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How: K, Buaania Q LOCAL DA CULTURA | cartruto cartruio cartruta cartruto cartruio ¥ cartruco vi cavtruto vt caPtruto 1x Tredusindo Bhabha: Algunse Considersbes pwrroD0¢A0 INTERROGANDO A IDENTIDADE. Frantz Fanon a Prsrogsiva Rx Colonia 1 OUTRA QUESTAO 4 Calenialsi DA MIMICA E DO HOMEM 1s Ambralénci do Discurso Colonial Quenoes de Ambivale ARFICULANDO © ARCAICO Diferenga Cultural © Nonsense Colonial DisseniNagto (0 Tempe, A Naraiva e 98 Margens © POS-COLONIAL # © FOS-MODERKO 1A Questo di Agencia 9 10s 139) 198 ‘eavfruto x caviruno xt $0 DE Pho Signos de Violéncis em Meados do COM © NOVO FNTRA NO MUNRO (© Espoco Poe Modemo, os Tempus éa-Colnitia © 1 Provagben da comewusko haga", Tempo € 4 Revsto de Mosemidade 326 fxice nemissivo 387 TRADUZINDO BHABHA: ALGUMAS CONSIDERACOES Dono de uma redagdo muito propria, que reflete na sintaxe a complexidade da argumentagio que expde, Homi Bhabha é consiclerado um autor de dificil Ieitura mesmo pelos leitores que 1m o inglés como lingua materna, Isto coloca para 0 tradutor a delicada opie de, ou reeditar no portugues a iain. ‘cada expressio do texto original, ou parafrasei-lo em linguagem, mais direta, Se levarmas em conta a posicio de Theador Adorno, segundo 0 qual banalizar a linguagem € banalizar © pensa. mento que cla veicula, a tarefa do tradutor seria manter a dlficuldade de leitura no mesmo patamar da dificuldade teérica do texto. Optamos por conservar até certo ponto a estranheza dla formulagio original, mas “traduzindo*, em alguns pontos, a xpressio do autor para uma forma um pouco mais transpa- rente. ‘Temos consciéncis de que 2 operagao da tradugao, por mais literal que seja, implica inevitavelmente uma negociacio de significados, jt que estes estio profundamente imbricados 1a forma, Pedimos portanto que o leitor, diante do estranha. mento de que de certo se vera possuido ao ler os ensaios ‘que compoem este volume, reconhega nele a postura teérica intencional e necessiria de um texto que se quer fronteiriga, descentrado ¢ ambivalente — como o lugar deslizante de onde: emerge o discurso hibrido daqueles que Salman Rushdie denomina homens traduzidos Uma grande dificuldade enfrentada foi a de procurar reproduzir em portugues os complexos jogos de linguagem € a ambigGidade que perpassa a eserita de Bhabha, Tentamos obter equivalentes em nossa lingua para os dliversos neologismos Gtiados pelo autor ¢ para aqueles que constituem conceitoxchave fem sua obra. Muitas vezes usamos como inspiragao outros nevlogismos jf incorporados & linguagem critica; assim, para (08 termos in-between, time-lag © outros afins, partimos cla conhecida formulagao de entre-lugar, de Silviano Santiago — dai os termos entre-meio € entre-tempo, por exemplo. Em alguns casos, optamos por uma tradug2o literal, principalmente para termas que jf comegam a ser adotados pelo diseurso crftico académico mas que ainda ndo se encontram dicionarizados, como ocorreu com agency, ji conhecida como agéncia ou fntervengdo, ou com empowerment, raduzide como aquisicda de poder. Quanto aos termos especificos de certas areas de saber, como a filosofia e a psicanalise, procuramos seguir a omenclatura em uso, de acordo com a bibliografia especia- lizada. Nossa preocupaglo maior, porém, foi em sermos consistentes e constantes no uso da expresso pela qual optarios ao taduzimmos aqueles termos recorrentes 20 longo do livro, Acreditamos que a divulgagio da obra de Bhabha seri de extrema releviincia no Brasil tanto no Ambito da critica literdela quanto dos estudos culturais devido 3 wansdisciplinaridade que caracteriza sua abordagem, Entregamos deste modo 20 Piiblico o resultado de um trabalho demorado e Arduo, na esperanga de proparcionar a0 leitor nilo apenas 0 acesso mais diseto a teoris, mas também o sabor — singular e inusitado — da fina escrita de Homi K. Bhabha, Myriam Avila, Bliana Lowrengo de Lima Reise Gldscta Renate Gongalees ‘A melhor maneira de se registrar 2 meméria da gratidao nido 6, certamente, através das cuidadosas listas de pessoas € lugares que a pagina de agradecimentos comporta, A ajuda que recebemos acontece de forma bem mais casual, Dé-me ‘um prazer especial observar que muitas das pessoas mencio- nadas abaixo ji se sentaram conosco & mess da cozinha, Foi nessa atmosfera que multas vezes os relacionamentos acadé- :icos s¢ tornaram amizades duradouras, A evolugio deste livro tem um débito pessoal para com um grupo de questionadores & co-conspiradores: Stephan Feuchtwang, por ter feito pergunta ainda nao pensada; James Donald, pelos prazeres da preciso, sem que dissesse *precisamente"; Robert Young, pelas lelturas primorosas e sua tolerincia & teoria por telefone; Gyan Prakash, por ins que a erudigae deve receber o fermento do estilo, Quero aqui mencionar a oewere pioneira de Edward Said, que me forneceu um terreno eritico © um projeto intelectual, a coragem € 0 brilhantismo de Gayatri Spivak, que estabeleces niveis elevados de instigagio; e, finalmente, 2 obra de § Hall, que considero exemplar pela combin: politica com uma inspiraclora visio de inclusia. Ranajit Guha € os pesquisadores dos subulternos forneceram-me o mais cstimulante exemplo recente de revisio histériea, As primeiras exortagoes de Terry Eagleton em Oxford para uma aten- #020 método materialista mostraram-se mais tarde um conselho consistente. A obra de Toni Morrison teve papel formativo em meu pensamento a respeito da temporalidade narrativa e histrica mujtas de minhas idéias sobre © espago *migrante” © de ‘minoria foram provocadas pelos romances de Salman Rushdie. Devo a esses notavels escritores ium sigaificativo débito pessoal ¢ intelectual. Ao permitir que eu extraisse citagdes de dois de seus inspirados poemas, Derek Waleott demons trou grande generosidade. O mesmo posso dizer de Anish Kapoor, cuja profunda exploragao do espago escultural for neceu uma imagem para a capa da ediglo original do livro. Stephen Greenblatt foi exemplar em sua habilidade de, através dos anos, forjar um projeto compartilhade através de ‘um dilogo de sutil empatia, Gillian Beer e John Barcell abri- ram os séculos dezoito e dezenove as quest6es pés-colonias. Joan Copjec perecbeu imediatamente © que eu queria dizer com “mimica” ajudou-me a ler Lacan, O Essex Conference Collective ¢ Peter Hulme em particular sa0 responsaveis pela promogio de alguns dos eventos mais produtivos e cooperativos de que j@ participel. Henry Louis Gates © WT. Mitchell convidaram-me a contibuie para Race, Writing and Difference, dando corpo 4 idéia de uma nova comunidade de pesquisa. Em um estégio Inicial, Joan Scott, Elizabeth Weed, Kaja Silverman, Rey Chow € Evelyn Higginbotham “esmiucaram" de forma muito stil o meu trabalho durante 0 Seminario no Pembroke Center Seminar da Universidade de Brown, Houston Baker teve a generosidade de convidar-me como conferen: cista da série de palestras Richard Wright no Centro de Lite satura e Cultura Negras na Universidade da Pensilvinia, uma responsabilidade e oportunidade intelectual exeepeionais. Meu “lar" académico durante uma visita 2 Austrlia foi a Universidade de Queensland; agradego a John Frow, Helen Tiffin, Alan Lawson, JefT Minson e aas partieipantes do semi afirio de Teoria Avancada. O Gentro Nacional de Ciencias Humanas de Canberra também deu-me um generoso apoio. David Bennett, Terry Collits ¢ Dipesh Chakrabarty preparae ram 0 coquetet perfeito para um congresso: duas doses de prazer e uma de trabalho, misturar bastante e deixar assentar! Meaghan Morres e Sneja Gunew t@m-me ajudado, a0 longo: dos anos, a repensar perspectivas e prioridades. Minha permanéncia nas universidades da Pensilvania € de Princeton propiciou-me o tempo de que eu precisava para completar este trabalho. A contribuigio de meus alunos de pés-graduagto nos dois lugares foi inestimavel © Departamento de Inglés e © Centro de Literatura Negra da Universidade da Pensiivania convidaram-me a assumir 0 posto de Professor Visitante. Meus agradccimentos a John Richetti, Houston Baker, Wendy Sueines, Steplien Nicholls, Marjorie Levinson, Arjun Appadurai, Carl Breckenridge, Deidre David, Manthia Diawara Peter Stallybrass Em Princeton, Elaine Showalter foi uma anfiteit das mais generosas, tornando possivel um ano estimulante. Victor Brombert, que podia passar, sem sair do compasso, do bel canto 208 seminarios Gauss, foi um apoio inestimivel. Natal Zemon Davis ofereceu: critica’ perspicazes e construtivas, Arcadio Diaz-Quinones nunca deixou de temperar a insirugao com © deleite, Amoid Rampersad doou generosamente seu tempo & cconselhos. A presenca de Corel West atuou como inspiracio, para repensar 0 conceito de "raga"; aprendli muito assistindo aos semindrios de Nell Painter e Cornel West sobre a tadigio intelectual afro-americana. Devo muito a um grupo de pesquisadores © amigos do Departamento de Inglés de Princeton que contribuiram de maneira incalculivel para 0 desenvolvimento dessas idéias Andrew Ross, Wahneema Lubiano, Pduardo Cadava, Diana Fuss, Tom Keenan e Barbara Browning, Teno um prazer particular em reconhecer @ influéncia crucial de idéias vindas de fora (ou das margens) da Academia. David Rass ¢ Elisabeth Sussman, do Museu Whitney de Nova Torque propiciaram-me oportunidades desafiadoras. Alberta Arthurs, Tomas Ybarra Frausto © Lynn S2waja, da Fundagio Rockefeller, ensinaram-me a pensar os estudos culturais em novos ambientes intclectuais © sociais Além de eventos € instituigoes espectficos, o desenvolvi mento gradual de idéias ¢ dislogos faz surgir uma eadeia de pessoas e de lugares, Meus alunos da Universidade de Sussex participaram ativamente do desenvolvimento de muitos temas € idéias. Enire os diversos colegas que me apoiaram, Laura Chrisman, Jonathan Dollimore, Frank Gloversmith, Tony Inglis, Gabriel Josipovici, Cora Kaplan, Stuart Laing, Partha Mitter, Jacqueline Rose, Alan Sinfield, Jenay Taylor, Cedric ‘Watts € Naney Wood foram especi imente geaerosos com seu ausilio em virias ocasiGes. 