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MEDITACOES CONCERNENTES A PRIMEIRA FILOSOFIA NAS QUAISA EXISTENCIA DE DEUS E A DISTINCAO REAL ENTRE A ALMA E © CORPO DO HOMEM SAO DEMONSTRADAS PRIMEIRA MEDITAGAO'? Das Coisas que se Podem Colocar em Davida Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei stingir uma idade que fosse tao madu- fa que nao pudesse esperar outra apés ela, na qual eu estivesse mais apto para executa-la; o que me fez diferi-la por tio longo tempo que doravante acredi- taria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar 0 tempo que me festa para agi © A primeira Meditagao em como peculiaridade «© fsto de nao se tratar af de “estabelecer verdade gemma, mas apenas de me desfazer desses antigos prcjutnos". (Sélimas Respostas.) Sua composigao € sseguinie A) §51-3:0 principio da divida hiperbélic $3.15: argumontos que estendem e radicw- } argumento dos erros dos sentidos: (854-9); argumento do sonhio; (§§9-13): argamento que estende & ivida 90. valor objetivo das essén- clas matematicas, em daas etapas: o Deus enganador; © Génio Matigno. 2. Agora, pois, que meu espirito esta livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa Pacifica solidao, aplicar-me-ei seria- mente ¢ com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opinides. Ora, nao sera necessario, para alcan- gar esse designio, provar que todas elas sao falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razao ja me persuade de que nao devo menos cuidadosamente impedir-me de dar erédito as coisas que nao sao inteira- mente certas e indubitaveis, do que as que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de divida que eu nelas encontrar bastara para me levar a rejeitar todas’ +. E, para isso, nao € necessario que examine cada uma em particular, 0 que seria um tra- balho infinito; mas, visto que a ruina dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edificio, dedi- car-me-ci inicialmente aos principios sobre os quais todas as minhas antigas 14 A davida assim posta em ago: a) distinguir-se- da divida vulgar pelo fato de ser engendrada nto por experiéncia, mas por uma decisao; b) sera “hiperbélica”, isto é, sistematica ¢ generatizada; ¢) onsistira, pois, em tratar-como falso 0 que é apenas duvidoso, como sempre enganador o que alguma vex me enganou. 94 DESCARTES }. Mas, ainda que os sentidos nos enganem as vezes, no que se refere As coisas pouco sensiveis € muito distan- tes. encontramos talvez muitas outras, das quais nao se pode razoavelmente duyidar, embora as conhecéssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, ves- tido com um chambre, tendo este papel entre as maos ¢ i nts B somo poeta eu negrque “estas MEos ¢ este corpo sejam meus? A nao ser, talvez, que eu me compare e esses insensatos. cujo cérebro est4 de tal modo perturbado ¢ ofuscado pelos negros vapores da bile que constante- mente asseguram que sao reis quando sao muito pobres; que estao vestidos de ouro e de purpura quando estao inteiramente nus; ou imaginam ser cantaros ou ter um corpo de vidro. Mas qué? SAo loucos ¢ eu nao seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos. uantas vezes Ocorreu-me so- nhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteira- mente nu dentro de meu |éito? Parece- me agora que nao é com olhos adorme- cidos que contemplo este papel; que esta Cabega que eu mexo nao esta dor- 1. Argumento do erro do sentido, primeiro grau da divide. E insuficiente para nos fazer duvidar siste- maticamente de nossas percepodes sensiveis. *# Aqui comeca o argument do. sonho, segundo grav da divida, que ira estendé-a a todo conheci: ‘mento sensivel, ou pelo menos a seu contedido, mente; que é com designio e propésito deliberado que estendo esta mao ¢ que 4 sinto:’o que ocorre no sono nao paré- ce ser tao claro nem tao distinto quan- to tudo isso. do-me neste pensamento, yejo 10 manifestamente que nao ha quaisquer indicios concludentes, nem marcas. assaz certas por onde se possa distin guir nitidamente a vigilia do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo. 6. Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabega, que estendemos as mos, € coisas seme~ Ihantes, nao passam de falsas ilusdes: = pensemos que talyez nossas mos, assim. como todo 0 nosso corpo, nao sao tais como os yemos, Todavia, € preciso ao menos confessar que as cob Sas que nos sao representadas durante © sono sao como quadros ¢ pinturas. que nfo podem ser formados senao & semelhanga de algo real e verdadeiro: 6 que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabega, maos & todo o resto do corpo, nao sfo coisas imagindrias, mas verdadeiras e existex tes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com © maior artificio em representar sereias © satiros por formas estranhas e extraas- dinarias, nao lhes podem, todavia, at buir formas ¢ naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certa mistura € composicao dos membros de diver: 805 animais; ou entdo, se porventurs sua imaginagao for assaz extravagante para inventar algo de tao novo, que je mais tenhamos visto coisa semelhante, € que assim sua obra nos representa uma coisa puramente ficticia ¢ absola- MEDITACGOES 95 tamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compoem devem ser verdadeiras. 7. E pela: mesma razao, ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabega, maos € outras semelhantes, possam ser imaginarias. € preciso, todavia, confessar que ha coisas ainda mais simples ¢ mais umiversais, que sao verdadeiras e existentes; de cuja mistura, nem mais nem menos do que da mistura de algumas cores verdadei- ras, sao Tormadas todas essas imagens das coisas que residem em nosso pensamento, quer verdadeiras e reais, quer ficticias ¢ fantasiicas. Desse géne- ro de coisas € a natureza corpérea em geral, € sua extensdo; juntamente com a figura das coisas extensas, sua quan- tidade, ou grandeza, e seu nimero; como também o lugar em que estdo, 0 tempo que mede sua duragao ¢ outras coisas semelhantes! 