasceu na Russia, na cidade de Oriol, ao sul de Mos- cou, em 1895. Sua graduagio em estudos clissicos ¢ filologia foi iniciada em Odessa ¢ coneluida, em 1918, na Universidade de Pe- trogrado. Pouco depois de formado, j4 traba- Ihava como professor na cidade de Nevel ¢, mais tarde, em 1920, em Vitebsk. Durante es- 1. Este texto & uma versto modificada do trabalho apresentado ao final do curso de leitura ministrado pelo Professor Gilberto Velho no Mestrado do Programa de Pés-graduagdo em Antropologia Social, no Museu ‘Nacional/UFRI, no segundo semestre de 1991 ses primeiros anos, Bakhtin participou de pelo menos trés grupos de estudos, ou “semindrios kantianos”, como foram chamados por alguns de seus bidgrafos (TODOROV, 1981:13). O segundo desses circulos formou-se em Vite- bsk, centro da vanguarda artistica da época, € dele fizeram parte, entre outros, 0 pintor Mare Chagall, 0 miisico © poeta Valentin Vo- loshinov ¢ 0 critico Pavel Medvedev ~ os dois Ultimos se tornariam os principais parceiros intelectuais de Bakhtin, Em 1924, Bakhtin estava casado © mo- rando em Leningrado, Apesar da experiéncia como professor, esses foram anos dificeis financeiramente. As oportunidades de emprego eram raras € pouco interessantes — reflexos, provavelmente, de um Bakhtin pouco seduzido pelo marxismo ¢ acometido por-uma doenga degenerativa nos ossos (que lhe resultaria a perna direita amputada em 1938). Para com- pletar o quadro, em 1929, possivelmente devi- do as suas atividades na Igreja Ortodoxa Russa, foi preso e submetido a um exilio for- gado de seis anos no Casaquistio Nessa época, além de pequenos artigos, j4 havia publicado Problemas da Poética de Doistoiévski, cuja primeira edigio & de 1929 (BAKHTIN, 1961). Nos anos 30, escreveu varios ensaios sobre 0 discurso no romance (depois reunidos em Quesides de Literatura e de Estética — A Teoria do Romance (BAKHTIN, 1988) ¢ iniciou uma pesquisa sobre a obra de Rabelais. O resultado deste estudo foi apresentado, em 1941, ao Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou, para obtengiio do doutorado, mas sua recepgdo no foi nem de longe animadora. Ao contritio, a tese foi vista quase como uma obscenidade Bakhtin recebe, dez anos mais tarde, apenas 0 que no sistema brasileiro de hoje seria um re- conhecimento de eréditos. A partir dai, a sua presenga no mundo intelectual passou por um periodo de pouca movimentagao, muito em conseqiiéncia da Segunda Guerra Mundial e de seu passado politico. Somente no final dos anos 50 a obra de Bakhtin é “redescoberta” por estudantes ¢ inte- lectuais, primeiro na Unio Soviética e, bem mais tarde, também na Europa e Estados Uni- dos?. Em 1963, & publicada uma edigio revista do seu trabalho sobre Doistoévski e, em 1965, sai finalmente a primeira edigo de sua mono- grafia sobre a obra de Rabelais (BAKHTIN, 1987). Dessa época até sua morte em 1975, e ainda até o momento, seu nome pode nao ter se tomado objeto de aprovagio generalizada, mas passou a ser um ponto de referéncia fun- damental no apenas no campo da critica lite- réria, como num plano de estudos bem mais amplo de disciplinas preocupadas com uma teoria da cultura (HIRSCHKOP, 1989) Bakhtin certamente estaria de acordo que 0 seu trabalho fosse visto nas proximida- des da antropologia. Fm um artigo de 1970, sobre a situagao da pesquisa literdria na Unido Soviética, ele deixa claro que a literatura, em sua opiniao, s6 tem sentido se compreendida 2. As primeiras edigoes de Bakhtin na Europa stio de 1970 pela Ed. Gallimard, Paris. Nos Estados Unidos, apesar de Rabelais and His World ter sido publicado em 1968, 0 interesse por Bakhtin sé aumenta significativamente na década de 80. Para mais detathes, ver Hisrchkop (1989). 7 Bathkin, Ginzburg e a Cultura Popular no apenas a partir do contexto do seu tempo, mas também a partir de um passado cultural distante — um “great time” — que extrapola as fronteiras de uma época. “First of all, literary scholarship should establish closer links with the history of culture Literature is inseparable part of culture and it can- not be understood outside the total context of the entire culture of a given epoch. [...] but [a work of literature] cannot be closed off in this epochs; its fullness is revealed only in great time.” (BAKHTIN, 1986:2-3) O projeto intelectual de Bakhtin ndo se restringe a uma reflexo isolada sobre a lin- guagem (ou mesmo sobre a lingtiistica), mas compreende um campo mais vasto, onde a unidade é dada pela idéia de cultura. Portanto, apesar de ser primordialmente um fildlogo, é possivel falar da sua concepgiio de “cultura popular”. Para Bakhtin, principalmente essa cultura deve ser recuperada quando se pretende compreender uma obra literéria. A prosa, na sua opinio, ndo pode prescindir de um vinculo com a realidade mais cotidiana, e ¢ nessa relago — do autor com o seu mundo - que a cultura popular tem um papel fundamental. Quando se aproxima da obra de Rabe- Jais, Bakhtin deixa claro que a “chave” da sua andlise € detectar nas linhas rabelaisianas a materializago de uma “outra visio de mundo, do homem ¢ das relagSes humanas totalmente diferente, deliberadamente nao-oficial, exterior & Igreja e 20 Estado” (BAKHTIN, 1987:4-5). De- finitivamente, uma outra cultura, inseparavel da tradigo da cultura cémica popular medieval € renascentista da qual Rabelais ¢ herdeiro ¢ coadjuvante. Bakhtin esta falando, portanto, de uma descontinuidade, de um “segundo mundo” dentro de um determinado tempo histérico. Como vimos, mais do que apenas um leitor preocupado com o romance enquanto obra literaria, a perspectiva de Bakhtin coloca- © mais perto do que nunca da posigdo de um antropélogo