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O homem e as maquinas Assim como 0s utensilios, as ferramentas séo também artefa- tos. Conforme estipula a etimologia da palavra, derivada do adjeti- vo latino uiensilis, que significa “proprio para 0 uso”, utensilios s&o produzidos com a finalidade precipua de serem usados. Dife- rentcmente dos utensilios, entretanto, as ferramentas so artefatos projetados como meio para se realizar um trabalho ou uma tarefa. Funcionam, por isso mesmo, como extensées ou prolongamentos de habilidades, na maior parte das vezes manuais, o que explica porque as ferramentas séio artefatos de tipo engenhoso. Sua cons- trugdo pressupée o ajustamento ¢ integra¢4o do desenho do artefa- to ao movimento fisico-muscular humano que 0 artefato tem a fina- lidade de amplificar, Nesse sentido, maquinas sio uma espécie de ferramenta, visto que sao também projetadas como meio para se atingir um certo propésito. Diferentemente das ferramentas, contu- do, as maquinas apresentam um certo nivel de autonomia no seu funcionamento. Definir o que so maquinas no ¢ simples. Num sentido muito amplo, a palavra se refere a uma estrutura material ou imaterial, aplicando-se a qualquer construg&o ou organizaciio cujas partes esto de tal modo conectadas ¢ inter-relacionadas que, ao serem colocadas em movimento, o trabalho é realizado como uma unida- de. E nesse sentido que se pode comparar 0 corpo ou 0 cérebro humanos a maquinas. Numa acep¢do um pouco mais espeeifica, no termo maquina esta implicado algum tipo de forca que tem o poder de aumentar a rapidez e a energia de uma atividade qualquer. Isso é © que acontece até mesmo nos tipos mais rudimentares de maqui- nas como uma antiga e pesada catapulta medieval usada para se atirar pedras. Essa catapulta era constituida basicamente de uma alavanca muito forte com um receptaculo para as pedras, numa extremidade, e de cordas torcidas de modo a puxar a alavanca para tras sob forte pressdo, até ela ser repentinamente solta, disparando 0 missil 196 LUCIA SANTAELLA A transmisso ou modificagao na aplicagao do poder, forga ou movimento, caracteristicas do funcionamento das maquinas, veio ganhar um novo impulso com o aparecimento dos motores. Ha va- rios tipos de motores, a vapor, de combustio, pneumatico, hidrau- lico, elétrico. Todos eles tm em comum a capacidade de transfor- mar uma energia dada em energia cinética, mecanica, Depois da invengdo dos motores, a palavra maquina, num sentido mais lite- ral, passou a se restringir a equipamentos que dispdem de algum tipo de motor. Foram os motores que trouxcram um novo impulso para o ideal de autonomia no funcionamento das maquinas, de modo que, elas passaram a ser basicamente entendidas como um conjun- to de partes ou corpos sélidos, de um lado, e de um gerador de energia cinética, mecanica, de outro, que transmite forca e movi- mento entre essas partes de um modo predeterminado e com finali- dades predeterminadas. O pensamento sobre as relagdes, ¢ mesmo sobre a analogia, homem-maquina nao é recente. Ja aparecia em Aristoteles, esteve na base da concepgao dualista do ser humano em Descartes, tendo ocupado de uma forma ou de outra a mente de muitos filésofos. Embora 0 estudo histérico e comparativo das reflexdes filosoficas sobre as maquinas seja de grande interesse, nao sera esse 0 cami- nho que minhas consideragées tomarao a seguir, visto que meu objetivo ¢ mapear os trés principais niveis que detectei na relacdo homem-méquina: (1) 0 nivel muscular-motor, (2) o nivel sensério € (3) 0 nivel cerebral Esses trés niveis sao historicos, quer dizer, o muscular prece- de o sensério que, por sua vez, precede o cerebral. Isso nao quer dizer, entretanto, que o aparecimento de um novo nivel leve ao de- saparecimento do anterior. Ao contrario, um nivel nao anula o ou- tro, mas