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FERDINAND DE SAUSSURE CURSO DE LINGUISTICA GERAL Organizado por CHares BALLy e ALBERT SECHEHAYE com a colaboragio de ALBERT RIEDLINGER Prefacio 4 edigio brasileira: Isaac Nicotau SALUM (da Universidade de S. Paulo} — EDITORA CULTRIX So Paulo Titulo original: Cours de Linguistique Générale. Publicado por Payot, Paris. Tradug&o de Anténio Chelini, José Paulo Paes ¢ Izidoro Blikstein. Dados Internacionais de Catalogagio oa Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Saussure, Ferdinand de, 1857-1913. Curso de lingtistica geral / Ferdinand de Saussure ; organizado por Charles Bally, Albert Sechchaye ; com a colaboragio de Albert Riedlinger ; prefacio da edig&o brasileira Isaac Nicolau Salum ; tradugdo de Anténio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. -- 27. Ed. -- Sao Paulo : Cultrix, 2006. Titulo original : Cours de linguistique générale ISBN 978-85-316-0102-6 1. Linguistica I. Bally, Charles. Il. Sechehaye, Albert. III. Riedlinger, Albert. IV. Salum, Isaac Nicolau. V. Titulo. 06-3514 indices para catdlogo sistematico 1. Lingiistica 410 O primeiro numero a esquerda indica a edi¢do. ou reedicdo, desta obra. A primeira dezena a dircita indica o ano cm que esta edigfo, ou reedi¢8o foi publicada. Edigflo Ano 28-29-30-31-32-33-34 07-08-09-10-11-12-13 Dircitos de tradugo para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mario Vicente, 368 — 04270-000 — Sao Paulo, SP Fone: 6166-9000 — Fax: 6166-9008 E-mail: pensamento@cultrix.com.br http://www.pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literdria desta tradugto, INDICE PreFAcio A EDIGAO BRASILEIRA Prerdcto A PRIMEIRA EDICAO. PrerAcio A SEGUNDA EDICAO. Prerdcio A TERCEIRA EDICAO. INTRODUCAO Capfruto I — Viséo geral da bistéria da Lingiitstica. Capiruto Il — Matéria ¢ tarefa da Lingiiistica; suas relagGes com as ciéncias conexas. CapiruLo III — Objeto da Lingiitstica. § 1. A Ingua; sua definicio, § 2. Lugar da Hngua nos fatos da linguagem. $ 3. Lugar da lingua nos fatos humanos. A Semiologia. Capfruco IV — Lingilistica da lingua e lingilistica da fala. Capfruto V — Elementos internos e elementos externos da lingua. CapituLo VI — Representagdo da lingua pela escrita. § 1. Necessidade de estudar este assunto. § 2. Prestigio da escrita: causas de seu predominio sobre a forma falada. 3. Os sistemas de escrita. 5. Efeitos desse desacordo. s s Cariruto VII — A Fonologia. $ 1. Definigao. S 2. A escrita fonolégica. § 3. Critica ao testemunho da esctita. VII xu I 23 26 APENDICE PRINCIPIOS DE FONOLOGIA Carftuto 1 — As espécies fonolégicas. Su § 2. § 3. Definigto do fonema. © aparelho vocal e seu funcionamento. Classificagéo dos sons conforme sua atticulacio bucal. Capfruto IE — O foneme na cadeia falada. wane wae U 1. 2. 3 MOS Necessidade de estudar os sons na cadeia falada. A implosio ¢ a explosio. Combinagies diversas de explosies e implosdes na Limite de sflaba ¢ ponto vocdlico, Criticns as teorias de silabacao. Duracao da implosio ¢ da explosio. Os fonemas de quarta abertuta. O ditongo. Ques- tdes de grafia. PRIMEIRA PARTE PRINCIPIOS GERAIS CapiruLo- 1 — Natureza do signo lingiiistico. Gh $2. § 3. Signo, significado, significante. Primeiro principio: a arbitrariedade do signo. Segundo principio: cardter linear do significante, Capfruto Il — Imutabilidade e mutabilidade do signo. gu. $2. Imutabilidade. Mutabilidade. Capituto II] — A Lingiiistica estdtica e a Lingiiistica evolutiva. wan mn mn ow Dualidade interna de todas as ciéncias que operam com valores. A dualidade interna ¢ a histétia da Lingiifstica. A dualidade interna ilustrada com exemplos. A diferenca entre as duas ordens ilustrada por com- paragies. As duas Lingiifsticas opostas em seus métodos e em seus ptincfpios. Lei sincrénica ¢ lei diacrénica. Existe um ponto de vista pancténico? VHI 52 55 Uses 88 85 89 7 103 105 107 iu § 8. Conseqiiéncias da confuséo entre sincrénico e dia- crénico. $ 9. Conchusies. SEGUNDA PARTE LINGUISTICA SINCRONICA Capfruto I — Generalidades. Carfruto I] — As entidades concretas da lingua. § 1. Entidades ¢ unidades. Definicdes. § 2. Métodos de delimitagio. $ 3. Dificuldades priticas da delimitacao. $ 4. Concluséo. Capiruto II] — Identidade, realidades, valores. Carfruto IV — O valor lingiifstico. $1. A {issue como pensamento orgenizado na matéria ica. § 2. © valor lingiifstico considerado em seu aspecto con- ceitual. $ 3. © valor lingiifstico considerado em seu aspecto ms- $ 4. © signo considerado na sua totalidade. Capfruto V — Relagées sintagmédticas ¢ relagbes associativas. $ 1. Definigdes. $ 2. Relagdes sintagmiticas S$ 3. As relagdes associativas. Capituto VI — Mecanismo da lingua. S$ 1. As solidariedades sintagméticas. $ 2. Funcionamento simultineo de duas formas de agru- pamento S 3. © athbitrério absoluto ¢ o arbitrério relativo. Carfruco VII — A Gramédtica e suas subdivisdes. § 4. Definigées: divisdes tradicionais. $ 2. Divisdes racionais. Capfruto VIII — Papel das entidades abstratas em Gramdtica. 1X M2 114 7 wg 122 123 125 130 132 136 139 142 143 145 148 149 152 156 158 160 TERCEIRA PARTE LINGUISTICA DIACRONICA Capiruto I — Generalidades. Capiruto 11 — As sudangas fonéticas. $ 1, Sua regularidade absoluta: Condigaes das mudangas fonéticas. Questdes de método. Causas das mudancas fonéticas. A acio das mudancas fonéticas € ilimitada. Il — Consegiiéncias gramaticais da evolugao fonética. . Ruptura do vinculo gramatical. Oblitetaggo da composicao das palavras, Nio existem parelhas fonéticas. wenn np van g vonnnnnd 5 > Boe Z 3 g (Tu wine : wm mak Neg veer jaterpretatio. Carfruta VI — A etimologia popular. Capiruto VII — A aglutinagao. $ 1. Definigao. — Analogia e evolugio. Come uma inovagio analdgica entre na Mngua. As inovacdes analdgicas, sintomas de mudancas de $ 2. Aglutinacio ¢ analogia, Carfruxo VIII — Unidades, identidades e realidades diacrénicas. Apéndices. A. ‘Andlise subjetiva e andlise objetiva, B. A anélise subjetiva e a determinagao das subunidades. C. A etimologia. x A analogia, principio de renovagdo ¢ de conserva: so. 163 167 167 168 169 7 175 178 179 180 182 183 185 187 189 191 197 199 202 3 Re 213 215 219 QUARTA PARTE LINGUISTICA GEOGRAFICA Carftuto 1 — Da diversidade das lingwas. Capfruto Il — Complicagoes da diversidade geografica. § 1. Coexisténcia de vérias Mnguas num mesmo ponto. § 2. Lingua literria e idioma local. Carfruto III —— Causas da diversidade geogréfica. § 1. © tempo, causa essencial. § 2. Acdo do tempo num territério continuo. § 3. Os dialetos nio tém limites naturais. Carfruto IV — Propagagéo das ondas lingiitsticas. § 1. A forga do intercurso ¢ o espfrito de campandrio. § 2. As duas forgas reduzidas a um principio unico. § 3. A diferenciagéo lingifstica em territérios separados. QUINTA PARTE QUESTOES DE LINGUISTICA RETROSPECTIVA CONCLUSAO Capituro I — As duas perspectives da Lingiiistica diacrénica. Capfruto Il — A lingua mais antiga e 9 protétipo. Carfruto III — As reconstrugées. § 1. Sua natureza e sua finalidade. § 2. Grau de certeza das reconstrucées. Carfruto IV — O festemunbo da lingua em Antropologia ¢ em Pré-Histéria, § 1. Lingua ¢ raga. $ 2. Etnismo. § 3. Paleontologia lingiifstiza. § 4. Tipo lingiifstico e mentalidade do grupo social. Capfruto V — Familias de linguas ¢ tipos lingilsticos. Invice ANaL{tico. 221 238 240 254 247 251 255 257 261 262 273 PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA Estas palavras introdutérias 4 edigo brasileira do Cours de linguistique générale no pretendem expor ou discutir as doutri- nas lingiisticas de Ferdinand de Saussure, nem tampouco apre- sentar a versio portuguesa no que ela significa como transposi- g80 do texto francés. Visam a uma tarefa bem mais modesta, mas, talvez, mais dtil ao leitor brasileiro, estudante de Letras ou simples leigo, interessado em Lingiiistica: fornecer informagées sobre o famoso lingiiista suigo e sobre a sua obra e indicar algu- mas fontes para estudo das grandes antinomias saussurianas, ainda na ordem do dia, meio século depois da 1.* edicéo do Cours, embora provocando ainda hoje logos mais ou me- nos calorosos. A 13 edigao do Cours é de 1916, e é, como se sabe, “obra péstuma”, pois Saussure faleceu a 22 de fevereiro de 1913. A versio portuguesa saj com apenas 54 anos de atraso. Mas esse ponto nfo somos 6 nds que estamos atrasados. O Cours de linguistique générale nao foi um best-seller, mas foi em francés mesmo que ele se tornou conhecido na Europa e na América. A 1, edico francesa, de 1916, tinha 337 pAginas; as seguintes, de 1922, 1931, 1949, 1955, 1962... e 1969, tém 331 paginas, No- te-se, porm, como crescem os intervalos entre as edigdes até a 4.4, de 1949, e depois se reduzem a constante de 7 anos, 0 que mostra que até a ediglo francesa teve a sua popularidade aumen- tada nestas duas ultimas décadas. Uma vista de olhos sobre as tradugées é bastante elucidati- va, A primeira foi a versio japonesa de H. Kobayashi, de 1928, reeditada em 1940, 1941 € 1950. Vem depois a alema de H. Lom- mel, em 1931, depois a russa, de H. M. Suhotin, em 1933. Uma divulgou-o no Oriente, e a outra no mundo germfnico (e nér- dico) e a terceira no mundo eslavo, A versio espanhola, de XII Amado Alonso, enriquecida com um excelente prefacio de 23 pa- ginas, saiu em 1945, sucedendo-se as edigdes de 1955, 1959, 1961, 1965 e¢ 1967, numa cerrada competigao com as edigées france- sas. Sao as edigdes francesa e espanhola os veiculos de maior divulgaco do Cours no mundo romAnico. A verséo inglesa de Wade Baskin, saida em Nova Iorque, Toronto e Londres, é de 1959, A polonesa é de 1961, e a hiingara, de 1967. Em 1967 saiu a notavel versdo italiana de Tullio De Mauro, tradugao segura e fiel, mas especialmente notdvel pelas 23 pagi- nas introdutérias e por mais 202 paginas que se seguem ao texto, de maior rendimento, em virtude do corpo do tipo usado, osten- tando extraordindria riqueza de informagGes sobre Saussure e sobre a sorte do Cours, com 305 notas ao texto € uma bibliogra- fia de 15 pAginas (cerca de 400 titulos) (1), Tullio De Mauro por essa edigdo se torna credor da gratidao de todos os que se interessam pela Lingiiistica moderna (?). Mas a freqiiéncia das reedigdes e tradugdes do Cours nesta década de 60 que acaba de expirar mostra que j4 era tempo de fazer sair uma versdo portuguesa dessa obra cujo interesse cresce com o extraordindrio impulso que vém tomando os estudes lin- giifsticos entre nés e em todo o mundo, Ja se tem dito, e com tazio, que a Lingiifstica é hoje a “vedette” das ciéncias huma- nas. Acresce que 0 desenvolvimento dos curriculos do nosso es- tudo médio nestes tiltimos anos impede que uma boa percentagem de colegiais ¢ estudantes do curso superior possam ler Saussure em francés. Verdade é que restaria ainda a versao espanhola, que é excelente, pelo prélogo luminoso de Amado Alonso. Mas, agora, o interesse pUblico em Saussure cresce, e uma edigdo por- tuguesa se faz necess4ria para atender & demanda das universi- dades brasileiras. (1) Ferdinand de Saussure, Corso di linguistica generale — Intro- duzione, traduzione e commento di Tullio De Mauro. Editori Laterza, Bari, 1967, pp. XXIII +488 pp. (2) As pp. V-XXIII dao uma boa introdugio, ¢ zem © texto, numa versio muito fiel. Da p. 285 & 335 vém abundantes sobre Saussure ¢ sobre o Curso; da p. 356 4 360 se exami- nam as relacdes entre Noteen e Saussure. Seguem-se, pp. 363-452, 305 notas, algumas longas. As pp. 455-470 trazem cerca de 400 titulos bi- bliogrdficos, alguns gerais, outros especialmente ligados a Saussure ¢ 20 Cours, As demais sio de {ndices. XIV Se é verdade que a Lingiiistica moderna vive um momento de franca ebuligéo, quando corifeus de teorias lingiiisticas numa evolugio r4pida de pensamento e investigacdes se vio superan- do a si mesmos, quando nao s4o “superados” pelos seus discipu- los, o Cours de linguistique générale € um livro classico. Nao é uma “biblia” da Lingiifstica moderna, que dé a iltima palavra sobre os fatos, mas é ainda o ponto de partida de uma proble- matica que continua na ordem do dia. Nunca Saussure esteve mais presente do que nesta década, em que ele é as vezes declarado “superado”, S6 h4, porém, um meio honesto de supera-lo: é lé-lo, repensar com outros os pro- blemas que ele propés, nas suas célebres dicotomias: lingua e fela, diacronia e sincronia, significante e significado, relagao as- sociativa (= paradigmdtica) e sintagmdtica, identidade e opo- sigéo ete, E bem certo que a Lingiifstica americana moderna surgiu sem especial contribuigio de Saussure; nao deixa, porém, de causar espécie a onda de siléncio da quase totalidade dos lin- giistas americanos com relag&o ao Cours. Bloomfield, fazendo em 1922 a recensio da Language de Sapir, chama o Cours “um fundamento teérico da mais recente tendéncia dos estudos lin- giiisticos”, repete esse juizo ao fazer a recensdo do proprio Cours, em 1924, fala em 1926, do seu “débito ideal” a Sapir e a Saus- sure, mas ndo inclui o Cours na bibliografia de sua Language, em 1933 (3). Como a Lingijistica norte-americana teve desenvolvimento proprio, isso se entende. Mas é conveniente que numa edicZo brasileira do Curso se note o fato, para que nossos estudantes Nao sejam tentados a “superd-lo” sem té-lo lido diretamente. E verdade que entre nés o que parece ter acontecido é uma (3) Gf. De Mauro, Corso, p. 339. De Mauro lembra algumas oe ~(1) “um dos melhores ensaios de conjunto sobre Saussure é fells, “De Saussure's System of Linguistics”, in Word, ITI, fost 131: (2) J. T. Waterman, “Ferdinand de Saussure. Forerunner vn Seracurlsm”, io Ma in Modern me Laneuate Journal, 40 (1956), pp. A Chomsky,“ angen Theory”, in Foe) J Rag, Tbe Se of Lng Reedinny i Pha pphy of ge, Englewood Cliffs, | Je 16h pp . 52, 53, 59 © 85. 86, hi 10 pp. 339-340, ¢ Bibl, pp. 470 By pas i °S> xv supervalorizago do Cours, transformado.em fonte de “pesquisa”. As vezes A pergunta feita a estudantes que j4 .onseguiram apro- vagao em Lingilistica se jd leram Saussure, obtemos a resposta sincera de que apenas “fizeram pesquisa” nele. E a pergunta sobre o que querem dizer com a expressio “pesquisa em Saus- sure”, respondem que assim dizem porque apenas leram o que ele traz sobre lingua ¢ fala! Entretanto, hoje nZo se pode deixar de reconhecer que 0 Cours levanta wma série intérmina de problemas. Porque, no que toca a eles, Saussure — como Sécrates ¢ Jesus — € rece- bido “de segunda mao”. Conhecemos Sécrates pelo que Xeno- fonte ¢ Platdo escreveram como sendo dele. O primeiro era muito pouco filésofo para entendé-lo, € o segundo, filésofo de- mais para nio ir além deie, ambos distorcendo-o, Jesus nada es- creveu senio na areia: seus ensinos so 0s que nos transmitiram os seus discipulos, alguns dos quais nao foram testemunhas oculares, Dé-se © mesmo com o Cours de Saussure. Para comegar, foram trés os Cursos de Lingiiistica Geral que ele ministrou na Universidade de Genebra: 1° curso — De 16 de janeiro a 3 de julho de 1907, com 6 alunos matriculados, entre os quais A, Riedlinger e Louis Caille. A matéria fundamental deste curso foi: “Fonolo- gia, isto é, fonética fisiolégica (Lautphysiologie), Lin- giiistica evolutiva, alteragdes fonéticas e analégicas, rela- ¢4o entre as unidades percebidas pelo falante na sincro- hia (andlise subjetiva) e as raizes, sufixos e outras unida- des jsoladas da gramética histérica (anflise objetiva), etimologia popular, problemas de reconstrugio”, que 0s editores puseram em apéndices e nos capitulos finais. 2. curso — Da 1* semana de novembro de 1908 a 24 de julho de 1909, com onze alunos matriculados, entre os quais A. Riedlinger, Léopold Gautier, F. Bouchardy, E. Constantin. A matéria deste foi a “relagao entre teo- ria do signo e a teoria’ da lingua, definigdes de sistema, unidade, identidade e de valor lingilistico. Dai se deduz a existéncia de duas perspectivas metodoldgicas diversas dentro das quais colocou o estudo dos fatos lingiiisticos; a descrigzo sincrénica e a diacrénica”. Saussure varias XVI vezes se mostra insatisfeito com os pontos de vista a que tinha chegado, 3% curso — De 28 de outubro de 1910 a 4 de julho de 1911, com doze alunos matriculados, entre os quais G. Dé- gallier, F. Joseph, Mme. Sechehaye, E. Constantin e Paul-F, Regard. Como matéria, “integra na ordem de- dutiva do segundo curso a riqueza analitica do primeiro”. No inicio se desenvolve o tema “das linguas”, isto é, a Lingijistica externa: parte-se das linguas para chegar a “lingua”, na sua universalidade e, dai, ao “exercicio e faculdade da linguagem nos individuos” (4). Os editores do Cours — Charles Bally, Albert Sechehaye, com a colaboragio de A. Riedlinger — 6 tiveram em mos as anotagées de L. Caille, L. Gautier, Paul Regard, Mme. A. Se- chehaye, George Dégallier, Francis Joseph, e as notas de A. Riedlinger (°), E, tal qual ele foi editado, com a sistematizagio e organizaco dos trés ilustres discipulos de Saussure, apresenta varios problemas criticos, 1.? — Saussure niio estava contente com o desenvolvimento da matéria, No s6 tinha que incluir matéria ligada as linguas indo-européias por necessidade de obedecer ao programa (5), mas também ele proprio: se sentia limitado pela compreensio dos estudantes e por nao sentir como definitivas as suas idéias. Eis o que ele diz a L. Gautier: “Vejo-me diante de um dilema: ou expor o assunto em toda a sua complexidade e confessar todas as minhas davidas, 0 que nfo pode convir para um curso que deve ser matéria de exame, ou fazer algo simplificado, melhor (4) Nio tendo tido acesso direto a obra de R. Godel, Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure, Genebra — Paris, Droz, 1957, resumo o apanhado que daf faz De Mauro, no Corso, pp, 3232), eo que diz o préprio R. Godel em Cabiers Fer- dinand de no. 16 (1958-1959), pp. 22-23, (5) Cf. “Préface de la ptemitre edition”, p. 8 (3.* ed.), 3.° pa (6) Cf. Préface, p. 7. 1° pardgrafo (fim). XVII adaptade a um auditério de estudantes que nio sAo lin- gitistas, Mas a cada passo me vejo retido por escri- pulos (7).” 2.° — Os apontamentos dificilmente corresponderiam ipsis verbis as palavras do mestre. Como nota R. Godel, “‘sio no- tas de estudantes, e essas notas sio apenas um Teflexo mais ou menos claro da exposigao oral” (°), 3.2 — Sobre essas duas deformagdes do pensamento de Saussure — a que ele fazia para ser simples para os estudan- tes e a que eles faziam no anotar aproximadamente — soma- -se a da organizacao da matéria por dois discipulos, ilustres, mas que declaram nao terem estado presentes aos cursos (°). Ajunte-se como trago anedético. que a frase final do Cours 140 citada — a Lingilistica tem por tinico e verdadeiro objeto a lingua encarada em si mesma e por si mesma — no é de Saussure, mas dos editores (2°). Ai est4 um problema critico com triplice complicagao. Problema critico grave como o da exegese platénica ou © problema sindtico dos Evangelhos. Naturalmente, as notas dos discipuios de Saussure foram apanhadas ao vivo na hora, como cada um podia anotar. Os editores esperavam muito dos apontamentos de Saus- sure. Mme Saussure nfo lhes negou acesso a estes. Mas “grande foi a sua decepgio: nada, ou quase nada, encontra- ram que correspondesse As anotagdes dos seus discipulos, pois Saussure destruia os seus rascunhos apressados em que ia tra- gando dia a dia 9 esbogo da sua exposigao” (1). Além disso, embora tivessem reunido apontamentos de sete ou oito discipulos, escaparam-lhes outros que foram depois editados por Robert Godel em nimeros sucessivos dos Cahiers (7) Les sources manuscrites, p. 30, apud De Mauro, Corso, p. 321. (8) Cabiers Ferdinand de Saussure, n° 15 (1957), p, 3- (9) CE. Préface, p. 8, 2° parigtafo. (10) Cours, p. 317. R. Godel, Les sources manuscrites, pp. 119 e 181, epud De Mauro, Corso, p. 451 (nota 305 in initio). (11) Cours, Préface, pp. 7-8. XVHI Ferdinand de Saussure e, depois, na publicagao atras citada — Les sources manuscrités du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure — a-que Benveniste, em confcrén- cia pronunciada em Genebra a 22 de fevereiro de 1963, em comemoragao ao cingiientendrio da morte de Saussure, cha- mou “obra bela e importante” ('*), Os Cahiers Ferdinand de Saussure comegaram a ser pu- blicados em 1941, Mas a publicagdo de inéditos de Saussure e de outras fontes do Cours s6 comecgaram a aparecer, ali, em 1954, a partir do n.° 12, publicadas por Robert Godel: 1) “Notes inédites de Ferdinand de Saussure”. Sao 23 notas curtas anteriores ao ano de 1900 (Cahiers n.? 12 (1954), pp. 49-71). Sao as que se mencionam no Préface do Cours, nas pp. 7-8. 2) “Cours de linguistique générale (1908-1909) : Intro- duction” (Cahiers n.° 15 (1957), pp. 3-103). Usaram-se trés manuscritos: o de A. Riedleger (119 pp.), o de F. Bouchardy e 6 de Léopotd Gautier (estes dois ultimos mais breves). Nesse ano, antes do n.° 15, j4 tinham saido como livro, publicado por Robert Godel: Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale, Genebra, Droz, e Paris, Minard, 1957, com 283 pp. 3) “Nouveaux documents saussuriens: les cahiers E. Constantin” (Cahiers n° 16 (1958-1959), pp. 23-32). 