que encontra diante de si um caso Cadernos de Campo, n° 3, 1993, particular de coexisténcia de culturas. Para entrar nesse universo, como sabemos, 0 antro- pologo no deve “pressupor uma homogeneidade mas sim identificar as relagdes entre os cédigos ou culturas ou subculturas éxistentes e examinar as relagdes entre elas, fazendo a pergunta sobre quan- do, onde ¢ como pode-se falar num predominio de um sobre a outra”. (VELHO & VIVEIROS de CASTRO, 1980:23) E exatamente com essa preocupagao de discemir mundos culturais que Bakhtin se aproxima de Rabelais. Em sua visdo, a cultura cOmica popular da Idade Média distingue-se da cultura “oficial” da época por trés grandes manifestagdes: os ritos € — espetdculos (especialmente 0 carnaval), as obras cémicas verbais € 0 vocabulario grosseiro. Esse conjun- to € a expresso real dessa cultura ¢ da sua concepgio da vida como um “proceso ambi- valente, interiormente contraditério”, onde “ndo hé nada perfeito nem completo” € onde o iso ocupa o lugar de destaque (BAKHTIN, 1987:23). Sua unidade ¢ a negag&o de toda a hierarquia e a religiosidade feudais, ¢ 0 “tebaixamento”, 0 “destronamento” das ver- dades ¢ certezas dessa esfera oficial da socie- dade. Bakhtin nao esta falando de um corpo a parte, independente, Ao contrério, a existéncia dessa cultura cémica popular, “nao oficial”, so tem sentido se vista a partir da sua relagdo com © mundo gético medieval, que faz parte do seu contexto ¢ ¢, ao mesmo tempo, sua comple- mentariedade ¢ referéneia permanentes. Como fica claro em diversos momentos de sua obra, “a dialogic encounter of two cultures does not result in merging or mixing. Each retains its own unity and open totality, but they are mutually enri- ched.” (BAKHTIN, 1986:7) Rabelais teria filtrado tudo isso para a literatura, num género que Bakhtin chamou de “realismo grotesco” (BAKHTIN, 1986:17). Esse é um dos pontos fundamentais da trajetd- tia de Rabelais: sua entrada no mundo popular € a habilidade para descrevé-lo e recrié-lo em palavras escritas. Uma empreitada literdria que 7B € geralmente vista como um dos momentos decisivos da propria constituigao da lingua francesa na forma como existe atualmente. Em quatro volumes, Rabelais descreve a vida e as aventuras de dois personagens jé familiares a0 repertério de lendas populares da sua época — os gigantes Gargantua ¢ Pantagruel. Seria impossivel transmitir em poucas palavras 0 contetido complexo ¢, ao mesmo tempo, to claro da prosa de Rabelais. Frente a essa dificuldade, prefiro um exemplo da sua propria fala: Alguns dias depois, apés se terem refeito, Gargantua visitou a cidade e foi vista por todo mundo com grande admiragdo, pois 0 povo de Paris to tolo, tio basbaque e to inepto por natureza, que um saltimbanco, um bufarinheiro, uma mula com campainhas, um velho no meio de ‘uma praga reiinem mais gente do que faria um bom pregador evangélico. E tanto o perseguiram, que ele foi obrigado a se refugiar sob as torres de Notre Dame. E, estando em tal lugar, e vendo tanta gente fem tomo de si, disse consigo mesmo: “Creio que esses malandros querem que eu Ihes pague aqui minhas boas vindas e a minha propriciagao. E a razao. Vou lhes dar o vinho; mas sé para me diver- tir’ Entdo, sorrindo, abriu a sua bela braguilha, e tirando para 0 ar livre 0 soberbo mastro, os regou to fartamente, que afogou duzentos © sessenta mil, quatrocentos ¢ dezoito, fora mulheres ¢ criangas.” (RABELAIS, 1991:99) De passagens como essa, salta aos olhos um mundo no qual certamente Bakhtin encontrou cor suficiente para pensar a exis- téncia de um plano real, de uma cultura popu- lar, que deveria estar acontecendo diante de Rabelais. Nao de forma literal, é claro, mas como um sistema simbélico que fazia parte do repertério, do imagindrio, da meméria, da sua &poca. Bakhtin de fato prope que esse mundo agora transformado em prosa teria realmente existido, mas dentro e paralelamente a um mundo “oficial”, ligado & cultura da elite, Para ele, Rabelais estava, na maior parte das ve7es, falando de tradigdes e valores de uma cultura popular que tinha sob suas vistas, mas que convivia, mal ou bem, com a sua contraparte “oficial”. Nem sempre o limite entre as duas culturas pode ser delineado facilmente no texto de Rabelais, e nio é dificil imaginar que isso & resultado do prdprio hibridismo, ou bi- culturalismo, desse autor. A biografia de Rabe- lais (que, além de médico, foi padre) ¢ a de um homem que teve acesso e interesse por muitos cédigos — seu roteiro incluia tanto a praca piblica quanto a leitura dos classicos em latim. Mesmo assim, para Bakhtin, ficou claro que da criatividade de Rabelais emerge uma cultura singular, com raizes populares profundas, onde © “principio da vida material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utépica. O ‘césmico, 0 social e o corporal esto ligados indi: soluvelmente numa totalidade viva ¢ indivisivel. E um conjunto alegre ¢ benfazejo.” (BAKHTIN, 1987:17) Universalismo ¢ liberdade. Na anilise de Bakhtin, estas so palavras chaves ~ 0s va- lores mais altos — desse mundo da cultura cémica popular. O riso, o vocabulério, a festa ¢ a feira na praga publica, o banquete, a imagem grotesca, 0 baixo material ¢ corporal sio as bases do “drama” dessa cultura. Em suas manifestagdes estd implicito um “grande corpo popular da espécie, para 0 qual 0 nascimento ¢ a ‘morte nfo eram nem o comego nem o fim absolu- tos, mas apenas as fases de um crescimento e de uma renovago ininterruptos. O grande corpo desse drama satirico € inseparével do mundo, impregnado de elementos césmicos, ¢ funde-se ‘com a terra que absorve ¢ dé & luz.” (BAKHTIN, 1987:76-7) A experiéncia da liberdade