14 outros, amigos intimos © companheiros intelectuais, que merccem tanto a gratidac 6 pela labuta didria como pelo prazer compartilhado de muitas epifanias Parveen Adams, Lisa Appignanesi, Emily Apter, Dorothy Bednarowska, Ellice Begbie, Andrew Benjamin, Lauren Berlant, Jan Brogden, Benjamin Buchloh, Victor Burgin, Abena Busia, Judith Butler, Bea Campbell, Tain Chambers, Ron Clark, Lidia Curti, Nick Dirks, Maud Fllmann, Grant Parred, John Forrester, David Frankel, Tschome Gabriel, Cathy Gallagher, Pavl Gilroy, Sepp Gumbrecht, Abdel Janmohamed, Isaac Julian, Adil Jussawalla, Ann Kaplan, Mary Kelly, Emesto Laclu, David Loyd, Lisa Lowe, Ann McClintock, Phil Mariani, Pratap Mehta, Liz Moore, Rob Nixon, Nicos Papastergiadis, Benita Pay, Ping hui Liao, Helena Reckit, Bruce Robbins, Irene Sl Sleaman, Val Smith, Jennifer Stone, Mitra Tabs ‘Teitelbaum, Tony Vidler, Gaurl Viswanathan, Yvonne Wood, Zareer Masini enfrentou muitas tempestades comigo ¢ Julian Henciques restabeleceu frequentemente o bom tempo. John Phillips © Rebecca Walkowitz ajudaram-me a preparar o manuscrito para publicagio com eficiéncia e comprecnsio, Desfrutei de uma relagio muito cooperativa com meus editores. Janice Price foi amiga ¢ interlocutora em todos 0s estigios deste trabalho, Sua pereepeRo signifieou muitissimo para mim. A elegancia do estilo de Talia Rodgers estende-se desde a capa até 0 contetide; trabalhar com ela foi imen: mente prazeroso. Sue Bilton demonstrou possuir reservas de paciéncla € perseveranga que me deram uma ligao de aperfeigoamento continuo Embora nossas vidas sejam agora vividas em patses dife rentes, meus pais t@m sido uma fonte do mais profunde apoio. A Hilla e Nadir Dinshaw oferego meus agradecimentos de coragio pelas incontiveis gentilezas durante © period de redacio. Estou profuncamente grato a Anna MacWhinnie por tomar possiveis muitas oportunidades de tabalho ¢ reerea. ‘¢20. Meus filhos Ishan, Satya e Leah foram auténticos compa: nbeiros. Jamais respeitaram a santidade do gabinete de estudo, Suas interrupgdes foram freqientes € insubstituiveis, Para além deste livro ou de qualquer outro, agradeco a Jacqueline Por compartilhar a insatisfagio que & © motor do pensamento © por suportar a ansiedade da incompletude que acompanha © alo de escrever. Homi Bhabha - Londres, 1993 O autor e os editores gostariam de agradecer as seguintes pessoas pela permissio de reproduzir material com direitos reservados: “0 Gompromisso com x Teoria” fol reproduside de Questions of Toint Cinema organizado por J Pines e P. Willemen C1989) ‘com a gentl permiss20 do Brtsh Film Insitute ‘Interrogando 4 Klentidade” fol reprodvide de The Anatomy. of Ractsm, organizado por David Goldberg (1990) com 4 ger Permissio de The Universky of Minnesota Pres. “A Outta Questio" foi reprodurido de The Sexual Subject: A ‘Screen Reader in Sexuality, organtzadlo por M. Merck (1992) ‘com 4 gentil permissio da Editora Routledge. "Da Mimica ¢ do Homem” (October Anthology, Boston, Mass MIT Press, 1987) € "Civilidade Dissimulada" (October, Winter 1985, MIT Press) si0 reproduzides por gemtil peemissho de October Signos Tidos como Milagres* foi reproduzido com a gentil Permissio da Chicago University Press partir de Race, Writing land Difference: Special Ise of the Journal, etganivade por Henry Louis Gates far, Critical ingutry 0985). *Aniculande 0 Arcaico" foi reproduside de Literary Theory Todas, organizado por Peter Collier © Helga Gayatyan (Polity Press, 1990) com a gentil permissia sa Editors Blackwell “0 Pos-Golonial¢ © PésModerno” foi reprodurido de Redrawing the Boundary of Literary Szdy in English, organizado por Giles Gunn e Stephen Greenblatt (1982) com gentl permissio da Modern Languages Association “Raga, Tempo € Revisto da Modernidade* fot reproduzide de ‘Neocofoniatism, organizado por Raber. Young, Oxford Literary Review 13 (199%) p.195-219, com a gentil permissao de Orford aerary Review Versos da cangio"Accent-icu.ate the Posive" foram reproduzisos ‘com a gent permissto de International Music Publications Li Aarquitetura dese baba esteneaizada na tempor Todo problema humane deve st considerado da ponte de visa do tempo rants Fanon: Black Shi, Woe asks You've goo “Accent tc ate the pase, lem nate the neertior, Laichon oibeafsfrm atte, ‘Don mess ith tte nebeseen Noce tem de ‘A-cen-tuar© pos tv, Eleminar ane getvo", Feche com 3 ema tivo, Ito se met como Sr. Nemvcine i eth de “Accant eh.ate the Poste’, de Joly Mercer LOCAIS DA CULTURA ‘Uma Fonte mo ¢ © pono onde algo termina, ms, ome oF ips ecaheceram, «fons €0 ponte pat do ‘lg come se fuser preset Martin Heidegger, *Duling, Dwelling, Thinking” VIDAS NA FRONTEIRA: A ARTE DO PRESENTE £ 0 tropo dos nossos tempos colocar a questio da cultura nna esfera do além. Na virada do século, preacupa-nos me: nos a aniquilagto — a morte do autor — ou 8 epifania — 0 nnascimento do “sujeito". Nossa existencia hoje é marcada por uuma tenebrosa sensacao de sobrevivencis, de viver nas fron: teimas do “presente”, para as quais nto parece haver nome prdprio além do atual ¢ controverido deslizamento do prefixo ‘pOs": pds-modernismo, pbs-colontalismo, pés feminism. (© “além’ nao € nem um novo horizonte, nem um abandono do passado... Inicio e ins podem ser os mitos de sustentagao dlos anos no meio do século, mas, neste fir de sila, encon tramo-nos no momento de tnsito em que espago e tempo se sizam para produtie figuras complexas de diferenga e iden- tidade, passado © presente, interior e exterior, incluso € exclusio, Isso porque ha uma sensagao de desorientagio, um distirbio de directo, no “além": um movimento exploratério Incessante, que 0 termo francés aiadela capta tao bem — aqui e la, de todos os lados, ford/da, para la © para ci, para a frente © para tis.! © afastamento das singularidades de “classe” ou "géne- ro" como categorias conceituals e organizacionais bisieas resultou cm uma conscitneia das posigdes do sujeito — de raga, género, geragao, local institucional, localidade geopolitica, orfemtagio sexual — que habitam qualquer pretensfio 2 identidade no mundo modemno. © que ¢ teoricamente inovador € politicamente crucial ¢ a necessidade de passar além das narzativas de subjetividades ori de focalizar aqueles momentos ou processos que sio produ ziidos na articulagao de diferengas culturais. Esses ‘entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboragao de estratégias de subjet- vacio — singular ou coletiva — que dao inicio a novos signos de identidade ¢ postas inovadores de colaboragae e conte laglo, no ato de definir a propria idéia de sociedade. nirias e iniciais © 1 na emergéncia dos intersticios — a sobreposigao ¢ o des- locamento de dominios da diferenga — que as experiéncias intersubjetivas e coletivas de napao [nationnass], 0 interesse comunitirio ou 0 valor cultural sto negociados. De que modo se formam sujeitos nos “catre-lugares", nos excedentes da soma das "partes" da diferenca (geralmente expressas como raga/classe/genero etc.)