7. . Eis por que, talvez, dai nés nao concluamos mal se dissermos que a Fi- sica, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciéncias dependentes da consideragao das coisas compostas sio muito duvidosas e incertas; mas que a Aritmética, a Geometria e as ou- tras ciéncias desta natureza, que nao tratam senao de coisas muito simples ¢ muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou nao na natureza, contém alguma coisa de certo ¢ indubi- tavel. Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais trés formarao sempre 0 niimiero cinco ¢ 0 +> O segundo argumento encontra, pois, seu limi- ter ele mao me permite por em divida os compo- nentes de minhas percepgbes, a saber, as “naturezas simples”, indecomponiveis (Figura, quantidade, es- ago, tempo), que sao o objeto da Matematica. Tais elementos “escapam, contrariamente eos objetos sensiveis, a todas as razées nalurais de duvidar’” sublinha Guéroult, apoiando-se no texto da Quinta Meditagdo: “A natureza de meu espirito é tal que eu io me poderia impedir de julgi-tas verdadeiras, enquanto as concebo clara € distintamente”. Dai necessidade de recorrer a0 terceiro argumento que abslara esta certeza “natural”. quadrado nunca tera mais do que qua- tro lados; ¢ nado parece possivel que verdades tao patentes possam ser sus- Peitas de alguma falsidade ou incerte- Za. 9. Tedavia, ha muito que tenho no meu espirito certa opiniao’® de que ha um Deus que tudo pode e por quem fui criado € produzido tal como sou. Ora, quem me poderA assegurar que esse Deus nao tenha feito com que nao haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhu- ma grandeza, nenhum lugar e que, nao obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas ¢ que tudo isso nao me parega existir de maneira diferente daguela quecuvejo? B. mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acre- ditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que fago a adigao de dois mais trés, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais facil, se € que se pode i imaginar algo mais facil do que isso, Mas pode ser que Deus nao tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse 4 sua bondade fazer-me de tal modo que eu me enga- nasse sempre, pareceria também ser- the contrario permitir que eu me enga- ne algumas vezes e, no entanto, nao posso duvidar de que ele mo permi- tars. 10. Haverd talvez aqui pessoas que preferirao negar a existéncia de um Deus tao poderoso a acreditar que 1 Essa “opiniao” € sustentacia pelos teblogos das Segundas Objerdes: Deus. dad: sua onipoténcia, pode hos enganar, Nao € o parecer de Descartes: 0 engano em Deus constituiria ndo s6 um sinal de malignidade, mas de ndo-ser. (Col. com Burman.) Isso redunda em afirmar o valor tio-somente meto- dolbgico dessa suposig#o sntinatural, 1* A consideracao da bondade, por si sb, no basta bara invalidar a Suposigao, Cf. a nota precedente. 96 DESCARTES todas as outras coisas sio incertas, Mas nao lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fibula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado € a0 ser que possuo, quer 0 atribuam a algum destino ou fatali- dade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma conti- nua série € conexao das coisas, ¢ certo que, j& que falhar e enganar-se € uma espécie de imperfeicao, quanto menos poderoso for o autor a que atribuirem minha origem tanto mais sera provavel que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razdes as quais nada tenho a responder, mas sou obri- gado a confessar que, @@\fodaslas Opie nides que recebi outrora em minha crenga como verdadéiras, nado ha ne- shuma da qual nao possa duvidar atualmente, nao por alguma inconside- ragdo ou leviandade, mas por razdes muito fortes e maduramente considera- das: de sorte que é necessério que interrompa ¢ suspenda doravante meu juizo sobre tais pensamentos, ¢ que nao mais thes dé crédito, como faria com as coisas que me parecem eviden- temente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciéncias?®, II. Mas nao basta ter feito tais consideragdes, € preciso ainda que cuide de lembrar-me delas; pois essas antigas € ordinarias opinides ainda me voltam amitide ao pensamento, dan- do-lhes a longa ¢ familiar tonvivéncia que tiveram comigo o direito de ocu- par meu espirito mau grado meu e de tornarem-se quase que senhoras de minha crenga. E jamais perderei 0 cos- tume de aquiescer a isso ¢ de confiar nelas, enquanto as considerat como sao efetivamente, ou seja, como duyi- 20 A divida é agora universalizada. dosas de alguma maneira, como aca- bamos de mostrar, ¢ todavia muito provaveis, de sorte que se tem muito mais razao em acreditar nelas do que em negé-las. Eis por que penso que me utilizarei delas mais prudentemente se, tomando partido contrério, empregar todos os meus cuidados em enganar- me a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos sao falsos ¢ imagi- narios; até que, tendo de tal modo! sopesado meus prejuizos, eles nao pos- sam inclinar minha opiniao mais para um lado do que para o outro, ¢ mew jufzo nao mais seja doravante domi- nado por maus usos é€ desviado do reto caminho que pode conduzi-lo ao co- Mliecimentolda verdade, Pois estou se- guro de que, apesar disso, nao pode hayer perigo nem erro nesta via e de que nao poderia hoje aceder dema- siado @ minha desconfianga, posto que nao se trata no eee agir, mas somente de meditar ¢ de conhecer. 