acompanha, para Bakhtin, essa comunh’o com 0 todo num duplo sentido, Em primeiro lugar, porque é a realizagiio dos desejos da came, é a liberdade do riso, da gastronomia, do sexo. Mas também & uma liberdade mais etérea, simbélica, exercida coletivamente durante um pericdo determinado de tempo em que a hierarquia “oficial” do cotidiano Ihe cede a vez. 19 Bathkin, Ginzburg ea Cultura Popular Quando Bakhtin mapeia essa cultura popular e reconhece nela os ideais de liberdade e universalidade, sua propria experiéncia intelectual ndo est entrando num terreno des- conhecido. Ao contrario, o interesse pela obra de Rabelais e, dentro dela, por uma determi nada cultura popular, no parece ser de forma alguma casual ou isolado do restante da sua obra, Em Rabelais..3, 0 trabalho de Bakhtin & quase uma cariografia dos cédigos e ideais que movimentam os personagens da praca piblica medieval ¢ a literatura renascentista, mas € pelo valor expresso nesses cédigos ¢ ideais que podemos aproximar este seu traba- Tho de outros anteriores. E aqui, novamente, existe um Bakhtin pouco interessado nas questdes meramente do campo da literatura, ‘Nao é minha inteng3o dar conta neste artigo de toda a extensio da produgio intelec- tual de Bakhtin, Apenas escolho alguns mo- mentos desse caminho que acredito bastante esclarecedores para compreendermos 0 autor como um teérico da cultura Um dos pontos de referéncia mais im- portantes para se entender a trajetoria aca- démica de Bakhtin € 0 seu debate, ou melhor, 0 seu ataque permanente ao que ele mesmo chama de “formalismo” e “ideologismo” abs- tratos no estudo do discurso_literdrio (BAKHTIN, 1988:71). No lugar da aproxima- a0 formalista da literatura, Bakhtin desen- volve uma abordagem tedrica que foi chamada por Morson ¢ Emerson de “prosaics” (em alu- so ao termo poetics) (MORSON & EMER- SON, 1990). Prosaics significa privilegiar a prosa como objeto de estudo e, a0 mesmo tempo, o interesse pelo mais prosaico € cotidi- ano dos acontecimentos. Isso, na opiniao dos autores, remeteria Bakhtin a uma tradigdo lite- aria que inclui, entre outros, Alexander Her- 3. Daqui em diante, farei referéncia ao texto A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento - O Comexto de Francois Rabelais. simplesmente como Rabelais....(BAKHTIN, 1987) Cadernos de Campo, n® 3, 1993. zen, Leo Tolst6i e Anton Chekhov. (MORSON & EMERSON, 1990:23). Como deixou ex- plicito em todos os ensaios de “O Discurso no Romance”, escrito originalmente entre 1934 1935, Bakhtin tinha em mente para a sua filo- sofia da linguagem a criago de um novo olhar sobre 0 género, onde essas duas questdes — a especificidade da prosa ¢ a atengdo aos even- tos do dia-a-dia — estavam em primeiro plano. Um olhar que nao tivesse mais em conta 0 modelo estético “centralizador” e sistemitico dos formalistas (BAKHTIN, 1988:75). Um olhar que, ao invés disso, reconhecesse no romance uma “diversidade social de lingua- gens organizadas artisticamente”, onde o “verdadeiro meio da enunciagao, onde ela vive e se forma, € um plurilingiiismo dialogizado, andnimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de contetido (...)” (BAKHTIN, 1988:74 ¢ 82, grifos meus). Jaem 1929, em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin havia dado uma de- monstragdo dessa teoria (BAKHTIN, 1961). Além do que estamos chamando de prosaics (seguindo Morson ¢ Emerson), dois outros conceitos importantes aparecem neste texto: a idéia de “dialogia” e de “inconclusibilidade”’. Bakhtin nos apresenta a obra de Doistoévski como singular no apenas por sua exceléncia literéria, mas essencialmente porque introduz no género romance a dialogia. Isso significa dizer que ha uma auténtica multiplicidade de vozes dentro do romance, cujos discursos se equivalem e se combinam sem perder cada um sua unicidade. O didlogo nfo é um meio da obra, mas um fim em si mesmo. Uma constru- go, por sua vez, que abre caminho para a manifestago de um homem/personagem que se movimenta na interagdo, sempre diante de 4. A expressto "inconclusibilidade” € da traduga0 brasileira de Rabelais... mas talvez seja melhor entendida por “open unity" ou “openness”, encontrados no prefacio de M. Holquist a Speech Genres and Other Late Essays (BAKHTIN, 1986); ou ainda por *unfinalizability" (MORSON & EMERSON, 1990). 80 um espaco em aberto. Para Bakhtin, Dostoié vski tem o mérito de ter introduzido o romance polifénico na literatura, ¢ © métito ainda maior de ter levado © “pensamento artistico da hu- manidade” a uma concepgdo de universo mais complexa — inconclusiva e dialdgica por prin- cipio. Cronologicamente, chegamos a metade dos anos 30. E é com esse histérico de preocu- pages intelectuais — recuperado aqui apenas em linhas gerais — que Bakhtin inicia sua pes- quisa sobre Rabelais. Alguns de seus conceitos fundamentais, como a proposta de uma “prosaics” da literatura e as nogdes de incon- clusibilidade © dialogia, no sé do discurso, mas da propria vida, esto sedimentados. Nesse contexto, a obra de Rabelais chama a tengo de Bakhtin para o tema do carnaval. O carnaval tem, para Bakhtin, um papel fundamental na literatura por ser uma ex- periéncia sobretudo concreta, vivenciada desde a Antiguidade até o Renascimento, © carnaval & um dos elementos centrais em Rabelais... € um dos motivos que levam Bakhtin a revisar seu trabalho sobre Doistogvski numa segunda edi¢io em 1963. Nessa revisio, Bakhtin recupera a menipéia, e sua profunda relagao com a camavalizagio do mundo, como a base, aquilo que the di o “tom” A obra de DostoiévskiS. Isso nos indica, portanto, 0 quanto idéias como multiplicidade de vozes, dialogia e inconclusibilidade ~ que