? De que modo chegam a ser formu Indas estratégias de representagio ou aquisigao de poder empowerment | no interior das pretensdes concorrentes de comunidades em que, apesar de hist6rias comuns de privagte € diseriminacio, © intercimbio de valores, significados ¢ prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dial6gico, podendo ser profundamente antagdnico, conflimoso ¢ até incomensurivel? A forca dessas questdes é corroborada pela *linguagem" de recentes crises sociais detonadas por historias de dife- renga cultural, Conflitos no centro-sul de Los Angeles entre coreanos, americanos de origem mexicana ¢ afro-americanos tem como foco © conceito de "desrespeito’— termo forjade ras fronteiras da destituigao étnica que €, a0 mesmo tempo, 0 signo da violéncia racializada e o sintoma da vitimizago sock Na esteita do caso de Os Versos Saidnicos na Gra-Bretanha, feministas negras e inlandesas, apesar de suas constitwigbes diferentes, uniram-se em causa comum contra a *rackalizagao da religito” como 0 discurso dominante através do qual 0 Estado representa os conflitos e lutas delas, por mais seculares ou mesmo *sexuais” que eles sejam. Os termos do embate cultural, seja através de antagonis- mo ou afiliagto, s80 produzides performativamente. A re- presentagio da diferenca nao deve ser lida apressadamente como 0 reflexo de tragos culturais ou €inicos preestabelecilos, Inseritos na Kipide fixa da tradigao. A articulagao social da diferenga, da perspectiva da minoria, ¢ uma negoclagao complexa, em andamento, que procura conferir autorid aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformacio hist6riea. © *direito" de se expressar a partir da petiferia do poder € do privilégio autorizados nie depende dda persisténcia da tradiglo; ele € alimentado pelo poder da uradigao de se reinscrever através das condigdes de contin _géncia e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que esto “na minoria’. O reconhecimento que a tradigio ‘oulorga € uma forma parcial de identificagao. Ao reencenar 9 pasado, este introduz outras temporalidades culturais inco- mensuriveis na Invenio da tadiclo. Bsse processo afasta qualquer acesso imediaco a ums identidade original ou a uma tuadigao “recebida”, Os embates de fronteira acerca da dife- renga cultural t@m tanta possibilidade de serem consensuais, quanto conflituosos; podem confundir nossas definigoes de tradigio © modermidade, realinhar as fronteiras habituais entre © piblico € © privado, 0 alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso, cle Eu gosteri de tagar formas ov estabelecer situagdes que este jam como que aberas,. Mey trabalho tem rio a ver eon um tipo de fuidez, um movimento de vaiven, sem aspirar 4 ne nnhum modo espeeifico ow essencial de ser? Assim escreve Renée Green, a artista afro-americana, Ela reflete sobre a necessidade de compreender a diferenga cultural como produgio de identidades minoritarias que se “fendem" — que em si fi se acham divididas — no ato de se articular em vim corpo coletive: (© multicuhuraismo no reflete a complextdade da situagto como eu a enfreato no dla‘ dia. £ preciso que a pessoa sala dde si mesma para de fato ver 0 que estd Fazenda, N&O quero condenar gente bem intencionads © dizer (como aguelas cami Setas que sto vendidas nas ealgadas) "coisa de negro, voce rnio entenderis.” Para nim, ito € essencializar a negeura? © acesso ao poder politico € o erescimento da causa multi- culturalista vem da colocagio ile questOes de solidariedade © comunidade em uma perspectiva intersticial. As clferencas sociais no sto simplesmente dadas & experiéneia através de uma tradigto cultural j autenticada; elas so 0s signos da emergéacia da comunidade concebida como projeto — a0 mesmo tempo uma visio © uma construgio — que leva alguém para “alény” de si para poder retornar, com um espisito de revisio e reconstruc, as condi¢des politicas do presente: Mesino entio, ainda wma luta pelo poder entre grupos diver: 108 no inerior dos gripos éinicos sobre O que esta sendo dito fe quem diz o que, e quem esté representando quem. Alinal, 0 ‘que € wna comunidade? O que € uma comunidade negra? O {que & oma comunidade de latinos? Tenho dficuldade em pen- ‘ar nessas coisas todas como categorias monoliicas € fixas* Se as perguntas de Renée Green abrem um espage interrogt (Gro, intersticial, entre o ato da representagao — quem? 0 qué? onde? — ¢ a prépria presenga da comunidade, considere-se entao 2 intervengiio criativa da artista dentro desse momento intervalar. A obra de Green, espectfica do lugar “arqui- tetural”, Sites of Genealogy (Qut of Site, The Institute of Contemporary Art, Long Island, Estado de Nova Torque), expie e desloca a logica bindria através da qual identidades de diferenca sto frequentemente construidas — negro/branco, ew/outro, Green cria uma metifora do proprio prédio do museu, em vez de simplesmente usar o espaco da galeria Usel a arquitenura’ Ikeralmente como referénela, usando © s6t80, 0 compartimento da caldera ¢ © poco da escada para Fazer associagbes entre certas divisoes bindrias como superior € toferior, ot inferno, © pogo da eseada torou-se um espace liminar, ua passaem entre 5 dress superore inferior, seado que cada uma delas recebew placas referees a0 nogro © a0 branco? © poga da escada como espago liminar, situado no meio das designagdes de identidade, transforma-se no processo de in- tezagao simbélica, o tecido de ligacto que constrsi a diferen- ga entre superior e inferior, negro € branco. © ir vir do pogo da escada, o movimento temporal ¢ a passagem que ele propicia, evita que as Mdentidades a cada extremidade dele se extabelesain em polaridades primordiais, Essa passagem intersticial entre identificagdes fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferenga sem uma hierarquia suposta ow imposta 2 Sempre transite! de 14 para cd entre designagdes raciais, designagdes ds Fisien Ou outras designacdes simbélleas ‘Todas essas coisas se embaralham de slguma maneira Desenvolver uma genealogia da maneira como 48 cores € fndo-cores funcionam € incoressante para mim “Além” significa distincia espacial, marca um progresso, promete 0 futuro; no entanto, nossas sugestoes para ultra~ passar a barrcira ou 0 limite — o proprio ato de ir além — sto incognisetvels, isrepresentiveis, sem um retorn 0 presente” que, no proceso de repetisio, toma-se descone- x0 € deslocado. © imaginirio da distincia espacial — viver de algum modo além da fronteira de nossos tempos — di relevo a diferengas sociais, temporais, que interrompem nossa nogio conspirat6ria da contemporaneidade cultural presente mio pode mais ser encarado simplesmente como uma fuptura ou um vinculo com o pasado e o futuro, nao ‘mais uma presenca sinerdnica; nossa autopresenga mais ime~ diata, nossa imagem publica, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Dife rentemente da mio morta da hist6ria que conta as contas do tempo sequiencial como um rosirio, buscando estabelecer ‘conexdes seriais, causais, confrontamo-nos agora com 0 que Walter Benjamin desceve como 2 explosio de um momento monidico desde © curso homogeneo da histria, “estabelecendo ‘uma concepeao do presente como o ‘tempo do agora” Se 0 jargio de nossos tempos — pés-modernidade, p6s-colonialidade, pés-feminismo — tem algum significado, ‘este no esti no Uso popullar do “pés para indicar sequenciali- dade — feminismo posterior — ou polaridade — anrimoder- rismo, Esses termos que apontam insistentemente para o além 86 poderio incorporar a energia inquieta e revisionsria deste se tansformarem o presente em um lugar expandido e ex-céntrico de experiéncia aquisigao de poder. Por exemplo, se 0 interesse no pos-modernismo limitar-se a uma celebragao da feagmentagao das “grandes narrativas” do. racionalismo posiluminista, entao, apesar de toda a sua cfervescéncia Intelectual, ele permaneceré um empreendimente profun- damente provinelano. A significagio mais ampla da condigie pos-moderna reside na conscigncia de que os “limites" epistemoldgicos daquelas 25 fdgias emocéntricas S30 também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vores e hist6rias dissonantes, até dis- sidentes — mulheres, colonizados, grupos minoritirios, os portadores de sexualidades policiadas. Isto porque a demo- grafia do novo Internacionalismo é a histéria da migragio p6s-colonial, as narrativas da digspora cultural € politica, 05 grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas, aborigenes, as posticas do exilio, a prosa austera dos refugindos. politicos e econdmicas. E nesse sentido que a fronteira se torna lugar a partic do qual algo comera a se fazor prosenteem um. movimento nao dissimilar ao da articulacao ambulante, ambi- valente, do além que venho tragando: “Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou pressados dos homens para lie para e4, de modo que cles possam alcangar outras margens... A ponte reine enquanto passagem que atravessa."* 0s proprios conceitos de culturas nacionais homogéneas, a wansmissto consensual ou contigua de tadigdes histGricas, on comunidades éinicas “orginicas” — enguanto base do comparaivismo cultural —, estio em profundo processo de redefini¢io, O exiremismo adiaso do nacionalismo sérvio prova que a propria idéia de uma identidade nacional pura, "etnicamente purificada’, s6 pode ser atingicla por meio da morte, iteral ¢ igurativa, dos complexos entrelagamentos da hist6ria e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da nacionalidade [nationbood | moderaa. Gosto de pensar ue, do lado de c& da psicose do fervor paurigtico, ha uma evi dencia esmagadora de uma nogio mais transnacional & sanslacional do hibridismo das comunidades imaginadas. © eatro contemporineo do Sti Lanka representa © conflito moral entre o$ timeis © os cingaleses através de referencias alegoricas & brutalidade do estado na Africa do Sul ena América ating; © clinone anglo-celia da literatura e do cinema australia i sendo reescrito do panto de vista dos imperatives politicos e eulturais dos aborigenes; os romances sub-africanos de Richard Rive, Bessie Mead, Nadine Gordimer © John Coetzee sto documentos de uma sociedade dividida pelos efeitos do apartheid, que convidam a comunidade intelectual interna- clonal a meditar sobre os mundlos desiguals, assimétrieos, que existem em outras partes; Salman Rushdie escreve a historio: grafia fabulosa da fndia e do Paquistao pés-independéncia em Midnight's Children (Os Filhos da Meis-Noite e Shame Wwergonhal, 86 para lembrar-nos, em Os Versos Satantcos, que 0 