4) “Inventaire des manuscrits de F. de Saussure remis & la Bibliothéque publique et universitaire de Ge- néve” (Cahiers n’ 17 (1960), pp. 5-11). S4o manuscritos numerados de 3951 a 3969, de assuntos varios, lingiiisticos ¢ filolégicos. Publica-se apenas a relacZo dos assuntos e outras informacgées. O ms, 3951 traz notas sobre a Lingijistica Geral. O ms. 3952, sobre as linguas indo- -européias, o 3953 sobre acentuacgio lituana,- 0 3954, no- (12) Cf. E. Benveniste, “Saussure apres um demi-siécle”, cap. III de Problémes de linguistique générale, Gallimard, 1966, p. 32. Infeliz- mente, nio pudemos ainda ter em maos Les sources manuscrites... XIX tas diversas, o 3955 traz notas e rascunhos de artigos publi- cados, o 3956 nomes de lugares e patuds romanos. O ms. 3957 traz documentos varios entre os quais um Caderno de Recordagées — 0 unico cujo texto é publicado logo a seguir (pp. 12-25), e rascunhos de cartas e cartas recebidas. Os ms. 3958-3959 constam de 18 cadernos de estudos dos Niebelungen, os ms. 3690-3692 tratam de métrica védica ¢ do verso saturnino (46 cadernos), Os ms, 3963-3969 trazem os estudos sobre os anagramas ou hipogramas (99 cadernos), sobre os quais Jean Starobinski publicou dois estudos em 1964 e 1967 (15). Os Souvenirs de F. de Saussure concernant sa jeunesse et ses études atras mencionados (Ms. fr, 3957) sdo ricos de in- formagées acerca das suas relages com os lingilistas alemies e sobre a famosa Mémoire sur le systéme primitif des voyelles dans les langues indo-européenes, Leipzig, Teubner, 1879, 302 pp., escrita aos 21 anos, 5) A essas quatro publicagdes de R. Godel juntem-se as “Lettres de Ferdinand de Saussure a Antoine Meillet”, publicadas por Emile Benveniste (Cahiers n? 21 (1964), pp. 89-135). Se a isso se acrescentar o conjunto de obras editadas em 1922 por Charles Bally © Léopold Gautier sob o titulo de Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure, num grosso volume de VIII + 641 pp. (*), teremos tudo o (13) J. Starobinski, “Les anagtammes de Ferdinand de Saussure, tex. tes inédits”, Mercure de "Prance, fevt. 1964, pp. 243-262; idem, “Les mots sous les mots: textes inddits des cahiers d’anagrammes de Ferdinand de Saussure”, in To Honor Roman Jakobson: Essays on the Occasion of bis Seventieth Birthday, 11-10-1966, vol. III, Mouton, Haia, Paris, 1967, pp. 1906-1917. R. Godel niio se mostra muito entusiasta com essas pesqui- sas. Eis o que ele diz: “Na época em que Saussure se ocupava de mi- tologia germinica, apaixonou-se também por pesquisas singulares. (... i formam a parte sai wee ail jovestes (Cahiers, n° 17 (1960), p. 6). (14) Editions Sonot_de Genebra e Karl Winter de Heidelberg. E cutioso notar que Tullio De Mauro, tio rico de informacées, ¢ que cita € usa tanto o Recweil como Les souces manuscrites, nio os renhe incluldo no seu inventirio bibliogrifico final, de cerca de 400 tftulos. XX que Saussure publicou ou esbogou ou escreveu. Apesar, po- rém, do valor excepcional da Mémoire, o que consagrou real- mente o seu nome é o Cours de linguistique générale, que — a julgar pelas palavras suas atrds citadas dirigidas.a L. Gau- tier — cle, se vivesse, nao permitiria que fosse editado. Mas foi a publicagao de todos esses documentos — espe- cialmente a de Les sources manuscrites — que acentuou o sen- timento da necessidade duma edigSo critica do Cours. Alias, © Préface de Ch, Bally e A. Sechehaye denuncia uma espécie de insatisfago com a edigdo, tal qual a fizeram, mas que era o modo mais sensato de editar anotagdes de aula. E nés ain- da hoje devemos ser-lhes gratos. Apesar de tudo, porém, era desejavel uma edicao critica. O estudo sincrénico dum esiado atual de lingua, especial- mente na sua manifestagao oral, atenua, quase dispensando, o trabalho filolégico, Mas, paradoxalmente, a obra do lingiiis- ta que insistiu na sincronia constitui-se agora um notavel problema filolégico: o do estabelecimento do seu texto. A edig&o critica saiu em 1968 (15), num primeiro volu- me de grande formato, 31 x 22 cm, ¢ de 515 + 515 paginas. E uma edig&o sindtica, que dé as fontes lado a lado em 6 colu- nas. A primeira coluna reproduz o texto do Cours, da 1.* edi- g&o de 1916, com as variantes introduzidas na 22 e na 3.7 edigdes (de 1922 ¢ 1931). As colunas 2, 3 e 4 trazem as fontes usadas por Charles Bally e Albert Sechehaye. As colunas 5 e 6 trazem as fontes descobertas e publicadas por Robert Godel em disposigao sinética. E evidente que nao é uma edigdo de facil manejo. Ain- da aqui, o Cours de Saussure apresenta semelhanga com o problema sinético dos Evangelhos. Nessa edigao critica, de formato um pouco maior que a Synopsis Quaituor Evange- fiorum de Kurt Aland, com o texto grego, ou que a Synopse (15) "Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, Edition critique par Rudolf Engler, tome I, 1967, Otto Harrassowitz, Wiesbaden. Um vol. de 31x22 cm., de 515 +515 Pégioas: (Nio temo tido oca- sido de ver 0 volume, resumo as informagées de Mons. Gardette na rd- pida recensio que faz da edicio em Revue de Linguistigue Romane, to- mo 33, nos. 139130 de jan-junho de 1969, pp. 170-171). XXI des quatre évangiles en frangais de Benoit e Boismard, o fa- moso livra de Saussure, que ele nao escreveu, poderd ter também o seu interesse pedagégico: serd uma fotografia fiel_ de como é apreendido diversamente aquilo que é trans- mitido por via oral. Mas essa renovago de interesse no Cours de linguistique générale, especialmente a partir da década de 50 — que é quando se aceleram as edigdes e tradugdes e quando Robert Godel comega a aprofundar a critica de fontes — é a garan- tia de que, ainda que novas solugées se oferecam para as opo- sigdes saussurianas, Saussure esta longe de vir a ser superado. A edigao a ser oferecida a um publico mais amplo s6 pode ser a que consagrou a obra: a edig&o critica, de leitura pesada, sera obra de consulta de grande utilidade para os es- pecialistas e para os mais aficionados. Seria também de interesse ajuntar a essas informagdes uma enumeragao de estudos de anilise ¢ critica do Cours para orien- tagao do Jeitor brasileiro, Mas éste prefacio ja se alongou de- mais, Além disso, os trabalhos de andlise da Lingiiistica moderna como Les grands courants de la linguistique moderne, de Le- roy (18), Les nouvelles tendances de la linguistique, de Malm- berg (17), Lingiiistica Romdnica, de lIorgu Iordan, em versio espanhola de Manuel Alvar (pp. 509-601), os estudos de Meillet em Linguistique historique et linguistique générale 11 (pp. 174-183) e no Bulletin de la Société de Linguistique de Paris (**), o de Benveniste em Problémes de linguistique géné- rale (pp, 32-45), o de Lepschy, em La linguistique structurale (pp. 45-56), o prélogo da edigao de Amado Alonso (pp. 7-30), a excelente edigdo de Tullio De Mauro, atras mencionada — especialmente nas pp. V-XXIII e 285-470 — sao guias de grande valor para o interessado. A estes acrescente-se 0 ex- celente trabalho de divulgagao de Georges Mounin, Saussure ou le structuraliste sans le savolr — présentation, choix de tex- (16) Edigdo brasileira: As Grandes Correntes da Lingiiistica Mo derma, 8, Paulo, Cultrix: Editora da USP, 1971. (17) Edigéo brasileira: As Novos Tendéncias da Linguistica, S. Paulo, Cia. Editora Nacional-Editora da USP, 1971. (181 Transcrito por Georges Mounin, in Saussure ou le structura- liste sanz-le savoir, ed. Seghers, 1968, pp. 161-168. XXIL tes, bibliographie (**), que, a nosso ver, tem defeituoso apenas © titulo, pois Saussure foi antes “‘estruturalista antes do termo”, que Mounin poderia dizer a francesa le structuraliste avant la lettre. Ficam assim fornecidas ao leitor algumas das informa- goes fundamentais para que ele possa melhor compreender o texto do lingiiista genebrino, Acrescentaremos apenas um qua- dro dos principais fatos na vida de Ferdinand de Saussure. Isaac Nicotau Satum (19) Edigao brasileira em preparacao. XXIII QUADRO BIOGRAFICO 26-11-1857 — Seu nascimento em Genebra. 1867 — Contacto com Adolphe Pictet, autor das Ovigenes Indo-européenes (1859-1863). 1875 — Estudos de Fisica e Quimica na Univ, de Genebra. 1876 — Membro da Soc. Ling. de Paris, 1876 — Em Leipzig. 1877 — Quatro memérias lidas na Soc, Ling. de Paris, especialmente Essat d’une distinction des diffé- rents a indo-européens. 1877-1878 — Mémoire sur les voyelles indo-européenes (pu- blicada em dezembro de 1878 em Leipzig). 1880 — Fevereiro — Tese de doutorado: De l'emploi du genitif absolu en sanskrit. Viagem & Litua- nia. Em Paris segue os cursos de Bréal. 1881 — “Maitre de conférences® na Ecole Pratique des Hautes Etudes com 24 anos. 1882 — Secretério adjunto da Soc, Ling. de Paris e di- retor de publicagio das Memérias. Fica conhe- cendo Baudoin de Courtenay. 1890-1891 — Retoma os cursos da Ecole Pratique des Hautes Etudes. 1891-1896 — Professor extraordinério em Genebra, 1896 — Professor titular em Genebra. 1907 — 1.° Curso de Lingiiistica Geral, 1908 — Seus discipulos de Paris e de Genebra oferecem- -lhe uma Miscelénea comemorativa do 30.* ani- versério da Meméria sobre as vogais. 1908-1909 — 2.° Curso de Lingilistica Geral. 1910-1911 — 3.%Curso de Lingiistica Geral. 27- 2-1913 — Seu falecimento em Genebra. PREFACIO 4 PRIMEIRA EDIGAO Repetidas vezes ouvimos Ferdinand de Saussure deplorar a insuficiéncia dos principios e dos métodos que caracterizavam a Lingiiistica em cujo ambiente seu génio se desenvolveu, ¢ ao longo de toda a sua vida pesquisou ele, obstinadamente, as leis diretrizes que the poderiam orientar o pensamento através des- Se caos. Mas foi somente em 1906 que, sucedendo a Joseph Wertheimer na Universidade de Genebra, pode ele dar a co- nhecer as idéias pessoais que amadurecera durante tantos anos. Lecionou trés cursos de Lingiifstica Geral, em 1906-1907, 1908-1909 ¢ 1910-1911; é verdade que as necessidades do pro- grama o obrigaram a consagrar a metade de cada um desses cursos a uma exposigaéo relativa ds linguas indo-européias, sua histéria e sua descrigéo, pelo que a parte essencial do seu te- ma ficou singularmente reduzida. Todos quantos tiveram o privilégio de acompanhar tao fecundo ensino deploraram que dele nao tivesse surgido um livro. Apds a morte do mestre, esperdvamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos & nossa disposigéo por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais ligdes; entreviamos a possibilidade de uma publi- cagéo fundada num simples arranjo de anotagdes pessoais de Ferdinand de Saussure, combinadas com as notas de estudan- tes, Grande foi a nossa decepedo; nao encontramos nada ou quase nada que correspondesse aos cadernos de seus discipulos; F, de Saussure ia destruindo os borradores provisérios em que tragava, a cada dia, o esboge de sua exposigao! As gavetas de sua secretdria nao nos proporcionaram mais que esbogos assaz antigos, certamente ndo destituidos de valor, mas que era im- possivel utilizar e combinar com a matéria dos trés cursos. Essa verificagdo nos decepcionou tanto mais quanto obriga- ¢6es profissionais nos haviam impedido quase completamente de nos aproveitarmos de seus dertadetros ensinamentos, que as- sinalam, na carreira de Ferdinand de Saussure, uma etapa tio brilhante quanto aquela, jd longinqua, em que tinha aparecido @ Mémoire sur les voyelles. Cumpria, pois, recorrer ds anotagées feitas pelos estudan- tes ao longo dessas trés séries de conferéncias. Cadernos bas- tante completos nos foram enviados pelos Srs, Louis Caille, Léo- bold Gautier, Paul Regard ¢ Albert Riedlinger, no que respei- ta aos dois primeiros cursos; quanto ao terceiro, 0 mais impor- tante, pela Sra, Albert Sechehaye ¢ pelos Sts, George Dégallier e Francis Joseph. Devemos ao Sr. Louis Briitsch notas acerca de um ponto especial; fazem todos jus a nossa sincera gratiddo. Exprimimos também nossos mais vivos agradecimentos ao Sr. Jules Ronjat, o eminente romanista, que teve a bondade de rever o manuscrito antes da impresséo e cujos conselhos nos foram preciosos. Que iriamos fazer desse material? Um trabatho critico preliminar se impunha: era mister, para cada curso, e para cada pormenor de curso, comparando todas as versoes, chegar até o pensamento do qual tinhamos apenas ecos, por vezes discordan- tes. Para os dois primeiros cursos, recorremos @ colaboragéo do Sr. A. Riedlinger, um dos discipulos que acompanharam o pen- samento do mestre com o maior interesse; seu trabalho, nesse ponto, nos foi muito util. No que respeita ao terceiro curso, A. Sechehaye levou a cabo 0 mesmo trabalho minucioso de co- lagGo e arranjo. Mas e depois? A forma de ensino oral, amitide em con- tradiggéo com o livro, nos reservava as maiores dificuldades. E, ademais, F. de Saussure era um desses homens que se reno- vam sem cessar; seu pensamento evoluia em todas as diregdes, sem com isso entrar em contradigaéo consigo préprio. Publicar tudo na sua forma original era impossivel; as repetigoes ine- vitdveis numa exposigaa livre, os encavalamentos, as formula- ges varidveis teriam dado, a uma publicag@o que tal, um as- pecto heterdclito. Limitar-se a um sé curso — e qual? — seria -empobrecer o livro, roubando-o de todas as riquezas abun- dantemente espalhadas nos dois outros; mesmo o terceiro, o 2 mais definitivo, nao teria podido, por si sé, dar uma idéia com- pleta das teorias e dos métodos de F. de Saussure. Foi-nos sugerido que reproduzissemos fielmente certos tre- chos particularmente originats; tal idéia nos agradou, a prin- cipio, mas logo se evidenciou que prejudicaria o pensamento de nosso mestre se apresentdssemos apenas fragmentos de uma construgéo cujo valor sé aparece no conjunto. Decidimo-nos por uma solugdo mais audaciosa, mas tam- bém, acreditamos, mais racional: tentar uma reconstituigéo, uma sintese, com base no terceiro curso, utilizando todos os mate- riais de que dispinhamos, inclusive as notas pessoais de F, de Saussure, Tratava-se, pois, de uma recriagdo, tanto mais drdua quanto devia ser inteiramente objetiva; em cada ponto, pene- trando até o fundo de cada pensamento especifico, cumpria, @ luz do sistema todo, tentar ver tal pensamento em sua forma definitiva, isentado das variagdes, das flutuagdes inerentes & ligdo falada, depois encaixd-lo em seu meio natural, apresen- tando-lhe todas as partes numa ordem conforme @ intengéo do autor, mesmo quando semelhante intengéo fosse mais adivi- nhada que manifestada. . Desse trabalho de assimilagéo e reconstituigdo, nasceu o livro que ora apresentamos, ndo sem apreensao, ao piblico eru- dito ¢ a todos os amigos da Lingiiistica. Nossa idéia orientadora foi a de tragar um todo organico sem negligenciar nada que pudesse contribuir para a impressao de conjunto. Mas é precisamente por isso que incorremos tal- vez numa dupla critica. Em primeiro lugar, podem dizer-nos que esse “conjunto” é incompleto: 0 ensino do mestre jamais teve a pretensdo de abordar todas as partes da Lingiiistica, nem de projetar sobre todas uma luz igualmente viva; materialmente, nio o poderia fazer. Sua preocupagdo era, aliés, bem outra. Guiado por al- guns principios fundamentais, pessoais, que encontramos em todas as partes de sua obra, e que formam a trama desse teci- do to sélido quanto variado, ele trabalha em profundidade ¢ 56 se estende em superficie quando tais principios encontram aphcagées particularmente frisantes, bem como quando se fur- tam a qualquer teoria que os pudesse comprometer, Assim se explica que certas disciplinas mal tenham sido afloradas, a semdntica, por exemplo. Nao nos parece que essas lacunas prejudiquem a arquitetura geral. A auséncia de uma “Lingilistica da fala” ¢ mais senstvel. Prometida aos ouvintes do terceiro curso, esse estudo teria tido, sem divida, lugar de honra nos seguintes; sabe-se muito bem por que tal promessa nao péde ser cumprida. Limitamo-nos a recother e a situar em seu lugar natural as indicagées fugitivas desse programa apenas, esbogado; no poderiamos ir mais longe. Inversamente, censurar-nos-do talvez por termos reprodu- zido desenvolvimentos relativos a pontos jd adquiridos antes de F, de Saussure. Nem tudo pode ser novo numa exposigdéo as- sim vasta; entretanto, se princlpios jd conhecidos sao necessd- rios para a compreensao do conjunto, querer-se-d censuraY-nos por ndo havé-los suprimido? Dessarte, o capltulo acerca das mudangas fonéticas encerra coisas jd ditas, e quigd de maneira mais definitiva; todavia, além do fato de que essa parte oculta numerosos pormendtes originais e preciosos, uma lettura mesmo Superficial mostrard 0 que @ sua supressdo acarretaria, por con- traste, para a compreensio dos principios sobre os quais F. de Saussure assenta seu sistema de Lingiiistica estdtica. Sentimos toda a responsabilidade que assumimos perante a critica, perante o préprio autor, que no teria talvez autori- zado @ publicagdo destas péginas, Aceitamos integralmente semethante responsabilidade e queremos ser os uinicos a catregd-la. Saberd a critica distinguir entre o mestre ¢ seus intérpretes? Ficarelhe-lamos gratos se dirigisse contra nés os golpes com que seria injusto oprimir uma meméria que nos é querida, Genebra, junho de 1915, Cx, Batty, Avs. SecHEHAYE PREFACIO A SEGUNDA EDIGAO Esta segunda edigéo néo introduz nenhuma modificagao essencial no texto da primeira, Os editores se limitaram a 4 modificagées de pormenor, destinadas a tornar a redagao mais clara ¢ mais precisa em certos pontos, Cu. B. Ats. S. PREFACIO A TERCEIRA EDIGAO Salvo por algumas corregdes de pormenor, esta edigéo estd conforme a anterior, Cu. B. At. S, INTRODUGAO CaPfiTULO I VISAO GERAL DA HISTORIA DA LINGUISTICA A ciéncia que se constituiu em torno dos fatos da lingua Passou por trés fases sucessivas antes de reconhecer qual é o seu verdadeiro e unico objeto. Comegou-se por fazer o que se chamava de “Gramatica”, Esse estudo, inaugurado pelos gregos, e continuado principal- mente pelos franceses, é baseado na légica e esté desprovido de qualquer visio cientifica e desinteressada da propria lingua; visa unicamente a formular regras para distinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito afas- tada da pura observagao e cujo ponto de vista é forcosamente estreito, A seguir, apareceu a Filologia. J& em Alexandria havia uma escola “filolégica”, mas esse termo se vinculou sobretudo ao movimento criado por Friedrich August Wolf a partir de 1777 e que prossegue até nossos dias. A lingua nao é o unico objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; este primeiro estudo a leva a se Ocupar também da histéria literdria, dos costumes, das instituigées, etc.; em toda parte ela usa seu método préprio, que é a critica. Se aborda questées lingilisticas, f4-lo sobretudo para comparar tex- tos de diferentes épocas, determinar a lingua peculiar de cada autor, decifrar e explicar inscrigées redigidas numa lingua ar 7 caica ou obscura. Sem divida, essas pesquisas prepararam a Lingiiistica histérica: os trabalhos de Ritschl acérca de Plauto podem ser chamados lingiiisticos; mas nesse dominio a critica filolégica é falha num particular: apega-se muito servilmente @ lingua escrita c esquece a lingua falada; alias, a Antiguidade grega e latina a absorve quase completamente. O terceiro periodo comegou quando se descobriu que as linguas podiam ser comparadas entre si, Tal foi a origem da Filologia eomparativa ou da “Gramdtica comparada”. Em 1816, numa obra intitulada Sistema da Conjugagdo do Séns- crito, Franz Bopp estudou as relagées que unem o sfnscrito ao germanico, ao grego, ao latim, etc. Bopp nao era o primei- ro a assinalar tais afinidades e a admitir que todas essas linguas pertencem a uma unica familia; isso tinha sido feito antes dele, no- tadamente pelo orientalista inglés W. Jones (¢ 1794); algumas afirmagées isoladas, porém, nao provam que em 1816 j4 houves- sem sido compreendidas, de modo geral, a significacio e a impor- tancia dessa verdade. Bopp nao tem, pois, o mérito da desco- berta de que o sfnscrito é parente de certos idiomas da Europa ce da Asia, mas foi ele quem compreendeu que as relagdes entre Kinguas afins podiam tornar-se matéria duma ciéncia aut6noma. Esclarecer uma lingua por meio de outra, explicar as formas duma pelas formas de outra, eis o que nao fora ainda feito. E de duvidar que Bopp tivesse podido criar sua ciéncia — pelo menos t&éo depressa — sem a descoberta do sanscrito. Este, como terceiro testemunho ao lado do grega e do latim, for- neceu-lhe uma base de estudo mais larga e mais sélida; tal van- tagem foi acrescida pelo fato de que, por um feliz e inesperado acaso, o sAnscrito estA em condigdes excepcionalmente favora- veis de aclarar semelhante comparacio. Eis um exemplo: considerando-se 9 paradigma do latim genus (genus, generis, genere, genera, generum, etc.) e o do grego génos (génos, géneos, génei, génes, genédn, etc.) estas séries nao dizem nada quando tomadas isoladamente ou com- paradas entre si. Mas a situagao muda quando se lhe aproxi- ma a série correspondente do sAnscrito (ganas, ganasas, ganasi, Sanassu, ganasam, etc.). Basta uma r4pida observagao para perceber a relacao existente entre os paradigmas grego e la- tino, Admitindo-se provisoriamente que ganas represente a 8 forma primitiva, pois isso ajuda a explicagao, conclui-se que um s deve ter desaparecido nas formas gregas