sao idéias centrais em Problemas da Poética de Dostoié= vski ~ esto, para Bakhtin, implicitas na visio de mundo carnavalesca, 5. O termo menipéia refere-se a Menippus, filésofo cinico e poeta satirico que viveu na Grécia por volta do século HII a.c. Nenhum de seus textos sobreviveu, mas escritores do século seguinte, como Marcus Terentius Varro (Saturae Menippeae, etc) € Luciano (Mortuorum dialogi [Dislogo dos mortos}, etc), seguiram seu modelo, Esses dois autores escreveram, na forma de didlogos, sétiras e eriticas bem humoradas da sociedade ‘em que viveram, Em relagio a Rabelais, a influéncia da obra de Luciano ja foi diversas vezes apontada Entre 1937 e 1938, Bakhtin escreve “Formas de Tempo e de Cronotopo no Ro- mance”, dedicando dois capitulos a obra de Rabelais (BAKHTIN, 1988)®. A idéia de cro- notopo, originaria da matematica, é tomada por Bakhtin para pensar as relagdes de tempo ¢ espago dentro de géneros literarios e, especi- almente, fazer a conexdo desse cronotopo fic- ticio com 0 cronotopo “real ¢ histérico” da obra (BAKHTIN, 1988:211-12). Sob essa perspectiva, Rabelais foi quem teve a habili- dade para ir buscar na cultura popular “um novo mundo”, “uma nova forma de tempo e uma nova relacdo entre 0 tempo e 0 espaco”, isto. é, “um novo cronotopo”, frente a “‘decomposigo da vistio do mundo medieval” (BAKHTIN, 1988:315-16). Nio € dificil perceber 0 quanto as idéi- as de Bakhtin estio interligadas a cada novo ensaio. O interesse pela vistio de mundo car- navalesea e por sua materializagao literdria traz 4 tona os simbolos da ambivaléncia, da quebra da hierarquia, da aproximagao do homem com © mundo, da profanago, do tempo de crescimento, do espago em aberto, Todos esto intimamente ligados aos seus interesses anteriores que incluem, entre outros, a “prosaics” e os conceitos de inconclusibilidade e dialogia. No entanto, foi s6 a partir da obra de Rabelais que Bakhtin pode construir um modelo de uma determinada cultura popular que, no seu tempo, deu vida as idéias que Ihe eram mais caras. Varias idéias de Bakhtin podem ser en- contradas na obra do historiador italiano Carlo Ginzburg, que também fez da cultura popular um objeto privilegiado. Antes de falarmos dessa relagao, valeria a pena apresentar alguns pontos da trajetéria intelectual desse autor. Quem nos fornece o roteiro ¢ ele proprio, es- 6 Os capitulos mencionados so: cap. VI, "O Cronotopo de Rabelais” e cap. Vil, "Fundamentos Folcléricos do Cronotopo de Rabelais’. Nessa edigto também foi publicado 0 ensaio "Rabelais e Gogol” (BAKHTIN, 1988), 81 Bathkin, Ginzburg e a Cultura Popular pecialmente através do preficio escrito em 1986 para Mitos, Emblemas e Sinais, que reine artigos produzidos entre 1961 © 1984 (GINZBURG, 1989). Nos anos 50, Ginzburg (1939) tinha como livros de cabeceira, entre outros, Sptizer, Auerbach, Adorno, Freud ¢ Bloch, “todos lidos entre os dezoito ¢ os vinte anos” (GINZBURG, 1989:10). Na adoleseéncia, a carreira literaria chegou a ser pensada como uma possibilidade, mas foi logo depois abandonada, talvez por influéncia do ambiente familiar, j4 que sua mie, Natalia Ginzburg, falecida em 1991, foi uma eseritora famosa e de reconhecido talento. E através da literatura, em particular da revista Officina, que the chegam, além de Sptizer Auerbach, Gramsci, Croce e Contini. A Offici- rna the trazia ainda, em suas proprias palavras, um “entrelagamento de populismo e critica estilis- tica,tipico da cultura italiana do final dos anos SO” (GINZBURG, 1989:8). Nessa época, Ginzburg comegava a se envolver com pesquisas sobre feitigaria e pro- cessos inquisitoriais nos séculos XV, XVI € XVII. Em Os Andarithos do Bem (GINZBURG, 1988), ele detecta nos depoi- mentos de um grupo de acusados de feitigaria, conhecidos como benandanti, a existéncia de uma outra cultura ~ popular — que, apesar de submetida ao discurso inquisitorial, conseguiu manter-se de alguma forma viva aos olhos do historiador. A documentagio sobre esses “feiticeiros” da regio do Friul (norte da Italia), chama a ateng&o de Ginzburg nao apenas para aexisténcia de uma outra cultura, mas também para o fato de que seus valores passavam por uma chave de pensamento ndo_ racional, radicalmente diferente da cultura elit época, Durante © mesmo periodo de trabalho, sua atengdo se volta para uma série de analo- gias formais que pareciam surgir entre os da- dos encontrados nos processos do Friul muitos outros relatos ligados ao folelore popu- lar. Para trilhar um possivel caminho dessa Cadernos de Campo, n° 3, 1993, cultura, materializada em correspondéncias perdidas no tempo e no espago, Ginzburg tinha em mente uma postura bem clara: “superar na pesquisa concreta a antitese ideolégica entre racio- nalismo [da histéria] e irracionalismo [da atempo- ralidade}” (GINZBURG, 1989:8). Portanto, 0 indicio que surgia no trabalho sobre os benan- danti italianos implicava uma andlise que reunisse ao mesmo tempo conexées formais — a principio, em torno das crengas populares na feitigaria — e uma correspondente base histé- rica, Embora se possa especular sobre as razOes pessoais que levaram Ginzburg a uma proposta tao ampla ¢ radical, seu debate com 0 meio académico ja nos da, para usar uma pala- vra bem “ginzburguiana”, pistas do caminho tragado. Nos anos 60, 0 contato com o Instituto Warburg, em Londres, Ihe aponta duas dire- gGes: “o estudo da continuidade, rupturas e sobre- vivencias da tradigfo clissica” (GINZBURG, 1989:42) e a andlise de testemunhos figurados como base para consideragées historicas e para a. construgao de uma teoria geral da cultura, No trabalho do proprio Aby Warburg’, Ginzburg encontrou, sem diivida, ressondncias € inspiragdes das questées que Ihe preocupa- vam. Em primeiro lugar, a relagdo da arte com a cultura ganhava complexidade na medida em que Warburg propunha, nas palavras de Gin- zburg, que “por um lado, era preciso considerar as obras de arte & luz de testemunhos histéricos, de qualquer tipo e nivel, em condigdes de esclarecer a génese do seu significado; por outro, a propria obra de arte e as figuragdes de modo geral deveri- 7. Aby Warburg (Hamburgo, 1866-1929) foi um historiador da arte, cujo método pode ser definido, usando suas proprias palavras, como uma "andlise iconolégica". Um de seus maiores interesses foi estudar 4 transmissdo de crencas magicas © astrolégicas da Antiguidade ao Renascimento, através da Idade Média. Constituin pouco a pouco uma extensa biblioteca, transformada, a partir de 1920, no instituto que leva seu nome. Em 1933, para escapar do nazismo, F. Sax! ‘conseguiu @ transferéncia do acervo para Londres, onde até hoje esta o Instituto Warburg. 82 am ser interpretadas como uma fonte sui generis para a reconstrugao histériea” (GINZBURG, 1989:56 e 229), Essa via de mao dupla prati- camente corresponde 4 proposta que Ginzburg faz a si mesmo em relagio, neste caso, nfio A arte, mas as crengas populares na feiticaria, Soma-se a isso o fato de que as fontes que Warburg tinha em mente eram na maior parte das vezes detalhes, “documentos sem impor- tancia”. Um interesse reificado em seu lema preferido — “Deus est no particular” -, que com certeza nos da mais uma pista das batidas do coragao de Ginzburg, Os percalgos da geragao_ intelectual posterior a Warburg (F.Saxl, E. Panofsky, E.Gombrich, outros) na tentativa de fazer da arte a ponte para uma teoria da cultura so, na opiniao de Ginzburg, reflexos sobretudo da ambigiiidade intrinseca imagem figurativa. No trabalho de Saxl, ele vé emergir um circulo vicioso onde, apesar da erudigao, nao se dis- tingue claramente até que ponto a arte pode ser vista como uma fonte histérica independente. Panofsky vai justamente enfrentar essa questo da “circularidade” na analise iconogréfica propondo uma aproximagao da arte em trés niveis: 0 pré-iconogréfico, 0 iconografico ¢ 0 iconolégico. No terceiro, alcangando 0 estagio em que a obra revela, como no projeto de Warburg, “uma atitude de fundo em relacdo a0 mundo” (Panofsky, E., apud GINZBURG, 1989:66). Mas nao é ainda em Panofsky que Gin- zburg vé dissolver-se 0 problema da subje- tividade do observador traindo a objetividade da andlise, E Gombrich, na sua opiniao, que da 0 passos mais firmes nesta diregao, propondo uma anélise iconografica andloga a teoria da comunicaso, Segundo Ginzburg, a proposta de Gombrich por um lado, explicaria a conti- nuidade histérica dos “estilos” na arte — na medida em que vé 0 artista como aquele que produz uma manifestagdo figurativa singular a partir de tradigdes ¢ experiéncias pessoais an- teriores; mas, por outro, no apontaria um caminho seguro para resolver a questio de ‘como e por que esses mesmos estilos, além de se perpetuarem, sofrem transformagdes pro- fundas. Do ponto de vista de Ginzburg, ne- nhum desses autores construiu, na pratica, uma proposta aceitivel para resolver a questio da dupla relagdo entre arte ¢ histéria da forma como foi pensada por Warburg. Mas em ne- nhum momento 0 mérito ou o valor desses trabalhos parece ter sido colocado em duivida ‘Ao contrério, ao percorré-los, Ginzburg antes recolhia as pegas que o ajudariam na composi- ‘sao da sua propria resposta. Ainda nao foi nos anos 70 que essa resposta ficou pronta. Como ele mesmo procu- ra explicar, seu “projeto ambicioso [...J, como a montanha, acabou por parir apenas um rato” (GINZBURG, 1989:10). No ensaio “O alto ¢ 0 baixo”, de 1976, esti explicita a tentativa de estabelecer uma conexo histérica a partir de um nucleo formal. E significative que, na abertura de um pardgrafo, Ginzburg escreva: “A espécie humana tende a representar a realidade em termos de opostos.” (GINZBURG, 1989:97, grifo meu). Certamente, esse é um momento chave em que a opco inicial de Ginzburg pela historicidade, herdada de Mare Bloch, ia de encontro as incertezas plantadas por sua leitura da Antropologie Struturale, de Lévi-Strauss (GINZBURG, 1989:9). Ainda que a divisio entre 0 alto e 0 baixo ndo tenha ganho prenunciado ~ e alto — posto de categoria fundamental da human dade, a pesquisa para este texto continua mantendo Ginzburg proximo das suas prezadas pequenas pistas, por mais paradoxal que isso possa parecer. Essa proximidade é transparente em dois momentos. O primeiro deles & 0 proprio ponto de partida do ensaio. Nao é irre~ levante que, para chegar a uma categorla da espécie humana, Ginzburg parta de um “erro” na tradugo de uma passage da Epistola dos Romanos 11.20, de Sao Paulo, para a Vulgata de Sao Jerénimo. E, desse erro, passe a procu- 83 Bathkin, Ginzburg e a Cultura Popular rar outros pequenos indicios, construindo, a partir deles, a histéria de um “lapso coletivo” (GINZBURG, 1989:97). O segundo momento esta em O Queijo e@ os Vermes (GINZBURG, 1987). Ao contrario de “O Alto ¢ 0 Baixo”, este talvez tenha Ihe trazido resultados inesperados — jé que tem uma proposta incomparavelmente mais modesta. No livro, Ginzburg conta a histéria do moleiro Domenico Scandella (vulgo Menocchio) através dos autos do proceso inquisitorial a que foi submetido na regio do Friul, durante o século XVI. Dos depoimentos de Menocchio, ele recupera passo a passo seus habitos, leituras e, principalmente, sua cosmologia. Menocchio nao era o tipo “médio” de sua época, mas sua vontade de dizer 0 que pensava, seu acesso a literatura e a religiosi- dade ambigua em que acreditava, o mantinham