olho mais fiel pode agora ser aquele da visto dupla do migrante; Befoved (Amadal, de Toni Morrison, revive 0 pasado da escravidio € seus rituals assassinos de possessto fe autopossessio a fim de projetar a fabula contemporanea da hist6ria de uma mulher, que €a0 mesmo tempo a narrativa de Juma memoria afetiva, histérica de uma esfera publica emer- gente, tanto de homens como de mulheres. © que € impressionante no “nov Hismo € que ‘9 movimento do especifico ao geral, do material ao metaf6rico, nil é uma passagem suave de transigio e transcendéncia. A 1eia passagem” [middle passagel da cultura contemporanea, como no caso da propria escravidio, € um processo de deslocamento ¢ disjun¢io que nao totaliza a experiéncia. Cada vex mais, as culturas “nacionais" estao sendo produzidas 2 perspectiva de minorias destituidas, O efeito mais » de "historias alternativas dos excluidos", que produziriam, segundo alguns, uma anarquia pluralista. © que meus exemplos mosteam ‘uma base allerada para 0 estabelecimento de conexdes inter- acionais. A moeda corrente do comparativismo critico, ou do juizo estético, no é mais a soberania da cultura nacional concebida, como propée Benedict Anderson, como uma *comunidade imaginada" com rafzes em um “tempo vazio homogénco” de modemidade ¢ progresso. As grandes nacrativas conectivas do capitalismo e da classe dirigem os mecanismos de reprodugio social, mas no fornecem, em si préprios, uma estrutura fundamental para aqueles modos de identificagzo cultural e afeto politico que se formam cm torno de questées dle sexualidade, raga, feminismo, 0 mundo de refugiados ou migrantes ou o destino social fatal da AIDS © testemunho de meus exemplos representa uma revisio radical do proprio conceito de comunidade humana. O que seria esse espaco geopolitico, como realidade local ou trans- nacional, € 0 que Se interroga e se reinaugura. O feminismo, nna década de 90, encontra sua solidariedade tanto em nacrat libertérias como na dolorosa posigto ética de uma escrava, @ Sethe de Morsrison, em Amada, que € levada ao infanticidio. © corpo politico no pode mais comemplar a sadide da nagio simplesmente como virlude civiea; ele precisa fepensar a internacios 2s questo dos direitos para toda a comunidade nacional € internacional a partir da perspectiva da AIDS. A metrépole ocidental deve confrontar sua histGria pés-colonial, contada pelo influxo de migrantes ¢ refugiados do pds-guerra, como ‘uma narrativa indigena ou nativa interna a sua identidade nacional, @ razio para isto fica evidente nas palavras gaguejadas, bébadas, de Mr. “Whisky” Sisodia de Os Versos Satdnicos, "O problema dos ing-ingleses € que a hiseist6rla deles se fez no além-mar, daf eles na-na-nao saberem 0 que ela significa.” A pés-colonialidade, por sua vez, € um salutar lembrete das relagdes “neocoloniais’ remanescentes no interior da “nova” ordem mundial e da divisio de trabalho multinacional "ral perspectiva permite a autenticacao de histérias de explo- ragao eo desenvolvimento de esteatégias de resistencia. Akém dito, no entanto, a critica pés-colonial dé testemunho desses paises ¢ comunidades —- no norte € no sul, urbanos ‘e rurais — constituldos, se me permitem forjar a expresso, *de outro modo que nto a modernidade”. Tais culturas de contra-modernidade p6s-colonial podem set contingentes & modernidade, descontinvas ou em desacordo com cla, resis- tentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, clas também poem em campo o hibridismo cultural de suas condigdes fronteirigas para *traduzie", e portanto reinscrever, (© imaginétio social tanto da metropole como da modernidade. ‘Oucam Guillerme Gomez-Peha, o artista performitico que vive, entre outros tempos © espagos, na fronteira entre México ¢ Estados Unidos: old América esta 6 vou de Gran Vato Charotlero transmitindo dos desertos excaldantes de Nogales zona de libre cogercio 2000 megalerz en todas dirceciones voeds estao comemorando 9 Dia do Trabalho em Seatle enquanto o Klan Faz una manifestag20 tronta, 100% eronsal® Estar no “além’, portanto, é habitar um espago intermédio, como qualquer dicionatio Ihe dird. Mas residir “no além" & ainda, como demonstrei, ser parte de um tempo revisionsrio, lum retorno ao presente para redescrever nossa contempora- neidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histrica; socar 0 futuro em seu lado de cd. Nesse sentido, ‘entlo, 0 espago intermédio “além" rorna-se um espago de intervengto no aqui € no agora. Lidar com (al invengao Jntervengao, como demonstram Green ¢ Gome?-Peaa em suas obras distintas, requer uma nocio do novo que sintoniza com a estética hibrida cbicana do rasquacbismo, como deserita por Toms Ybarra-Frausto: 8 utlizacto de reeuteos dispontveis para o sincretisme, a jus taposigae e a integragao. Rasquachismo & uma sensibilidade Sintorizada com a mistras ea conflutncia.. um delete na textura © superficies sensuals,.. a manipulaeio conselente de rmaterias ou iconografia..a combinggao de material ja existent © veia satinica..& manipulagao de atefatos rasquache, Sige feasbilidades de ambos os lados da fronteiea." © trabalho fronteirigo da cultura exige um encontro com 9 novo" que nao seja parte do continuum de passado © pre- sente. Ele ria uma idéia do novo como ato insurgente de tradugdo cultural. Essa arte no apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigueando-o como um “entre-lugar* contingente, que inova ¢ interrompe a atuagio do presente. O “passado-presente” tomna-se parte da necessidade, e mio da nostalgia, de viver. Os objets trouvés de Pepon Osério, recolhidos na ‘comunidade “nuyoricana" (porto-riquenhia de Nova lorque) — as estatisticas de mortalidade infantil, ou 0 avango silencioso (¢ silenciado) da AIDS na comunidade hispAnica —, si0 ansformados em alegorias barrocas da alienagao social. Mas nao € o drama elevado de nascimento e morte que atrai a imaginacio espetacular de Os6rio. Ble € o grande celebrante do ato migrat6rio da sobsevivéncia, usando suas obras de mfdis-mista [mixed-medial para criar um espago culturai hibrido que surge contingente ¢ disjuntivamente na inscrig2o de signos da meméria cultural e de lugares de atividade politica. Za Cama (A Gama) transforma uma cama 2 de dosse! aliamente decorada na cena primal das memérias de infancia perdidas-e-achadas, no memorial 2 uma babi morta, Juana, na mise-en-se?ne do erotismo do cotidiane “emigrante”. Sobrevivencia, para Osério, 6 operar nos intersticios de uma gama de praticas: 0 “espago" da instalagio, fo espeticulo da estatistica social, o tempo transitive do corpo em performance. Finalmente, é a arte fotogrifica de Alan Sekula que leva a condigao fronteiriga da tadugio cultural a seu limite global em Fish Story [Histérla de Peixes], seu projeto fotogriico sobre portos: "O porto € © lugar em que os bens materiais aparecem em geande volume, em pleno fluxo de troeca."* porto ¢ 0 mercado de agdes tornam-se a paysage moralisé do mundo computadorizado e containerizado do comércio global. Todavia, o tempo-espago no sincrénico da “toca” € exploragio transnacionais est representado em uma alegoria naval: [As coisas estio mais confusas agors. Um disco arcanhado ber f© hing nacional noruegués por tm alto-falante da Casa do Marinhelto, no penhasco acima do canal. © navio-containes, a0 ser studado, desfralda uma handeia de conveniéncia das Bahamas, tle fol constuide por coreanos que (abulbam por longs horas nos estalelros lanes de Ulsan. A tripolagao mal papa ¢ insuficiente poderia ser salvadorentia ou filipina. Ape fas 0 eapitlo ouve uma melodia fami.” ‘A nostalgia nacionalista da Noruega nio consegue superar ‘a babel no penhasco, O capitalismo transnacional e © empo- brecimento do Terceiro Mundo certamente criam as cadeias de circunstancia que encarceram os/as salvadorenhos/as ou filipinos/as. Em sua passagem cultural, aqui e ali, como traballiadores migrantes, parte da maciga diaspora econémica ¢ politica do mundo modemo, eles encarnam © "presente benjaminiano: aquele momento que explode para fora do continuo da histéria, Essas condigdes de deslocamento cultural e discriminaglo social — onde sobreviventes politicos tornam-se as melhores testemunhas hist6rieas — slo o terreno sobre 0 qual Frantz Fanon, © psicanalista da Martinica que participou da revolugao argelina, situa uma instincia de aquisicao de poder: Ey [No momento em que dese, estou pedindo para ser levado em consideragao. Mao estou meramente aquie agora, selido na coisiuide. Sou a favor de outro lugar e de oUt coisa, EXO {que se leve em conta minha aliotdadie negadora lgrifo meu 9 ‘meelida em que pesigo algo mals do que a vida, ax medida em ue de fato batalho pela eragio de um mundo humano —~ ‘que € um mundo de reconhecimentos reeiprocos Eo deveria lembrar-me constantemente de que 0 verdadeito sali coasiste em fsoduzir 4 invengio dentto ds existncia, No snundo em que viajo, estou continuamente a er € passando além da hipotese histérica, instrume Iniiarel meu ciclo de liberdade." me. E al, que Mais uma vez, é 0 desejo de reconhecimento, “de outro lugar € de outra coisa’, que leva a experléncia da histéria lim da hipétese instrumental, Mais uma vez, € 0 espago da