géne(s) os, etc., cada vez que ele se achasse colocado entre duas vogais. Con- Clui-se logo dai que, nas mesmas condigées, o s se transformou em rem latim, Depois, do ponto de vista gramatical, o para- digma s4nscrito d4 precisio A nogio de radical, visto corres- ponder esse elemento a uma unidade (ganas-) perfeitamente determindvel e fixa, Somente em suas origens conheceram © gtego e latim o estado representado pelo sanscrito. &, entdo, pela conservagio de todos os ss indo-europeus que o sAnscrito se torna, no caso, instrutivo, Nao h4 diivida que, em outras partes, ele guardou menos bem os caracteres do protétipo: as- sim, transtornou completamente o sistema vocalico. Mas, de modo geral, os elementos origindrios conservados por ele aju- dam a pesquisa de maneira admiravel — e 0 acaso o tornou uma lingua muito prépria para esclarecer as outras num sem- -niimero de casos, Desde 0 inicio vé-se surgirem, ao lado de Bopp, lingiiistas eminentes: Jacob Grimm, o fundador dos estudos germAnicos (sua Gramdtica Alema {oi publicada de 1822 a 1836); Pott, Cujas pesquisas etimolégicas colocaram uma quantidade con- siderével de materiais ao dispor dos lingiiistas; Kuhn, cujos trabalhos se ocuparam, ao mesmo tempo, da Lingijistica e da Mitologia comparada; os indianistas Benfey ¢.Aufrecht, etc. Por fim, entre os tltimos representantes dessa escola, me- recem citagdo particular Max Miller, G. Curtius e August Schleicher. Os trés, de modos diferentes, fizeram muito pe- los estudos comparativos, Max Miiller os popularizou com suas brilhantes conferéncias (Ligées Sobre a Ciéncia da Lin- guagem, 1816, em inglés) ; nZio pecou, porém, por excesso de consciéncia. Curtius, filélogo not4vel, conhecido sobretudo por seus Principios de Etimologia Grega (1879), foi um dos primeiros a reconciliar a Gramatica comparada com a Filologia cléssica. Esta acompanhara com desconfianga os progressos da nova ciéncia e tal desconfianga se tinha tornado reciproca. Schleicher, enfim, foi o primeiro a tentar codificar os resulta- dos das pesquisas parciais, Seu Brevidrio de Gramdtica Com- parada das Linguas Indo-Germénicas (1816) & uma espécie de sistematizagio da ciéncia fundada por Bopp. Esse livro, que durante longo tempo prestou grandes servigos, evoca melhor 9 que qualquer outro a fisionomia dessa escola comparatista que constitui o primeiro periodo da Lingitistica indo-européia. Tal escola, porém, que teve o mérito incontestavel de abrir um campo novo e fecundo, nao chegou a constituir a verdadei- ra ciéncia da Lingijstica, Jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo. Ora, sem essa operagao elementar, uma ciéncia é incapaz de estabelecer um método para si prépria. oO Primeiro efro, que contém em germe todos os outros, é que nas investigagoes, limitadas alids as linguas indo-européias, a Gramitica comparada jamais se perguntou a que levavam as comparagées que fazia, que significavam as analogias que descobria, Foi exclusivamente comparativa, em vez de histd- tica, Sem diivida, a comparagao constitui condigao necesséria dé toda reconstituigao histérica, Mas por si s6 nao permite concluir nada. A concluséo escapava tanto mais a esses com- paratistas quanto consideravam o desenvolvimento de duas lin- guas como um naturalista o crescimento de dois vegetais. Schleicher, por exemplo, que nos convida sempre a partir do indo-europeu, que parece portanto ser, num certo sentido, deveras historiador, nio hesita em dizer que em Brego ¢ € 0 sao dois “graus” (Stufen) do vocalismo, £& que o samscrito apre- senta um sistema de alternancias vocdlicas que sugere essa idéia de graus. Supondo, pois, que tais graus devessem ser venci- dos separada e paralelamente em cada lingua, como vegetais da mesma espécie passam, independentemente uns dos outros, pelas mesmas fases de desenvolvimento, Schleicher via no o grego um grau reforgado do ¢ como via no 4 sfnscrito um reforgo de 4. De fato, trata-se de uma alternancia indo-euro- péia, que se reflete de modo diferente em grego e em sfnscri- to, sem que haja nisso qualquer iguaidade necess4ria entre os efeitos gramaticais que, ela desenvolve numa e noutra lin- gua (ver p. 189 ss.). Esse método exclusivamente comparativo acarreta todo um conjunto de conceitos err6neos, que nao correspondem a nada na realidade e que sao estranhos as verdadeiras condi- G@es de toda linguagem, Considetava-se a lingua como uma esfera 4 parte, um quarto reino da ‘Natureza; dai certos modos de raciocinar que teriam causado espanto em outra ciéncia. 10 Hoje nao se podem mais ler oito ou dez linhas dessa época sem se ficar surpreendido pelas excentricidades do pensamen- to e dos termos empregados para justificd-las, Do ponto de vista metodolégico, porém, ha certo interesse em conhecer ¢sses erros; os erros duma ciéncia que principia constituem a imagem ampliada daqueles que cometem os indi- viduos empenhados nas primeiras pesquisas cientificas; teremos ocasido de assinalar varios deles no decorrer de nossa exposi¢ao. Somente em 1870 aproximadamente foi que se indagou quais seriam as condigées de vida das linguas, Percebeu-se en- tZo que as correspondéncias que as unem nao passam de um dos aspectos do fendmeno lingiifstico, que a comparagio nao é sendo um meio, um método para reconstituir os fatos. A Lingiiistica propriamente dita, que deu 4 comparagio © lugar que exatamente lhe cabe, nasceu do estudo das linguas tomanicas e das linguas germAnicas. Os estudos rom{nicos, imaugurados por Diez — sua Gramdtica das Linguas Roméa- nicas data de 1836-1838 —, contribuiram particularmente para aproximar a Lingijistica do seu verdadeiro objeto. Os roma- nistas se achavam em condicdes privilegiadas, desconhecidas dos indo-europeistas; conhecia-se o latim, protétipo das linguas rom4nicas; além disso, a abundancia de documentos permitia acompanhar pormenorizadamente a evolugao dos idiomas. Es- sas duas circunsténcias limitavam o campo das conjecturas e davam a toda a pesquisa uma fisionomia particularmente con- creta. Os germanistas se achavam em situacgZo idéntica; sem divida, o protogerm4nico nao é conhecido diretamente, mas a hist6ria das linguas que dele derivam pode ser acompanha- da com a ajuda de numerosos documentos, através de uma jonga seqiiéncia de séculos, Também os germanistas, mais pré- ximos da realidade, chegaram a concepgdes diferentes das dos primeiros indo-europefstas, Um primeiro impulso foi dado pelo norte-americano Whitney, autor de A Vida da Linguagem (1875). Logo apés se formou uma nova escola, a dos neogramaticos (Junggram- matiker) cujos fundadores eram todos alemfes: K. Brugmann, H. Osthoff, os germanistas W. Braune, E. Sievers, H. Paul, o eslavista Leskien etc. Seu mérito consistiu em colocar em pers- Pectiva histérica todos os resultados da comparagio e por ela W encadear os fatos em sua ordem natural. Gragas aos neogra- mAaticos, nao se viu mais na lingua um organismo que se desen- volve por si, mas um produto do espirito coletivo dos grupos lingiiisticos. Ao mesmo tempo, compreende-se quao erréneas e insuficientes eram as idéias da Filologia e da Gramiatica com- parada.’ Entretanto, por grandes que sejam os servicos pres- tados por essa escola, nao se pode dizer que tenha esclarecido a totalidade da questdo, e, ainda hoje, os problemas fundamen- tais da Lingiifstica Geral aguardam uma solugao. (1) A nova escola, cingindo-se mais a realid: guerra A termi: nologia dos comparatistas e notadamente as met: de que se servia. ad eee poems ee iieeea fares ‘ou aquilo” nem falar da “vida da lingua” crc. pois a lingua nao € mais ume ma enudade © nao existe senéo nos que a falam. Nao seria, pottanto, necessério ir muito longe ¢ basta entender-se. Existem certas’ imagens das quals no se pode prescindir. Exigir que se usem apenas termos correspondentes 2 sealidade da linguagem € pretender que essas realidades néo tém nada de obscuro para nés. Falta muito, porém, para isso; também njo hesita- taremos em empregar, quando se ofereca a’ ocasiao, algumas das expressdes que foram reprovadas na época. ite 42 caPiTULO 1 MATERIA E TAREFA DA LINGUISTICA; SUAS RELACOES COM AS CIENCIAS CONEXAS A matéria da_Lingijistica é constituida inicialmente por todas as manifestagées da linguagem humana, quer ser trate de povos selvagens ou de nagées civilizadas, de épocas arcaicas, classicas ou de decadéncia, considerando-se em cada periodo no 36 a linguagem correta e a “bela Jinguagem”, mas todas as formas de expressio. Isso nao é tudo: como a linguagem escapa as mais das vezes 4 observacao, o lingiiista deverd ter em conta os textos escritos, pois somente eles lhe farao conhecer os idiomas passados ou distantes, A tarefa da Lingiistica serd: a) fazer a descricdo e a histéria de todas as linguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a histéria das familias de linguas e reconstituir, na medida do possivel, as linguas-maes de cada familia; 6) procurar as forgas que esto em jogo, de modo perma: nente e universal, em todas as linguas e deduzir as leis gerais 4s quais se possam referir todos os fenémenos pe- culiares da histéria; ¢) delimitar-se e definir-se a si prépria. A Lingiiistica tem relagGes bastante estreitas com outras ciéncias, que tanto ihe tomam emprestados como The fornecem dados. Os limites que a separam das outras ciéncias nao apa- recem sempre nitidamente. Por exemplo, a Lingiiistica deve 13 ser cuidadosamente distinguida da Etnografia e da Pré-Histé- ria, onde a lingua nao intervém senao a titulo de documento; distingue-se também da Antropologia, que estuda o homem so- mente do ponto de vista da espécie, enquanto a linguagem é um fato social. Dever-se-ia, entdo, incorpord-la 4 Sociologia? Que relagGes existem entre a Lingilistica e a Psicologia social? Na realidade, tudo é psicolégico na lingua, inclusive suas ma- nifestagdes materiais e mec&nicas, como a troca de sons; e ja que a Lingilistica fornece 4 Psicologia social tao preciosos da- dos, nfo faria um todo com ela? Sao questées que apenas mencionamos aqui para retoma-las mais adiante. As relagées da Lingiiistica com a Fisiologia nao sao tao difi- ceis de discernir: a relag&o é unilateral, no sentido de que o estu- do das linguas pede esclarecimentos 4 Fisiologia dos sons, mas nao lhe fornece nenhum, Em todo caso, a confusdo entre as duas disciplinas se torna impossivel: o essencial da lingua, como veremos, é estranho ao carater fénico do signo lingiiistico. Quanto a Filologia, ja nos definimos: ela se distingue ni- tidamente da Lingiifstica, malgrado os pontos de contato das duas ciéncias e os servigos miituos que se prestam. Qual é, enfim, a utilidade da Lingijistica? Bem’ poucas pessoas tém a respeito idéias claras: nfo cabe fixd-las aqui. Mas é evidente, por exemplo, que as questées lingilisticas interessam a todos — historiadores, filélogos etc. — que tenham de ma- nejar textos. Mais evidente ainda ¢ a sua importancia para a cultura geral: na vida dos individuos e das sociedades, a lin- guagem constitui fator mais importante que qualquer outro. Seria inadmissivel que seu estudo se tornasse exclusivo de al- guns especialistas; de fato, toda a gente dela se ocupa pouco ou muito; mas — conseqiiéncia paradoxal do interesse que suscita — nao hd dominio onde tenha germinado idéias tio absurdas, preconceitos, miragens, ficgdes. Do ponto de vista psicolégico, esses erros n&o sao despreziveis; a tarefa do lin- giista, porém, é, antes de tudo, denuncid-los e dissipa-los tio completamente quanto possivel, M4 capfruLo ut OBJETO DA LINGUISTICA § 1. A LINGUA: SUA DEFINIGAO. Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto, da Lingitistica? A questdo é particularmente dificil: veremos mais tarde por qué. Limitemo-nos, aqui, a esclarecer a di- ficuldade. Outras ciéncias trabalham com objetos dados previamen- te e€ que se podem considerar, em seguida, de varios pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre. Alguém pronuncia a palavra nu: um observador superficial ser4 tenta- do a ver nela um objeto lingiiistico concreto; um exame mais atento, porém, nos levard a encontrar no caso, uma apés outra, trés ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme a ma- neira pela qual consideramos a palavra: como som, como ex- pressao duma idéia, como correspondente ao latim niidum etc. Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, dirfa- mos que € 0 ponto de vista que cria o objeto; alids, nada nos diz de antem&o que uma dessas maneiras de considerar o fato em questio seja anterior ou superior 4s outras. Além disso, seja qual for a que se adote, o fenémeno lin- giiistico apresenta perpetuamente duas faces que se correspon- dem e das quais uma nio vale senao pela outra. Por exemplo: 1° As silabas que se articulam sio impressdes acusticas percebidas pelo ouvido, mas os sons ndo existiriam sem os ér- g4os vocais; assim, um n existe somente pela correspondéncia desses dois aspectos. Nao se pode reduzir entio a lingua ao Is som, nem separar o som da articulagdo vocal; reciprocamente, nao se podem definir os movimentos dos érgios vocais se se fizer abstragao da impressao acistica (ver p. 49 ss.). 2.2 Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: € ele quem faz a linguagem? Nio, nao passa de instrumento do pensamento e nJo existe por si mesmo. Surge dai uma nova € temivel correspondéncia; o som, unidade complexa acustico- -vocal, forma por sua vez, com a idéia, uma unidade complexa, fisiolégica e mental. E ainda mais: 3.2 A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impoisivel conceber um sem o outro, Finalmente: 4." A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tem- po um sistema estabelecido e uma evolucao: a cada instante, ela é uma instituigéo atual e um produto do passado, Parece facil, & primeira vista, distinguir entre esses sistemas e sua his- toria, entre aquilo que ele é e 0 que foi; na realidade, a relagao que une ambas as coisas é tdo intima que se faz dificil sepa- ra-las. Seria a questéo mais simples se se considerasse o fend- meno lingiiistico em suas origens; se, por exemplo, comegdssemos por estudar a linguagem das criancas? Nao, pois é uma idéia bastante falsa crer que em matéria de linguagem o problema das origens difira do das condigées permanentes; n3o se saird mais do circulo vicioso, entio. Dessarte, qualquer que seja o lado por que se aborda a ques- to, em nenhuma parte se nos oferece integral o objeto da Lingiiis- tica. Sempre encontramos 0 dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas de cada problema e nos arriscamos a nao perceber as dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob varios aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Lingiiistica nos aparecera como um aglomerado confuso de coisas heterécli- tas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a varias ciéncias — Psicologia, Antropologia, Graméatica normativa, Filologia etc. —, que separamos claramente da Lin- guistica, mas que, por culpa de um imétodo incorreto, poderiain reivindicar a linguagem como um de seus objetos. Had, segundo nos parece, uma solugdo para todas essas dificuldades: ¢ necessdrio colocar-se primeiramente no terreno da lingua e tomd-la como norma de todas as outras manifesta- 16 c6es da linguagem, De fato, entre tantas dualidades, somen- te a lingua parece suscetivel duma definiggo auténoma e for- nece um ponto de apoio satisfatério para o espirito. Mas o que é a lingua? Para nds, ela nao se confunde com a linguagem; € somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. £, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convengGes necess4- vias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercicio dessa faculdade nos individuos. Tomada em seu todo, a linguagem € multiforme e heterdclita; o cavaleiro de diferentes dominios. ao mesmo tempo fisica, fisiolégica e psiquica, ela pertence além disso ao dominio individual e ao dominio social; nao se deixa classificar cnt nenhuma categoria de fatos humanos, pois ndo se sabe como inferir sua unidade. A lingua, ao contr4rio, € um todo por si e um principio de classificagao, Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num con- junto que n4o se presta a nenhuma outra classificagao. A esse principio de classificagfo poder-se-ia objetar que 0 exercicio da linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a lingua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele. Eis o que pode se responder. Inicialmente, nZo esté provado que a fungZo da lingua- gem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteira- mente natural, isto é: que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os lin- gilistas esto longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a lingua uma institui¢ao social da mes- ma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples ra- z6es de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da lingua; os homens poderiam também ter esco- lhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acisticas. Sem divida, esta tese € demasiado absoluta; a lin- gua nao é uma instituigao social semelhante as outras em to- dos og pontos (ver pp. 88 e 90) ; além disso, Whitney vai longe de- mais quando diz que nossa escolha recaiu por acaso nos érgaos 7 vocais; de certo modo, ja nos haviam sido impostas pela Na- tureza. No ponto essencial, porém, o lingiiista norte-americano nos parece ter razio: a lingua é uma convengo e a natureza do signo convencional é indiferente. A quest&o do aparelho vocal se revela, pois, secundaria no problema da linguagem. Certa definigao do que se chama de linguagem articulada poderia confirmar esta idéia. Em latim, articulus significa “membro, parte, subdivisio numa série de coisas”; em maté-. tia de linguagem, a articulagao pode designar nao sé a diviséo da cadeia falada em silabas, como a subdivisio da cadeia de significagdes em unidades significativas; é neste sentido que se diz em alemio gegliederte Sprache. Apegando-se a esta segun- da: definigao, poder-se-ia dizer que nfo é a linguagem que é natural ao homem, mas a faculdade de constituir uma lingua, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas. Broca descobriu que a faculdade de falar se localiza na terceira circunvolugao frontal esquerda; também nisso se apoia- ram alguns para atribuir & linguagem um carater natural. Mas sabe-se que essa localizagao foi comprovada por tudo quanto se relaciona com a linguagem, inclusive a escrita, e essas verifica- gdes, unidas 4s observagées feitas sobre as diversas formas de afasia por lesio desses centros de localizacéo, parecem indicar: 1°, que as perturbagées diversas da linguagem oral estao enca- deadas de muitos modos as da linguagem escrita; 2.°, que, em todos os casos de afasia ou de agrafia, é atingida menos a facul- dade de proferir estes ou aqueles sons ou de tracar estes ou aqueles signos que a de evocar por um instrumento, seja qual for, os signos duma linguagem regular, Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos Srgaos, existe uma faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade lin- giistica por exceléncia. E somos assim conduzidos 4 mesma conclusao de antes, Para atribuir 4 lingua o primeiro lugar no estudo da lin- guagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a fa- culdade — natural ou nado — de articular palavras nao se exerce senao com ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; no é, entZo, ilusério dizer que é a lingua que faz a unidade da linguagem. 