indissoluvelmente ligado a um contexto hist- rico especifico. Em seu didlogo com o inquisi- dor, as dissonancias aparentemente pouco si- gnificativas entre os dois discursos deixaram claro para Ginzburg que se tratava de duas tradigdes culturais distintas conversando entre si — uma com raizes profundas na cultura po- pular, na tradigio oral camponesa, € outra, herdeira da cultura de elite. Ambas, mas em especial a primeira, marcadas pela difusio da imprensa e pela Reforma protestante. Se, em O Queijo e os Vermes, os fenémenos “aparentemente negligenciveis” conduziram Ginzburg 2 uma escrita eminen- temente histérica, em “Sinais: raizes de um paradigma indicidrio”, esses mesmos fenéme- nos reacenderam as questes em torno de uma andlise comparativa (GINZBURG, 1989). Neste ensaio, de 1979, Ginzburg esta interes sado nos métodos de trés personagens ~ 0 ci tico de arte italiano G. Morelli, Freud ¢ Sher- lock Holmes — como exemplos significativos do surgimento, no final do século de XIX, de um novo paradigma nas ciéncias humanas cuja base tinha uma conexao estreita com 0 modelo Cadernos de Campo, n° 3, 1993. semidtico. Seu ponto de partida é 1874, data da publicagfio dos primeiros textos de Morelli Para reconhecer a autenticidade de obras de arte, esse médico italiano propoe que se deixe de lado os tragos extraordindrios de um artista (como 0 sorriso de Da Vinci, por exemplo) € tome-se pequenos detathes (como o formato do lébulo das orelhas) para servir de modelo comparativo ¢, conseqiientemente, indicador de uma identidade autoral. A conexio entre 0 método de Morelli e as investigagdes de Sherlock Holmes, assim como a com a psica- nilise de Freud, néo ¢ uma novidade desco- berta por Ginzburg (GINZBURG, 1989:260- 61). No entanto, neste ensaio, ele retrocede no tempo até as origens cagadoras do homem para tragar uma linha imaginéria que recupera a existéncia desse tipo de conhecimento indici- rio desde, se nao se pudesse ir mais longe, as artes divinatérias mesopotimicas. O interesse de Ginzburg é claro: para le esté em jogo a importancia da investigagio indiciéria como uma forma de conhecimento legitima frente a0 paradigma de cientificidade construido a partir de Galileu. E aqui, a ques- to se coloca como uma reflexio que, sem davida, tem em vista a utilizagdo desse para- digma pelo historiador. Ele se pergunta se, a0 contrério, 0 rigor baseado no modelo cientifico “é nao s6 inatingivel mas também indesejével para as formas de saber mais ligadas & experiéncia coti- diana — ou, mais precisamente, a todas as situagdes em que a unicidade e o cardter insubstituivel dos dados so, aos olhos das pessoas envolvidas, decisivos.” (GINZBURG, 1989:179) © dilema da juventude entre “irracionalismo e racionalismo” continuava sendo 0 centro das atengdes de Ginzburg, Ao escrever “Sinais”, ele desestabilizava ainda mais sua propria visio da historiografia. Em suas palavras: “Nao sabia se preferia ampliar 0 Ambito do conhecimento hist6rico ou reduzir seus limites, se preferia resolver as dificuldades ligadas a0 meu trabalho ou criar continuamente novas.” 84 (GINZBURG, 1989:11) Esse dilema gera mais dois artigos. No primeiro, “Mitologia Germfnica e Nazismo”, de 1984, a reflexio € sobre o livro de G. Du- mézil Mythes et dieux de Germains, de 1939, € também sobre a critica extremamente favord- vel a esse trabalho, escrita* por Mare Bloch (GINZBURG, 1989). Na opiniao de Ginzburg, © livro de fato tinha, como apontou A. Mo- migliano, “tragos de simpatia pela cultura na- zista” (GINZBURG, 1989:182). Entretanto, com o aval de Bloch, ele se sente vontade para valorizar a relagdo de continuidade tem- poral longuissima proposta por Dumézil entre as raizes da mitologia germénica e a realidade cultural da Alemanha dos anos 30, como um dado que pode ser visto independentemente da interpretago ideolégica que Ihe foi imposta. No segundo artigo, “Freud, 0 homem dos lobos e os lobisomens”, o tema é a inter- pretagao do psicanalista a partir do sonho de um de seus pacientes, 0 russo que ficou co- nhecido como “o homem dos lobos” (GINZBURG, 1989). Na sua andlise, Freud teria. explicado 0 sonho como uma “reelaboragio da cena priméria”. Ginzburg nao questiona essa explicagio, mas nos apresenta duas informagdes adicionais. A primeira, de que, provavelmente, 0 paciente teria ouvido de sua babi historias do folclore popular a respei- to da relacdo entre lobisomens e o fato dele ter nascido com a coifa. A segunda, de que Freud, na sua interpretagdo, teria recuperado um termo — “cena priméria” — abandonado por ele proprio ha 17 anos. Haveria a possibilidade, portanto, do proprio Freud ~ vindo a saber das conexées folcléricas que ignorava ~ aceitar que seu paciente revivia um “nticleo sexual traumatico”, no apenas pessoal, mas pa- triménio da humanidade. Para Ginzburg, esta seria uma andlise viavel, mas nao convincente. Em primeiro lu- gar, porque uma explicagao filogénica remetia a0 conceito de arguétipo de Jung, cuja ““imprecisio e falta de rigor” eram imperdoa- veis do ponto de vista cientifico, Em segundo, porque a redugto das crengas populares a um niicleo sexual traumatico Ihe parecia ainda uma “simplificagdo —arbitréria” ~ (GINZBURG, 1989:215-16). No entanto, a idéia de um micleo mitico ligado as tradigdes folcléricas de feitigaria servindo para pensar a neurose the agrada. Para Freud, porém, essa proposta era apenas uma Ultima alternativa as categorias analiticas. E de Lévi-Strauss, da sua expresso “os mitos nos pensam”, que Ginzburg agora se aproxima, Que um micleo mitico existia, j4 ndo parece haver divida, Mas as armas para desvendi-lo so outras: “os meios so histéricos, identifi- caveis