interven que emerge nos intersticios culturais que intro- duz a invengo eriativa dentro da exist@nela. E, uma Gltima vez, hi um retorno a encenagio da identidade coma iteragio, a re-ctiacao do eu no mundo da viagem, o re-estabelecimen- to da comunidade fronteirica da migraclo. O desejo de reco- inhecimento da presenga cultural coma "atividade negadora” de Fanon afina-se com minha ruptura da barreira do tempo de um “presente” culturalmente conluiado. VEDAS PSTRANHAS: A LITERATURA DO RECONHECIMENTO Fanon reconhece a importincia crucial, para os povos subor- inados, de afirmar suas tradigdes culturals nativas e recuperar suas historias reprimidas. Mas ele esta consciente demais dos pperigos da fixidex do fetichismo de identidades no interior da caleificacao de culturas coloniais para recomendar que se Iancem "rafzes" no romanceiro celebratério do passado ou na homogencizacao da hist6ria do presente. A atividade negadora 6 de fato, 4 intervenclo do “além" que estabclece uma fronteira: uma ponte onde 9 “fizerse presente” comega porque capta algo do espiito de distanciamento que acompanha 3 re-Jocagio do lar e do mundo — o estranhamento Lenbomeliness| —que 6 a condicio das iniciagdes extraterttoriais e intercul- turais. Estar estranho a0 lar [torbomed] nao & estar sem-casa (Bometess; de modo anilogo, nao se pode classificar 0 “estranho” 29 [unhomelyl de forma simplista dentro da divisao farniliar da vida social em esferas privaca e publica. © momenco estra- ‘nho move-se sobre nés furtivamente, como nossa propria sombra, e, de repente, vemo-nos como a Isabel Archer de Henry James em Portratt of a Lady (Retrato de uma Dama, tomando a medida de nossa habitagio em um estado de “terror incrédulo”.” E € nesse ponto que, para Isabel, o munclo primero se conirai e depois se expande enormemente, Enquanto ¢la luta para sobreviver as Aguas insondiveis, as torrentes impe~ ‘uosas, James introduz-nos ao “estranhamento” inerente qucle tito de inickagio extraterritorial intercultural. Os recessos do espaco doméstico tornam-se os lugares das invasdes mais rimuricadas da hist6ria, Nesse desiocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem ¢, estranhamente, o privado ¢ Publico tornam-se parte um do outro, forcando sobre nés uma ‘visio que € ilo dividida quanto desnorweadora. Embora 0 “estranho" seja uma condigio colonial € 1pés-colonial paradigmstica, vem uma ressonancia que pode set ouvida distimtamente — ainda que de forma errética — em ficgdes que negociam os poderes da diferenga cultural em uma gama de lugares trans-hist6ricos. J ouvimos 0 alarme estridente do "estranho” no momento em que Isabel Archer percebe que seu mundo foi reduzido a uma janela alta ¢ banal, 2 medida que sua casa de ficclo se torna "a casa da escuri 1. casa do siléncio, a casa da asfixia™* Se ouviemos dessa forma o alarme no Palazzo Roceanera nos limos anos da dé- cada de 1870, e entio, um pouco antes, em 1873, nas redonde- zas de Cincinnati, em casas murmurantes como © nmero 124 da Bluestone Road, ouviremos a linguagem indecifravel dos negros mortos ¢ raivosos, a vox da Amada de Toni Morrison, “os pensamentos das mulheres clo 124, pensamentos impronun- ciiveis, nio-pronunciados”."” Mais de um quarto de século depois, em 1905, Bengala est em chamas com © movimento Swadeshi ou Home Rule quando a “Bimala doméstica, pro- duto do espago confinado”, como Tagore a descrove em The Homo and the World |A Casa € © Mundo |, € despenada por “um continuo sub-tom de melodia, de baixo profundo... uma nota verdadeltamente masculina, a nota do poder". Bimala & possuida © arrancads para sempre da zenana, o alojamento isolado das mulheres, enquanto atravessa a varanda fadada rumo ao mundo das questOes publicas — “para a margem de 30 1é a balsa havia parado de fazer a travessia”. Muito mais préaimo de nossos tempos, na Africa do Sul contemporinea, Alla, a herofna de Nadine Gordimer em My Son's Story (A Historia de Mev Fitko), emana uma atmosfera paralisante ao fazer de sua domesticidade reduzida o disfarce peifeito para 0 contrabando de armas: de repente casa se trans- Forma em outro mundo € o narrador observa que “Era como se todos descobrissem ter entra estranha, @ ora a casa dela." As especificidades histéricas ¢ diversidades culturais que informam cada um desses textos fariam de um argumento geralizante uma mera atiude; de qualquer modo, 86 waba- Tarei em detathe com Morrison e Gordimer. Porem, 0 “estranho* fomece-nos de fato uma problematica “no-continufsta" que dramatiza — na figura da mulher — a estrutura ambivalente do estado civil ao tragar seu limite bastante paradoxal entre as esferas privada publica. Se, para Freud, o unbeimlich & ‘o nome para tudo o que deveria ter permanecid... secrcto e coculto mas velo & luz", entto a descrigao de Hannah Arend: dos dominios publico ¢ privado € profundamente estranha: “Ea distingio entre coisas que deveriam ser ocultas © coisas que deveriam ser mostradas", escreve ela, que através de sua Jersio na idade modema, "revela como aculto pode ser rico € mGltiplo em situagdes de intimidade”.” Essa logica da inversio, que gira em torno de uma negacio, a base das revelagdes ¢ veinscrigdes profundas do momento de estranhamento. Isso porque 0 que estava “oculto do campo de visto" para Arendt, torna-se, em The Disorder of Women [A Desordem das Mulherest, de Carole Pateman, a *esfera doméstica atributiva” que & esquecica nas distingdes teéricas das esferas privada e publica da sociedade civil. Tal esqueci- ‘mento — ou recusa — cria uma incerteza no coracao do su- jeito generalizante da sociedade civil, comprometenda o “in dividuo", que € suporte de sua aspiragio universalista. Ao tornar visivel 0 esquecimento do momento “estranho" na so- ciedade eivil, o feminisina especifica a natureza patriarcal, ba- seada na divisto dos generos, da sociedade civil e perturba a simetria entre pablico ¢ privado, que € agora obscurecida, ‘ou estranbamente duplicads, pela diferenga de géneros que nio se distribui de forma organizada entre o privado © 0 publico, mas se tora perturbadoramente suplementar a eles. Isto resulta em redesenhar o espaco doméstico como espago das modernas tGenieas normalizantes, pastoraliza vidualizantes do poder ¢ da policia modernos: 0 pessoal-&o politico, 0 mundo-na-casa (© momento do estranho relaciona as ambival@ncias craundcieas de uma hisi6eia pessoal, psiquiea, As disjun amplas da existéncia politica. Beloved, a crianga assassinada por Sethe, sua propria mae, & uma repeticlo endemoniada, extemporinea, da violenta historia das mones das erian negras durante a eseravidio em muitas partes do Sul, menos de uma década depois que o numero 124 da Bluestone Road tornou-se mal assombrado. (Entre 1882 € 1895, entre win tergo ea metade da taxa de mortalidade negra anual compunha-se de ceriangas de menos de cinco anos de idade). Porém, a meméria do ato de infanticidio de Sethe emerge através de *buracos — as coisas que 0s fugitivos nio diziam, as perguntas que ‘eles nito faziam... o Inominado, © nde mencionado”” Enquanto reconstruimos a narrativa do infantie‘dio através de Sethe, a mae escrava, que & também vitima de morte social, propria base hist6- rica de nosso juizo ético é submetida a uma revise radical ‘Tais formas de existéncia social € psiquica podem ser melhor representadas na (nue sobrevivencia da propria linguagem literaria, que permite 1 meméria falar yauanto a Fala consciente pode (se no mximo via (bombra ecoando a. uz silencioss, dar testemunho Da verdate, n20 6 W. H, Auden escreveu esses versos sobre 05 poderes da potesis ‘em The Cave of Making [A Caverna do Fazer], aspirando ser, como ele coloca, "um Goethe atlintico menor". E & para uma intrigante sugestio na iltima "Nota sobre a literatura de Goethe (1830) que me volto agora em busca de tum método comparativo que falaria 4 condicao “estranha” do mundo moderno, Goethe sugere que a possibilidade de uma literatura mundial surge da confusio cultural ocasionada por terriveis guerras conflitos mituos. As nagdes Ea ‘io poderiam retornar a sa Vida estabelesida ¢ independente sem pereeber que tinham aprendide muitas idéias © modos festrangelros, que inconscientemente adotaram, e vit & sentir aqui e all necessidades espiritunis © Intelectuals antes nao econhecidas.2 As referéncias imediatas de Goethe sto, naturalmente, as guerras napolednicas © seu conceito de “sentimento de relagbes de boa vizinhanga" € profundamente eurocenttico, chegando no méximo a Inglaterra e 2 Franga. No entanto, como orientalista que leu Shakuntala aos dezessete anos € que escreve em sua autobiografia sebre o “informe e desconforme"* deus-macaco Hanuman, as especulagdes de Goethe estio abertas a outra linha de pensamento. Que dizer da situago cultural muito mais complexa em que “necessidades espirituais ¢ intelectuals antes no reco- nhecidas” emergem da imposigo de idéias “estrangeiras”, representagdes culturais e estruturas de poder? Goethe sugere que # “natureza intema de toda a nag, assim como a de cada homem, funciona de forma inconsciente” ® Quando isto € colocado paralelamente a sua idéia de que 2 vida cultural a naglo ¢ vivida *inconsclentemente", pode aver entio a idéia de que a literatura mundial possa ser uma categoria emergent, prefigurativa, que se acupa de uma forma de dissenso ce akeridade cultural onde termes nao consensuals de afiliaglo podem ser estabeleciclos com base no trauma histérice, O estudo da literatura mundial poderia ser 0 estudo do modo” pelo qual as culturas se reconhecem através de suas projecdes de “alteridade”, Talvez possamas agor vansnacionais de migrances, colonizados ou refugiados pol ticos — essas condighes de fronteita e divisas — possam ser o terreno da Kierawura mundial, em lugar da wransmissao de tadigdes nacionais, antes o tema central da literatura mundial, © centro de tal estudo nao seria nem a *soberan) de culturas nacionais nem o universaismo da cultura bumana, mas um foco sobre aqueles “deslocamentos sociais e culturais anOmalos" que Morrison Gordimer representam em suas ficedes “estranhas'. Isso nos leva a perguntar: pode a perplexidade do mundo esieanho, intrspessoal, levar a um tema internacional? 