permite a convivéncia, e, por vezes, instaura até mesmo o intercémbio ou colaboragdo com o nivel anterior. AS MAQUINAS MUSCULARES Se, antes da Revolucdo Industrial, as relagdes entre homem maquina eram ainda incipientes, limitando-se a truculentos artefa- tos, do tipo de uma catapulta, ou a instrumentos, tais como os de tortura, o relégio ¢ alguns instrumentos de medida e de pesquisa como 0 telescépio, a partir do século XVIII e inicio do XIX, esse cenario comegou a passar por profundas e crescentes modificagdcs. CULTURA DAS MIDIAS 197 “O século XIX foi marcado pelo signo da Revolugao Industrial cujo emblema era a maquina a vapor, capaz de converter a energia quimica do carbono em energia cinética e finalmente em trabalho mecanico. Qualquer motor tem como input alguma energia nao me- canica e como output algum trabalho mecanico” (Marcus 1995). As maquinas, que a Revolugao Industrial introduziu, maravi- Iharam nossos antepassados porque eram capazes de substituir a forca fisica do homem. Primeiramente pela utilizagao do vapor, e, mais tarde, pela utilizagao da eletricidade, a energia da maquina foi posta a scrvicgo dos musculos humanos, livrando-os do desgaste (Schaff 1991:22). A Revolucdo Industrial foi uma revolugiio ele- tromecanica, caracteristica esta inscrita na natureza de suas ma- quinas cuja poténcia nao poderia ir além da imitagdo dos gestos humanos mais grosseiros e repetitivos, enfim, dos movimentos mecdnicos. Trata-se de maquinas servis, tarefeiras, que trabalham para o homem, ou melhor, substituem o trabalho humano naquilo que este tem de puramente fisico e mecdnico. Além disso, tal subs- tituig&o nao se da em igualdade de condigdes, pois a maquina é capaz de acelerar os movimentos, intensificando a realizagao das tarefas. Toda maquina come¢a pela imitagdo de uma capacidade hu- mana que a mAquina se torna, entdo, capaz de amplificar. E nesse sentido que ja existiam maquinas bem antes da Revolugao Industri- al. Uma alavanca, por exemplo, ¢ uma maquina na medida em que scu ponto de apoio, ao se aproximar do objeto a ser movimentado, converte-se em um amplificador de forga. Além dessas maquinas dedicadas a ampliar a forca, existiram também engenhos voltados para a mecanizaciio da locomogdo. “O movimento de grandes pe- sos arrastados sobre troncos gigantes foi um precursor do veiculo de rodas, que traduziu o poder proprio ao homem de locomover-se — um poder ampliado no seu devido tempo mediante a incorpora- gao de motores de toda espécie” (Beer 1974:25). ‘As duas caracteristicas acima, ja presentes nos rudimentos de qualquer maquina, seriam aquelas que definiriam o perfil das pri- meiras maquinas industriais: a substitui¢o amplificada da forga fisica humana ¢ a mecanizago da locomogao. E justamente esse tipo de funcionamento que esteve na base das primeiras nogdes de robé, maquina 4 imagem e semelhanga dos musculos humanos, pronta para trabalhar para o homem ou em seu lugar. 198 LUCIA SANTAELLA Embora tenha sido um inyento da Revolucao Industrial, as maquinas musculares sobrevivem até hoje sob miltiplas aparénci- as, nao estando, nem de longe, confinadas nas fabricas, nas indiis- trias. Infelizmente, a similaridade entre homem e maquina é toma- da muito ao pé da letra, o que impede o reconhecimento das multi- dées de robés musculares que tomam conta do nosso cotidiano, sem que tenham necessariamente a forma humana, sem que tenham a nossa aparéncia, Dentro dessa idéia de uma maquina capaz de aumentar ou mesmo substituir fungdcs fisico-musculares, so ro- bés maquinas tais como 0 elevador, o automével, uma batedeira de bolo, um liquidificador, um aspirador de pé, ¢ outros tantos utensi- lios que facilitam a vida doméstica. Exigéncias muito mais complexas do que as dos pequenos robés domésticos, contudo, sao aquelas que a necessidade de preci- so na