ou conjeturaveis de modo plausivel homens, mulheres, livros e documentos de arquivo que falam de homens e de mulheres.” (GINZBURG, 1989:217, grifo meu) Em Histéria Noturna, de 1989, € como se Ginzburg acertasse as contas consigo pro- prio (GINZBURG, 1991). Vinte e cinco anos antes, durante a elaboragdo de Os Andarithos do Bem, the pareceu eficiente a ope pela in- dependéncia do conhecimento histérico. Como vimos, essa posigdo sofreu mudangas profun- das em dirego A andlise morfologica. Histéria Noturna é, definitivamente, sua proposta con- reta para superar “a antitese entre raciona- lismo ¢ irracionalismo” que Ihe rondava desde a adolescéneia. Saxl conta que Warburg the disse, certa vez, uma frase que nunca esquece- ria: “Os problemas nfo se resolvem passando-os para os outros.” (GINZBURG, 1989:43) Estas palavras, mesmo lidas de segunda mao, devem ter sido fundamentais também para Ginzburg. A hipétese de Histéria Noturna é, sem meias palavras, a de que a passagem entre na- tureza e cultura se da a partir de um nicleo mitico primério: “a viagem do vivo a0 mundo dos mortos” (GINZBURG, 1991:37). Para fundamenti-la, Ginzburg vai percorrer, a0 mesmo tempo, dois caminhos. Por um lado, recolhe contos ¢ lendas da cultura popular li- gados a pritica da feitigaria que, intuitivamen- 85 Bathkin, Ginzburg e a Cultura Popular te, Ihe pareceram ter uma identidade morfolé- gica comum. Por outro, reconstrdi, através de fontes histéricas, um mapa de conexées espa- ciais e temporais entre as muitas variantes des- ses mitos. A imagem do sabd revelada na do- cumentago inquisitorial do século XIV € 0 ponto de partida de um fio condutor que tanto avanga quanto retrocede — de hoje até “o mais antigo que se pode atingir” (GINZBURG, 1991:37). Uma primeira aproximacao entre as visdes de Bakhtin ¢ Ginzburg sobre a cultura popular é clara. Assim como Bakhtin reco- nhecia no texto de Rabelais a expresso de uma cultura popular do seu tempo, Ginzburg, em O Queijo e os Vermes, parte do depoimento de Menocchio para formular um quadro mais amplo dos valores da cultura popular da Europa pré-industrial. Mais do que um proce- dimento anélogo, 0 coneeito de cultura popular delineado por Bakhtin em Rabelais... é, para Ginzburg, uma referéncia explicita e funda- mental (GINZBURG, 1987:20). A visio de mundo de Menocchio implicava tanto uma flagrante descontinuidade em relago a0 dis- curso elitizado do inquisidor, quanto uma série de evidentes referéncias a essa mesma cultura dominante, Em Hisiéria Noturna, da mesma forma, Ginzburg reconhece nos documentos inquisitoriais sobre a pratica de feitigaria um estrato cultural que conservava vivas as cren- gas do folclore popular, mesmo — mas nem sempre ~ quando submetidas As expectativas dos juizes (GINZBURG, 1991:24 e 85). B, portanto, sobretudo durante o processo de le- vantamento dos mitos populares que dao ori- gem sua hipétese, que Ginzburg mais se ap- roxima de Bakhtin. A fala distinta da cultura popular, que interessa tanto a um quanto ao outro, nao thes parece dbvia. Ao contrétio, como pesquisadores, cabe-lhes “encontrar a chave” para resgaté-la de um mundo subterra- neo, inexplorado, Nas palavras de Bakhtin, en- contramos um termo que tantas vezes seria Cadernos de Campo, n° 3, 1993. utilizado por Ginzburg: a “obra (de Rabelais], se convenientemente decifrada, permite iluminar a ‘cultura cémica popular de varios milénios, da qual Rabelais foi o eminente porta-voz na literatura.” (BAKHTIN, 1987:2-3, grifo meu) O que tam- bém remete a critica de Bakhtin as interpreta- ges da obra de Rabelais, cujo vinculo com a cultura cOmica popular permaneceu, na sua opinido, “incompreendido e pouco explorado”. (BAKHTIN, 1987) Essa afinidade chama a atengio para preocupagdes anteriores dos dois autores. Para © Bakhtin dos anos 20, em seus ensaios filosd- ficos e, como ja foi dito, em Questées da Lite- ratura, a singularidade da prosa esté na sua estreita, inseparavel, ligagdo com o mundo - com o mais prosaico dos acontecimentos. E, também esse deveria ser 0 espago da ética: normas indissociaveis da vida cotidiana. Uma questo de sabedoria, e ndo apenas conheci- mento. Como tantas vezes encontrou nas pagi- nas de Tolst6i, um de seus autores preferidos: “true life begins where the tiny bit begins” (MORSON & EMERSON, 1990:24 e ver tam- bém BAKHTIN, 1990). Em Ginzburg, o interesse pela “andlise do tipo microscépico” também jé foi mencio- nado aqui. A sombra de Sherlock Holmes estd, na sua opinido, um tipo de saber que passa necessariamente pelo imponderavel. Isto é, tanto durante a “investigagdo” quanto no mo- mento em que jd se est de posse dos dados — por definigdo individuais e insubstituiveis -, nio ha como recorrer somente a regras: ha que se ter intuigdo (GINZBURG, 1989:10 € 179). Como vimos, Bakhtin e Ginzburg re- conhecem a cultura popular — ¢ valores ¢ c6 gos que Ihe sio préprios ~ como algo que foi negligenciado, deixado & margem, pelo para- digma cientifico da sociedade moderna. De alguma forma, ambos estdo imbuidos da tarefa de trazer tona essa descontinuidade. Tanto para um quanto para 0 outro, na pritica, isso significa amparar-se na concretude dos dados. Esses dados, como a cultura da qual fazem 86 parte, nfo Ihes chegam em quantidade, mas na forma de pequenos indicios. Feita essa primeira aproximagao, resta saber 0 que a cultura popular ~ depois de reco- nhecida ~ representa para cada um deles. Creio ser neste ponto fundamental que residem as diferengas mais importantes. Em Rabelais... a cultura popular é 0 objeto de Bakhtin. Além de reconhecer sua existéncia, ele esté interessado no drama particular dessa cultura ~ na forma como 0 seu