12. Suporei, pois, que ha nao um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo B@Higl MialigWO4, nao menos ardiloso e enga- nador do que poderoso, ue empregou: toda a sua indiistria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons ¢ todas as coisas exteriores que vemos sao apenas iluses © enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ci a mim mesmo abso- lutamente desprovido de maos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crenga de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; € se, por esse Meio, 71 A fungio do Deus enganador e do Génio Malig- no é a mesma: porém 0 Génio Maligno € um artift- cio psicolégico que; impressionando mais a minha imaginacao, levar-me-A 8 tomar a divida mais. a sério © a inscrevé-la melhor em minha meméria ("E preciso ainda que cuide de lembrar-me dela”). MEDITACOES a? nao est&é em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos esta ao meu clean pene] (EERHMZKis por que cuidarei zelosa- mente de nao receber em minha crenga nenhuma falsidade, ¢ prepararei tao bem meu espirito a todos os ardis - desse grande enganador que, por pode- Toso & ardiloso que'seja, nunca podera na diffculdade de exercer uma divida tio radical nao & enfatica, quanta mais a d0- vida for vivida como radical, mais as certezas que se impuserem, em seguida, se apresentario como inabalaveis. Tomar 9 divida Jevianamente é expor- 3) pe eaniceanc tn pais ae ae gies. A este propdsito, cf. 203. — “Nao hé erro mais grave”, diz Alain, “do que julgar que esta di- vida € fingida. Nao ha tambem erro mais comum, porque poucos homens jogam este jogo seriamen- ee MEDITAGAO SEGUNDA? Da Natureza do Espirito Humano; e de como Ele é Mais Facil de Conhecer do que o Corpo 1. A Meditagio que fiz ontem en- cheu-me o espirito de tantas dividas, que doravante nao esté mais em meu alcance esquecé-las, E, no entanto, nao 2. Arquimedes, para tirar o globo yejo de que maneira poderia resolyé- terrestre de seu lugar e€ transporté-lo las; e, como se de sibito tivesse caido para outra parte, nao pedia nada mais em Aguas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu- modo surpreso que nao posso nem fir- ro. Assim, terei o direito de conceber mar meus pés no fundo, nem nadar_ altas esperangas, se for bastante feliz para me manter a tona.[ESfOE@AESMEX para encontrar somente uma coisa que seja certa ¢ indubitavel? *. 2 "Plano da Meditagao: A) §$1-9: da natureza do espitito huma nO. §61- conguuista da primeira certeza: 81-2) procra de uma primeira “2 May que set eu, se nao ha nen (G4): “lu sou, eu exista”: ma outra coisa diferente das que acabo. §§5-9: reflexdo sobre esta primeira certe: de julgar incertas, da qual nao se possa ee Seta ter a menor divida? Nao havera algum (§§5-3% quem sou eu, eu gue oe estou certo que sou” Uma coisa Deus, ou alguma outra poteéncia, que Densante. Determinagéo da esséx- me ponha no espirito tais pensamen- ciado Eu 7 se ka, (§9): descrigZo da “coisa pensante” 10S? Isso nao € necessario; pois talvez © distinggo entre o pensamento S¢ja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu entao, pelo menos, nao serci alguma coisa? Mas ja neguei que (atributo principal desta substin- cia) € suas outras faculdades; B) §§10-18: ...¢ de como cle & mais facil de conhecer do que 0 corpo: Contraprova da segunda certeza (0 pe 2* A primeira certeza adquirida nao sera, pois, a dago de cera) © conquista da, terceita ; deve apenas inaugurar a cadeia das certexa, 100, tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue dai? Serei de tal modo depen- dente do corpo e dos sentidos que nao possa existir sem cles? Mas eu me per- suadi de que nada existia no mundo, que nao havia nenhum céu, nenhuma terra, espiritos alguns, nem corpos alguns: nao me persuadi também, por- tanto, de que eu nao existia? 5? Certa- mente nao, eu existia sem diivida, se € que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas ha algum, nao sei qual, enganador mui poderoso e m ardiloso que emprega toda a sua indis- tria em enganar-me sempre. 4% Retomemos o raciocinio. No ponto em que estou, no poderia eu ter a certeza da: existencia de “algum Deus"? Nao, nada 0 exige (e um dos principios da andlise dos geimetras € 0 de nfo femoniar a uma verdade superior Aguela com que posso me contentar). Irei invpear a certeza de minha existéncia como individuo, sujeito concreto? Na nada 0. permite, visto: que pus em divida a exi éncia de tudo 0 que hi "no mundo”... Mas cuida: do! A “hesitagio” aqui & ditada pelo medo de uma confusio: Fel & regra da divida, nfo tenho motivo de abrir exceyio em favor do homem concrete que sou; mas, aquém deste, hd algo que ira resistir a da- Vida. £ doravante o Eu nao sera mais este Fu de chambre € ao pé do fogo que a Primcira Meditagao evocava (como indica Goldschmidt, Congreso Descartes de Royaumont, pig, $3). 24 Essa frase evidencia bem 0 papel do “Grande Embusisiro”: impor a meus pensamentos uma prova de tal ordem que aquele que lhe resistir saja, quando nao garantido como verdadeiro (€ impos- sivel antes da prova da existéncia de Deus), pelo! menos recebido come certo, Se niio fosse arrnncado, extorquido a0 Génio Maligno, 0 Cogizo nio passa ria de uma banalidade. Sobre « originalidade do Cogito, cf. o fim do opisculo de Pascal: De Esprit Géométrique. DESCARTES 5. Mas nao conhego ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que dora- vante € preciso que eu atente com todo cuidado, para nao tomar imprudente- mente alguma outra coisa por mim, ¢ assim para nao equivocar-me neste conhecimento que afirmo ser mais certo ¢ mais evidente do que todos os que tive até agora?®. 6. Eis por que considerarei de novo © que acreditava ser, antes de me empenhar nestes filtimos pensamento: ¢ de minhas antigas opinioes suprim: rei tudo o que pode ser combatido pelas raz6es que aleguei ha pouco, de sorte qué permanega apenas precisa- mente o que é de todo indubitavel. O que, pois, acreditava eu ser até aqui? Sem dificuldade, pensei que era um homem. Mas que é um homem? Direi que é um animal racional? Certamente nao: pois seria necessério em seguida pesquisar o que € animal e o que é racional e assim, de uma s6 questao, cairiamos insensivelmente numa infini- dade de outras mais dificeis ¢ embara- gosas, € cu nao quereria abusar do pouco tempo ¢ lazer que me resta empregando-o em deslindar seme 2” © fim da frase indica que ela si & verdadeira cada ver que penso nela afalmente. £ também uma transigao, pois permitira responder a pergunts que agora havera de colocar-te: qual € a naturezs deste Eu-existente que acabo de afirmar? #8 Eu no conhego, ainda, 0 conteiido desta exis- téncla que acabo de afirmar. Importa, pois, encon- trilo pela exclusiva andlise dos dados do problema, Istolé, por determinagao. ievando em conta tudo que € dado, mas excluindo tudo o que néo 0 é (a referéncia a Regra XII & aqui indispensavel). Notar a frase "é preciso que eu atente com todo cuidado para nfo tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim”, que serin absurdo no plano da Psi- cologia © que se justifica apenas ao nivel de uma Al- gebra das nogdes, comparavel a “Algebra dos comprimentos” das Regulae. MEDITAGOES thantes sutilezas?