18 § 2. Lucar pa LiNGUA Nos FATOS DA LINGUAGEM. Para achar, no conjunto da linguagem, a esfera que corres- ponde a lingua, necessdrio se faz colocarmo-nos diante do ato individual que permite reconstituir 0 circuito da fala, Este ato supde pelo menos dois individuos; € 0 minimo exigivel para que o circuite seja completo, Suponhamos, entdo, duas pessoas, A e B, que conversam. © ponto de partida do circuito se situa no cérebro de uma delas, por exemplo A, onde os fatos de consciéncia, a que cha- maremos conceitos, se acham associados as representagdes dos sig- nos lingiifsticos ou imagens acisticas que servem para exprimi- clos, Suponhamos que um dado conceito suscite no cérebro uma imagem actstica correspondente: é um fenémeno inteira- mente psiquico, seguido, por sua vez, de um processo fisioldgico: o cérebro transmite aos Srgios da fonagdo um impulso correla- tivo da imagem; depois, as ondas sonoras se propagam da boca de A até o ouvido de B: processo puramente fisico. Em segui- da, 0 circuito se prolonga em B numa ordem inversa: do ouvi- do ao cérebro, transmissao fisiolégica da imagem acistica; no cérebro, associagao’ psiquica dessa imagem com o conceito cor- respondente, Se B, por sua vez, fala, esse novo ato seguira — de seu cérebro ao de A — exatamente 0 mesmo curso do pri- meiro e passara pelas mesmas fases sucessivas, que representa- remos como segue: 19 Audigao Fonagio C= Conceito D=Imagem acistica Fonagao Audigao Esta andlise nao pretende ser completa; poder-se-iam distin- guir ainda: a sensagZo actstica pura, a identificagdo desta sen- sag4o com a imagem acistica latente, a imagem muscular da fonagdo etc, Nao levamos em conta senao os elementos julga- dos essenciais; mas nossa figura permite distinguir sem dificul- dade as partes fisicas (ondas sonoras) das fisiolégicas (fonacao e audigZo) e psiquicas (imagens verbais e conceitos). De fato, € fundamental observar que a imagem verbal nao se confunde com 0 proprio som e que € psiquica, do mesmo modo que c conceito que lhe esta associado. © circuito, tal como o representamos, pode dividir-se ainda: @) numa parte exterior (vibragao dos sons indo da boca ao ouvido) e uma parte interior, que compreende to- do o resto; 5) uma parte psiquica e outra nao-psiquica, incluindo a segunda também os fatos fisiolégicos, dos quais os 6r- gaos so a sede, e os fatos fisicos exteriores ao in- dividuo; ¢) numa parte ativa e outra passiva; é ativo tudo o que vai do centro de associag4o duma das pessoas ao ouvi- do da outra, e passivo tudo que vai do ouvido desta ao seu centro de associagao; finalmente, na parte psiquica localizada no cérebro, pode- -se chamar executivo tudo o que € ativo (¢ > i)e receptivo tudo o que é passivo (i > ¢). : Cumpre acrescentar uma faculdade de associagao ¢ de co- ordenagao que se manifesta desde que no se trate mais de sig- nos isolados; é essa faculdade que desempenha o principal pa- pel na organizagao da lingua enquanto sistema (ver p, 142 ss.). Para bem compreender tal papel, no entanto, impGe-se sair do ato individual,-que nao é senao o embriao da linguagem, e abordar o fato social. Entre todos os individuos assim unidos pela linguagem, es- tabelecer-se-4 uma espécie de meio-termo; todos reproduzirio — nfo exatamente, sem divida, mas aproximadamente — os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos, Qual a origem dessa cristalizag&o social? Qual das partes do circuito pode estar em causa? Pois é bem provavel que to- dos nao tomem parte nela de igual modo, A parte fisica pode ser posta de lado desde logo, Quando ouvimos falar uma lingua que desconhecemos, percebemos bem os sons, mas devido a nossa incompreensio, ficamos alheios a0 fato social. A parte psiquica nfo entra tampouco totalmente em jogo: © lado executivo fica de fora, pois a sua execugo jamais é feita pela massa; € sempre individual ¢ dela o individuo é sempre senhor; nés a chamaremos fala (parole). Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordena- tiva, nos individuos falantes, € que se formam as marcas que chegam a ser sensivelmente as mesmas em todos. De que ma- neira se deve representar esse produto social para que a lingua apareca perfeitamente desembaragada do restante? Se pudés- semos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os individuos, atingiriamos o liame social que consti- tui a lingua. Trata-se de um tesouro depositado pela pratica da fala em todos os individuos pertencentes 4 mesma comu- nidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em ca- da cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de individuos, pois a lingua nado esta completa em nenhum, e 9% na massa ela existe de modo completo. 21 Com o separar a lingua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1.9, o que € social do que é individual; 2.°, o que é essencial do que é acessério e mais ou menos acidental. A lingua nZo constitui, pois, uma fungio do falante: € © produto que © individuo registra passivamente; nao, supde jamais premeditagdo, e a reflexado nela intervém somente para a atividade de classificagao, da qual trataremos na p. 142 ss, A fala é, ao contrario, um ato individual de vontade e in- teligéncia, no qual convém distinguir: 1.°, as combinagdes pelas quais o falante realiza o cédigo da lingua no propé- sito de exprimir seu pensamento pessoal; 2.*, o mecanismo psico- -fisico que the permite exteriorizar essas combinagdes. Cumpre notar que definimos as coisas e nao os termos; as distingOes estabelecidas nada tém a recear, portanto, de cer- tos termos ambiguos, que nao tém correspondéncia entre duas linguas. Assim, em alemio, Sprache quer dizer “lingua” e “linguagem”; Rede corresponde aproximadamente a “palavra”, mas acrescentando-lhe o sentido especial de “discurso”, Em latim, sermo significa antes “linguagem” e “fala”, enquanto lingua significa a lingua, e assim por diante. Nenhum termo corresponde exatamente a uma das nogdes fixadas acima; eis porque toda definicfo a propésito de um termo é va; é um mau método partir dos termos para definir as coisas, Recapitulemos os caracteres da lingua: 1.¢ Ela é um objeto bem definido no conjunto heterécli- to dos fatos da linguagem. Pode-se localizé-la na porgio deter- minada do circuito em que uma imagem auditiva vem asso- ciar-se a um conceito, Ela é a parte social da linguagem, ex- terior ao individuo, que, por si s6, nao pode nem crid-la nem modificd-la; ela n&o existe sendo em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o individuo tem necessidade de uma aprendiza- gem para conhecer-lhe o funcionamento; somente pouco a pou- co a crianca a assimila. A lingua é uma coisa de tal modo dis- tinta que um homem privado do uso da fala conserva a lingua, contanto que compreenda os signos vocais que ouve. 2.° A lingua, distinta da fala, é um objeto que se pode estudar separadamente.’ N&o falamos mais as linguas mortas, 22 mas podemos muito bem assimilar-lhes o organismo lingiiistico, Nao s6 pode a ciéncia da lingua prescindir de outros elemen- tos da linguagem como % se torna possivel quando tais elemen- tos nfo estéo misturados. 3.° Enquanto a linguagem é heterogénea, a lingua assim delimitada é de natureza homogénea: conititui-se num sistema de signos onde, de essencial, s6 existe a unido do sentido e da imagem acistica, e onde as duas partes do signo sao igualmen- te psiquicas. 4.° A lingua, nao menos que a fala, é um objeto de na- tureza concreta, 0 que oferece grande vantagem para o seu estudo. Os signos lingiiisticos, embora sendo essencialmente Psiquicos, nio sao abstragdes; as associagées, ratificadas pelo con- sentimento coletivo e cujo conjunto constitui a lingua; séo rea- lidades que tém sua sede no cérebro. Além disso, os signos da lingua s4o, por assim dizer, tangiveis; a escrita pode fixd-los em imagens convencionais, ao passo que. seria impossivel foto- grafar em todos os seus pormenores os atos da fala; a fonacio duma palavra, por pequena que seja, representa uma infini- dade de movimentos musculares extremamente dificeis de dis- tinguir e representar. Na lingua, ao contrério, nao existe se- ‘néo a imagem acistica ¢ esta pode traduzir-se numa imagem visual constante. Pois se se faz abstrag&o dessa infinidade de movimentos necesé4rios para realizi-la na fala, cada imagem acustica nfo passa, conforme logo veremos, da soma dum nime- ro limitado de elementos ou fonemas, suscetiveis, por sua vez, de serem evocados por um numero correspondente de signos na escrita. £ esta possibilidade de fixar as coisas relativas 4 lin- gua que faz com que um diciondrio e uma gramatica possam represent4-la fielmente, sendo ela o depésito das imagens acusti- cas, e a escrita a forma tangivel dessas imagens. § 3. Lucar pa LINGUA Nos FATOS HUMANOS. A Semiovosia. Essas caracteristicas nos levam a descobrir uma outra mais importante. A lingua, assim delimitada no conjunto dos fatos de linguagem, é classificdvel entre os fatos humanos, enquanto que a linguagem nao o é. 23 Acabamos de ver que a lingua constitui uma instituigao social, mas ela se distingue por varios tragos das outras institui- gdes politicas, juridicas etc. Para compreender sua natureza peculiar, cumpre fazer intervir uma nova ordem de fatos. A lingua é um sistema de signos que exprimem idéias, e € comparavel, por isso, 4 escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbélicos, 4s formas de polidez, aos sinais milita- Tes etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas. Pode-se, entio, conceber uma ciéncia que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; cha- mérla-emos de Semiologia! (do grego sémeion, “signo”). Ela nos ensinaré em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciéncia nao existe ainda, nfo se pode dizer o que sera; ela tem direito, porém, a existéncia; seu lugar esté determina- do de antemao. A Lingiiistica nao é sendo uma parte dessa ciéncia geral; as leis que a Semiologia descobrir serao aplica- veis & Lingilistica e esta se achard dessarte vinculada a um do- minio bem definido no conjunto dos fatos humanos. Cabe ao psicélogo determinar o lugar exato da Semiologia?; a tarefa do lingilista é definir o que faz da lingua um sistema es- pecial no conjunto dos fatos semiolégicos, A questdo ser4 reto- mada mais adiante; guardaremos, neste ponto, apenas uma coi- sa: se, pela primeira vez, pudemos assinalar 4 Lingiiistica um lugar entre as ciéncias foi porque a relacionamos com a Se- miologia. Por que nao é esta ainda reconhecida como ciéncia auté- noma, tendo, como qualquer outra, seu objeto proprio? E que rodamos em circulo; dum lado, nada mais adequado que a lingua para fazer-nos compreender a natureza do problema se- miolégico; mas para formuld-lo convenientemente, necessdrio se faz estudar a lingua em si; ora, até agora a lingua sempre (1) Deve-se cuidar de nado confundir a Semiologia com a Semdntica, que estuda as alteragées de significado ¢ da qual F. de S. néo fez uma ex- Posigéo metédica: achar-se-4, porém, o principio fundamental formulado na p. 89 (Org). (2) Cf. Ap. Navitxe, Classification des sciences, 2° ed., p. 104. 24 foi abordada em fungdo de outra coisa, sob outros pontos de vista. Hé, inicialmente, a concepgao superficial do grande pi- blico: ele vé na lingua somente uma nomenclatura {ver p. 79), © que suprime toda pesquisa acerca de sua verdadeira natureza. A seguir, hé o ponto de vista do psicélogo, o qual estuda © mecanismo do sigho no individuo; é o método mais facil, mas no ultrapassa a execugo individual, nao atinge o signo, que é social por natureza, Ou ainda, quando se percebe que o signo deve ser estuda- do socialmente, retém-se apenas os caracteres da lingua que a vinculam as outras instituigdes, 4s que dependem mais ou me- nos de nossa vontade; desse modo, deixa-se de atingir a meta, negligenciando-se as caracteristicas que pertencem somente aos sistemas semiolégicos em geral e A lingua em particular, O sig- no escapa sempre, em certa medida, & vontade individual ou social, estando nisso o seu carter essencial; é, porém, o que menos aparece 4 primeira vista. Por conseguinte, tal carater s6 aparece bem na lingua; mani- festa-se, porém, nas coisas que séo menos estudadas e, por outro tado, nao se percebe bem a necessidade ou utilidade particular duma ciéncia semiolégica. Para nés, ao contrdrio, 9 problema Tingiiistico é, antes de tudo, semiolégico, e todos os nossos de- senvolvimentos emprestam significagZo a este fato importante. Se se quiser descobrir a verdadeira natureza da lingua, sera mister consideré-la inicialmente no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem; e fatores lingiiisti- cos que aparecem, & primeira vista, como muito importantes (por exemplo: o funcionamento do aparelhp vocal), devem ser considerados de secunddria importincia quando sirvam somente para distinguir a lingua dos outros sistemas. Com isso, nao apenas se esclareceré o problema lingiiistico, mas acreditamos que, considerando os ritos, os costumes etc. como signos, esses fatos aparecero sob outra luz, e sentir-se-4 a necessidade de agrup4-los na Semiologia e de explicé-los pelas leis da ciéncia. 25 caPituLo wv LINGUISTICA DA LINGUA E LINGUISTICA DA FALA Com outorgar @ ciéncia da lingua seu verdadeiro lugar no conjunto do estudo da linguagem, situamos ao mesmo tempo toda a Lingilistica, Todos os outros elementos da linguagem, que constituem a fala, vém por si mesmos subordinar-se a esta primeira ciéncia e € gragas a tal subordinaglo que todas as partes da Lingiiistica encontram seu lugar natural. Consideremos, por exemplo, a produgio dos sons necess4- trios & fala: os érgiios vocais sdo tao exteriores 4 lingua como os aparelhos elétricos que servem para transcrever o alfabeto Morse sao estranhos a esse alfabeto; e a fonagio, vale dizer, a execugio das imagens acusticas, em nada afeta o sistema em si. Sob esse aspecto, pode-se comparar a lingua a uma sinfonia, cuja realidade independe da maneira por que é executada; os er- ros que podem cometer os musicos que a executam nao com- prometem em nada tal realidade. A essa separacao da fonagio e da lingua se oporio, talvez, as transformagées fonéticas, as alteragdes de sons que se produ- zem Na fala, e que exercem influéncia t&o profunda nos desti- nos da propria lingua. Teremos, de {ato, o direito de preten- der que esta exista independentemente de tais fendmenos? Sim, pois eles no atingem mais que a substancia material das pa- lavras. Se atacam a lingua enquanto sistema de signos, fazem- “No apenas indiretamente, pela mudanga de interpretagdo que dai resulta; ora, esse fenémeno nada tem de fonético (ver p. 100 s.). Pode ser interessante pesquisar as causas de tais mu- dangas € o estudo dos sons nos ajudara nisso; todavia, nao é 26 coisa essencial: para a ciéncia da lingua bastard sempre com- provar as transformagées dos sons ¢ calcular-lhes os efeitos. E o que dizemos da fonagdo ser4 verdadeiro no tocante a todas as outras partes da fala. A atividade de quem fala deve ser estudada num conjunto de disciplinas que somente Por sua relacdo com a lingua tém lugar na Lingilistica, O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a lingua, que é social em sua esséncia e independente do individuo; esse estudo é unicamente psiquico; outra, secundéria, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonagSo e & psico- -fisica, Sem divida, esses dois objetos esto estreitamente ligados e se implicam mutuamente; a lingua é necessfria para que a fala seja inteligivel e produza todos os seus efeitos; mas esta é necesséria para que a lingua se estabeleca; historicamente, o fato da fala vem sempre antes, Como se imaginaria associar uma idéia a uma imagem verbal se nao se surpreendesse de infcio esta associagao num ato de fala? Por outro lado, é ou- vindo os outros que aprendemos a lingua materna; ela se de- Posita em nosso cérebro somente apés intimeras experiéncias. Enfim, € a fala que faz evoluir a lingua: sio as impresses re- cebidas ao ouvir os outros que modificam nossos habitos lin- giilsticos, Existe, pois, interdependéncia da lingua e da fala; aquela € ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta. Tudo isso, porém, néo impede que sejam duas coisas absoluta- mente distintas. A lingua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um diciondrio cujos exemplares, todos idénticos, fossem repartidos entre os individuos (ver p. 21). Trata-se, pois, de algo que esté em cada um deles, embora seja comum a todos e indepen- da da vontade dos depositdrios. Esse modo de existéncia da lingua pode ser representado pela formula: 1+1+1+4 1... =I (padrao coletivo) De que maneira a fala est4 presente nessa mesma coleti- vidade? £ a soma do que as pessoas dizem, e compreende: 27 a) combinagées individuais, dependentes da vontade dos que falam; 6) atos de fonagio igualmente voluntdrios, necessdrios para a execugao dessas combinagoes. Nada existe, portanto, de coletivo na fala; suas manifesta- gdes sio individuais e momenténeas. No caso, nao h4 mais que a soma de casos particulares segundo a férmula: aQerpir 4 my Por todas essas razdes, seria ilusério reunir, sob o mesmo ponto de vista, a lingua e a fala. O conjunto global da lingua- gem é incognoscivel, j4 que nao é homogéneo, ao passo que a diferenciagZo e subordinagao propostas esclarecem tudo. Essa é a primeira bifurcacgio que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossiveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente. Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingiiistica para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Lingiiistica da fala. Sera, porém, necessério nZo confundi-la com a Lingiiis- tica propriamente dita, aquela cujo tinico objeto é a lingua. Unicamente desta ultima é que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstragdes, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforgar-nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois dominios. 28 caPiTyLo ¥ ELEMENTOS INTERNOS E ELEMENTOS EXTERNOS DA LINGUA Nossa definiggo da lingua supde que eliminemos dela tu- do o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema, numa palavra: tudo quanto se designa pelo termo “Lingiiistica ex- terna”. Essa Lingiiistica se ocupa, todavia, de coisas impor- tantes, e € sobretudo nelas que se pensa quando se aborda o estudo da linguagem. Incluem elas, primeiramente, todos os pontos em que a Lingiistica confina com a Etnologia, todas as relacdes que podem existir entre a historia duma lingua e duma raga ou civilizagao, Essas duas histérias se associam e mantém rela- goes reciprocas, Isso faz recordar um pouco as correspondén- cias verificadas entre os fendmenos lingijisticos propriamente ditos (ver p. 15 s.). Os costumes duma nagao tém repercussao na lingua e, por outro lado, é em grande parte a lingua que constitui a Nagao, Em segundo lugar, cumpre mencionar as relacdes existen- tes entre a lingua e a historia politica. Grandes acontecimen- tos histéricos, como a conquista romana, tiveram importancia incalculavel no tocante a intimeros fatos lingiiisticos. A colo- nizag4o, que nZo é sendo uma forma de conquista, transporta um idioma para meios diferentes, 0 que acarreta transformacées nesse idioma. Poder-se-ia citar, como prova, toda sorte de fatos: assim, a Noruega adotou o dinamarqués quando se uniu politi- camente 4 Dinamarca; é verdade que, hoje [cerca de 1910], os no- ruegueses procuram libertar-se dessa influéncia lingiiistica. A 29 politica interna dos Estados nao tem menor importdncia para a vida das linguas: certos governos, como a Suica, admitem a coexisténcia de varios idiomas; outros, como a Franga, as- piram 4 unidade lingitistica. Um grau avancado de civiliza- G40 favorece o desenvolvimento de certas linguas especiais (lin- gua juridica, terminologia cientffica etc.). Isto nos leva a um terceiro ponto: as relagées da lingua com instituigdes de toda espécie, a Igreja, a escola etc. Estas, por sua vez, estao intimamente ligadas ao desenvolvimento liter4rio de uma lingua, fendmeno tanto mais geral quanto é insepardvel da histéria politica, A lingua literaria ultrapassa, em todas as partes, os limites que lhe parece tracar a Sitera- tura: recorde-se a influéncia dos saldes, da corte, das acade- mias, Por outro lado, suscita a avultada questo do conflito que se estabelece entre ela e os dialetos locais (ver p. 226); © lingiiista deve também examinar as relagGes reciprocas entre a lingua liter4ria e a lingua corrente; pois toda lingua literaria, produto da cultura, acaba por separar sua esfera de existéncia da esfera natural, a da lingua falada. Enfim, tudo quanto se relaciona com a extensio geografica das linguas e o fracionamento dialetal releva da Lingiiistica externa. Sem divida, é nesse ponto que a distingao entre ela e a Lingiifstica interna parece mais paradoxal, de tal modo © fenémeno geogrdfico est4 intimamente associado A existén- cia de qualquer lingua; entretanto, na realidade, ele nao afeta © organismo interno do idioma. Pretendeu-se ser absolutamente impossivel separar todas essas questdes do estudo da lingua propriamente dita. Foi um ponto de vista que prevaleceu sobretudo depois que tanto se insistiu sobre tais “Realia’. Do mesmo modo que a planta é modificada no seu organismo interno pelos fatores externos (terreno, clima etc.) assim também nao depende o organismo gramatical constantemente dos fatores externos da modifica- gHo lingiiistica? Parece que se explicam mal os termos téc- nicos, os empréstimos de que a lingua est4 ingada, quando se dei- xa de considerar-lhes a proveniéncia, Ser4 possivel distinguir © desenvolvimento natural, organico, dum idioma, de suas for- mas artificiais, como a lingua literéria, que sio devidas a fa- tores externos, por conseguinte inorganicos? Nao se vé cons- 30 tantemente desenvolver-se uma lingua comum a par dos dia- letos locais? Pensamos que o estudo dos fenémenos lingiifsticos é mui- to frutuoso; mas é falso dizer que, sem eles, nao seria possivel conhecer o organismo lingiiistico interno. Tomemos, por exem- plo, o empréstimo de palavras estrangeiras; pode-se comprovar, inicialmente, que nao se trata, de modo algum, de um elemen- to constante na vida duma lingua. Fxistem, em certos vales retirados, dialetos que jamais admitiram, por assim dizer, um s6 termo artificial vindo de fora. Dir-se-A que esses idiomas estZo fora das condigoes regulares da linguagem, incapazes de dar-nos uma idéia da mesma, e que exigem um estudo “tera- tolégico” por ndo terem jamais sofrido mistura? Cumpre so- bretudo notar que o termo emprestado nao é considerado mais como tal desde que seja estudado no seio do sistema; ele existe somente por sua relacéo e oposigao com as palavras que lhe estéo associadas, da mesma forma que qualquer outro signo autéctone. Em geral, nao é nunca indispensavel conhecer as circunstancias em meio as quais se desenvolveu uma lingua. Em relag’o a certos idiomas, como o zenda