mecanizagao das ferramentas apresenta para a industriali- zagao da produgao. E por isso que, junto com a amplificagao da forga ¢ mecanizagao do movimento, uma outra capacidade humana que precisou ser imitada foi a da precisdo. Para sustentar uma fer- ramenta, uma prensa inicia uma cadeia evolutiva que, finalmente, engendra um instrumento mecAnico que, além de imitar, amplifica a capacidade de preciso (idid.:25). Os problemas apresentados pela preciso mecénica das ferra~ mentas so os seguintes: “como se pode controlar a seqiiéncia das atividades precisas; como se pode acoplar uma pega’ de trabalho a pega seguinte ¢ como se pode intervir nessa seqiiéncia? Esse tipo de flexibilidade no elaborado processo de fabricar objetos pertence a capacidade humana’, pois implica uma atividade de controle da mais alta ordem cuja execugdio requer “no apenas as ferramentas altamente enervadas dos dedos e cuidadosamente controladas dos arcos reflexos do sistema nervoso auténomo, mas requer também um cérebro”. E em razio disso que as indistrias, nos paises de economia ¢ tecnologia avangada, exigiam, até ha algum tempo, o trabalho integrado das maquinas ¢ dos homens. Corpos e cérebros humanos adaptaveis a mecanizagao acelerada das maquinas de que Charles Chaplin nos deu uma espléndida caricatura em Tempos modernos. Nao foi, entretanto, preciso esperar muito para que o jogo da civilizagéo transformasse os Tempos modernos num documento historico, As conquistas notaveis da ciéncia v da técnica iriam CULTURA DAS MIDIAS 199 promover o advento de uma maquina totalmente nova, tao nova ¢ complexa a ponto de ir se afastando cada vez mais da idéia de uma maquina, conforme sera discutido mais adiante. Trata-se do com- putador, dispositivo com habilidades que apresentam alguma simi- laridade com as habilidades do cérebro. ‘Ao serem acoplados 4 produgdo industrial, os computadores nos deram o primeiro exemplo verdadeiro de dispositivos capazes de controlar maquinas, transformando o cenario da produgio na medida em que permitiram 0 aparecimento de fabricas inteiramente automatizadas, nas quais os operdrios so substituidos por robés que eliminam com éxito crescente o trabalho humano na produgo e nos servigos (Schaff 1991:22). De fato, as fabricas modernas contam com ilhas de maquinas computadorizadas que fabricam outras maquinas. Demac (1990-211) nos diz que, muito brevemen- te, essas ilhas estarao conectadas num arquipélago de agentes pro- dutores intercomunicantes. Antes do advento do computador, as maquinas nao passavam de robés acéfalos, puramente musculares O computador veio lhes trazer um pouco de cérebro para seus mtis- culos embrutecidos. Essa passagem, entretanto, do nivel muscular ao cerebral nao se deu diretamente. Foi mediada pelo advento de um outro tipo de maquina, operativa no nivel mais propriamente sensorio, que iria introduzir uma outra ordem de questées. AS MAQUINAS SENSORIAS Ainda no contexto da Revolugdo Industrial, distinta das ma- quinas substitutivas do esforgo muscular humano, uma outra espé- cie de maquinas comecou a aparecer. Trata-se das maquinas que funcionam como extensdes dos sentidos humanos especializados, quer dizer, extensdes do olho ¢ do ouvido de que a camera fotogra- fica foi inaugural. O funcionamento de tais maquinas esta ligado de maneira tao visceral a especializagao dos sentidos ou aparelhamen- tos da visdo ¢ da escuta humanas que a denominagao de aparelhos Ihes cabe muito mais ajustadamente do que a de maquinas. Enquanto as maquinas musculares s4o engenhosas, os apare- Ihos ou maquinas sensérias so maquinas construidas com 0 auxi- lio de pesquisas e teorias cientificas sobre o funcionamento dos sentidos humanos, muito especialmente o olho. Sao, por isso mes- mo, maquinas dotadas de uma inteligéncia sensivel, na medida em que corporificam um certo nivel