3 sugerir que histérias » Se estamos buscando uma *mundializagio" da literatura, conta talvez ela esteja em um ato critico que tenta compreender fo truque de magica através do qual a literatura conspira com a especificidade histérica, usando a incerteza mediinica, 0 anciamento estético, ou os signos obseuros do mundo do espirito, o sublime € 0 subliminar, Como criaturas literar animais politicos, devemos nos preocupar com 2 compreensto da agao humana ¢ do mundo social como um snomemo em que algo estd fora de controle, mas nao fora da possibitidade de organizagdo, Fste ato de eserever © mundo, de tomar a medida de sua habitagao, € captado magicamente na deserigio que Morrison faz de sa casa de ficglo — @ ante como "a presenga totalmente apreendida de uma assombragio"™ da historia, Lida como imagem que descreve a relagio da arte com a realidad social, minha iraduc2o da frase de Morrison toma-se uma declaragio sobre a responsabilidad politica do critico, Isso porque © eritico deve tentar apreendler totalmente ¢ assumir a responsabilidade pelos passados nao ditos, mio Tepresentados, que assombram 0 presente historico. Nossa tarefa, entretanto, continua sendo mostrar como fa intervengio historica se transforma através do processo significante, como 0 evento histérico € representado em um discurso de algum modo fora de controle. Isto esta de acordo com a sugesiao de Hannah Arendt de que o autor da acio social pade ser o inaugurador de seu significado singular, ‘mas, como agente, ele ou ela nao poclem controlar seu resultdo. Nao ¢ apenas o que a casa da fieg20 contém ou "controla" enguania conterida, © que € igualmente importante & a metaforacidade das casas da meméria racial que tanto Morcison como Gordimer constroem — os sujeitos da narrativa que murmuram ou resmungam como no nimero 124 ck Bluestone Road, ou mantém uum silenelo contido como em um suburbio “cinzento” da Cidade do Cabo. ‘Cala uma das casas em A Fistdria le Meu Filbo, de Gordimer sta investida com um segredo especifico ou uma conspiragio, uma inquietaglo estranka, A casa no gueto € a casa do espirito de conluio das pessoas de cor [coloureds] em suas relagdes antagdnicas com os negros; a casa da mentira é a ease do adultério de Sonny; ha ainda a casa silenciosa da camuflagem a revoluciondria de Aila; ha também a casa noturna de Will, o narrador, que escreve sobre a narrativa que mapeia a l®nix ‘erguendo-se em seu lar, enquanto as palavras tem de se tornar cinzas em sua boca. Porém, cada casa “estranha" demarca um destocamento histérico mais profundo. E esta € a condica0 de ser “de cor" na Africa do Sul, ou, como descreve Will, “a meio caminho entre... ser nao definide — ¢ era a propria falta de definigao que nunca poderia ser questionada, apenas. ‘observada como um tabu, algo que ninguém jamais confessara, mesmo respeitando-o".” Essa casa de origens riciais ¢ culturais a meio caminho tune as origens diaspOricas “intervalares” do sul-africano de ‘cor € transforma-se no simbolo da disjuntiva ¢ deslocada vida cotidiana da luta pela Ebertagio: “Como tantos outros dese Lupo, cujas familias estao fragmentadas na didspora do exilio, em codinomes, em atividides seeretas, pessoas para quem uma casa € lagos Feats so coisa para os que virgo depois." Privado © pablico, passado € presente, 0 psiquico © 0 social desenvolvem uma intimidade intersticial. E uma inti- midade que questiona as divisdes bindrias através das quails essas esferas da experi¢ncia social s20 frequentemente ‘opastas espaclalmente, Bssas esferas cla vila sto ligadas através cde uma temporalidade intervalar que toma a medida de habitar ‘em casa, ao mesmo tempo em que produx uma imagem do mundo da hist6ria, Este € 0 momento de distincia estética «que 4 2 narrativa uma dupla fice que, como o sujeito sul-africano, de cor, representa um hibridismo, uma diferenga ‘interior’ |, lum sujeito que habita a borda de uma realidade "intervalar". Ea inscrigo dessa existéncia fronteiriga habita uma quie-"7 tude do tempo e uma estranheza de enquadeamento que crial... “imagem” discursiva na enesuzilhada entee hist6ria e litera tura, unindo a casa © 0 mundo. - Essa estranha quictude é visivel no retrato de Aila. Seu marido Sonny, jf em decadéncia politica, cujo caso com a amante branca revolucioniria estava suspenso, faz sua primeira visita hk esposa nat prisio. A carcereira afastase, 0 policial desaparece e, a0s poucos, Aila emerge como uma resenga estranha, do lado oposto do marido e do filho: 38 mas stcavés da beleza familias havia uma vvida estranheza...2ea ‘como se alguna experiencia singular tveste vista nela, como ‘um plntor vé em seu modelo, 0 que ela era, 0 que esta Ht para'ser descoberto, Eo Lusaka, em scpredo, a pristo — sabe-se M4 onde — elu havia posado para 6 retrato de sua face oculta les tweram de reconbecé-la® Atraves dessa distncia artistica uma vivida estranheza emerge; um “eu” parcial ou duplo se emoldura em um. momento politico climatico que é também um evento histérico contingente — “uma experiéncia singular... sabe-se ld onde... ou o que havia para ser descoberto" *# Eles tiveram de reco- nhecé-la, mas o gue reconhecem nela? As palavras nao falardo ¢ 0 silencio congela-se em imagens do apartheid: carteiras de identidade, provas forjadas pela policia, fotografias para fichas de presidio, os retratos ceticu- lados de terroriscas na imprensa. Nacuralmente, Aila mio & julgada, nem pretende julgar. Sua vinganca € muito mais, sabia e mais completa, Em seu siléncio ela se torna o “totem” nio-dito do tabu da pessoa sub-africana de cor. Ela expde mundo estranho, 0 mundo “a meio caminho entre... no defi- nido" das pessoas de cor, como 9 “lugar e tempo distorcidos fem que cles — todos eles — Sonny, Aila, Hannah — viviam" © silencio que obstinadamente segue a morada de Aila transforma-se agora em uma imagem dos “intersticos’, o hibri= dismo intervalar da historia da sexualidade © da raga ‘A-necessidade do que eu fe — Bla colocou 0 contorno exterior fe cada mio, dedos estendidos e juntos, coma uma moldura dos dois lados das folhas de testemunho diante dela. Bela se colocou diante dele, para ser julguda por ele. A face oculta de Alla, 0 contorna externo de cada mio, esses pequenos gestos através dos quais cla fala, deserevem uma outra dimensio do "habitar" no mundo social. Aila, como mulher de cor, define uma fronteira que est ao mesmo tempo dentro € fora, o estar de fora de alguém que, na verdade, esti dentro, A quietude que 2 cerca, as lacunas em sua histéria, sua hesitaclo © paixio que falam entre 0 eu e seus alos — estes sio momentos em que o privado ¢ o publico se tocam em continggncis. Hles no transformam simplesmente © contetido de idéias politica; o proprio “lugar” de onde © 36 politico é falado — a esfera piiblica mesma, torna-se uma cexperigncia de liminaridade que, nas palavras de Sonny, ques- Jona o que significa falar "a partir do centro da vida." A preocupagio politica central do romance — até a emer gencia de Aila — concentra-se na "perda de absolutos", © descongelar da guerra fria, o medo de que “se nao pudermos oferecer o velho paraiso socialista em troca deste inferno capitalist, teremos nos tomado traidores de nossos irmios".