e o paleo-eslavo, nao se sabe exatamente sequer quais povos os falaram; tal igno- rancia, porém, de nenhum modo nos obsta a que os ¢s- tudemos interiormente e a que nos demos conta das transfor- mages que sofreram. Em todo caso, a separagfo dos dois pontos de vista se impde, e quanto mais rigorosamente for ob- servada, melhor sera. A melhor prova disso é que cada um deles cria um métode distinto. A Lingiiistica externa pode acumular pormenor so- bre pormenor sem se sentir apertada no torniquete dum sis- tema. Por exemplo, cada autor agrupardé como lhe aprouver os fatos relativos 4 expanséo duma lingua fora de seu territério; se se procuram os fatores que criaram uma !ingua literaéria em face dos dialetos, poder-se-4 sempre usar a enumerag’o simples; se se ordenam os fatos de modo mais ou menos sistemitico, isto € feito unicamente devido & necessidade de clareza. No que concerne 4 Lingiiistica interna, as coisas se pas- sam de modo diferente: ela nfo admite uma disposicfo qual- quer; a lingua é um sistema que conhece somente sua ordem prépria. Uma comparagio com o jogo de xadrez faré com- gl preendé-lo melhor, Nesse jogo, é relativamente facil distin- guir o externo do interno; o fato de ele ter passado da Pérsia para a Europa é de ordem externa; interno, ao contrario, é tudo quanto concerne ao sistema e as regras, Se eu substituir as pecas de madeira por pegas de marfim, a troca serd indife- rente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o numero de pecas, essa mudanga atingira profundamente a “graméatica” do jogo. Na&o é menos verdade que certa ateng&o se faz ne- cessdria para estabelecer distingdes dessa espécie. Assim, em cada caso, formular-se-A a questéo da natureza do fenémeno, € para resolvé-la, observar-se-4 esta regra: é interno tudo quan- to provoca mudanga do sistema em qualquer grau. 32, capfruLo v1 REPRESENTAGAO DA LINGUA PELA ESCRITA § 1. NecessipaDE DE ESTUDAR ESTE ASSUNTO. O objeto concreto de nosso estudo é, pois, o produto so- cial depositado no cérebro de cada um, isto é, a lingua. Mas tal produto difere de acordo com os grupos lingiiisticos: o que nos é dado sao as linguas. O lingilista esta obrigado a conhe- cer o maior numero possivel delas para tirar, por observacdo ¢ comparacao, o que nelas exista de universal. Ora, geralmente, nés as conhecemos somente através da escrita. Mesmo no caso de nossa lingua materna, 0 documen- to intervém a todo instante. Quando se trata de um idioma falado a alguma distancia, ainda mais necessario se torna re- correr ao testemunho escrito; ¢ com mais forte razio no caso de idiomas que nio existem mais. Para poder dispor, em todos os casos, de documentos diretos, seria mister que se tivesse feito, em todas as épocas, aquilo que se faz atualmente em Viena e Paris: uma colegao de amostras fonogrdficas de todas as linguas. Seria preciso, outrossim, recorrer a escrita para dar a conhecer aos outros os textos registrados dessa maneira. Dessarte, conquanto a escrita seja, por si, estranha ao sis- tema interno, é impossivel fazer abstragao dum processo por via do qual a lingua é ininterruptamente representada; cumpre conhecer a utilidade, os defeitos e os inconvenientes de tal proceso. § 2. PresTicio DA ESCRITA: CAUSAS DE SEU PREDOM{NIO SOBRE A FORMA FALADA. Lingua e escrita sio dois sistemas distintos de signos; a tinica razao de ser do segundo é representar o primeiro; 0 obje- to lingiiistico nao se define pela combinagao da palavra escrita e da palavra falada; esta ultima, por si sé, constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura tao intimamente com a pala- vra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe © papel principal; terminamos por dar maior importancia 4 representacao do signo vocal do que ao préprio signo. E como se acreditdssemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fos- se contemplar-lhe a fotografia do que © rosto. Semelhante ilusio existiu em todas as épocas e as opinides correntes acerca da lingua esto influenciadas por ela. Assim, acredita-se, de modo geral, que um idioma se altere mais rapi- damente quando nio exista a escrita: nada mais falso. A es- crita pode muito bem, em certas condig6es, retardar as modi- ficagdes da lingua, mas, inversamente, a conservacéo desta nao 6, de forma alguma, comprometida pela aus€ncia de escrita. O lituano, que se fala ainda hoje na Prissia oriental e numa parte da Russia, s6 € conhecido por documentos escritos a par- tir de 1540; nessa época tardia, porém, ele oferece, no con- junto, uma imagem tao fiel do indo-europeu quanto o latim do século III antes de Cristo. Isso basta para mostrar o quan- to a lingua independe da escrita. Certos fatos lingiiisticos deveras ténues se conservaram sem 0 auxilio de qualquer notagéo. Durante tedo o periodo do alto alemao antigo, escreveu-se tdten, fuolen e stdzen, a0 Passo que, nos fins do século XII, aparecem as grafias téten, fielen, em centraposigio a stdzen, que subsiste. Donde pro- vém esta diferenga? Em _ todos os casos em que se produziu, havia um y na silaba seguinte; o protogermanico apresenta- va *daupyan, *falyan, mas “stautan. No limiar do periodo liter4rio, por volta de 800, esse y se enfraqueceu tanto que a escrita nZo conservou nenhuma lembranga dele durante trés séculos; ele deixara, no entanto, um ligeiro trago na pronuncia; e eis que, por volta de 1180, como se viu acima, reaparece mi- lagrosamente sob a forma de metafonial Dessarte, sem o re- 34 curso da escrita, esse matiz de proniincia s¢ transmitiu com exatidio. A lingua tem, pois, uma tradig&o oral independente da escrita e bem diversamente fixa; todavia, o prestigio da forma escrita nos impede de vé-lo, Os primeiros lingitistas se enga- naram nisso, da mesma maneira que, antes deles, os huma- nistas. O préprio Bopp nao faz diferenga nitida entre a letra e 0 som; lendo-o, acreditar-se-ia que a lingua fosse insepard- vel do seu alfabeto, Os sucessores imediatos de Bopp cairam “na mesma cilada; a grafia th da fricativa p fez crer a Grimm, nado somente que esse som era duplo, mas, inclusive, que era uma oclusiva aspirada; dai o lugar que ele Ihe assinala na sua lei da transformagao consonantica ou “Lautverschiebung” (ver p. 168), Ainda hoje, homens esclarecidos confundem a lingua com a sua ortografia; Gaston Deschamps nao dizia de Berthelot “que ele preservara o' francés da ruina” porque se opusera 4 reforma ortografica? Mas como se explica tal prestigio da escrita? 1° Primeiramente, a imagem grafica das palavras nos im- pressiona como um objeto permanente e sélido, mais adequado do que o som para constituir a unidade da lingua através dos tempos. Pouco importa que esse liame seja superficial e crie uma unidade puramente. facticia: € muito mais facil de apre- ender que o liame natural, 0 unico verdadeiro, 0 do som. 2.¢ Na maioria dos individuos, as impressSes visuais s40 mais nitidas e mais duradouras que as impressdes acisticas; dessarte, eles se apegam, de preferéncia, as primeiras. A ima- gem gr4fica acaba por impor-se 4 custa do som. 3° A lingua literaria aumenta ainda mais a import&ncia imerecida da escrita. Possui seus diciondrios, suas graméati- cas; € conforme o livro e pelo livro que se ensina na escola; a lingua aparece regulamentada por um cédigo; ora, tal cédigo é éle préprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a ortografia, ¢ ¢is o que confere & escrita uma importancia pri- mordial, Acabamos por esquecer que aprendemos a falar an- tes de aprender a escrever, ¢ inverte-se a relagdo natural. 4° Por fim, quando existe desacordo entre a lingua ¢ a ortografia, o debate € sempre dificil de resolver por alguém que 35 néo seja o lingitista; mas como este nfo tem voz em capitulo, a forma escrita tem, quase fatalmente, superioridade; a escrita se arroga, nesse ponto, uma importancia a que nao tem direito. § 3. Os siSTEMAS DE ESCRITA. Existem somente dois sistemas de escrita: 1.° © sistema ideogrdfico, em que a palavra € represen- tada por um signo Gnico e estranho aos sons de que ela se compoe, Esse signo s¢ relaciona com o conjunto da palavra, e por isso, indiretamente, com a idéia que exprime. O exem- plo classico deste sistema € a escrita chinesa. 2° © sistema dito comumente “fonético”, que visa a re- produzir a série de sons que se sucedem na palavra. As escri- tas fonéticas sdo tanto silabicas como alfabéticas, vale dizer, ba- seadas nos elementos irredutiveis da palavra. Além disso, as escritas ideogr4ficas se tornam facilmente mistas: certos ideogramas, distanciados de seu valor inicial, ter- minam por representar sons isolados. Dissemos que a palavra escrita tende a substituir, em nosso espirito, a palavra falada: isso é verdadeiro quanto aos dois sistemas de escrita, mas tal tendéncia é mais forte no primeiro. Para o chinés, o ideograma e a palavra falada sio, por idén- tico motivo, signos da idéia; para ele, a escrita é uma segunda Iingua, € na conversago, quando duas palavras faladas tém © mesmo som, ele recorre amiide 4 palavra escrita para expli- car seu pensamento. Essa substituigao, porém, pelo fato de poder ser absoluta, nio tem as mesmas conseqiiéncias deplo- r4veis que na nossa escrita; as palavras chinesas dos diferentes dialetos que correspondem a uma mesma idéia se incorporam igualmente bem no mesmo signo grafico. Limitaremos nosso estudo ao sistema fonético, e especial- mente Aquele em uso hoje em dia, cujo protétipo € 0 alfabeto grego. No momento em que um alfabeto desse género se estabe- lece, ele reflete a lingua de maneira assaz racional, a menos que se trate de um alfabeto tomado de empréstimo e jA inqui- 36 nado de incoeréncias. No que respeita A lKégica, o alfabeto rego & particularmente notdvel, conforme veremos na p. 50. Mas essa harmonia entre a grafia e a pronuncia nao dura. Por qué? Eis o que cumpre examinar, § 4. Causas Do DESACORDO ENTRE A GRAFIA E A PRONUNCIA. Tais causas sio numerosas; cuidaremos apenas das mais importantes, Em primeiro lugar, a lingua evolui sem cessar, a0 passo que a escrita tende a permanecer jmével, Segue-se que a grafia acaba por nao mais corresponder aquilo que deve representar. Uma notagfo, coerente num momento dado, ser absurda um século mais tarde. Durante certo tempo, modifica-se 0 signo grafico para conform4-lo as mudangas de pronincia, mas de- pois se renuncia a isso. Foi 0 que aconteceu, em francés, no tocante a oi. Pronunciava-se: Escrevia-se: no século XI . 1. ret, leit rei, let no século XIII . 2. roi, loi roi, loi no século XIV . 3. roé, loé roi, loi no século XIX . 4. rwa, lwa roi, loi Desse modo, até a segunda época levaram-se em conta as niudangas ocorridas na pronancia; a uma etapa da histéria da lingua corresponde uma etapa na da grafia. Mas a partir do século XIV, a escrita permaneceu estaciondria, ao passo que a lingua prosseguia sua evolugao, e desde esse momento houve um desacordo sempre mais grave entre ela e sua ortografia, Por fim, como se continuasse a associar termos discordantes, 0 fato Tepercutiu sobre o préprio sistema da escrita: a expressio gra- fica of assumiu um valor estranho aos elementos de que se formara. Poder-se-iam multiplicar indefinidamente os exemplos, As- sim, por que escrever mais (“mas”) e fait (“fato”) quando pro- nunciamos mé-e {é? Por que o ¢ tem amitide em francés o 37 valor de s? Porque conservamos grafias que nfo tém mais ra- zo de ser. Essa causa age em todos os tempos; atualmente, ol pala- tal francés se converte em jod; os franceses pronunciam essuyer, éveyer, mouyer como essuyer, nettoyer; mas continuamos a es- crever éveiller, mouiller. Outra causa de desacordo entre a grafia e a pronincia: quande um povo toma emprestado a outro seu alfabeto, aconte- ce freqitentemente que os recursos désse sistema grafico no se prestam adequadamente & sua nova fungdo; tem-se de recorrer a expedientes; por exemplo, utilizar-se-Zo duas letras para desig- nar um s6 som. E 0 caso do p (fricativa dental surda) das linguas germ&nicas: como o alfabeto latino nao oferece nenhum signo para representd-lo, ele é expresso pelo th, O rei mero- vingio Chilperic tentou. acrescentar as letras latinas um sinal es- pecial para representar esse ‘som; todavia, nao teve éxito, e o uso consagrou o th. O inglés da Idade Média possuia um e¢ fe- chado (por exemplo, em sed, “semente”) e um e aberto (por, exemplo, em led, “conduzir”): nao oferecendo o alfabeto sig- nos distintos para os dois sons, cuidou-se de escrever seed e lead. Em francés, para representar a chiante, ¥, recorre-se ao signo duplo ch etc., etc. Existe ainda a preocupaco etimoldégica; foi ela preponde- rante em certas épocas, por exemplo na Renascenga. Freqiien- tes vezes, inclusive, um erro etimolégico impée uma grafia; as- sim, introduziu-se um d na palavra francesa poids (“peso”), como se ela viesse do latim pondus, quando na realidade vem de pensum. Mas pouco importa que a aplicagio do principio seja correta ou nao: € o proprio principio da escrita etimolé- gica que est4 errado, As vezes, a causa nos escapa; certas excentricidades nao tém sequer a desculpa da etimologia. Por que se escreve em alemio thun em vez de tun? Afirma-se que 0 h representa a as- piragio que segue a consoante; nesse caso, seria necess4rio intro- duzi-la sempre que semelhante aspiragZo se apresente, e existe um grande nimero de palavras que jamais a receberam (Tugend, Tisch ete.). 38 § 5. Epgrros pEssz DESACORDO, Seria demasiado extenso enumerar as incoeréncias da es- crita. Uma das mais deploraveis ¢ a multiplicidade de signos para represéntar um mesmo som. Assim, para o 2, temos em francés: j, g, ge (jolt, geler, geai); para o z: ze s; para o 5, ¢, ge t (nation); ss (chasser), se (acquiescer), s¢ (acquies- gant), x (dix); para o k: c, qu, k, ch, cc, ¢qu (acquérir). In- versamente, diversos valores sao representados pelo mesmo sig- no: dessarte, t representa é ou s, g representa g ou z etc. Assinalemos ainda as “grafias indiretas”, Em alemio, con- quanto no existam consoantes duplas em Zettel, Teller etc., es- ereve-se tt, Il com a sé finalidade de indicar que a vogal pre- cedente € breve ¢ aberta. & por via de uma aberracdo do mesmo género que o inglés acrescenta um ¢ mudo final para alongar a vogal precedente; comparem-se made (pronuncia-se méd) e mad (pronuncia-se mad), Esse e, que afeta na realidade a dni- ca silaba, cria uma segunda silaba para o olho. Tais grafias irracionais correspondem ainda a algo na Iin- gua; outras, porém, nio significam coisa alguma. O francés atual nao possui consoantes duplas, salvo nos antigos futuros mourrai, courrai; nao obstante, nossa ortografia est4 repleta de consoantes duplas ilegitimas (bourru, sottise, souffrir etc.) . Acontece também que, por nao estar fixada e buscar sua regra, a escrita vacila, dai, essas ortografias flutuantes que re- Presentam tentativas feitas em diversas épocas para figurar os sons, -Assim, ertha, erdha, erda, ou ent&o thri, dhri, dri, do alto alem4o antigo, representam exatamente o mesmo elemento f6ni- co; mas qual? Impossivel sabé-lo por meio da escrita. Disso re- sulta a complicag4o de que, em face de duas grafias para uma mesma forma, nao se pode sempre decidir se se trata realmente de duas proniincias, Os documentos de dialetos vizinhos registram para a mesma palavra, uns asca, outros ascha; se forem os mes- mos 08 sons, trata-se de um caso de ortografia flutuante; ou en- tao, a diferenga € fonolégica e dialetal, como nas formas gregas paizd, paizdd, paiddd. Ou ainda, trata-se de duas épocas suces- sivas; encontra-se em inglés primeiramente hwat, hweel etc., depois what, wheel etc.; estamos em presenca de uma mudanca de grafia ou de uma mudang¢a fonética? 39 O resultado evidente de tudo isso € que a escrita obscurece a visio da lingua; nao é um traje, mas um disfarce. Percebe- se bem isso pela ortografia da palavra francesa oiseau, onde nenhum dos sons da palavra falada (wazo), é representado pelo seu signo préprio; nada resta da imagem da lingua, Outro resultado € que quanto menos a escritura represen- ta o que deve representar, tanto mais se reforga a tendéncia de tomé-la por base; os gramaticos se obstinam em chamar a aten- Gao para a forma escrita. Psicologicamente, o fato se explica muito bem, mas tem conseqiiéncias deploraveis. O emprego que se costuma fazer das palavras “pronunciar” e “prontincia” cons- titui uma consagragado desse abuso e inverte a relagao legitima e real existente entre a escrita e a lingua. Quando se diz que cumpre pronunciar uma letra desta ou daquela maneira, toma- ~se a imagem por modelo. Para que se possa pronunciar o of como wa, seria mister que ele existisse por si mesmo. Na reali- dade, € wa que se escreve of. Para explicar essa singularidade, acrescenta-se que, nesse caso, trata-se de uma prontincia excep- cional do o e do i; mais uma vez, uma expressao falsa, pois im- plica a dependéncia da lingua no tocante 4 forma escrita. “Dir- -se-ia que se permite tudo relativamente 4 escrita, como se 0 signo grafico fosse a norma. Essas ficgdes se manifestam até nas regras gramaticais, por exemplo na do h em francés. Temos palavras com inicial vo- cAlica sem aspirag&o, mas que receberam h como reminiscéncia de sua forma latina; assim, homme (antigamente ome) por cau- sa de homo. Temos, porém, outras, vindas do germ4nico, em que o fA foi realmente pronunciado: hache, hareng, honte etc. En- quanto existiu a aspiragao, esses nomes obedeceram 4s leis rela- tivas 4s consoantes iniciais; dizia-se: deu haches, le hareng, ao passo que, segundo a lei das palavras iniciadas por vogal, dizia- -se deu-z-hommes, Vomme. Nessa época, a regra: “diante do A aspirado no se fazem a ligacgao e a elisio” era correta. Atual- mente, porém, tal formula é vazia de sentido; o A aspirado nao existe mais, a menos que se dé tal nome a essa coisa que niio é um som, mas diante da qual nfo se fazem nem a ligagao nem a elisio, Trata-se, pois, de um circulo vicioso, e o A nao passa de um ser ficticio, nascido da escrita. O que fixa a pronincia de uma palavra nio é sua ortogra- fia, mas sua hist6ria. Sua forma, num momento dado, repre- 40 senta um momento da evolugao que ela se vé forgada a seguir e que é regulada por leis precisas. Cada etapa pode ser fixada pela que a precede. A unica coisa a considerar, e a que mais se esquece, é a ascendéncia da palavra, sua etimologia. O nome da cidade de Auch é o3 em transcrigéo fonética, £ 0 tnico caso em que o ch da ortografia francesa representa 3 no fim da palavra. Nao constitui explicacéo dizer que o ch final s6 € pronunciado } nessa palavra, A Gnica questo é saber como © latim Auscii péde, com transformar-se, tornar-se o3; a ortografia nao importa. Deve-se pronunciar gageure com 6 ou com ii? Uns res- pondem: gator, visto que heure se Pronuncia 6r. Outros dizem: no, e sim gatiir, pois ge equivale a 2, em gedle por exemplo. Vio debate! A verdadeira questio é etimoligica: gageure se formou de gager, assim como tournure de tourner; pertencem ao mesmo tipo de derivagio: gatiir € a Gnica pronuncia justificada; gaiér € uma pronincia devida unicamente ao equivoco da escrita. Todavia, a tirania da letra vai mais longe ainda; & forga de impor-se 4 massa, influi na lingua e a modifica. Isso 36 acontece nos idiomas muito liter4rios, em que o documento es- crito desempenha papel consideravel. EntZo, a imagem visual alcanga criar pronincias viciosas; trata-se, propriamente, de um fato patoldégico. Isso se vé amitide em francés, Dessarte, para c nome de familia Lefévre (do latim faber) havia duas grafias, uma popular e simples, Lefévre, outra erudita e etimolégica, Lefébure. Gragas 4 confuséo de v e u na escrita antiga, Lefébure foi lida Lefébure, com um 6 que jamais existiu realmente na palavra, e um u proveniente de um equivoco. Ora, atualmente esta forma é de fato pronunciada. & prov4vel que tais deformagées se tornem sempre mais freqiientes e que se pronunciem cada vez mais as letras inuteis. Em Paris, ja se diz: sept femmes, fazendo soar o t; Iarmesteter prevé o dia em que se pronunciardo até mesmo as duas letras fi- nais de vingt, verdadeira monstruosidade ortografica. Essas deformacées fénicas pertencem verdadeiramente 4 lingua, apenas nao resultam de seu funcionamento natural; sao devidas a um fator que lhe € estranho, A Lingiifstica deve pé-las em observaco num compartimento especial: sig casos teratolégicos. 