de conhecimento tedrico sobre 0 200 LUCIA SANTAELLA funcionamento do érgio que elas prolongam. Sao também maquinas cognitivas tanto quanto s&o cognitivos os orgdos sensorios. Se os sentidos humanos funcionam como janelas para o mundo, canais de passagem, meios de conexdo entre o mundo exterior ¢ 0 interior, se algumas fungées cerebrais j4 comecam a ser executadas nos ni- veis do olho e do ouvido, todos esses papéis também se incorporam aos aparelhos Enquanto as maquinas musculares foram feitas para traba- Ihar, os aparelhos foram feitos para simular o funcionamento de um 6rgao sens6rio. Sao, de fato, conforme os caracterizou McLuhan (1972), prolongamentos ou extensdes dos orgdos dos sentidos, si- mulando seu funcionamento. Mas, ao simular esse funcionamento, os aparelhos extensores se tornaram capazes de produzir e repro- duzir entidades inauditas que viriam provocar modificagées pro- fundas na propria paisagem do mundo. Enquanto as maquinas tarefeiras imitam e amplificam os po- deres da musculatura humana, acelerando o ritmo do trabalho, os aparelhos sAo maquinas de registro, que nao apenas fixam, num suporte reprodutor, aquilo que os olhos véem ¢ os ouvidos escutam, mas também amplificam a capacidade humana de ouvir e ver, ins- taurando novos prismas ¢ perspectivas que, sem os aparelhos, 0 mundo nao teria. Enfim, enquanto as maquinas musculares produ- zem objetos, os aparelhos produzem e reproduzem signos: imagens © sons. Se, depois do advento das maquinas musculares, 0 mundo comegou a ser crescentemente povoado de objetos industrializados, depois do advento dos aparelhos, ele comegou a ser crescentemente povoado, hiperpovoado de signos. Ao funcionarem como prolon- gamentos da visdo ¢ audigao, os aparelhos extensores dos sentidos amplificam a capacidade humana de produzir signos, isto porque os aparelhos nao so apenas extensdes do processamento sensorio, eles so também maquinas de registro e reprodugdo ou gravagaéo daquilo que os sentidos captam. Uma fotografia, por exemplo, é uma imagem, uma visdo do real, registrada num suporte, o negati- vo, que, além de duradouro, funciona como uma matriz de infinitas cépias. Nesse sentido, os outputs ou produtos signicos dos apare- lhos so também formas de memoria extra-somatica da viso e da audigao. No ha divida de que os registius fixados pelos aparelhos CULTURA DAS MIDIAS 201 visuais ¢ auditivos so signos roubados ao mundo, quer dizer, capturados da realidade para dentro de uma cdmera ou gravador e devolvidos ao mundo como duplos, imagens e ecos daquilo que existe. Os aparclhos sio, por isso, maquinas paradoxalmente usurpadoras ¢ doadoras. De um lado, roubam pedagos da realida- de, de outro, mandam esses pedagos de volta, cuspindo-os para fora na forma de signos. Entretanto, além de duplicadores, os apa- relhos so também reprodutores, gravadores ad infinitum dos frag- mentos que registram. Além de replicantes sdo, sobretudo, proliferantes, dotados de um alto poder para a proliferagao de sig- nos. Os aparelhos funcionam, assim, como verdadeiras usinas para a produgiio de signos. E por essas raz6es que, nao obstante as gran- des diferengas nos modos de registro, difusdo, distribuigao e recep- g&io que separam a fotografia do cinema ¢ que separam, mais ainda, ambos da videografia e esta da holografia, todos esses aparelhos sao regidos por denominadores comuns, entre eles, principalmente: (1) 0 fato de serem verdadeiras usinas signicas ¢ (2) 0 carater vicario dos signos que produzem, o cordio umbilical que liga esses signos indissolivel ¢ servilmente a realidade. De fato, ¢ tal a dependéncia que os signos produzidos pelos aparelhos tém do real que toda a reflexao tedrica ¢ critica sobre os aparelhos, com excegdo daquela levada a efeito por McLuhan, des- locou-se quase por completo da relagao dos aparelhos com o ser