®. |IMas, antes, deter me-ei em considerar aqui os pensa- mentos que antcriormente nasciam por si mesmos em meu espirito e que cram inspirados apenas por minha natureza, quando me aplicava 4 consideragao de meu ser. Considerava-me, _inicial- mente, como provido de rosto, maos, bragos ¢ toda essa mfquina composta de ossos € carne, tal como ela aparece em um cadaver, a qual eu designava pelo nome de corpo. Considerava, além disso, que me alimentava, que caminhava, que sentia e que pensava e relacionava todas essas agdes A alma*°®; mas nao me detinha em pen- sar em que consistia essa alma, ou, se o fazia, imaginava que era algo extre- mamente raro ¢ sutil, como um yento, uma flama ou um ar niuito ténue, que estava insinuado e disseminado nas minhas partes mais grosseiras. No que se referia ao corpo, nao duvidava de maneira alguma de sua natureza; pois pensava conhecé-la’' mui distintamente e, se quisesse explicé-la segundo as nogdes que dela tinha, té-la-ia descrito desta maneira: por corpo entendo tudo © que pode ser limitado por alguma figura; que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espago de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluido; que pode ser sentido ou pelo tato, ou pela visdo, ou pela audi- go, ou pelo olfato; que pode ser movi- do de muitas maneiras, nado por si mesmo, mas por algo de alheio pelo 2% Sobre este método de determinagie do pro- blema por segregagao, of. o dilogo: Recherche de la Vérité (Piéiade, pags. 892-94), Ao interlocutor aturdido que acaba de responder: “Diria, portanto, que sou um homem", 0 cartesiana replica: “Nao presials aleneda ao que perguntel e x resposta que apresentais, embora vos pareca simples, langar- vos-ia cm questées muito atduas e muito embarago- 535, $0 cu quisesse aperta-las por menos que seja Nic entendestes bem a minha pergunta e respondei & mais coisas do que vos perguntel... Dizei-me, pois,.o que sois propriamente, na medida em que duvidals” 29 CE, Respostas, 308. 101 qual seja tocado e do qual receba a impressao. Pois nao acreditava de modo algum que se deyesse atribuir a natureza corpérea vantagens como ter de si o poder de mover-se, de sentir € de pensar; ao contrario, espantava-me antes ao ver que semelhantes faculda- des se encontravam em certos cor- pos?? 7. Mas eu, 0 que sou eu, agora que suponho*? que ha alguém que é extre- mamente poderoso e, se ouso dizé-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas foreas ¢ toda a sua indiis- tria em enganar-me? Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribui ha pouco 4 natureza corpo- rea? Detenho-me em pensar nisto com atengio, passo e repasso todas essas coisas em meu espirito, e ndo encontro nenhuma que possa dizer que exista em mim. Nao é necessario que me de- more a enumera-las. Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se ha alguns que existam em mim. {OS)pre meiros sao alimentar-me ¢ caminhar; mas, se & verdade que nao possuo corpo algum, & verdade também que nao posso nem caminhar nem alimen- tar-me. Um outro é sentir; mas nao se pode'também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reco- nheci, ao despertar, nao ter sentido efetivamente. Um outro € pensar; ¢ verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; s6 ele nao 2 Este conhecimento “natural” que eu tenho de mim mesmo antes da prova da divida sera inteira- mente (also? Nao. Se a alma é concebida & maneira dos escolfisticos, em troca i distingo entre'0 corpo 0 espitita (indispensavel A Fisica) ests ai presente, mas 3 titulo de opiniao provavel, sem fundamento, Ci. Respostas, 204, 32 Mudanga de plano. Do pensamento inspiraao por “minha natureza” passamos & sé idéia de mim ‘mesmo compativel com a instauracao da diivida, da indeterminagio psicolbgica & determinagao metali- sica. 102 Nada admito agora que nao seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senao uma coisa que pensa, isto €, um espiri- to, um entendimento ou uma razao, que sao termos cuja significagao me eta anteriormente** — desconhecida. Excitarei ainda minha imaginagdo para procurar saber se nao sou algo mais. Eu nao sou essa reuniao de membros que se chama o corpo humano; nao sou um ar ténue e pene- trante, disseminado por todos esses membros; néo sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir ¢ imaginar, posto que supus que tudo isso nao era nada e que, sem mudar essa suposicao, verifico que nao deixo de estar seguro de que sou algu- ma coisa #%, 8. Mas também pode ocorrer que essas mesmas coisas, que suponho nao 23 Entre todas as faculdades: 1) do corpo — 2) da alma, uma 3, 0 pensamento, resiste & cxclusio, Vemos aqui a importancia do fim do'§ 4: “Esta proposigiio — en sou, eu existo — € necessaria mente verdadeira sempre que eu a promuncio ou que eu a concebo em meu espirita” E ao refletir sobre esta inseparabilidade — nico dado que se encontra em minha posse — que obtenho imédiatamente a matureza “daquilo que sou”. Trata-se da primeira vyerdade da cadeia derazoes. 44 “Anteriormente”, isto €, no plano em’ que nos solocava o pardigrafo precedente, cu podia proferir estas palavras, mas sem lhes ter determinado a sen: tido, portanto sem conliecé-Jo, 3% Sobre o fim desse parigrafo, cf, 505 e segs. Nao h& necessidade alguma de ir procurar em outra parte uma resposta, visto que dei a linica resposta ‘que respeitava os dados do problema: “Eu sou uma ‘coisa que pensa”. Mas “o homem natural” sente-se lentado a recorrer & imaginagao a fim de completar esta resposta. Ha nisso uma inclinago que o para grafo seguinte ir desenraizar. DESCARTES existirem, j& que me sao desconhe- cidas, nado sejam efetivamente diferen- tes de mim, que eu conhego? Nada sei a respeito; nao o discuto atualmente, nao posso dar meu juizo senao a coisas que me sao conhecida: ee iRetonheeiliserlOra, € muito certo que ¢ssa nogao e conhecimento de mim Tesmo, assim precisamente tomada, nao depende em nada das coisas cuja existéncia nado me é ainda conheci- da?