4 cariruLo vor A FONOLOGIA § 1. Derinigio, Quando se substitui a escrita pelo pensamento, aqueles que sho privados dessa imagem sensivel correm o risco de nao perceber mais que uma massa informe com a qual nao sabem.o que fazer. E como se se tirassem os flutuadores de cortica ao aprendiz de natagZo. Ter-se-ia que substituir, de imediato, o artificial pelo natu- ral; isso, porém, é impossivel enquanto nao tenham sido estuda- dos os sons da lingua; pois, separados de seus signos grdficos, eles representam apenas nogées vagas, e prefere-se ent&o o apoio, ain- da que enganoso, da escrita. Assim, os primeiros lingilistas, que nada sabiam da fisiologia dos sons articulados, caiam a todo ins- tante nessas ciladas; desapegar-se da letra era, para eles, perder © pé; para nés, constitui o primeiro passo rumo & verdade, pois € o estudo dos sons através dos préprios sons que nos proporcio- fa o apoio que buscamos. Os lingitistas da época atual termina- ram por compreendé-lo; retomando, por sua prépria conta, pes- quisas iniciadas por outros: (fisiologistas, teSricos do’ canto etc.), dotaram a Lingilistica de uma ciéncia auxiliar que a libertou da palavra escrita. A fisiologia dos sons (em alem3o Lautphysiologie ou Sprach- physiologie) & freqiientemente chamada de “Fonética” (em ale- mio Phonetik, inglés phonetics, francés phonétique). Esse termo nos parece impréprio; substituimo-lo por Fonologia, Pois Fonética designou a principio, e deve continuar a designar, o estudo das 42 evolugGes dos sons; nfo se deveriam confundir no mesmo titu- lo dois estudos absolutamente distintos. A Fonética € uma cién- cia histérica; analisa acontecimentos, transformag6es e se move no tempo. A Fonologia se coloca fora do tempo, j4 que o me- canismo da articulago permanece sempre igual a si mesmo, Longe de se confundir, esses dois estudos nem sequer podem ser postos em oposig¢ao. O primeiro é uma das partes essenciais da ciéncia da lingua; a Fonologia, cumpre repetir, nZo rea de disciplina auxiliar e 56 se refere & fal (ver p. 26). divida, nfo vemos muito bem de que serviriam os oo imentn fonatérios se a lingua nao existisse; eles nao a constituem, po- rém, e explicados todos os movimentos do aparelho vocal neces- sfrios para produzir cada impressfo acistica, em nada se escla- receu o problema da lingua, Esta constitui um sistema baseado na oposigao psiquica dessas impressdes actsticas, do mesmo mo- do que um tapete € uma obra de arte produzida pela oposigio visual de fios de cores diferentes; ora, o que importa, para a an4- lise, € 0 jogo dessas oposigées e nao os processos pelos quais as cores foram obtidas. Para o bosquejo de um sistema de Fonologia, remetemo-nos ao Apéndice, p. 49; aqui, verificaremos tio-somente que oauxi- lio a Lingiiistica pode derivar dessa ciéncia para livrar-se das ilu- ses da escrita. § 2. A EscrITA FONOLOcICA. O lingiiista exige, antes de tudo, que lhe seja fornecido um meio de representar os sons articulados que suprima qual- quer equivoco. De fato, indmeros sistemas grdficos foram pro- postos. Quais os principios de uma escrita fonolégica? Ela deve vi- sar a representar por um signo cada elemento da cadeia falada. Nem sempre se leva em conta essa exigéncia; assim, os fonolo- gistas ingleses, preocupados mais com a classificagao do que com a andlise, tém, para certos sons, signos de duas e até mesmo trés letras, Além disso, a distingZo entre sons explosivos e sons implo- sivos (ver p. 26) deveria, como veremos, ser rigorosa- mente feita, 43 Haveria razdes para substituir por um alfabeto fonolégico a ortografia usual? Essa questZo tao interessante pode apenas ser aflorada aqui; para nés, a escrita fonolégica deve servir ape- nas aos lingijistas, Antes de tudo, como fazer ingleses, alemies, franceses etc., adotarem um sistema uniforme! Além disso, um alfabeto aplic4vel a todos os idiomas correria o risco de atravan- car-se de signos diacriticos; sem falar do aspecto desolador que apresentaria uma pagina de um texto que tal, é evidente que, a forga de precisar, semelhante escrita obscureceria o que qui- sesse esclarecer e atrapalharia o leitor. Esses inconvenientes nao seriam compensados por vantagens suficientes. Fora da Ciéncia, a exatiddo fonolégica nao € muito desejavel. Ha também a quest3o da leitura, Lemos de dois modos: a palavra nova ou desconhecida é soletrada letra por letra; abar- camos, porém, a palavra usual e familiar numa vista de olhos, in- dependentemente das letras que a compéem; a imagem dessa pa- lavra adquire para nés um valor ideografico. Neste caso, a or- tografia tradicional pode reclamar seus direitos; é uti] distinguir em francés tant e temps, — et, est e ait, — du e dit, — il devait e ils devaient etc. Aspiremos somente a ver a escrita desembara- cada de seus mais grosseiros absurdos; se, no ensino de linguas um alfabeto fonolégico pode ser util, nao se deveria generalizar- -lhe o emprego. § 3. Critica ao TESTEMUNHO DA ESGRITA. E, pois, um erro supor que, apés ter-se reconhecido o card- ter falaz da escrita, a primeira coisa a fazer seja reformar a ortografia., O verdadeiro servico que nos presta a Fonologia é permitir que tomemos certas precaugées no tocante a essa for- ma escrita, pela qual devemos passar para chegar 4 lingua. O testemunho da escrita s6 tem valor com a condigao de ser inter- pretado. Diante de cada caso, cumpre tragar 0 sistema fono- légico do idioma estudado, isto é, 0 quadro dos sons de que ele se utiliza; cada lingua, de fato, opera com um numero determi- nado de fonemas bem diferenciados. A unica realidade que in- teressa ao lingilista é esse sistema, Os signos graficos consti- tuem apenas a imagem cuja exatidao cumpre determinar. A di- “4 ficuldade de tal determinagao varia contorme os idiomas e as circunstancias, Quando se trata de uma lingua pertencente ao passado, es- tamos limitados a dados indiretos; de quais recursos nos utiliza- Temos, ent&o, para estabelecer o sistema fonolégico? 1° Primeiramente, dos indicios externos, e, sobretudo, 0 tes- temunho dos contemporaneos que descreveram os sons e a pro- mincia de sua época. Assim, os gramaticos franceses dos séculos XVI e XVI, principalmente aqueles que se propunham a infor- mar os estrangeiros, deixaram-nos muitas observagdes interes- santes. Essa fonte de informagao, porém, é pouco segura, por- que seus autores nao tém nenhum método fonolégico, Suas des- crigdes so feitas com termos improvisados, sem rigor cientifico. Seus testemunhos tém de ser interpretados, por sua vez. Assim, ©s nomes dados aos sons fornecem indicios muito amitide ambi- guos: os gramaticos gregos designavam as sonoras (como 6, d, g) pelo nome de consoantes “médias” (mésai) e as surdas (como f, t, k) pelo nome de pstlai, que os latinos traduziam por tenués. 2.° Podem-se obter informagdes mais seguras combinando esses primeiros dados com os indicios internos, que classifi- caremogs sob duas rubricas, @) Indicios extraidos da regularidade das evolugdes fonéticas, Quando se trata de determinar o valor duma letra, é muito importante saber qual foi, numa época anterior, 0 som que ela representava. Seu valor atual é o resultado de uma evolugZ0 que permite descartar desde logo certas hipéteses, Assim, nao sabe- mos exatamente qual era o valor do ¢ sanscrito, mas como ele € continuagao do & palatal indo-europeu, esse dado delimita cla- ramente © campo das suposigées, Se, além do ponto de partida, se conhece também a evolu- 40 paralela de sons andlogos da. mesma lingua na mesma épo- a, pode-se raciocinar por analogia e estabelecer uma proporgao. O problema é naturalmente mais facil quando se trata de determinar uma pronimcia intermedidria da qual se conhece, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto de chegada. O au francés (por exemplo em sauter) era necessariamente um di- tongo na Idade Média, pois se acha colocado entre um al mais 45 antigo e o do francés moderno; e se nos inteiramos, por outra via, de que, num dado momento, o ditongo au ainda existia, ficamos bem seguros de que existia também no periodo prece- dente, No sabemos com exatidao o que representava o z de uma palavra como o antigo alto alemao wazer; mas os pontos de referéncia sao, de um lado, o mais antigo water e, de outro, a forma moderna wasser. Esse z deve ser entZo um som interme- diario entre ¢ e s; podemos rejeitar toda hipétese que sé seja conciliavel com o t e com o 5; é impossivel, por exemplo, acre- ditar que tenha representado uma palatal, pois entre duas arti- culagdes dentais nao se pode supor senao uma dental. b) Indicios contemporaneos. Sao de varias espécies. _ Por exemplo, a diversidade das grafias: encontramos escri- to, numa certa época do antigo alto alemao: wazer, zehan, ezan, nunca wacer, cehan etc. Se, de outro lado, encontramos tam- bém esan e essan, waser e wasser etc., concluiremos que esse z tinha um som muito préximo do s, mas bastante diferente do que era representado por c na mesma época. Quando, mais tar- de, encontrarmos formas como wacer etc., isso provara que esses dois fonemas, outrora nitidamente distintos, chegaram mais ou menos a confundir-se. ” Os textos poéticos so documentos preciosos para o conheci- mento da pronincia: conforme o sistema de versificagio se ba- seie no n&mero de silabas, na quantidade, ou na conformidade dos sons (aliteragao, assonancia, rima), tais monumentos nos for- necem informagées sobre esses diversos pontes. Se o grego dis- tingue certas longas pela grafia (por exemplo 4, escrito w), em outras descura tal precisio; € nos poetas que devemos buscar informagées sobre a quantidade de a, i e u. No antigo francés, a rima permite conhecer, por exemplo, até que época eram dife- Tentes as consoantes finais de gras e faz (latim facid, “eu fago”) © a partir de que momento se aproximaram e se confundiram. A rima e a assonfncia nos ensinam ainda que no francés antigo os €¢ provenientes dum a latino (por ex.: pére de patrem, tel de talem, mer de marem) tinham um som totalmente diverso dos cutros ee. Jamais esses termos rimam ou fazem assonancia com elle (de illa), vert (de viridem), belle (de bella) etc. Mencionemos, para terminar, a grafia dos termos empresta- dos de uma lingua estrangeira, os jogos de palavras, os despro- 46 pésitos etc, Assim, em gético, kawtsjo nos informa a promincia de cautio em baixo latim. A pronincia rwé para roi é atestada, para os fins do século XVIII, pela seguinte anedota citada por Myrop, Grammaire historique de la langue frangaise, I, p. 178: num tribunal revoluciondrio pergunta-se a uma mulher se ela n&o dissera, perante testemunhas, que fazia falta um roi (rei) ; a mulher responde “que no falara de um roi, como Capeto ou qualquer outro, e sim de um rouet maitre, instrumento de fiar’. Todos esses processos de informagdo nos ajudam a conhe- cer, em certa medida, o sistema fonolégico duma época ¢ a reti- ficar o testemunho da escrita, tornando-o proveitose. Quando se trata de uma lingua viva, o tnico método ra- cional consiste em: a) estabelecer o sistema de sons tal como é reconhecido pela observago direta; b) observar o sistema de signos que servem para representar — imperfeitamente — os sons. Muitos gramaticos se prendem, todavia, ao velho méto- do, criticado mais acima, que consiste em dizer como se pronun- cia cada letra na lingua que querem descrever, Por esse meio, é imposivel apresentar claramente o sistema fonolégico dum Xx Entretanto, é certo que jd se fizeram grandes progressos nesse dominio, e que os fonologistas muito contribufram para re- formar nossas idéias acerca da escrita e da ortografia. 47 APENDICE PRINCIPIOS DE FONOLOGIA CAPITULO 1 AS ESPECIES FONOLOGICAS $1. Derinigio po FONEMA, (Para esta parte, podemos utilizar a reprodugdo estenogr4- fica de trés conferéncias feitas por F. de S. em 1897 sobre A Teo- ria da Silaba, onde toca também nos principios gerais do pri- meiro capitulo; além disso, uma boa parte de suas notas pessoais se refere & Fonologia; em muitos pontos, esclarecem e comple- tam os dados ministrados pelos cursos I e II (Org.).] Muitos fonologistas se aplicam quase exclusivamente ao ato de fonagio, vale dizer, 4 produgao dos sons pelos érgdos (larin- ge, boca etc.), e negligenciam o lado actistico. Esse método nao € correto: nao somente a impresséo produzida no ouvido nos é dada tio diretamente quanto a imagem motriz dos drgios, como também € ela a base de toda teoria. O dado actstico existe j4 inconscientemente quando se abordam as unidades fonolégicas; pelo ouvido, sabemos o que é um 6, um ¢ etc. Se se pudessem reproduzir por meio do cine- matégrafo todas os movimentos da boca e da laringe ao executa- rem uma seqiiéncia de sons, seria impossivel descobrir subdivi- sSes nessa seqiiéncia de movimentos articulatérios; nao se sabe 49 onde um som termina e outro se inicia. Como afirmar, sem a impressao acistica, que em fal, por exemplo, existem trés uni- dades, e nado duas ou quatro? E na cadeia da fala ouvida que se pode perceber imediatamente se um som permanece ou nao igual a si préprio; enquanto se tenha a impressfio de algo homo- géneo, este som é dnico, O que importa nao é sua duragao em colcheias e semicolcheias (cf. fal e fal), mas a qualidade de impressao, A cadeia acistica nao se divide em tempos iguais, mas em tempos homogéneos, caracterizados pela unidade de im- pressio, e esse é o ponto de partida natural para o estudo fo- nolégico, Nesse sentido, o alfabeto grego primitivo merece nos- sa admiragao, Cada som simples é nele representado por um nico signo grafico, e, reciprocamente, cada Signo correspon- de a um som simples, sempre o mesmo, E uma descoberta de génio, que os latinos herdaram. Na escrita da palabra bérbaros, “barbaro”, BA PBA PO JX, cada letra corresponde a um tempo LITt IL! homogéneo; na figura acima, a linha horizontal representa a cadeia fénica e as barras verticais, as passagens de um som a outro, No alfabeto grego primitivo, nao se encontram grafias complexas como o “ch” francés por J, nem representagdes duplas de um som tinico como no francés 0 “s” e “s” por s, nem um sig- no simples para um som duplo, como o “x” por ks, Esse princi- pio, necessdrio e suficiente para uma boa escrita fonolégica, os gregos o realizaram quase integralmente }. ‘Os outros povos nao perceberam esse principio, e seus alfa- betos nao analisam a cadeia falada em suas fases acusticas homo- (1) E verdade que escreviam X,@,@ , por kb, th, ph; SEPQ representa pheré; mas € uma inovacio posterior; as inscrigSes arcaicas es- crevem KHAPIE ¢ nfo XAPIZ. As mesmas inscrigdes oferecem dois signos para o &, o kappa e o koppa, mas o fato é diferente: tratava-se de consignar dois matizes reais da pronincia, pois o & era umas vezes pale tal, outras velar; além disso, 0 koppa desapareceu mais tarde. Enfim — ponto mais delicado —, as inscricdes primitivas gregas e latinas costu- mam consignar freqiientemente uma consoante dupla com uma letra sim- ples; assim a palavra latina fuisse era esctita FUISE; portanto, infragio do principio, pois esse duplo s dura dois tempos que, como veremos, nao sio homogéneos ¢ dio impresses distintas; erro desculpdvel, porém, pois os dois ¢ so, sem se confundirem, apresentam uma caracterfstica comum p. 64s.). 50 géeneas. Os cipriotas, por exemplo, se detiveram em unidades mais complexas, do tipo pa, ti, ko etc.; essa notagio se chama silabica, designagao um pouco inexata, pois a silaba pode ser formada de conformidade com outros tipos como pak, tra etc. Os semitas s6 assinalavam as consoantes: um termo como bdrbaros teria sido escrito por eles BRBRS. A delimitagao dos sons da cadeia falada 6 se pode apoiar, ehtio, na impressio acistica; mas, para sua descric&o, proce- de-se de modo diverso. Ela sé poderia ser feita com base no ato articulatério, pois as unidades actsticas, tomadas em sua pré- pria cadeia, ndo séo analisdveis Cumpre recorrer & cadeia dos movimentos de fonacio; ent&o se nota que ac mesmo som ‘igual corresponde o mesmo ato: & (tempo acistico) = b’ (tem- po articulatério). As primeiras unidades que se obtém ao di- vidir a cadeia falada estario compostas de b e b’; chamam-se fonemas; o fonema é a soma das impressdes acisticas e dos mo- vimentos articulatérios da unidade ouvida e da unidade fala- da, das quais uma condiciona a outra; portanto, tratase ja de uma unidade complexa, que tem um pé em cada cadeia. Os elementos obtidos primeiramente pela andlise da ca- deia falada sao como os elos dessa cadeia, momentos irredu- tiveis que ndo se podem considerar fora do tempo que ocupam. Assim, um conjunto como ta sera sempre um momento mais outro momento, um fragmento de certa extensio mais outro fragmento. Em compensagio, o fragmento irredutivel t, toma- do & parte, pode ser considerado in abstrato, fora do tempo. Pode-se falar do t em geral, como da espécie J (designare- mos as espécies por maitisculas), do i como da espécie J, levan- do-se em conta apenas o carater distintivo ¢ deixando de parte aquilo que depende da sucesséo no tempo. Do mesmo modo, um conjunto musical, do, re, mi néo pode ser tratado senao como uma série concreta no tempo; se tomo, porém, um des- ses elementos irredutiveis, posso consider4-lo in abstracto. Depois de ter analisado um niimero suficiente de cadeias faladas pertencentes a diversas linguas, chega-se a conhecer e a classificar os elementos com os quais elas operam; entao se verifica que, postos de lado os matizes acusticamente indife- rentes, o numero de espécies dadas nao é indefinido. A lista © a descrigéo pormenorizada podem ser encontradas nas obras 51 especializadas!; queriamos mostrar aqui em que principios constantes e muito simples se fundamenta toda classificagio desse género. Digamos, porém, antes de tudo, algumas palavras acerca do aparelho vocal, do jogo possivel dos érgaos e do papel des- ses mesmos Orgdos como produtores de som. § 2. O APARELHO VOCAL E SEU FUNCIONAMENTO ?. 1. Para a descrigio do aparelho vocal, limitamo-nos a ra esquematica, onde A designa a cavidade nasal, B a wae bucal, G a laringe, que contém a glote ¢ entre as duas cordas vocais, Na boca é essencial distinguir os ldbios @ e a, a lingua B-y (8 designa o Apice e todo o resto), os dentes superiores d, o palato, que compreende uma parte anterior, dssea e inerte f-h, © uma parte posterior, mole e mével ou véu palatal i, e por fim, a Gyula 8, As letras gregas designam os érgaos ativos na articulagao € as letras latinas as partes passivas. A glote ¢, formada por dois misculos paralelos ou cordas vo- cais, se abre ou se fecha conforme elas se separam ou se juntam. A ocluséo completa nao entra, por assim dizer, em linha de conta; quanto a abertura, ela pode ser mais larga’ou mais estreita, No primeiro caso, o ar passa livremente e as cordas vocais nao vibram; no segundo, a passagem do ar determina as vibragdes sonoras, NZo ha outra alternativa na emisso nor- mal dos sons. (1) Cf. Sievers, Grandziige der Phonetik, 5.