humano para uma fixagao nas relagdes que os signos produzidos por esses aparelhos estabelecem com a realidade, centralizando-se em temas tais como fidelidade, infidelidade, imitagdo, copia, simu- lacro, falseamento, verossimilhanga etc. Nao é pot acaso que os aparelhos ou méquinas sensérias nao suscitaram e continuam nao suscitando discussées sobre a robotizagao das faculdades huma- nas. Tal discussao a nivel tedrico e execugao a nivel pratico teria de esperar pelo advento do computador que, inicialmente, de modo timido, mas agora de maneira cada vez mais frontal tem nos desa- fiado com revolugées inéditas que n&o param de crescer em pro- porgdes ¢ complexidade. AS MAQUINAS CEREBRAIS Sea Revolugao Industrial tornou dominante, por todo 0 sécu- lo XIX, a metafora da maquina a vapor, a Revolugao Eletrénica viria colocar em primeiro plano, na segunda metade do século XX, 202 LUCIA SANTAELLA a imagem do computador com todas as metaforas dele derivadas. Entre estas, a mais usual ¢ a de que o cérebro é um computador e vice-versa. A raiz dessa metafora, segundo Marcus (1995), reside no fato de que nés, de fato, temos no nosso corpo a estrutura essen- cial de um computador, ¢ isso desempenhou um papel decisivo na invengio dos computadores. Do mesmo modo, a assimilagdo dos seres vivos A imagem da maquina a vapor também esteve enraizada no fato de termos a esséncia de uma maquina a vapor na nossa estrutura viva. Assim, a invengao da bomba se deve grandemente a metafora do nosso corag4o como uma bomba. A possibilidade de se imitar a vida através de um artefato tem intrigado a humanidade desde tempos imemoriais (ver Cohen 1966). Assim, por exemplo, enquanto os mecanismos de um relégio, na idade pré-industrial, ainda se limitavam primariamente a imitagao do movimento, os aparelhos ou maquinas sensérias ja passaram a imitar 0 funcionamento dos drgdos dos sentidos. Comegou ai a in- vestigagao de processos humanos internos, nem sempre observaveis, que iria culminar no aparecimento, em meados do século XX, de um modo muito abstrato de se compreender mecanismo, quer dizer, mecanismo entendido no sentido computacional, tal como foi en- gendrado por Alan Turing, naquilo que ficou conhecido como a maquina de Turing. Diferentemente de uma maquina meramente fisica, Turing inventou uma maquina tedrica, cujos propésitos sao essencialmente tedricos. Trata-se de uma maquina que visava ilu- minar as nogdes de calculabilidade em geral, permitindo reduzir todos os métodos de calculo a um conjunto subjacente, simples e basico de operagGes. No seu todo, essa maquina é composta por um certo numero de estados, sendo capaz de ler simbolos localiza- dos em quadrados numa fita infinita. Alguns quadrados podem es- tar vazios. As operagdes basicas so desempenhadas pela maquina em resposta a uma combinagao de: (1) 0 estado em que a maquina esta ¢ (2) 0 simbolo que ela esta lendo, naquele momento, no qua- drado. A tabela para a maquina é aquilo que Ihe diz o que fazer numa dada situag&o, de uma maneira semelhante a um programa de um computador comum (Brown 1989:81-82). O que estava sendo incubado na maquina Turing nao era ape- nas mais uma tecnologia industrial, nem mesmo uma maquina para a replicagao sensoria do mundo, mas uma ferramenta intelectu- al diretamente relevante para o desvelamento dos mistérios da CULTURA DAS MIDIAS 203 inteligéncia. A diferenca entre um dispositivo, por mais extrema- mente complexo que seja, e um computador digital, visto como uma variante de uma maquina Turing, esta no fato de que o compu- tador nao é simplesmente uma complicada rede de impulsos elétri- cos, nem apenas um dispositivo que caminha mediante estados dis- tintos como um autémato de estados finitos, mas é um dispositivo que processa simbolos. Com 0 computador digital deu-se por in- ventado um meio para a