*®; nem, por conseguinte, e com mais razio de nenhuma daquelas que sao fingidas e inventadas pela imagina- ¢ao. E mesmo esses termos fingir e imaginar advertem-me de meu erro; pois cu fingiria cfetivamente se imagi- nasse ser alguma coisa, posto que ima- ginar nada mais é do que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa cor- poral. Ora, sei ja certamente que eu sou, € que, ao mesmo tempo, pode ocorrer que todas essas imagens ¢, em geral, todas as coisas que se relacio- nam @ natureza do corpo sejam apenas sonhos ou quimeras. Em seguimento disso, vejo claramente que teria tao pouca razao ao dizer: excitarei minha imaginagao para conhecer mais distin- tamente © que sou, como se dissesse: estou atwalmente acordado e percebo algo de real e de verdadeiro; mas, visto que nao o percebo ainda assaz nitida- mente, dormiria intencionalmente a fim de que meus sonhos mo represen- tassem com maior verdade e evidéncia. E, assim, reconhego certamente que nada, de tudo 0 que posso com- preender por meio da imaginagao, per- tence a este conhecimento que tenho de mim mesmo e que é necessério lembrar © © contraditor que retorquisse haver talvez em mim alguma outra faculdade desconhecida situar- se-ia no plano da Psicologia ¢ nao das razées meta- fisicas, Um dos principios da andlise € que nao tenho 6 direito de argilir propriedades ainda desco- nhecidas para combater as que se acham agora estabelecidas, MEDITACOES e desviar o espfrito dessa maneira de conceber a fim de que ele proprio possa reconhecer muito distintamente sua natureza??, 9. Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que € uma coisa que pensa? E uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que nao quer, que imagina tam- bem © que sente**, Certamente nao pouco se todas essas coisas pertencem 4 minha natureza. Mas por que nao the pertenceriam? Naolsou éipropriolesse mesmo que duvida de quase tudo, que, no entanto, entende e concebe certas coisas, que assegura e afirma que somente tais coisas sao verdadeiras, que nega todas as demais, que quer e deseja conhecé-las mais, que nao quer ser enganado, que imagina muitas coi- sas, mesmo mau grado seu, e que sente também muitas como que por inter- média dos érgaos do corpo? Haver4 algo em tudo isso que nao seja tao ver- dadeiro quanto é certo que sou e que existo, mesmo se dormisse sempre e ainda quando aquele que me deu a existéncia se servisse de todas as suas foreas pata enganarme?Maverd, talm> bém, algum desses atributos que possa ser distinguido de meu pensamento, ou que se possa dizer que existe separado >7 Em virtude desse principio, niio me £ dado abso- Jutamente o direito de recorrer & imaginagéo, pois “tudo quanto posso compreender por seu meio” fot excluido pela divida. Por ai eu sti, a0 mesmo tempo, que minha, naturezn & paro.peneamento exclusivo de todo elemento corporal. & a segunda verdade, a qual nfio se deve confundir com a distin~ ao real entre a alma € o corpo, estabelecida somen- fe na Meditagao Sexta. CI. 510. ** Cumpre observat a diferenga relativamente definigso do § 7: “Isto € um espirito, um entendi- mento ou uma raz8o™. Ai determinava-se a esséncia da substincia “coisa pensante”; aqui ela é descrita cevestida de seus diferentes modos. Desse novo ponto de vista, reintegra-se na ‘coisa pensante” 0 gue fora excluido de sua esséncia. Todos. esses modos (imaginar, sentir, querer), embora:nio: per- fengam & minha natureza, no podem ser postos em Sivida, na medida em que se beneficiam da certeza So Cogito. 103 de mim mesmo? Pois é por si tio evi- dente que sou eu quem duyida, quem entende e quem deseja que nao é neces- sario nada acrescentar aqui para expli- ca-lo. E tenho também certamente 0 poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer (como supus anterior- mente) que as coisas que imagino nao sejam verdadeiras, este poder de imagi- nar nao deixa, no entanto, de existir realmente em_mim _e faz parte do meu pensamento. Enfim, sou o mesmo que sente, isto ¢, que recebe e conhece as coisas como que pelos drgdos dos sen- tidos, posto que, com efeito, vejo a luz, jougo © ruido, sinto 6 calor, Mas dir- mé-a0 que essas aparencias sao falsas e que eu durmo. Que assim seja; toda- via,.ao menos, € muito certo que me Parece que yejo, que ougo © que me aquego; e € propriamente aquilo que em mim se chamalS@filife isto, tomado assim precisamente, nada é senacjpeng Sarg Donde, comego a conhecer o que sou, com um pouco mais de luz e de distineao do que anteriormente>>. 10. Mas nfo me posso impedir de crer que as. coisas corpéreas*°, cujas imagens se formam pelo meu pensa- mento, € que se apresentam aos senti- dos, sejam mais distintamente conheci- das do que essa nao sei que parte de mim mesmo que nao se apresenta 4 imaginagao: embora, com efeito, seja uma coisa bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantes sejam mais claras e mais facilmente conhecidas por mim do que aquelas 42 A saber, um pensamento; a) distinto dos corpos, se os houver; b) distinto das faculdades nao propria- mente intelectuais, como a imaginagao, que sO me pertencem porque implicam este pensamento puro. 4° Novo assalto do pensamento imaginativo ine- rente 4 “minha natureza” e do qual nao posso ainda me desprender: estou convencido, mas nao persuia- dido. Dai a necessidade de uma contraprova que serviré para estabelecer a terceira verdade, Como todas as figuras de retérica das Meditacdes, esta integrase na ordem, DESCARTES 104 todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou a visao, ou ao tato, ou a audigio, encontram-se mu- dadas ¢, no entanto, a mesma Cera per- manece. Talvez fosse como penso que sdo verdadeiras e certas ¢ que tencem & minha propria naturesa A Soltemos-lhe, pois, ainda uma vez, as rédeas a fim de que, vindo, em seguida, a libertar-se delas suave e oportunamente, possamos mais facil- mente domina-lo e conduzi-lo*’. 