* A ligho ensinada por Aila requer um movimento de afasta- mento de um mundo concebide em termos binarlos, cle uma nogio das aspiragdes do povo esboguda apenas em preto e braneo. Requer ainda um deslocamento da atengio do police como pritica pedagogica, ideolbgica, da politica como neces- sidade vital no cotidiano — 2 politica coma pesformatividade Aila nos leva a0 mundo estranho onde, escreve Gordimer, as banalidades sfio encenadas — a agitagho em torno de nas mentos, easamentos, questdes de familia com seus rituais de gobrevivencia associados a comida e vestudria.” Mas € preci ‘samente nessas banalidades que o estranho se movimenta, quando a violencia de uma sociedade raciailzada se volta de modo mais resistente para os detalhes da vida: onde voc® pode ou no se sentar, como vocé pode ou nao viver, 0 que vocé pode ou nto aprender, quem vocé pode ou nto amar. Entre 0 ato banal de liberdade e sua negagio hist6rica surge © siléncio: “Alla emanava uma atmosfera tranquilizant falatorio cla despedida cessou. Ere como se cada um desc brisse que havia entrado sem perceber em uma casa estranh era a dela; cla estava 14." Na imobilidade de Aila, de obscura necessidade, vislum- bramos © que Emmanuel Levinas descreveu magicamente como a existéncia crepuscular da imagem estética —a imagem dia arte como “o proprio evento do abscurecer, uma descida para a noite, uma invasio ca sombra".” A *completude” do estético, 0 distanciar do munclo na imagem, nilo € exatamente uma atividade transcendental. A imagem — ou a atividade metaférica, “ficcional’, do discurso — tornara visivel *uma interrupeao do tempo por um movimento que se desenrola do lado de cé do tempo, em seus intersticios’ * A complexidade desta afirmagao se torna mais clara quando eu os lembrar a imobilidade do tempo através do qual Aila sub-repticia e subversivemente interrompe 2 presenga continua da acividade politica, usando seu papel intersticial, seu mundo doméstico, tanto para “abscurecer” seu papel politico quanto para aricul-lo melhor. Ou, como em Amada, a eruprio continua de “lingua- gens Indecifraveis” ca meméria escrava obscurece a narrativa histérica do infanticidio para articular 0 ndo-dito: aquele discurso fantasmagérico que entra no mundo do 124 “pelo lado de fora” de modo a revelar o mundo transicional das conse- ‘fincas da escravicito na década de 1870, suas faces privacla © piiblica, seu pasado histérico © sua narrativa presente, ‘A imagem estétiea descortina um tempo ético de narragio porque, escreve Levinas, *o mundo real aparece na imagem como se estivesse entre parénteses'.” Como os coniornos externos das mios de Aila segurando seu enigmatico teste- munho, como o ntimero 124 da Bluestone Road, que é uma presenga totalmente apreendida, assombrada por linguagens indecifriveis, a perspectiva parentética de Levinas ¢ também uma visto ética, Ela efetua uma "externalicade do interior” ‘como a propria posicto enunciativa do sujeita histérico © narrative, "introduzindo no amago da subjetividade uma referencia radical e angrquica para 0 outro que, na verdade, cconstitui a interioridade do sujeito’.” Nao é estranho que as, metiforas de Levinas para essa singular “obscuridade” da ima- ‘gem venham daqueles lugares estranhos de Dickens — aque- les internatos poeirentos, 3 luz pilida dos eseritdrios londri- nos, 2s escuras, Gmidas lojinhas de roupa de segunda mio? Para Levinas, a “arte do romance contempori reside em sua mancira de “ver a interioridade a partir do exterior, © € este posicionamento ético-estético que nos leva de volta, finalmente, 2 comunidade do *estranho", as famosas linias Inieiais de Amada: "O 124 era malévolo. As mulheres da casa © sabiam ¢ também as crlangas." Toni Morrison quem leva mais adiante e mais a fundo esse projeto ético ¢ estético de “ver a interioridade a partir do exterior” — ditetamente no ato de Beloved nomeat seu desejo de identidade: “Quero que vocé me toque no meu lado de dentro ¢ me chame pelo meu nome." Hi uma razdo obvia pela qual um Fantasma desejaria ser percebido assim. O que € mais obscuro — e mais pestinente — ¢ como um desejo tho {timo e interior pode fornecer uma “paisagem interior Linscape} eo da meméria da escravidio, Para Morrison, € precisamente o ignificado das fronteiras historicas e discursivas da escravidio que estio em Foco, A violéneia racial € invocada através de datas histOricas — 1876, por exemplo — mas Morrison 6 um pouco apressadka ne que diz respeito aos acontecimentos “em si", passando rapid mente pelo “verdadeio significado da Lei dos Fugitivos, da ‘Taxa de Assertamento, os Caminhos de Deus, o antiescrava sgismo, a alforria, 0 voto pela cor da pele" O que deve ser suportado € 0 conhecimento da diivida que vem dos dezoito anos de desaprovagdo e vida solitiria de Sethe, seu banimento ‘no mundo “estranho" do atimero 124 da Bluestone Road, como pparia de sua comunidade pés-escravido, © que finalmente faz dos pensamentos das mulheres do 124 “pensamentos ndo- pronunctivels a serem no-ditos" € a compreensio de que as vyitimas da violencia sR0 elas mesmas *receptdculos de signifi cados": elas s20 as vitimas de medos projetados, ansiedades e dominacdes que nio se originam dentro do oprimiclo e no as prenderio ao circulo da dor. © prurido de emanciparao vem ‘com 0 conhecimento ce que a crenga da supremacia ricial "de que sob cada pele escuca havia uma selva" fol uma erenga que ceresceu, espalhiou-se, tocou cada perpetrador do mito racist, enlouqueceu-os com suas préprias inverdades, sendo enfim expulsa do namero 124 da Bluestone Road, Mas antes desta emancipagio das ideologias do senhor, Morrison insiste no penose reposicionamento ético da mae escrava, que precisa ser o lugar enunciatério para ver a inte Horidacle do mundo escravo a partir de fora — quando o "lado de fora" € 0 retorno em forma de espieito da erianga que cla assassinara, 9 dupla de si mesma, pois “cla ¢ 0 His eu sou aquele que 1 eu vejo seu rosto que & 9 meu". Qual poderia ser a ética do infantiefdio? Que conhecimento historico retorna a Sethe através da distancia estética ou do bscurecer” do evento, na forma fantasmal de Beloved, sua filha mora? Em seu belo relato sobre as formas de sesisténcia eserava em Wibin the Plantation Housebold |No Interior da Casa de luma Plantation], Elizabeth Fox-Genovese considera que 0 assassinato, a automutilagao € o infanticidio sto a dindmica Psicoldgica profunda de toca resistencia. I sua opiniao que » “essas formas extremas capturavam a esséncia da autodefinigto da muller escrava".* Além disso, vemos como esse ato tigico ¢ fatimo de violencia € executado como parte de uma lula para fazer recuar as fronteiras do mundo escravo. Diferente- mente dos atos de confrontacio contra 0 senhor ou 0 feitor que ‘exam resolvides dentro do contexto doméstico, o infanticidio cera reconhecidlo como um ate contra o sistema e, pelo menos, reconhecia a posigio legal da escrava na esfera publica, O Infanticidio era visto como um ato contra a propriedace do senhor — contra seu lucro extra — ¢ talvez isto, conclui Fox-Genovese, “Ievasse algumas cas mais desesperadas a sentir que, a0 matar uma crianga que amavam, estariam de certo modo restaurando sua posse sobre ela". Através da morte e do retorno de Beloved, é precisamente tal recuperacto que ocorre: a mfe escrava retomanda, através da presenga da crianga, © dircito de posse sobre s Esse conhecimento vem como uma espécie de auto-amor que 6 também o amor do “outro”: Eros e Agape juntos. Bum amor ido levinasiano de que a “interioridade” do sujeito dbitada pela “referencia radical e andequica ao outta", Esse conhecimento € visivel naqueles capitulos intrigantes* que se sobrepcem, onde Sethe, Beloved ¢ Denver praticam uma cetiménia em forma de fuga, reivindicando e nomeando através de subjetividades entrecruzadas ¢ intersticiais: "Beloved, ela (6) minha filha”; "Beloved 6 minha irma"; "Eu sou Beloved e cla & minha,” As mulheres falam em linguas partir do “entre-lugar entre uma e outra", que & um espaco da ‘comunidade. Blas explorum uma realidade “interpessoal”: uma realidade social que aparece dentro da imagem poética como que entre parénteses — esteticamente distanciada, contida €, lodavia, historicamente emoldurada. & difiell transmitic 0 imo € 0 improviso desses capitulos, mas & impossivel ver neles a cura da hist6ria, uma comunidade recuperada na construgio de um nome. Podemos finalmente nos perguntar: Ktico no ser ‘Quem ¢ Beloved? Agora compreendemos: ela ¢ a filha que retorna para Sethe para que sua mente ado fique mais desabrigada. 0 (Quem é Beloved? Agora podemos dizer: ela € a iema que retorna a Denver, trazendo a esperanga do retorno de seu pai, © fugitive que morreu ao tentar escapar. ‘Quem € Beloved? Agora sabemos: ekt & a filha feita de amor assassino que volta para amar, odiar e libertarse. Suas palavras si quebradas ‘como as pessoas linchadas com seus peseogos quebrados; S10 desencarnadas como as eriangas mortas que perderam suas fitas de cabelo. Mas no ba dlivida quanto a0 que suas p vras vivas dizer ao erguerse de entre os mortos apesar de sua sintaxe perdida © sua presenca fragmentada Meu rast esté vinde tenho de Wo busco.@ encoatco estou amanda tanto 0 meu rosto’ quero 9 enconto estou ammande tanto © meu rose mteu Testo escuro ests pero de maim quero 0 encontr. BUSCANDO © ENCONTRO inalizar, como fiz, com o nisho da fénix, € no sua pira, & de outra forma, retornar ao meu inicio no além. Se Gordimer & ‘Morrison descrevern © mundo hist6rico, forcosamente entrando ina casa da arte da fieg2o de modo a invadir, alarmar, divide ¢ desapropriar, elas também demonstram a compulsio con- temporinea de ir além, de wansformar © presente no "pés", fou, como eu disse anteriormente, tocar 0 lado de cé do futuro, Tanto a identidade intervalur de Aila como as vidas duplas de Beloved afirmam as fronteiras da existéncia insur- gente e intersticial da cultura, Nesse sentido, elas se aproxi iam do caminho entre polaridades raciais de Renée Green, da histéria migeante dos ingleses, eserita por Rushdie nas margens dos versos satanicos, ou da cama de Osério — A Cama — um lugar de residéncia, localizado entre 0 “estranhamento" da migragio ¢ © barraco proprio do artista metropolitano, nova-iorquino/porto-riquenho, Quando a natureza pibliea do evento social encontra © siléncio da palavra, pode ela perder sua compostura e Fecha mento histéricos? Nesse ponto, fariamos bem em recordar 0 insight de Walter Benjamin sobre 2 dialética despedagada da modernidade: "A ambiglidade ¢ a aparéncia figurativa do dialético, a lei do dialético paralisada."