imitagao ¢ simulagiio de processos mentais (Pylyshyn 1984:49-86, ver também Meunier 1991). Newell ¢ Simon (1981:64-65) nos fornecem uma descrigao sintética dos passos evolutivos que, desde meados do século XX, 0 computador digital foi tomando rumo 4 realizagdo cada vez mais plena da computagiio como transformagao regrada de expressdes formais vistas como cédigos simbdlicos interpretados. A légica formal ja havia nos familiarizado tanto com os simbolos, tratados sintaticamente, como matéria-prima do pensamento, quanto com a idéia de se poder manipuli-los de acordo com processos formais cuidadosamente definidos. A maquina Turing fez 0 processamento sintatico dos simbolos ser verdadeiramente maquinal, afirmando a universalidade potencial de sistemas simbdlicos estritamente defi- nidos. O conceito de armazenamento de programas para computa- dores reafirmou a interpretabilidade de simbolos ja implicita na maquina Turing. O processamento de listagens trouxe a tona as capacidades denotativas dos simbolos, definindo o processamento de simbolos de uma maneira tal que permitia a independéncia da estrutura fixa da maquina fisica subjacente. Newell e Simon com- pletam esse panorama, afirmando que, por volta de 1956, todos esses conceitos ja estavam disponiveis, junto com 0 hardware para implementa-los. Os primeiros computadores, nos anos 40, pesavam toneladas, ocupavam andares inteiros de grandes prédios ¢ exigiam, para sc- Tem programadbs, a conexdo de seus circuitos, por meio de cabos, em um painel inspirado nos padrées telefonicos. Eram verdadeiros brutamontes, dinossauros mantidos em isolamento do mundo dos leigos. Nos anos 50, os cabos ainda existiam, mas ja estavam reco- Ihidos para dentro da maquina, cobertos por uma nova pele de pro- gramas e dispositivos de leitura. Mas foi so nos arios 70 que 0 uso das telas foi generalizado e, desde entao, tela ¢ teclado tornaram-se Partes tao integrantes do computador a ponto de confundirem-se 204 LUCIA SANTAELLA com ele. A grande revolugao, entretanto, sé viria com 0 advento do computador pessoal, uma inovagdo imprevisivel que transformaria a informatica num meio de massa para a criagio, comunicagao ¢ simulagdo. Hoje, um computador concreto, a prego relativamente acessivel e que qualquer pessoa pode possuir, ¢ constituido por uma infinidade tal de dispositivos materiais, cada vez mais miniaturizados, e de camadas justapostas de programas que se tor- nou impossivel estabelecer quaisquer fronteiras sobre onde comega ¢ onde acaba um computador. Cada vez mais a comunicagio com a maquina, a principio abstrata e desprovida de sentido para o usuario, foi substituida por processos de interagao intuitivos, metaforicos ¢ sensdrio-motores em agenciamentos informaticos amaveis, imbricados ¢ integrados aos sistemas de sensibilidade e cogni¢o humana. Enfim, o proprio computador, no seu processo evolutivo, foi gradativamente humanizando-se, perdendo suas feigées de maquina, ganhando no- vas camadas técnicas para as interfaces fluidas e complementares com os sentidos ¢ 0 cérebro humano até o ponto de podermos hoje falar num processo de coevolugao entre o homem e os agenciamentos informaticos, capazes de criar um novo tipo de coletividade nao mais estritamente humana, mas hibrida, pos-humana, cujas fron- teiras esto em permanente redefinicdo. E justamente esse novo ecossistema sens6rio-cognitivo, que est langando novas bases para se repensar a robética nao mais como maquinas que trabalham para o homem, mas como a emergéncia de um novo tipo de humanidade. Na medida em que sistemas cibernéticos vao se integrando a sistemas psiquicos, na medida em que redes neurais artificiais Vio se ligando a redes neurais bioldgicas, é um conjunto cognitivo inau- dito que se configura, ¢ a dimensao do cérebro ¢ mente que se move na diregao de uma cultura