* ed., 1902; Jespersen, Lebrbuch der Phonetik, 2* ed., 1913; Roudet, Eléments de’ phonétique genérale, 1910. (2) A descrigio um pouco sumérig de F. de Saussute fol comple- tada conforme o Tebrbuch der der Phonetik, de Jespersen, do qual toma- mos etnprestado também o principio segundo © qual setao estabelecidas a seguir as férmulas dos fonemas. Mas trata-se de questdes de formai, de ajuste, ¢ © leitor se convenceré de que essas mudancas nio alteram em nada o pensamento de F. de Saussure. (Org.) 52 A cavidade nasal é um 6rg%o completamente imé- vel; a passagem do ar po- de ser impedida pelo le- vantamento da ivula &, nada mais; é uma porta aberta ou fechada. Quanto 4 cavidade bu- cal, ela oferece um jogo de muitas variagdes possiveis: pode-se aumentar o com- primento do canal por meio dos labios, encher ou afrouxar as bochechas, re- duzir e até mesmo fechar a cavidade por meio de movimentos infinitamente diversos dos labios e da lingua. O papel desses mesmos érg%os como produtores do som esté na razSo direta de sua mo- bilidade: mesma uniformidade na fungio da laringe e da cavi- dade nasal, igual diversidade na fung’o da cavidade bucal. O ar expulso dos pulmées passa primeiramente pela glote, ende ha uma produgio possivel de um som laringeo pela apro- ximagéo das cordas vocais. Nao é, porém, o jogo da laringe que pode produzir as variedades fonolégicas que permitem dis- tinguir e classificar os sons da lingua; sob esse aspecto, o som laringeo € uniforme. Percebido diretamente, tal como emitido pela glote, ele nos apareceria quase invaridvel em sua qualidade. © canal nasal serve unicamente de ressoador as vibragdes vocais que o atravessam; nao desempenha, portanto, nenhum Papel como produtor de som. Ao contrario, a cavidade bucal acumula as fungoes de ge- rador e ressoador de som, Se a glote est4 muito aberta, nenhu- ma vibrag&o laringea se produz, e o som que se ouvir procede- ra somente da cavidade bucal (deixemos aos fisicos a tarefa de decidir se se trata de um som ou simplesmente de um rui- do). Se, ao contrério, a aproximag3o das cordas vocais faz 53 vibrar a glote, a boca intervém principalmente como modifi- cador do som laringeo, Dessarte, na producSo do som, os fatores que podem entrar em jogo sio a expiracao, a articulagao bucal, a vibragao da la- ringe e a ressonancia nasal. Mas enumerar esses fatores de produgao do som nfo é ain- da determinar os elementos diferenciais dos fonemas. Para clas- sificar estes Ultimos, importa menos saber em que consistem que saber o que os distingue uns dos outros. Ora, um fator negativo pode ter maior import4ncia para a classificagio que um fator positive. Por exemplo, a expiragao, elemento positivo, ™as que intervém em todo ato fonatério, nfo tem valor dife- renciador; ao passo que a auséticia de ressonAncia nasal, fator negativo, servira, do mesmo modo que sua presenga, para ca- racterizar os fonemas. O essencial é pois, que dois dos fatores enumerados acima sao constantes, necessdrios e suficientes para a produg&o do som: a) a expiragao 6) a articulagZo bucal, enquanto os outros dois podem faltar ou sobrepor-se aos pri- meiros: ¢) a vibracao da laringe d) a ressonncia nasal. De outro lado, sabemos j4 que a, ¢ e d sdo uniformes, en- quanto b comporta variedades infinitas. Além disso, deve-se lembrar que um fonema fica identifi- cado quando se determinou o ato fonatério, e que, reciproca- mente, se terio determinado todas as espécies de fonemas quando se hajam identificado todos os atos fonatérios. Ora, estes, como’ o mostra nossa classificagio dos fatores em jogo na produgZo do som, acham-se diferenciados somente pelos trés ultimos. Ser4 necess&rio, entio, estabelecer para cada fonema: qual é a sua articulacdo bucal; se ele comporta um som laringeo (~~) ou nio ([]); se comporta uma resso- nancia nasal (...) ou nfo ([]). Quando um desses trés ele- 54 mentos nao esta determinado, a identificagio do som é incom- pleta; mas desde que sejam conhecidos os trés, suas combina- gdes diversas determinam todas as espécies essenciais de atos fonatérios, Obtém-se assim o esquema das variagdes possiveis: A coluna I designa os sons surdos; a II os sons sonoros; a III os sons surdos nasalizados; a IV os sons sonoros nasalizados. Mas uma incégnita persiste: a natureza da articulagio bucal; importa, pois, determinar-lhe as variagdes possiveis. § 3. CLasstricagio DOs SONS CONFORME sUA ARTIGULAGAO BUCAL. Classificam-se geralmente os sons conforme 0 seu ponto de articulagao, Nosso ponto de partida ser& diferente. Seja qual for o Ponto de articulagéo, sempre apresenta uma certa aber- tura, isto é, um certo grau de abertura entre os dois limites ex- tremos que s4o: a oclusdo completa e a abertura maxima. So- bre essa base, e indo da abertura minima a abertura m4xima, 0s sons sero classificados em sete categorias, designadas pelos mimeros 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6. E somente no interior de cada uma delas que repartiremos os fonemas em diversos tipos, conforme © seu ponto préprio de articulagao, Nés nos ateremos 4 terminologia corrente, se bem que ela seja imperfeita ou incorreta em vrios pontos: termos como guturais, palatais, dentais, liquidas etc., sio todos mais ou me nos ilégicos, Seria mais racional dividir o palato em certo nime- 55 ro de reas; desse modo, e levando-se em conta a articulagio lingual, poder-se-ia sempre dizer diante de que ponto se acha, em cada caso, © estreitamento principal. Inspirar-nos-emos nes- sa idéia e, utilizando as letras da figura da p. 53, simboliza- remos cada articulagéo por uma formula em que o numero de abertura se acha colocado entre a letra grega que assinala o érgo ativo (4 esquerda) ¢ a letra latina que designa o érgao passivo (a direita), Desse modo, B o ¢ quer dizer que, com o grau de abertura correspondente 4 oclusao completa, a ponta da lingua B se aplica contra os alvéolos dos dentes supe- riores em ¢. Finalmente, dentro de cada articulagio, as diversas espé- cies de fonemas se distinguem pelas concomitancias — som la- Tingeo e ressonancia — cuja auséncia ser4 um elemento de di- ferenciagao tanto quanto sua presenga. £ conforme esse principio que iremos classificar os sons. Trata-se de um simples esquema de classificago racional; nao devemos esperar encontrar nele fonemas de carater cgmplexo ou especial, seja qual for sua importancia pratica, por exemplo as aspiradas (ph, dh etc.), as africadas (ts, dz, pf etc.), as consoantes molhadas, as vogais fracas (2 ou ¢ mudo etc.), nem, inversamente, fonemas simples, desprovidos de importancia pra- tica e que nfo entram em linha de conta como sons dife- renciados, A -~ Apertura ZERO: Ocxusivas. — Essa classe abrange todos os fonemas obtidos pelo fechamento completo, a oclusio hermética, mas moment&nea, da cavidade bucal. Nao cabe examinar se o som é produzido no instante do fechamento ou no da abertura; em verdade, pode produzir-se dos dois mo- dos (ver p. 64 s.). Conforme o lugar de articulagao, distinguem-se trés tipos Pprincipais de oclusivas; o tipo labial (p, 6, m), 0 tipo dental {t, d, ), o tipo chamado gutural (k, g, 2). O primeiro se ar- ticula com os dois labios; no segundo, a extremidade da lingua se aplica sobre o palato, na parte anterior; no terceiro, o dorso da lingua fica em contato com a parte posterior do palato, Em muitas linguas, principalmente no indo-europeu, dis- tinguem-se claramente duas articulagdes guturais, uma palatal, sobre f-h, outra velar, sobre i. Mas em outras linguas, como 56 no francés por exemplo, negligencia-se tal diferenga, e o ouvi- do assimila um k posterior, como o de court, e um & anterior, como o de qui. © quadro seguinte mostra as férmulas desses diversos fo- nemas. As nasais m, n, sio propriamente oclusivas sonoras na- salizadas; quando se pronuncia amba, a dvula se ergue para fechar as fossas nasais, no momento em que se passa de m para b. Em teoria, cada tipo possui uma nasal sem vibrago glé- tica, isto é, surda; assim é que nas Iinguas escandinavas exis- te m surdo apés uma surda; encontrar-se-iam exemplos tame bém em francés, mas os falantes nao véem nisso um elemento diferencial, As nasais figuram entre parénteses no quadro; com efeito, se sua articulagio comporta um fechamento completo da boca, a abertura do canal nasal Ihes.confere um cardter de abertura superior (ver classe C). B — Asertura !: Fricativas ou ExpiranTEs, carac- terizadas por um fechamento incompleto da cavidade bucal, que permite a passagem do ar. A designacao de expirante é muito geral; a de fricativa, sem nada dizer de grau de fechamento, lembra a impressao de fricgio produzida pela passagem do ar (latim: fricare). Nesta classe, nao nos podemos ater a trés tipos como na primeira categoria. Antes do mais, as labiais propriamente ditas (correspondentes as oclusivas p e b) s%0 de uso muito raro; fa- remos abstragao delas; elas s40 ordinariamente substituidas pe- las Mébio-dentais, produzidas pela aproximag3o do l4bio inferior 57 e dos dentes (f e v, em francés) ; as dentais se dividem em mui- tas variedades, segundo a forma que toma a extremidade da lingua no fechamento (oclusio); sem descrevé-las pormenori- zadamente, designaremos por 8, 8’ e B” as diversas formas que toma o 4pice. Nos sons que afetam o palato, o ouvido distin- Bue geralmente uma articulagao anterior (palatais) e uma ar- ticulago posterior (velares) '. Existe nas fricativas 0 que corresponderia a m, n; n etc., nas oclusivas, a saber, um v nasal, um z (s sonoro) nasal etc.? E facil supé-lo: assim, ouve-se um v nasal no francés inventor; mas, em geral, a fricativa nasal nao é um som de que a lingua tenha consciéncia. C — Apertura 2: nasais (ver acima, p. 57). D — Abserrura 3: Liguipas. (£) Ficl a seu método de simplificagio, F. de Saussure nfo acre- ditou dever fazer uma distingao na classe ‘A, malgrado a importincis con: uma siderdvel das duas séries Ki ¢ Ks, no indo-curopeu. Ocotte no caso omissio voluntéria. (Org.) 5a Duas espécies de articulago surgem nessa classe: 1) A articulagao lateral: a lingua se apéia contra a par te anterior do palato, deixando, porém, uma abertura A direita e 4 esquerda, posigio representada por um { em nossas férmu- ‘las. Conforme o ponto de articulagao, distinguem-se / dental, P palatal ou “molhado” e ¢ gutural ou velar. Em quase todas as linguas, esses fonemas sio sonoros como 8, z etc. Entre- tanto, a surda nao é impossivel; ela existe mesmo no francés, onde um / apés uma_surda sera pronunciado sem o som larin- geo (por exemplo, em pluie, por oposigio a bleu); nao temos, porém, consciéncia dessa diferenga. Indtil falar de { nasal, muito raro e nao diferenciado, se bem que exista, sobretudo apés um som nasal (por exemplo no francés bralant). 2) A articulagao vibrante: a lingua se coloca menos préxi- ma do palato do que para o /, mas vibra com um numero varidvel de golpes (signo py em nossa f6rmula), e assim-se obtém um grau de abertura equivalente ao das laterais. Essa vibragio pode ser produzida de dois modos; com a ponta da lingua aplicada & frente, sobre os alvéolos (r chamado “roulé’ em francés), ou atrds, com a parte posterior da lingua (r “grasseyé” dos fran- ceses). Pode-se repetir, a respeito das vibrantes surdas ou na- sais, o que sé disse das laterais. Além do grau 3, entramos noutro dominio: das consoantes passamos as vogais. Até agora, nZo tinhamos previsto essa dis- tingio; € que o mecanismo da fonagao permanece o mesmo. A férmula duma vogal.é exatamente comparavel 4 de qualquer consoante sonora. Do ponto de vista da articulaco bucal, n&o existe distingao a fazer. Somente o efeito acistico é diferente. Passado um certo grau de abertura, a boca funciona principal- mente como ressoador. O timbre do som laringeo aparece ple- 39 namente e o ruido bucal desaparece. Quanto mais a boca se fecha, mais o som laringeo é interceptado; quanto mais se abre, mais diminui o ruido. £ assim que, de modo totalmente mec&nico, o som predomina na vogal. E — Apertura 4: i, u, ii. Com relagao 4s outras vogais, esses sons supdem um fe- chamento ainda considerd4vel, bastante préximo do das consoan- tes, Disso resultam certas conseqiiéncias, que aparecerao mais tarde e que justificam o nome de semivogais dado geralmente a esses fonemas. O i se pronuncia com os labios retraidos (signo ~) e ar- liculagao diantcira; o u com os labios arredondados (sinal °) ¢ articulago posterior, i ‘com a posigae dos labios de u e ar- ticulag&o de i. Como todas as vogais, i, u, ii tém formas nasalizadas; sao, todavia, raras, e podemos fazer abstrag3o delas, Deve-se notar que os sons escritos in e un na ortografia francesa correspon- dem a outra coisa (ver mais adiante). Existe um i surdo, vale dizer, articulado, sem o som da laringe? A mesma questo se coloca com referéncia a u e i, bem como para todas as vogais; esses fonemas, que correspon- deriam 4s consoantes surdas, existem, mas nfo devem ser confun- didos com as vogais co- chichadas, isto é, arti- culadas com a_ glote relaxada. Podem equi- parar-se as vogais sur- das ao h aspirado pronunciado diante delas; assim, em Af se ouve, a principio, um i sem vibrag3o, depois um i normal. F — Asertura 5: e, 0, 6, cuja articulagao corresponde respectivamente 4 de 1, u, ii. As vogais nasalizadas sio fre- qiientes: ¢, 5, 6 (por exemplo em francés:. pin, pont, brun). As formas surdas sao o h aspirado de he, ho, hé. N. B. — Muitas linguas distinguem aqui varios graus de abertura: assim, o francés tem pelo menos duas séries, uma cha- 60 mada fechada: ¢, 6, 9 (por exemplo, em dé, dos, deux), a ou- tra aberta: ¢, 9, 9 (por exemplo, em mer, mort, meurt). G — Apertura 6: a, aber- tura maxima, que tem uma forma nasalizada, um pouco mais fechada, certamente, @ (por exemplo em grand), e uma forma surda, o h de ha. 61 capiruLo 1 - O FONEMA NA CADEIJA FALADA § 1. NecESSIDADE DE ESTUDAR 03 SONS NA CADEIA FALADA. Podem-se encontrar nos tratados especiais, e sobretudo nas obras dos foneticistas ingleses, minuciosas andlises dos sons da linguagem. Bastam para que a Fonologia responda a seu destino de ciéncia auxiliar da Lingiifstica? Tantos pormenores acumula- dos no tém valor por si sés; a sintese € 0 que importa. O lin- gilista nao tem necessidade alguma de ser um fonologista consu mado; ele pede simplesmente que the seja fornecido certo nime ro de dados necessarios para o estudo da lingua. Num ponto, o método dessa Fonologia € particularmente defeituoso: no esquecer demasiadamente que na lingua nao exis- tem apenas sons, mas extensdes de sons falados; tal Fonologia nao d4 tampouco atengio suficiente 4s suas relagdes reciprocas. Ora, isso nao & o que se nos oferece inicialmente; a silaba apa- rece mais diretamente do que os sons que a compéem, Ja vi- mos que certas escritas primitivas assinalaram as unidades sila- bicas; foi s6 mais tarde que se chegou ao sistema alfabético. Além disso, nao é nunca uma unidade simples que cria embaragos em Lingiiistica: se, por exemplo, em dado momen- to, numa determinada lingua, todo a se transformou em 9, nada resulta dai; podemos limitar-nos a assinalar o fendmeno, sem pro- curar explic-lo fonologicamente, A ciéncia dos sons nao adqui- re valor enquanto dois ou mais elementos nao se achem im- plicados numa relagio de dependéncia interna; pois existe um 62 limite para as variagdes de um conforme as variagdes do outro; somente o fato de que haja dois elementos engendra uma rela- ¢40 e uma regra, 0 que € muito diferente da simples verifica- cao, Na busca do principio fonoldgico, a ciéncia trabalha, en- téo, em sentido contrdrio, com sua predilegdo pelos sons isola- dos, Bastam dois fonemas para que nao se saiba mais onde se esté. Assim, no antigo alto alemo, Aagl, balg, wagn, lang, donr, dorn, se tornaram mais tarde, hagal, balg, wagan, lang, donnar, dorn; desse modo, conforme a natureza e a ordem de sucesso em grupo, o resultado é diferente: ora uma vogal se desenvolve entre duas consoantes, ora o grupo permanece com- pacto, Como, pois, formular a lei? De onde provém a dife- renga? Sem divida dos grupos de consoantes (gl, Ig, gn etc.) contidos nessas palavras. Esta bem claro que se compdem de uma oclusiva que, num dos casos, é precedida, e noutro segui+ da duma liquida ou duma nasal; mas que resulta disso? En- quanto se suponha sejam g e n quantidades homogéneas, nao se compreendera por que o contato g-n produziria outros efeitos que nao n-g. Ao lado da fonologia das espécies, existe, pois, lugar para uma ciéncia que tome como ponto de partida os grupos bina- tios e as seqiiéncias de fonemas, o que constitui coisa bem di- versa. No estudo dos sons isolados, basta verificar a posigao dos érgaos: a qualidade acistica do fonema nao entra em ques- to; ela é fixada pelo ouvido; quanto 4 articulagao, tem-se toda a liberdade de a produzir como se quiser. Mas quando se trata de pronunciar dois sons combinados, a questo é menos simples; estamos obrigados a levar em conta a discordancia pos- sive] entre o efeito procurado e o efeito produzido; nao esta sempre ao nosso alcance pronunciar o que desejemos. A liber- dade de ligar as espécies fonolégicas é limitada pela possibi- lidade de ligar os movimentos articulatérios. Para nos darmos conta do que se passa nos grupos, necess4rio se faz fundar uma Fonologia onde eles seriam considerados como equagdes algé- bricas; um grupo bindrio implica certo nimero de elementos mecanicos e acisticos que se condicionam reciprocamente; quando um varia, essa variacgio tem, sobre os outros, uma re- percussao necessdria, que poder ser calculada. Se algo existe no fendémeno da fonagio com um carater universal, que se anuncie como superior a todas as diversida: 63 des locais dos fonemas é, sem diivida, essa mecAnica regula- da de que acabamos de falar. Por ai se vé a importancia que a fonologia dos grupos deve ter para a Lingiiistica Geral. En- quanto os fondlogos se limitam geralmente a dar regras para articular todos os sons, elementos varidveis e acidentais das lin- guas, essa Fonologia combinatéria circunscreve as _possibilida- des e fixa as relagdes constantes dos fonemas interdependen- tes. Assim, o caso de hagl, balg etc. (ver p. 63) suscita a questao, tao discutida, das soantes indo-européias; ora, é esse 0 dominio onde menos se pode prescindir de uma Fonologia as- sim concebida, pois a silabagdo constitui, por assim dizer, o ani- co fato que tal Fonologia p6e em jogo de comego a fim, Nao é esse o unico problema a ser resolvido por tal método; um fato, todavia, € certo: torna-se quase impossivel discutir a questao das soantes fora de uma apreciagao exata das leis que regem a combinag&o dos fonemas. § 2. A IMPLOSAO E A EXPLOSAO, Partimos de uma observagio fundamental: quando se pro- nuncia um grupo appa, percebe-se uma diferenga entre os dois pp, dos quais o primeiro corresponde a um fechamento ¢ © segundo a uma abertura. Essas duas impress6es sao bastan- te andlogas para que se tenha podido representar a seqiiéncia Pp por um tinico p (ver p. 50, nota). Contudo, é essa dife- renga que nos permite distinguir; por meio de sinais espe- ciais (>> <<), os dois pp de appa (appa) © os caracterizar quando no se seguem na cadeia (cf.: afta e atfa). A mesma distin- go pode ser levada a cabo além das oclusivas e aplicar-se As fricativas (ajfa), a5 nasais (amma), as liquidas (alla) ¢, em geral, a todos os fonemas, inclusive as vogais (adé2), exce- tlooa . Chamou-se implosdo ao fechamento e exploséo 4 abertura; um p pode ser chamado de implosivo ($) ou explosivo (p). No mesmo sentido, pode-se falar de sons que se fecham ou se abrem. Sem divida, num grupo como appa, distingue-se, além da implosio e explosio, um tempo de repouso no qual a oclusio 64 se prolonga ad libitum, e, tratando-se de um fonema de abertu- ya maior, como no grupo alla, é a emissio do proprio som que se prolonga na imobilidade dos érgaos. De modo geral, em toda cadeia falada existem essas fases intermedidrias, que cha- maremos tensées ou articulagdes sustentadas. Mas elas podem ser equiparadas as articulagdes implosivas, pois seu efeito é and- logo; sé levaremos em conta, no que segue, implosoes ou ex- plosdes ?. Esse método, que nao seria admissivel num tratado com- pleto de Fonologia, justifica-se numa exposigdo que reduz a um esquema tao simples quanto possivel o fenémeno da sila- bagao considerado em seu fator essencial; nao pretendemos re- solver, com isso, todas as dificuldades que a divisao da cadeia falada em silabas apresenta, mas téo-somente assentar uma base racional para o estudo desse problema. Ainda uma observacdo: os diversos movimentos de abrir e fechar, necessérios para a emissao dos sons, nao devem ser confundidos com as diversas aberturas desses mesmos sons. Qual- quer fonema pode ser tanto implosivo como explosivo; mas é certo que a abertura influi na imploséo e explosdo, no sentido de que a distingZo de dois movimentos se torna tanto menos clara quanto maior for a abertura do som. Dessarte, com oi e ii, percebe-se ainda muito bem a diferenga; em alia é possivel des- tacar um i que se fecha e um i que se abre; do mesmo modo em aitiia, auiia distingue-se nitidamente o som implosivo. do som explosivo que se segue, a tal ponto que a escrita, contra- riamente ao seu costume, assinala por vezes essa distingdo; o w inglés, o j alemao e amitde o y francés (em yeux etc.) re- presentam sons que se abrem (i, f), em oposigao a u e i, que (1) Este € um dos pontos da teoria que mais se prestam a discus- séo. Para prevenit certas objegdes, pode-se fazer notar que toda arti- culacdo sustentada, como a de um f, resulta.de duas forcas: pressio do ar contra as paredes que se lhe opdem, e 2.° a resisténcia dessas pare- des, que se estreitam para dar equilibrio a presséo. A tensio ¢, pois, apenas uma imploséo continua. Eis porque, s¢ se seguirem uma impulsio uma tesio da mesma espécie, o efeito é continuo de principio a fim. Por tal motivo, nfo € ildgico reunir esses dois géncros de articulacao numa unidade mecdnica e acdstica. A explosio se opée, a0 contrario, a um fous reunidas: é, por definigio, um afrouxamento; ver também 6 (Org.). 65 Ao empregados para % e 7. Mas num grau maior de abertura (ee 0), a implosio e a explosdo, teoricamente concebiveis (cf.: adéa, a6da), so bastante dificeis de se distinguirem na pra- tica, Por fim, como vimos antes, em grau maior, o a ja nao apresenta mais nem implosao nem explosao, pois para este fo- nema a abertura desfaz qualquer diferenga desse género. E necessdrio, pois, desdobrar 0 quadro dos fonemas, exceto para o a, estabelecendo como segue a lista das unidades irredu- tiveis: bp, ete. zs ff, ete. > = mm, etc. ss rr, etc. Ty, ete. —— ee ete, Longe de suprimir as distingdes consagradas pela gra- fia (y, w), conservamo-las cuidadosamente; a justificagao deste ponto de vista se acha mais a frente, no § 7. Pela primeira. vez, saimos da abstragao; pela primeira vez, aparecem elementos concretos, indecomponiveis, ocupando um lugar e representando um tempo na cadeia falada. Pode-se dizer que P nfo era mais que_uma unidade abstrata reunindo as ca- racteristicas comuns de f e de J, as tnicas que se encontram na realidade, exatamente como B, P, M se retinem numa abs- tvagdo superior, as labiais, Fala-se de P como se se falasse duma espécie zoolégica; existem exemplares machos e fémeas, mas jamais um exemplar ideal da espécie. Sao essas abstragées que até agora temos distinguido e classificado; é necessdrio, porém, ir mais longe e chegar ao elemento concreto. Foi um grande erro da Fonologia considerar como uni- dades reais essas abstragdes, sem examinar mais de perto a de- finigio de unidade. O alfabeto grego chegara a distinguir es- ses elementos abstratos, e a andlise que isso sup6e — como o 66 dissemos — era das mais notaveis; tratava-se, porém, de uma andlise incompleta, detida em certa etapa. Com efeito, que é um p, sem outra determinagao? Se o consideramos no tempo, como membro da cadeia falada, nao pode ser nem f, nem }, ainda menos pp, grupo claramente de- cemponivel; e se o considerarmos fora da cadeia falada e do tempo, no é mais que algo sem existéncia propria e sem utili- zagao possivel. Que significa em si um grupo como i + g? Duas abstragées nao podem formar um momento no tempo. Outra coisa é falar de tk, lk, tk, lk, e reunir assim os verda- deiros elementos da fala. Vé-se porque bastam dois elemen- tos para confundir a Fonologia tradicional, e assim fica de- monstrada a impossibilidade de proceder, como ela o faz, por unidades fonolégicas abstratas, Formulou-se a teoria de que, em todo fonema simples con- siderado na cadeia falada, por exemplo, p em pa ou apa, ocor- rem sucessivamente uma implosio e uma explosio (@fa). Sem davida, toda abertura deve ser precedida de um fechamento; para considerar um outro exemplo ainda: se digo 7), apés ter feito o fechamento do 1, deverei articular com a uvula um r* — que se abre enquanto a oclusdo do p se forma nos labios. Para resp6nder, porém, a essa objec3o, basta especificar bem qual é nosso ponto de vista. No ato fonatério que vamos analisar, leva- ™os em conta apenas os elementos diferenciais, destacados para © ouvido e capazes de servir para uma delimitac3o das unida- de acisticas na cadeia falada. Somente essas unidades acistico- -thotrizes devem ser consideradas; assim, a articulagao do r ex- plosivo que acompanha a do explosivo é inexistente para nds, Pois n&o produz um som perceptivel ou, pelo menos, porque nao conta na cadeia de fonemas, Este é um ponto essencial, que cumpre entender bem para poder acompanhar a exposicao que se segue, (*) Tratase, no caso, do r francés, dito grasseyé ou velar. (N. dosT.) 67 § 3. ComBrnagGEs DIVERSAS DE EXPLOSOES E IMPLOSGES NA CADEIA, Vejamos, agora, o que deve resultar da seqiiéncia de ex- Plosdes e implosdes nas quatro combinagées teoricamente pos- siveis: 1° <>, 2° ><, 3° <<, 4" >>. 