11, Comecemos pela consideragéo. das coisas mais comuns e que acredi- tamos compreender mais distinta- mente, a saber, 0s corpos que tocamos € que vemos. Nao pretendo falar dos corpos em geral, pois essas nogoes ge- rais séo ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particu- lar. Tomemos, por exemplo, este peda- go de cera que acaba de ser tirado da colmeia: cle nao perdeu ainda a dogura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, sao patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzira algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste. 12. Mas eis que, enquanto falo, € aproximado do fogo: o que nele resta- va de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor s¢ modifica, sua figura se alte- ra, sua grandeza aumenta, ele torna-se liquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum que €, pois, que se conhecia deste pedago de cera com tanta distingao? Certamente nao pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que +1 Em outros termos: fagamos de conta que inter rompemos a ordem a fim de seguir o senso. comum em seu proprio terreno. Sobre o fato de: ser esta transgressao apenas aparente, cf. o importantissimo § 515 das Respostas. Samente, que eu imagino quando a concebo dessa maneira? Considere- mo-lo atentamente e, afastando todas as coi as que nao pertencem 4 cera. (Meleimutavel Ora, 0 que ¢ isto: flexi- vel e mutavel? Nao estou imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e de passar do atualmente, a saber, que a cera nao era nem essa dogura do mel, nem esse agradavel odor das flores, nem essa Mas o que sera, falando preci- uadrado_a_uma_figura triangular? 13. E, agora, que é essa extensao? Nao sera ela igualmente desconhecida, J& que na cera que se funde ela aumen- tae fica ainda maior quando esté intei- ramente fundida e muito mais ainda quando o calor aumenta? E eu nao conceberia claramente ¢ segundo a ver- dade o que é a cera, sé nao pensasse que é capaz de receber mais variedades 4% Raviocinio em duas partes: |." 0 que me permite reeonhever a mesma cera € sua identidade na medi- da em que a cera é coisa extensa; 2.° mas este con- tetido 90 pode ser idéia ¢ nao imagem da extensi0 que © corpo ocupa atualmente ou daquelas (em ni mero finito) que poderia ocupar em. seguida. Cr. Quintas Respostas: “As faculdades de entender ¢ de imaginar diferem no s6 segundo 0 mais e o menos, porém como duas maneiras de agir totalmente diferentes”. MEDITAGOES 105 segundo a extensao do que jamais ima- ginei. E preciso, pois, que eu concorde que nao poderia mesmo conceber pela imaginagao o que & essa cera e que _ somente meu entendimento € quem 0 (GOREEESS; digo este pedaco de cera em particular, pois para a cera em geral é ainda mais evidente. Ora, qual € esta cera que nao pode ser concebida senao pelo entendimento ou pelo espi- rito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a conhecia desde o comego. 14. Entretanto, eu nao poderia es- pantar-me demasiado ao considerar 0 quanto meu espirito tem de fraqueza ¢ de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar cu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detém-me, todavia, ¢ sou quase enganado pelos termos da lin- guagem comum; pois nds dizemos que vemos a mesma cera, s¢ no-la apresen- tam, € nfo que julgamos que € a mesma, pelo fato de ter a mesma cor ¢ a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela viséo dos olhos ¢ nao pela tao-sd ins- pegao do espirito, se por acaso nao olhasse pela janela homens que pas- sam pela rua, a vista dos quais nao deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que yejo a cera; €, entretanto, que vejo desta jane- “3 Por onde fica provado niio s} que a imaginagZo no pode me dar a Conhecer a natureza dos corpos que se the apresentam (0 que era o objetivo da contraprova), mas ainda que o pensamento pura & 0 ‘inico eanaz de fazé-to. la, sendo chapéus ¢ casacos que podem cobrir espectros ou homens ficticios que se movem apenas por molas? Mas julgo que sao homens verdadeiros ¢ assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espirito, aquilo que acreditava ver com meus olhos. 15. Um homem que procura elevar seu conhecimento para além do comum deve envergonhar-se de apro- veitar ocasides para duvidar das for- mas e dos termos do falar do vulgo; Prefiro passar adiante e considerar se eu concebia com maior evidéncia e perfei¢zo o que era a cera, quando a percebi inicialmente e acreditei conhe- cé-la por meio dos sentidos exteriores, ou ao menos por meio: do senso comum, como 0 chamam, isto é, por meio do poder imaginativo, do que a concebo presentemente, apds haver examinado mais exatamente o que ela € e de que maneira pode ser conhecida. Por certo, seria ridiculo colocar isso em divida, Pois, que havia nessa pri- meira percepgao que fosse distinto ¢ evidente ¢ que nao pudesse cair da mesma maneira sob os sentidos do menor dos animais? “* CE 513, onde Descartes se defende de ter. pre- tendido “abstrair 0 concetio da cera de seus acid Fes". “Os acidentes 580 contingenits em relagao a substéncia, mas nao a acidentalidade”, especifica Guéroult, (Descartes, !, pig. 56.) Tal €'0 sentido exato do “pedigo de cera”: nada posso conhecer através da percepeao ou da imaginagao scm compreender (ou reconhecer), atra- vés do. pensamento, a esséncia da coisa. Tenho ou iio razio de reconhecer esta essencia? Nao sci ainda. Pois nie se trata aqui de saber s¢ eu dispo- nho efetivamente do conhecimento da esséncla do corpo. mas de saber em quais condigies posso estar seguro de possuir a idéia clara e distinta deste corpo. Cf. Guéroult, op. cit. pigs. 144-45, 106 16,. Mas, enfim, que direi desse espi- rito, isto é, de mim mesmo * *? Bois ate aqui nao admiti em mim nada além de tm"esprrito, Que declararei, digo, de mim, que parego conceber com tanta nitidez e distingao este pedaco de cera? Nao me conhego a mim mesmo nao sé com muito mais verdade ¢ certeza, mas também com muito maior distingao e MitidEZD Pois, se juigo que a cera é ou existe pelo fato de eu a ver, sem divida segue-se bem mais evidentemente que eu préprio sou, ou que existo pelo fato de eu a ver. Pois