sistema simbélico foi vivenciado (VELHO & VIVEIROS DE CASTRO, 1980:22). Para o Ginzburg de Histéria Notur- na, a cultura popular é um meio. Um meio privilegiado de difusdo de um nucleo mitico que, na verdade, Ihe transcende integralmente, pois € patrimdnio da —humanidade (GINZBURG, 1991:37). Bakhtin ndo considera em nenhum momento a possibilidade de construir, mesmo num plano mais modesto do que o de Ginzbur- 2, um quadro estrutural explicativo do sistema de valores da cultura popular medieval. Para cle, a singularidade do seu objeto é inegocié- vel: “There is no alibi for being” (MORSON & EMERSON, 1990:31). Mas até que ponto po- demos entrever na sua anilise da obra de Ra- belais a complexidade de uma organizacao social em sua dimensao mais concreta, isto é, nna sua expresso individual? O sujeito que Bakhtin nos apresenta ¢, ao contrario, essen- cialmente coletivo. Uma das explicagdes possiveis para essa aparente contradigao talvez seja a de que Bakhtin est preocupado em definir uma cultura e nao uma sociedade. O que Ihe interessa é antes entender a “visto de mundo” da cultura cOmica popular do que refletir sobre a relagdo entre seus valores € a sociedade da qual faz parte. Por isso, é muito mais facil encontrar na sua analise da obra de Rabelais uma espécie de modelo (mas nao um sistema) ideal do que teria sido a expresso cotidiana da cultura popular medieval e renas- centista, As questées surgidas a partir de His- téria Noturna sao bem mais amplas. Seré que Ginzburg consegue demonstrar “experimentalmente, de um ponto de vista histérico”, a existéncia da natureza humana? Ou ainda, sera que isso & possivel? Ginzburg chegou a sua propria — ¢ afirmativa — resposta. Ja vimos que seu envolvimento com a questo 6 antigo ¢ intimamente ligado leitura de di- versos autores, como Warburg, Gombrich, Bloch, Dumézil, Freud. Em Histéria Noturna, no entanto, sua referéncia maior é Lévi-Strauss ¢, conseqiientemente, a lingitistica que, na opiniao de Ginzburg, foi a tinica disciplina nas Ciéneias Humanas capaz de transcender a bar- reira entre cientificidade ¢ a individualidade dos dados (GINZBURG, 1989:179). Para es- capar da antitese entre morfologia e histéria, Ginzburg propde uma anilise das variantes individuais dos mitos, a0 mesmo tempo sin- crénica e diacrénica. Propde também que dessa dupla perspectiva se chegue a um niicleo primario, supra-individual, sem perder de vista a dimensio histérica como base explicativa, Na sua discussio com Lévi-Strauss, portanto, Ginzburg espera estar recuperando a impor- tancia da historiografia e emergindo para al- gum lugar situado entre a “profundidade abstrata da estrutura (privilegiada por Lévi-Strauss) ¢ a concretude superficial do evento.” (GINZBURG, 1991:35) Bibliografia BAKHTIN, M. 1961 1986 University of Texas Press. 1987 Bathkin, Ginzburg e a Cultura Popular Ao seu resultado pode-se colocar no minimo uma questo: 0 miicleo mitico, depois de revelado, nao se tora ele préprio uma ca- tegoria explicativa? Neste caso, qual o papel que resta A disciplina histérica? Entretanto, em relagao a cultura popular, nfo € irrelevante que ela tenha sido o ponto de partida do seu proje- to. Ginzburg entende que somente nesse locus privilegiado da cultura popular pode ser en- contrado 0 caminho de resgate da “matriz de todos 0s contos possiveis” (GINZBURG, 1991:265). Da mesma forma, Bakhtin veria na cultura popular a mais importante fonte de inspiragao da produgio literdria. Talvez ainda mais do que isso. Na sua opiniio, a propria existéncia da prosa depende essencialmente do seu vinculo com a cultura popular, com a ex- presso do que ha de mais ordinario. Acredito, finalmente, que para os dois autores foi grande o esforgo — nem sempre bem. sucedido — de ocultar sob o manto cientifico uma predilego subjetiva pelos valores ¢ codigos que associaram A cultura popular. Em Ginzburg, a cultura popular parece ter 0 sabor da intuigdo indicidria, da adrenalina das t6rias de Sherlock Holmes. Para Bakhtin, é da cultura popular que se apreende uma sabedoria especial, uma ética de miltiplas possibilidades. Problémes de la Poétique de Dostoievski. Paris, Seuil. “Response to a Question from Novy Mir”, in Speech Genres and Other Late Essays. Austin, A Cultura Popular na Idade Média ¢ no Renascimento - O Contexto de Francois Rabelais. Sao Paulo, Hucitec, Brasilia, Universidade de Brasilia. 1988 1990 Questées de Literatura e de Estética - A Teoria do Romance. Sao Paulo, Hucitec. Art and Answerability - Early Philosophical Essays by M.M.Bakhtin. Michael Holquist & Vadim Liapunov (eds.), Austin, University of Texas Press. 87 Bathkin, Ginzburg e a Cultura Popular GINZBURG, C. 1987 0 Queijo e os Vermes - 0 cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisic&o. Sto Paulo, Companhia das Letras. 1988 Os Andarithos do Bem: Feiticarias e cultos agrdrios nos séculos XVI e XVII. Sto Paulo, Companhia das Letras. 1989 Mitos, Emblemas e Sinais. S80 Paulo, Companhia das Letras. 1991 Histéria Noturna - decifrando o sabd. Sao Paulo, Companhia das Letras. HISRCHKOP, K. 1989 “Bibliographical essay”, in Ken Hirschkop ¢ David Shepherd (eds.), Bakhtin and Cultural Theory. Manchester, Manchester University Press. MORSON, G. & EMERSON, C. 1990 Mikhail Bakhtin - A Creation of a Prosaics. Stanford, Stanford University Press. RABELAIS, F. 1991 Gargéntua e Pantagruel. Belo Horizonte, Villa Rica. TODOROV, T. 1981 Mikhail Bakhtine - le principe dialogique. Patis, Editions du Seuil. VELHO, G. & VIVEIROS de CASTRO, E. 1980 “O Conceito de Cultura ¢ o Estudo das Sociedades Complexas”. in Espaco: Cadernos de Cultura. Rio de Janeiro, USU, v.2, n°2, p.11-26. 88

You might also like