1.° Grupo EXPLosIvo-IMPLosivo (< >). Ha sempre a possibilidade de, sem romper a cadeia falada, unir dois fone- mas 0, primeiro dos quais € explosiyo e o segundo implosivo. Ex.; ki, &, jm etc. (cf. sinscrito Kita, frances kite, “quitter”, indo-europeu jmto etc.). Sem divida, certas combinagées, como &f etc., nao tém um efeito acistico suscetivel de realiza- g30 prdtica, mas nao é menos verdade que, depois de ter ar- ticulado um k que se abre, os érgaos se acham na posigio exi- gida para proceder a um estreitamento num ponto qualquer. Estas duas fases podem suceder-se sem se obstarem mutua- mente. 2.2 Grupo IMPLosivo-ExpLosivo (><). Nas mesmas condigées, e com as mesmas reservas, nao existe impossibili- dade alguma de unir dois fonemas, o primeiro dos quais é implosivo € o outro explosivo; assim: 2m, Ki etc. )cf. grego haima, francés actif etc.). Evidentemente, ésses momentos articulatérios sucessivos nZo se seguem com a mesma naturalidade que no caso anterior. En- tre uma primeira implosio e uma primeira explosao, existe a diferenga de que a exploséo, por tender a uma postura neu- tra da boca, ndéo compromete 0 momento seguinte; ao passo que a implosio cria uma posigZo determinada, que nao le ser- vir de ponto de partida a uma explosio qualquer, sempre mister, ent&o, algum movimento de acomodagao, destinado a propiciar a posigfo necess4ria para a articulagio do se- gundo fonema; assim, enquanto se executa o s de um grupo 7f, é preciso fechar os labios para preparar o p que se abre. Mas a experiéncia mostra que esse movimento de acomodagio nao produz nada de aprecidvel, a nao ser um desses sons furtivos que nao podemos levar em conta e que, em nenhum caso, estorvam © prosseguimento da cadeia. 3° Eto Exptosivo (<_<). Duas explosdes podem pro- duzir-se consecutivamente; se a segunda, porém, pertencer a 68 um fonema de abertura menor ou igual, nao se tera a sensa- g40 actstica de unidade que se perceberd no caso contrario, e que apresentam os dois casos anteriores; Pk pode ser pronun- ciado (pka), mas tais sons nao formam cadeia, pois as espécies Pe K s&o de abertura igual. Esta proniincia pouco natural € que obteriamos detendo-nos depois do primeiro @ de cha- pha, Ao contrario, | oF da uma impress’o de continuidade (ef. fran- cés prix); 77 n&o apresenta maior dificuldade (cf. francés rien). Por qué? £ que no momento em que se produz a pri- meira explosdo, os érgaos j4 puderam colocar-se na posigao exigida para executar a segunda exploséo, sem que o efeito actstico da pfimeira tenha sido obstado; por exemplo, em prix, enquanto se pronuncia © p, os Srgaos se encontram jé na po- siggo do r. Mas é impossivel pronunciar em cadeia continua a série inversa #p; ndo que seja mecanicamente impossivel ado- tar a posiggo de # enquanto se articula um # que se abre, mas porque o movimento desse #, encontrando a abertura menor do b nao podera ser percebido. Se se quiser, entio, fazer ouvir 7}, ser mister fazé-lo em duas vezes, e a emissio sera rompida. Um elo explosive continuo pode compreender mais de dois elementos, contanto que se passe sempre de uma abertura menor para outra maior (p. ex.: riba). Fazendo-se abstragao de certos casos particulares, nos quais nio podemos insistir', (1) Sem divida, certos grupos desta categoria sio muito usuais em certas linguas {p. ex. &é inicial em grego: cf.: kteind); mas, se bem que faceis de serem pronunciados, nfo oferecem unidade acistica (Ver a nota seguinte). (2) Mercé de uma simplificago deliberada, nao se considera aqui, no fonema, mais que o seu grau de abertura, sem levar em conta nem o ponto nem o cardter particular da articulagio (se se trata de uma surda ou de uma sonora, de uma vibrante ou de uma lateral, etc.). As conclusdes tiradas do principio unico de abertura néo podem entio aplicar-se a todos os casos reais, sem excecgo. Assim, num grupo como trya, os trés primeiros elementos dificilmente podem ser pronunciados sem rompimento da cadeia: #F¥a (a ndo ser que o 7 se funda com o 7, palatalizando-o); todavia, esses trés elementos fry formam uma cadeia explosiva perfeita (cf. outrossim a p. 79, a propésito de meurtrier, etc.); ao gontrétio, trwa nio oferece dificuldades. ‘Citemos, ainda, cadeias como etc., ‘onde € bem diffcil nao pronunciar a nasal implosivamente Pees Esses casos aberrantes aparecem sobretudo na explosio, que é, Por natureza, um ato instantaneo e nfo sofre retardamentos (Org. ). 69 ‘pode-se dizer que o numero possivel de explosdes acha seu li- mite natural no ndmero dos graus de abertura que se possa dis- tinguir praticamente. 42 © ELo mpLosivo (> >) € regido pela lei inversa. Desde que um fonema seja mais aberto que o seguinte, tem-se a impressio de continuidade (por exemplo 77, 7#); se essa con- digao no for satisfeita, se o fonema seguinte for mais aberto ou tiver a mesma abertura do precedente, a prontncia conti- nuard a ser possivel, Mas a impressdo de continuidade desapa- rece; assim, i? de a##ta tem o mesmo carater do grupo pk de chapka (ver antes, p. 68 s.). O fenémeno ¢ inteiramente paralelo Aquele que analisamos no elo explosivo: em 7t, 0 #, em virtude de seu grau inferior de abertura, dispensa o # da explosio; ou, se se considera um elo cujos dois fonemas nao se articulam no mesmo ponto, como 7m, o mm nio dispensa a explosao do 7, mas, o que vem a dar na mesma, cobre-lhe com- pletamente a. explosio por meio de sua articulagio mais fecha- da. Seno, como no Caso inverso m7, a explosao furtiva, meca- nicamente indispensdvel, vem romper a cadeia falada. Vé-se que o elo implosivo, como o explosive, pode com- preender mais de dois elementos, se cada um deles tiver aber- tura maior do que o seguinte (cf. a73t). Deixando de parte as rupturas de elos, coloquemo-nos, agora, diarite da cadeia continua normal, que se poderia chamar “fisiclégica”, tal como € representada pela palavra francesa particuliérement, ou seja: alkibvering Ela se caracteriza por uma sucessio de elos explosivos e implosivos graduados, que correspondem a uma sucessao de aberturas e fechamentos dos érgaios bucais. A cadeia normal assim definida d4 lugar as observagdes seguintes, de import&ncia capital. § 4. Lamrre be sitaBa & PONTO VOCALICO. Se, numa cadeia de sons, se passa de uma implosdo a uma explosio (>> | <<), obtém-se um efeito particular, que é © in- dice da fronteira de silaba, por exemplo no 3f de par- ticuliérement, Essa coincidéncia regular de uma condig&o me- cinica com um efeito acistico. determinado assegura ao grupo 70 implosivo-explosivo uma existéncia prépria na ‘ordem fonolé- gica: seu cardter persiste, sejam quais forem as espécies que © compéem; constitui ele um género que contém tantas espé- cies quantas combinagées possiveis existirem. A fronteira silabica pode, em certos casos, colocar-se em dois pontos diferentes de uma mesma série de fonemas, con- forme se passe mais ou menos rapidamente da implosio 4 ex- plosio. Assim, num grupo ardra, a cadeia nao é rompida, quer se. silabe G?drd' ou atdfa, pois rd, elo implosivo, esta tao bem graduado quanto @f, elo explosivo. .O mesmo acontece- r4 com iilye de particuliérement (iilye ou liye). Em segundo lugar, assinalaremos que no ponto em que se passa do siléncio a uma primeira implosio (>), por exemplo, em art de artista, ou de uma explosio a uma implosio (< >), como em pait de particularmente, 0 som onde se produz esta primeira implosio distingue-se dos sons vizinhos por um efeito préprio, que é o efeito vocdlico, Este nZo depende de modo algum do grau de abertura maior do som a, pois Prt, or também o produz; é inerente 4 primeira implosao, seja qual for sua espécie fonolégica, vale dizer, seu grau de abertura; pouco importa, outrossim, que ocorra apés um siléncio ou uma explosio. O som que dé essa impressiio, pelo seu carater de primeiro implosivo, pode ser chamado ponto vocdlico. Deu-se também a essa unidade o nome de soante, cha- mando consoantes todos os sons precedentes ou seguintes da mesma silaba. Os termos vogal ¢ consoante designam, como vimos na p. 59 s., espécies diferentes; soantes e consoantes in- dicam, ao contrario, fungées na silaba. Essa dupla terminologia permite evitar uma confusio que reinou por longo tempo, As- sim, a espécie J é a mesma em fidalgo e em piegas: &é uma vogal; mas é soante em fidalgo ¢ consonante em piegas. A andlise mostra que as soanites sio sempre implosivas ¢ as con- soantes ora implosivas (por ex., % no inglés bot, escrito “boy”}, ora explosivas (p. ex. }:no francés pye, escrito “pied”). Isso n&o faz senZo confirmar a distingZo estabelecida entre as duas ordens. E& verdade que, de fato, ¢, 0, a so regularmente soan- tes; mas trata-se de uma simples coincidéncia: tendo abertura maior que todos os outros sons, acham-se sempre no inicio de um elo implosivo. Inversamente, as oclusivas, que tem a aber- 71 ura minima, sfo sempre consoantes. Na pratica, sio os fone- mas de abertura 2, 3 e 4 (nasais, liquidas, semivogais), que desempenham um ou outro papel, conforme sua vizinhanca e a natureza de sua articulagao. § 5. Gnritica As TEORIAS DE SILABAGAO. O ouvido percebe, em toda cadeia falada, a divisio em silabas, e em toda silaba uma soante, Esses dois fatos sio co- hecidos, mas pode-se perguntar qual a sua razo de ser. Foram propostas diversas explicacdes: 1.* Notando que alguns fonemas sdo mais sonoros que outros, procurou-se fazer repousar a silaba na sonoridade dos fonemas. Mas, entdo, por que fonemas sonoros como i e u nado formam necessariamente silaba? E, depois, onde termina a so- noridade, visto que fricativas como s podem formar silaba, por exemplo em pst? Se se trata somente da sonoridade relativa de sons em contato, como explicar grupos como wl (ex.: indo- -europeu *wikos, “lobo”), onde é o elemento menos sonoro que forma silaba? 2. E. Sievers foi o primeiro a estabelecer que um som classificado entre as vogais pode nao dar a impressio de vogal {vimos que, por exemplo, y e w nao sio mais que i € u) ; quan- do, porém, se pergunta em virtude do que ocorre a dupla fun- G40 ou o duplo efeito actstico (pois o termo “fungao” nao quer dizer outra coisa), responde-se: tal som tem fungio con- forme receba ou no o “acento silabico”. Trata-se de um circulo vicioso: ou bem tenho liberdade, em qualquer circunstancia, de dispensar a meu grado o acento silabico que cria as soantes, e entao nZo ha motivo para cha- ma-lo silabico em vez de sonantico; ou, se o acento sildbico tem algum sentido, ser4 porque aparentemente ele se justifica pelas leis da silaba. Nao apenas nao se enunciam tais leis, mas d&-se a essa qualidade son4ntica o nome de “silbenbildend” (“formadora de silabas”), como se, por sua vez, a formacao da silaba dependesse de tal acento. ‘Vé-se que o nosso método se opée aos dois primeiros: pela andlise da silaba tal qual se apresenta na cadeia, obtive- 72 mos a unidade irredutivel, 0 som que se abre ou o que s€ fecha; a seguir, combinando estas unidades, chegamos a defi- nir o limite de silaba e o ponto vocalico. Sabemos, entao, em que condigées fisiolégicas tais efeitos acusticos devem produzir-se. As teorias criticadas acima seguem 0 curso inverso: tomam espé- cies fonolégicas isoladas e desses sons pretendem deduzir o limite de silaba e o lugar da soante. Ora, dada uma série qualquer de fonemas, pode haver uma maneira de articuld-los mais natural, mais cémoda que outra; mas a faculdade de es- colher entre articulagdes que se abrem.e que se fecham sub- siste em larga medida, e € dessa escolha, nao das espécies fono- légicas diretamente, que dependerd a silabagao. Evidentemente, essa teoria nao esgota nem resolve todas as questées. Assim, o hiato, de emprego tao freqiiente, néo é outra coisa senao um elo implosivo rompido, com ou sem in- terferéncia da vontade. Ex.: — @ (em lia) ou 4 — 7 (em saida), Ele se produz mais facilmente com as espécies fono- légicas de grande abertura. Ha também o caso dos elos explosivos rompidos, que, sem serem graduados, entram na cadeia fénica com o mesmo direito dos grupos normais; tocamos nesse caso a propésito do grego kteind, p. 69, nota. Consideremos, por exemplo, 0 gru- po pzta: s6 pode ser pronunciado normalmente como iid; deve, ent&o, compreender duas silabas, e as tem, de fato, se se faz ouvir claramente o som laringeo do z; mas se 0 z é ensurdecido, tratando-se de um dos fonemas que exigem aber- tura menor, a Oposi¢ao entre z e a faz com que se perceba ape- nas uma silaba e que se ouga aproximadamente Bila Em todos os casos desse género, quando a vontade e a in- tengdo intervém, podem modificar e, em certa medida, mudar as necessidades do organismo; é amitide dificil dizer exatamen- te que parte cabe a cada uma das duas ordens de fatores, Mas seja qual for, a fonacio supde uma sucesso de implosdes e exploses, € tal é a condigao fundamental da silabagio. § 6. pURAGAO DA IMPLOSAO E DA EXPLOSAO, Com explicar a silaba pelo jogo das explosées e implo- sdes, somos levados a uma observacao importante, que nao é 73 senZo a generalizagio de um fato de métrica. Distinguem-se, nas palavras gregas e latinas, duas espécies de longas: longas por natureza (mater) e por posicéo (factus). Por que fac é medido como longo em factus? Responde-se: por causa do grupo ct; mas se isso se deve ao grupo em si, qualquer silaba iniciada por duas consoantes tera também quantidade longa; no entanto, nao é assim (cf. cliens etc.). A verdadeira razio est4é em que a explosio e a implosao so essencialmente diversas no que respeita a duragio. A pri- meira é sempre tao répida que se torna uma quantidade irra- cional para o ouvido; por isso, ela jamais da a impressio vo- cdlica, Somente a implos’o pode ser percebida: dai a impres- séo de que nos demoramos mais na vogal com que a inicia. Sabe-se, por outro lado, que as vogais colocadas diante de um grupo formado de oclusiva ou fricativa + Iiquida, sao’ tra- tadas de dois modos: em patrem, o a pode ser longo ou breve; isso se baseia no mesmo principio. De fato, ff e ¥ so igual- mente pronuncidveis; a primeira maneira de articular permite que o @ continue a ser breve; a segunda cria uma silaba longa. O mesmo tratamento duplo do @ no é possivel numa pala- vra como factus, porque somente / é pronuncidvel, com ex- clusio de ci. ‘ § 7. Os FONEMAS DE QUARTA ABERTURA. © DITONGO, QUESTOES DE GRAFIA, Por fim, os fonemas de quarta abertura dao lugar a algu- mas observagGes. Vimos na p. 65 s. que, contrariamente ao que se verifica para outros sons, o uso consagrou para aqueles uma dupla grafia (w = a; u = i; y= & i = 7). B queem grupos como aiya, auwa, percebe-se, melhor que em quais- quer outros, a distingio marcada com ; 7 e i d&o cla- ramente a impressdo de vogais, ie #@ a de consoantes!. Sem pretender explicar esse fato, observamos que esse { consoante (1) B mister nfo confundir este elemento de quarta abertura com -a fricativa palatal doce (liegen, no alemio do norte). Essa espécie fono- Idgica pertence as consoantes ¢ tem todas as caracterfcticas delas. 74 nao existe nunca na forma que se fecha. Assim, nao se pode ter um ai cujo 7 faga o mesmo efeito que o y de aiya (compa- re-se o inglés boy com o francés pied) ; é entao por posicao que © y é consoante ¢ o 7 vogal, pois essas variedades da espécie J no podem manifestar-se em todas as posicdes igualmente. As mesmas observagGes se aplicariam a ue w, i € w, Isto esclarece a questo do ditongo. Este constitui apenas um caso especial do elo implosivo; os grupos Gita e @uta sia absolutamente paralelos; nao existe entre eles mais que uma di- ferenga de abertura do segundo elemento: um ditongo é um elo implosivo de dois fonemas, o segundo dos quais é relativa- mente aberto, donde uma impressdo acustica particular: dir- -se-ia que a soante continua no segundo ‘elemento do grupo. Inversamente, um grupo como fya nao se distingue em nada de um grupo como ffa, a nao ser pelo grau de abertura da dl- tima explosiva. Isso equivale a dizer que os grupos chamados di- tongos ascendentes pelos fondélogos nZo sao ditongos, e sim gru- pos explosivo-implosivos cujo primeiro elemento é relativamente aberto, sem que disto resulte, porém, nada de particular do ponto de vista acistico (77a). Quanto aos grupos do tipo to; 7a, com acento sobre o % e 7, tais como se encontram em alguns dialetos alemaes (cf. buob, liab), nao passam, igualmente. de ‘falsos ditongos que nao dao a impressio de unidade, como 3G, 2 etc.; nao se pode pronunciar &£ como impl. + impl. sem rompimento da cadeia, a menos que, por via de um artificio, se imponha a esse grupo a unidade que ele nao tem por na- tureza. Tal definiggo do ditongo, que o reduz ao principio geral dos elos implosivos, mostra que ele nZo é, como se poderia crer, algo discordante, inclassificavel entre os fenémenos fonoldgicos. £ inatil traté-lo como um caso 4 parte. Seu cardter préprio nao tem, em realidade, nenhum interesse ou import&ncia; no € o fim da soante que importa fixar, e sim seu principio. E. Sievers e muitos lingiiistas distinguem pela escrita i, u, d, 7, g etc. e 9, u, i, 7, n etc. (j = “unsilbisches” i, i = “silbisches” i), e escrevem mirta, mairta, miarta, enquanto nés escrevemos mirta, mairta, myarta. Tendo-se verificado que y € ¢ séo da mesma espécie fonolégica, quis-se ter, antes de tudo, o mesmo signo genérico (sempre a mesma idéia de que a ca- 75 deia sonora se compoe de espécies justapostas!). Mas essa no- tagao, ainda que baseada no testemunho do ouvido, € con- traria ao bom senso € apaga justamente a diferenca que impor- taria fazer. Com isso, 1.°, confundem-se i, u que se abrem {= y, w) e i, u que se fecham; nao podemos, por exemplo, fazer distingao alguma entre newo e neuo; 2.°, inversamente, cindem-se em dois os i e u que se fecham (cf. mirta e mairta). Eis alguns exemplos das inconveniéncias dessa grafia. Seja o grego antigo dwis e dusi e, de outro lado, rhéwé e rehima: essas duas oposigdes se produzem exatamente nas mesmas con- digdes fonolégicas e se traduzem normalmente pela mesma oposigao grafica: conforme o u seja seguido de um fonema mais ou menos aberto, éle se abre (w) ou se fecha (u). Escreva-se duis, dusi,rheyd, rheyma, e tudo se apaga. Mesmo no indo- -europeu, as duas séries mater, matrai, materes, mdtrsu e sitneu, Siinewai, siinewes, sunusu sao estritamente paralelas em seu duplo tratamento do 7, de um lado, e do u, do outro; na se- gunda, pelo menos, a oposigaio das implosdes e explosGes se des- taca na escrita, ao passo que é obscurecida pela grafia aqui criticada (siinug, siineyai, siineyes, sitinusu), Nao somente se- ria preciso manter as distingdes feitas pelo uso entre vogais que se abrem e que se fécham (u: w etc.), como cumpriria esten- dé-las a todo o sistema, e escrever, por exemplo, mater, matpai, matperes, matrsu; entao, o jogo da silabagao aparece- ria com evidéncia; os pontos vocdlicos e os limites de silabas seriam deduzidos por si mesmnos, Nota dos Organizadores. — Estas teorias esclarecem muitos problemas, alguns dos quais F. de Saussure tratou em suas ligoes, Daremos algumas amostras. 1. E. Sievers cita beritannn (alemao berittenen) como exemplo tipico do fato de o mesmo som poder funcionar alter- nativamente duas vezes como soante e duas vezes como consoan- te (na realidade, n nao funciona aqui senao uma vez como consoante, e cumpre escrever beritnnn; pouco importa, porém). Nenhum exemplo é mais claro precisamente para mostrar que “som” e “espécie” nao sao sinénimos. De fato, se permanecés- semos no mesmo 2, isto é, na implosao e na articulagZo susten- tada, obteriamos apenas uma tinica silaba longa. Para produzir uma alternancia de n soantes e consoantes, cumpre fazer seguir 76

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