pode acontecer que aquilo que eu yejo nao seja, de fato, cera; pode também dar-se que eu nao tenha olhos para ver coisa alguma; mas nao pode ocorrer, quando yejo ou (coisa que nao mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, nao seja alguma coisa DG mesmo modo, se julgo que a cera existe. pelo fato de que a toco, séguir-se-4 ainda a mesma coisa, OU séja, que eu sou; € se 0 julgo porque minha imaginagao disso me persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me sdo exteriores e que se encontram fora de mim, 17. Ora, se a nogao ou conheci- mento da cera parece ser mais nitido ¢ mais distinto apés ter sido descoberto nao somente pela visdéo ou pelo tato, mas ainda por muitas outras causas, com quao maior evidéncia, distingao e 4® Passamos, com este parégrafo, & confiemacio da segunda verdade: quando percebo 0 pedaga de ‘cera, seja compreendenda clara e distintamente sia hnatureza, seja apenas imaginando-o ou tocando-o, 36 uma coisa é certa, no ponto om ue me encontro, E que eu penso percebé-to.... Mostrando que este “pensamento™ era indispensivel ao comhecimento da coisa, a anilise precedente deu confirmagio & esta verdade, DESCARTES nitidez nao deverei eu conhecer-me* ’, posto que todas as razGes que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, pro- vam muito mais facil ¢ evidentemente a natureza de meu espirito? E encon- tram-se ainda tantas outras coisas no proprio espirito que podem contribuir ao esclarecimento de sua natureza, que aqueélas que dependem do corpo (como esta) nao merecem quase ser enumera- das. 18. Mas, enfim, eis que insensivel. mente cheguei aonde queria; pois, ja que é coisa presentemente conhecida por mim que, propriamente falando, sé coneebemos os corpos pela faculdade de entender em nds existente e nao pela imaginagio nem pelos: sentidos, ¢ que nao os conhecemos pelo fato de os ver ou de toca-los, mas somente por os coneeber pelo pensamento, reconhego com evidéncia que nada ha que me seja mais facil de conhecer do que meu espfrito. Mas, posto que é quase impossivel desfazer-se tao prontamente de uma antiga opiniao, sera bom que eu me detenha um pouco neste ponto, a fim. de que, pela amplitude de minha meditagao, eu imprima mais profunda- mente em minha memoria este novo conhecimento. +7 £ a terceira verdade: o espirito € mais facil de sonhecer do que 0 corpo, Com efeito, obtenha imediatamente 0 conhecimento da existéncia ¢ da natureza de meu espirito, ao passo que o meu pensa- mento me proporciona apenas a idéia clara e dis- tinta dos corpos cuja existéncia ainda € problema- tica. Guéroult comenta: “Quando Descartes declara que o conhecimento da alma € 0 mais facil dos conhecimentos, quer dizer que € a mais Facil das Verdades cientificas ¢ 0 primeira dos eonhecimentos na ordem da ciéncis. Nao quer dizer que a ciéncia & mais faci) do que o conhecimento vulgar. A passa- gem do senso comum & ciéncia é, com efeito, a mais dificil das ascensées”. (Op. cit., pag. 128.) MEDITACAO TERCEIRA *® De Deus; que Ele Existe 1, Fecharei agora os olhos, tampa- rei mews ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode faze- lo, reputa-las-ei como vas e como fal- sas; e assim, entretendo-me apenas co- migo mesmo ¢ considerando meu interior, empreenderei _tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. + Plano da Méditagao: ae ‘A) $§10-14: primeira camiaho para 0 exame dq valor objetivo das idéias: o senso comum. B) §§ 15-29: segundo camin! (§16-17): principios “de causali: ‘dade € correspondéncia; ($18): colocagao do: problema: em ‘guais condigdes reconhecerja eu 0 valor objetivo dé uma idéia? (8§19-21): exame das diferentes espécies de idéia sob este nove prism: ($22): a idéia de Deus reconhecida como dotada de valor objetive = primeira prova; (§§23-28); reflexdes sobre esta Prova. C)$§29-42: seguntla prova: (§§29-30);, necessidade de outra prova; (§§31-32): primeiro momento, pri meira hipdtese: eu existo por mim mesmo, como por uma causa: ($§33-34): primeiro: momento, se- gunda hipbiese: eu existo ‘sem {§35); segundo momento; (§§36-37): rellexces subsidiarias. §§38-42; reflexio sobre 0 conjunto. Pois, assim como notei acima, conquanto as coisas que sinto ¢ imagino nao sejam talvez absolutamente nada fora de mim ¢ nelas mesmas, estou, entretanto, certo. de que essas maneiras de pensar, que chamo SSHUCHIOSNEMIMABINAGOES s0- mente na medida em que sao maneiras de pensar, E neste pouco que acabo de dizer creio ter relatado tudo 0 que sei verdadeiramente, ou, pelo menos, tudo o que até aqui notei que sabia. 2. Agora considerarei mais exata- mente se talyez nao se encontrem abso- lutamente em mim outros conheci- mentos que nao tenha ainda percebido, mas nao saberei tambem, por- tanto, o queé requerido ara me tornar le, nao seria suficiente para me assegurar de que € verdadeira se em algum momento pudesse acontecer qué uma coisa que eu concebesse tao clara ¢ distintamente se verificasse falsa, E, portanto, pare- ce-me que j4 posso estabelecer como regra geral que lOdaswaswcoisassque| 108 DESCARTES concebemos mui clara ¢ mui distinta~ mente sao todas verdadeiras*°_ 3. Todavia, recebi e admiti acima varias coisas como muito certas ¢ muito manifestas, as quais, entretanto, - reconheci depois serem @uvidosas € inGeTtas) Quais eram, pois, essas coi- sas? Eram a terra, 0 céu, os astros € todas as outras coisas que percebia po) intermédio de (eUS|Sentidds. que é que eu concebia clara e distinta- mente nelas? Certamente nada mais exceto que as idéias ou os pensamentos dessas coisas se apresentavam a meu espirito. E ainda agora nfo nego que essas_idéias se encontrem em mim. Mas havia ainda outra coisa que eu afirmava, e que, devido ao habito que tinha de acreditar nela, pensava perce- ber mui claramente, embora na verda- de nao a percebesse de modo algum, a saber, que havia coisas fora de mim donde procediam essas idéias e as quais elas eram inteiramente semelhan- tes; E era nisso que eu me enganaya; on, sé eu julgava talvez segundo a yer- dade, nao havia nenhum conhecimento que eu tivesse que fosse causa da ver- dade de meu julgamento. 