biocletrdnica. Segundo Roy Ascott (1995:5), no inicio do século XI, o ser humano ja tera se movido para além de uma sociedade informacional, para além das frontei- ras de um espago eletrénico. O homem se reencontrara com a natu- Teza, mas uma natureza radicalmente revista pela geragéio de um ambiente holistico de mente e matéria, de sistemas auto-organizativos € materiais inteligentes, ambiente tao espiritual quanto material constitutivo de uma condigdo humana pés-biolégica numa cultura de complexidade criativa. Enquanto as primeiras maquinas, engendradas no cerne da CULTURA DAS MIDIAS 205 industrializagéo, as musculares, foram maquinas puramente imitativas e grosseiramente fisicas, as segundas maquinas, as sen- sorias, por serem menos rudes ¢ mais sutis, {4 comegaram a perder a natureza de maquinas para se converterem em aparelhos produ- tores de signos, extensores dos drgaos dos sentidos. Ja no terceiro nivel da relagao entre homem e maquina, que chamo de nivel cere- bral, é a propria nog&o de maquina que esta sendo definitivamente substituida por um agenciamento instavel ¢ complicado de circui- tos, Orgdos, aparelhos diversos, camadas de programas, interfaces, cada parte podendo, por sua vez, decompor-se em redes de interfaces. De fato, dentro deste novo universo, a palavra maquina deixou de ser a palavra de ordem, para ser substituida pelas conexdes mais fluidas das interfaces, através das quais os computadores vio crescentemente se potencializando para novas interagdes com seu meio ambiente fisico e humano em sistemas inteligen- tes de gerenciamento de bancos de dados, modulos de compreen- so da linguagem natural, dispositivos de reconhecimento de for- mas ou sistemas especialistas de autodiagnéstico ¢ interfaces de interfaces: telas, icones, botées, menus, dispositivos aptos a conectarem-se cada vez melhor aos médulos cognitivos ¢ senso- riais humanos. (Lévy 1993:107) Tudo isso, no entanto, s6 se tornou possivel gragas ao grande sintetizador que ¢ 0 modelo digital, capaz de conectar, num mesmo tecido eletrénico, a imagem, o som ¢ a escritura, €, com isso, capaz de conectar, dentro de sua rede, o cinema, a radiotelevisao, 0 jorna- lismo, a edigdo, as telecomunicagées ¢, certamente, a informatica. Por ser, em si mesma, um principio de interface, a codificaco digi- tal, com seus bits de imagens, textos, sons, imbrica, nas suas tra- mas, nosso pensamento e nossos sentidos. E 0 grande processador leve, mével, maleavel ¢ inquebrantavel. Se as maquinas musculares amplificam a forga e o movimen- to fisico humano e as maquinas sensorias dilatam o poder dos sen- tidos, as mAquinas cerebrais amplificam habilidades mentais, notadamente as processadoras e as da memoria, Bancos de dados sao hipermemérias ¢ 0 universo de circuitos ¢ interfaces da sintese digital é um universo, antes de tudo, transductor ¢ processador de signos. Gragas 4 capacidade do computador para transformar em impulsos eletrdnicos toda informagdo de dados, voz e video, nesse 206 LUCIA SANTAELLA universo, ndo ha signo que nao possa ser absorvido, traduzido, manipulado e transformado. ‘Ampliando a capacidade dos sentidos humanos, os aparelhos ou maquinas sensérias registram, copiam o mundo visivel ¢ audi- vel, sendo basicamente produtores e, sobretudo, reprodutores de signos. Em raziio disso, promoveram ¢ continuam promovendo uma_ proliferagaio desmedida de signos. Nao ha qualquer canto ou rincdo do mundo que nao esteja hiperpovoado de signos. Dotados de interfaces transdutoras, os computadores funcionam como verda- deiros aspiradores desses signos, manipulando-os das mais varia- das formas.’ Os signos cresceram de maneira tio desmedida que precisam de hipercérebros para processa-los. Amplificando 0 po- der de processamento cerebral, os computadores parecem estar hoje desempenhando esse papel de hipercérebros manipuladores da avalanche de signos que so produzidos pelos aparelhos. Com isso, so os sentidos ¢ 0 cérebro que crescem para fora do corpo huma- no, estendendo seus tentaculos em novas conexées cujas fronteiras estamos longe de poder delimitar. Entre as novas conexées encontram-se as interfaces do ser humano e computador em paisagens hibridas nas quais espagos ¢ ambientes bioldgicos se misturam com imagens, espagos ¢ ambien- tes sintetizados em processos conhecidos sob o nome de ciberespago ¢ realidade virtual. De acordo com Kac (1993:50), ciberespago é um espago sintético no qual “um ser humano equipado com hardware apropriado pode atuar tendo por base um feedback visual, acuistico mesmo tatil obtido de um software”. Mais genérica do que ciberespago é a realidade virtual que “descreve um novo campo de atividade devotada a promover o desempenho humano em ambien- tes de imagens sintetizadas” que representam dados do computador. Ainda mais impressionante, entretanto, revela-se 0 poder de interface e manipulagio signica do computador, quando se pensa na sua alianga com os novos canais de telecomunicagéo, com as novas tecnologias de transmiss4o por satélite ¢ fibra otica, forman- do redes computadorizadas de extensdo planetaria. Com isso, a informagao pode atravessar oceanos ¢€ continentes tao facilmente quanto se podem atravessar as salas de um edificio. Assiste-se as- sim & criag&o de uma cultura telematica multidirecional, de conectividade global de pessoas e lugares cuja forma mais conheci- da se encontra na Internet, uma imensa rede mundial que liga CULTURA DAS MIDIAS 207 milhdes de computadores em mais de trés dezenas de paises, conectando pessoas das mais diversas proveniéncias, das universi- dades, negocios, artes etc. Permeado pela telematica, 0 fluxo da informagao se toma 0 tecido mesmo da realidade (Kac 1992:47), gerando formas de sociabilidade inéditas ¢ a emergéncia de um mundo mental sem fronteiras que Ascott (1995) chama de hipercortex. A natureza hibrida, biocibernética, do ciberespago e realidade virtual acentua-se e amplia-se para um nivel planctario nos eventos telecomunicativos chamados de telepresenga, nascida da unido da robotica com a telematica. Kac (1993: 1) nos diz que “a telepresenga esta sendo explorada pelos cientistas como uma midia pragmatica e operacional que busca equacionar a experiéncia humana e a robética. O objetivo é alcangar um ponto em que os tragos antropomorficos do robé se combinem as nuangas dos gestos hu- manos”. Bastante explorada também na arte, a telepresenga “cria um contexto unico em que os participantes s4o convidados a expe- rimentar mundos remotos inventados a partir de perspectivas ¢ es- calas diferentes da humana” em eventos telecomunicativos de natu- reza multimodal colaborativa ¢ interativa” (ibid.:52). Chamando de hibridos da internet os processos de co-existén- cia de espagos reais e virtuais, de sincronicidade de agées, controle remoto em tempo real, operagées de robés ¢ colaboracdo através de redes, Kac (1995:173-178) obscrva que novas formas de interface entre humanos, plantas, animais e robés se desenvolverao como um resultado da expansao das tecnologias de comunicagao e telepresenca. Em suma, num ecossistema com tais caracteristicas, 0 que se delineia é 0 perfil de um limiar inaudito que a humanidade esta atravessando cujas conseqiiéncias e implicagdes serdio provavel- mente mais profundas em termos antropoldgicos do que foram aque- las que a Revolugao Neolitica provocou. Esse limiar est4 produzin- do formidaveis mutagées nas dimensées do nosso corpo, sentidos e cérebro, fazendo-os alcancar uma dimensio planetaria e césmica inaugural de uma nova antropomorfia cujas rotas de sensibilidade e inteligibilidade nao podemos deixar de explorar.

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