4. Mas quando considerava alguma coisa de muito simples ede muito facil no tocante @ Aritmética e 4 Geometria, por exemplo, que dois e trés juntos produzem o numero cinco, e outras coisas semelhantes, no as concebia eu pelo menos bastante claramente para assegurar que eram verdadeiras? (ee tamente, se julguei depois que se podia duvidar destas coisas, nao foi por outra razio senao porque me yeio ao espirito que talvez algum Deus tivesse podido me dar uma tal natureza que eu me enganasse mesmo no concernente as coisas que me parecem as mais Manifestas. Mas todas as vezes que esta apiniao acima concebida do sobe- 42 A respeito desta regra, cf, 561. rano poder de um Deus se apresenta a meu pensamento, sou constrangido a confessar que lhe é facil, se ele o qui- ser, proceder de tal modo que eu me engane mesmo nas coisas que acredito conhecer com uma evidéncia muito ande. E, ao contrario, todas as vezes jue me volto para as coisas que penso eonceber mui claramente sou de tal maneira persuadido delas que sou leva- do. por mim mesmo, a estas palavras- engane-me quem puder, ainda assim jamais podera fazer que eu nada seja enquanto éu pensar que sou algo} ou que algum dia seja verdade que eu no tenha jamais existido, sendo verdade agora que eu existo; ou ent&o que dois e trés juntos fagam mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, que yejo claramente nao poderem ser de outra maneira senio como as conce- bo £9, 5. E, por certo, posto que nao tenho nenhuma razao de acreditar que haja algum Deus que seja enganador, ¢ Mesmo que nao tenha ainda conside- rado aquelas que provam que ha um Deus, a raze de duvidar que depende somente desta opinido ¢ bem fragil e, pomassimedizergmetafisicay Mas, a fim de poder afasta-la inteiramente, devo examinar se ha um Deus, tao logo a Ocasiao se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois, sem o conhecimento dessas duas verdades, nao vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma. E a fim de que eu possa ter a ocasiao de examinar isto *° “Produz-se, em conseqiéncia, uma oscilagao enire o fato ¢ 0 direito, entre @ certeza do fato de que sou quando penso ¢ a divida absoluta que man tém dé direito a hipdtese do Deus enganador.. . Assim, enquanto 0 Cogito constitui o Gnico ponto de apoio para a cifncia, a ciéncia. .. & impossivel, pois, desde que meu espirito deixa de fixar-se no Cogito para se dirigir alhures, este ponto de apoio se abisma na noite da davida universal, arrastando consigo toda a cadela das razdes.” (Guéroult, Des cartes, 1, pigs. 155-157.) MEDITAGOES sem interromper a ordem de meditagao que me propus, que é de passar grada- tivamente das nogdes que encontrar em primeiro lugar no meu espirito para aquelas que ai poderei achar depois *', cumpre aqui que eu divida todos os meus pensamentos em certos géneros € considere em quais destes géneros ha propriamente verdade ou erro. 6. Entre meus pensamentos, alguns $0 como as imagens das coisas, € sd Aqueles convém propriamente o nome de idéia5*; como no momento em que eu represento um homem ou uma qui- mera, Ou o céu, ou uM ano, OU mesmo Deus, Outros, além disso, tém algumas outras formas: como, no momento em que eu quero, que eu temo, que eu afir- mO ou que eu nego, entao concebo efetivamente uma coisa como 0 sujeito da agdo de meu espirito, mas. acres- cento também alguma outra coisa por esta acao A idéia que tenho daquela coisa®3; deste género de pensamen- tos, uns sao chamados vontades ou afecgdes, € outros juizos. #1 A fim de varrer definitivamente a divida, procu- rar-se-i a “ocasiao” de provar que ha um Dens ¢ que ele nao € enganador, mas sei interromper, no entanto, a cadeia das razies. Donde, até'o § 15,0 exame minucioso dos dados em meu poder sobre os, quais- eu poderia eventualmente basear minha prova. 52. Esta definiggo da idéia como cépia ne qual se anuncia um original (a jdéia-quadro) reaparecerd mititas vezes nesta Meditagao. Import tanto mais sublinhar gue os termos “como uma imagem” cons jem apenas uma comparagao destinada a expli- car a fungio da idéia. Nao se trata, de forma algu- ma, de assimilar a id@ia intelectual & imagem sensfvel, Cf. o protesto contra Hobbes nas Terceiras Respostas: “Peto nome de idéia, ele quer somente que se entendam aqui as imagens das coisas mate- riais pintadas ria fantasia corpérea; © sendo isso suposto, éthe facil mostrar que ndo se pode ter nenhuma idéia propria e verdadgira de Deus nem de um: anjo..."; assim como G 2: “Pela nome de idéia. . ." Sobre a novidade do sentido dado por Descartes & palavra “idéia™, of. Gilson, Discours, Pag. 319, *2 Por esta primeira classificagio distinguem:se: L? as idéias; 2,” os conteddas nes quais uma agio do espirita se acrescenta As idéias, 109 8. Nao é preciso temer também que se possa encontrar falsidade nas afec- goes ou vontades; pois, ainda que possa desejar coisas mas, ou mesmo que jamais existiram, nfo é por isso, todavia, menos verdade que as desejo. Ses que esto Tora de ims Certamente, se ¢u comsiderasse as idéias apenas como certos modos ou formas de meu pensamento, sem que- rer relacioné-las a algo de exterior, mal®® poderiam elas dar-me ocasiao de falhar. "4 Segunda clas teilos anteriores, aqueles em que podemos, nbs fiat? Todos, salvo 0s juizos. *5 Enquanto contelido de pensamento, 0 juizo é Ho certo como 05 outros (parece-me que'eu jul 0... .), Mas cumpre exclui-lo da indagacao, na me- dida em que consiste em afirmar ou em negar sem Fundamento, que 0 contesde de minha idéia corres: ponde a uma realidade fora dela. Ou ainda: ‘ou nega quo © contedido de uma idéia (sua “reali- dade objetiva”) possui um Walor objetivo, sem exa. minar previamente 0 conteide desta idéia, 5% Restri¢o que tem sua importincia. Tornar-se compreensivel no § 19 desta Meditagaa. ®? “Parecem”” indica que Descartes se coloca a0 nivel do senso comum. Aqui, com efeito, comega a critica da classificagao das idéias segundo 0 senso. comum e dos preconceitos que ela implica — & 0 “primeiro caminho" possivel da investigagao: 0 segundo inicia-se no § 15.

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