® Para Benjamin, essa paralisia € a Utopia; para os que vivem, como eu descrevi ‘de outra forma” que nto a modetnidade, mas nie fora dela, Co momento ul6pico niio & o horizonte de esperanga obrigat6rio, ‘Terminei esta argumentagao com a mulher emoldurada — Aila de Gordimer — ¢ a mulher renomeada —a Beloved de Morrison — porque nas casas de ambas itromperam grandes eventos mnundiais —a escravidio e o apartheid —e seu acon- tecimento foi transformado, por meio daquela obscuridade peculiar & arte, em uma segunda vinda. Embora Morrison insistentemente repita no fim de Amada, que “Esta nao € uma histéria para passir adiante”, ela o faz apenas 2 fim cle gravar 0 evento nos recdnditos mais profundos de nossa amnésia, de nossa inconsciencia, Quanclo a visibili- dade histérica ja se apagou, quando o presente do indicativo do tesiemunho perce o poder cle capturar, ai os deslocamentos da memBria e as indiregdes da arte nos oferecem a imagem de nossa sobrevivéncia psiquica. Viver no mundo estranho, encontrar suas ambivaléncias ¢ ambigtidades encenadas na casa da ficgao, ou encontrar sua separagao c divisao repre sentadas ni obra de afte, & também afiemar um profundo desejo de solidariedade social: "Estou buscando » enconto, quero 0 encontio... quero v encanto.” Esta meditagio do grande escritor guianense Wilson Havtis, sobre 0 vazio da desconfianga na textualidade da historia colonial revela a dimensio cultural e histérica daquele Terceiro Fspaco de entinciagoes que considerei a condigio prévia para a atticulaclo ca diferenga cultural. Ele 0 ve como, algo que acompanha a “assimilagio de contrarios" que cria a instabilidade oculta que pressagia poderasas mudancas cul turais. E significativo que as capacidades produtivas desse Terceiro Espaco tenham proveniéneia colonial ou pos-colo- nial. 1880 porque a disposigao de descer aquele tertitério es. ara onde guici o leitor — pode revelar que 0 reconhecimento te6rico do espago-cisto da enunciagio € capaz dle absir 0 caminho 4 conceitualizacdo de uma cultura imtemacional, baseada nao no exotismo do multiculturalismo ou na diversidade de culturas, mas na inscrigao e articulago do bibridismo da cultura. Para esse fim deveriamos lembrar que € 0 “inter” — 0 fio comtante da tradugio © da nexocagao, 0 entre-lugar — que carrega o fardo do significado da cultu Fle permite que se comecem a vislumbrar as hist6rias nacio- ais, antinacionalistas, do “povo". F, a0 explorar esse Ter ceiro Espago, temos a possibilidade cle evitar a politica dla polaridade © emergir coma os outros de n6s mesmos, trangeito — ® INTERROGANDO A IDENTIDADE FIAT FANON E A PRERROGATIVA POS-COLONIAL Ler Fanon ¢ vivenciar a nogio de divisto que prefigura — ¢ fende — a emergencia de un pensamento verdadeiramente radical que nunca vemn 3 luz sem projetar uma obscuridade incerta. Fanon é o provedor da verdade transgeessiva e wanst clonal. Ele pode ansiar pela transformagao total do Homem © da Sociedade, mas fala cle modo mais eficaz a partir das intersticios incertos dai mudanga histérica: da érea de ambivalneia entre raga € sexualidade, do bojo de uma contradigio insolGvel entre cultura e classe, do mais fundo da batalha entre repre sentagho psiquica e realidade social. Sua vor é ouvida de forma mais clara na virada subversiva de um termo familia, no siléncio de uma rupture repentina. O negro do é Nem tampouco 0 branco.' A incdmoda divisio que quebra sua linha de pensamento mantém viva a dramatic © enigenética sensagho de mudanga. Aquele alinhamento familiar de sujeitos coloniais — Negro/Branco, Fu/Outro — & perwurbado por meio de uma breve pausa e as bases tdicionais da identidade racial sao dispersadas, sempre que se descobre serem elas fundadas nos mitos narcisistas da negritude ou da supre macia cultural branea. F esta pressio palpivel da diviso e do deslocamento que leva 2 escrita de Fanon para a extrem dade das coisas — a extremidade cortante que no revela nenhuma iluminagio tltima mas, em suas palavras, “expunha uma declividade completamente nua de onde pode nascer luna auténtica sublevagao".? (© hospital psiquistrico de Blida-Joinville € um desses jugares em que, no mundo dividido da Argélia fra Fanon descobriu. a impossibilidade de sua missio como psiquiatra colonial: Se a psiquiatria € técnica médiea que tem como meta permit {que © homiem nao se sinta mais um estranho em seu ambiente, evo a mim mesmo 2 afiemacio de que o drabe, permanente. mente estrangelro em seu proprio pals, vive em um estado de absoluts despersonalizagao.. A estutura social existente 1s ‘nrgelia ert hastl a qualquer tentativa de conduzir 0 individ dle volta 40 seu devido ugar? © cariter extremo dessa alienagio colonial da pessoa _— esse fim da “idéia” do individuo — produz uma urgéncia inquieta na busca de Fanon por una forma conceitual apro- priada para o antagonismo social da relagio colonial. © corpo de sua obra fende-se entre uma dialética hegeliano-marxisia, uma afirmacio fenomenologica do Eu e do Outro ¢ a ambivae lencia psicanalistica do Inconsciente. Em sua busca desespe- nada e vi por uma dialétiea da libertagao, Fanon explora a extremidade desses modos de pensamento: seu hegelianismo devolve a esperanga & hist6ria; sua evocacao existencialista do “Eu” restaura a presenea do marginalizado; sua moldura psicanalitica damina a loucura do racisma, 0 prazer da dor, & fantasia agonistica do poder politice, ‘Ao tentar empreender essas transformagdes audaciosas, freqientemence impossiveis, da verdade e do valor, o testemunho Aspero da deslocagao colonial, seu deslocamento de tempo © pessoa, sua profanago de cultura ¢ territorio, Fanon recusa a ambico de qualquer teoria total da opressto colonial. © éeolué antilhano, profundamente ferido pelo olhar de relance de uma crianca branca amedrontada € confusa; © esteredtipo do nativo fixade nas fronteiras izantes entre barharie ¢ civilidade; o medo ¢ desejo ldveis pelo negro: "Nossas mulheres esto a mereé dos pretos...Sabe Deus como cles fazem amor" 0 profundo medo cultural do negro figurado no tremor psfquico da sexualidade ocidental — sfo esses signos e simtomas da condigao colonial que levam Fanon de um esquema conceitual a outro, enquanto a relagao cofonial toma forma nas lacunas entre eles, articulada aos embates intrépidos de seu estilo. A medida que os textos de Fanon se desenrolam, fato cientifico passa a serconfrontado pela expeniéncia das rv observagbes socioldgicas so intercakias por artefatosliterrios, © 4 poesia da libenagio & criada rente 8 prosa pesada, moa, do mundo colonizado. Qual é a forca espectiica da visto de Fanon? Ela vem, cseio, da tadigao do oprimido, da linguagem de uma conscigncia revolucionaria de que, como sugere Walter Benjamin, “o estado de emergencia em que vivemos no € a excegio, mas a regra. Temos de nos ater a um conceito de histéria que corresponda a esta visi cemergéncia é também sempre um estado de emorgéncta Ide Vir 2 tonal. A luta contra a opressto colonial no apenas muda a direcio da historia ocidental, mas também contesta sua idéia historieista de tempo como um todo progressiva ¢ ordenado. A andlise da despersonaliza¢io colonial nto somente aliena a idéia iluminista do “Homem", mas contesta também a transparéncia da realidad social Como imagem prélada do conhecimento humano. Se a ordem do historicismo ocidental € perturbada pelo estado colonial de emergéncia, mais profundamente perturbada € a representas20 social € psiquica do sujeito humano. Isso porque a prépria natureza da humanidade se aliena na condigio colonial e a partir daquela *declividade nua” ela emerge, nao como uma afiemagto da vontade nem como evocagio da lberdade, mas como uma indagagao enigmética ‘ho ccoar a pezgunta de Freud, *O que quera mulher, Fanon se posiciona para confrontar © mundo colonizado. “O que quer um homem?", indaga ele na introdugio a Brack Stin, White Masks Pele Negra, Mascaras Brancash, *O que deseja © homem negro?" ‘A esta indagagio carregada, onde a aliens inetde sobre a ambivaléncia da identiicagio psiquica, Panon responde com uma encenagio angustiante de auto-imagens: 10." Eo estado de 10 cultural Eu tnha de alae © bomen branco nos clos Ua psa desconlcido ine oprimia, No mundo branco 0 homem de cor enconua dif Cuklades no devenvolvimento de seu esqueami comporat.. Eu fa staeado por tints, canibalismo, deficlénca intelectual, fe tichismo, deficléneiss racais..Teansporte-ne para ben Longe ‘de minha prspria presenga...O que mais me restava senio uma tama exeisfo, uma hemorragia que me manchava po de sangue negro De dentro da mesifora da visio que compactua com uma metafisica ocidental do Homem, emerge 0 deslocamento da relagio colonial. A presenga negra atravessa a narrativa reptesentativa do conceito de pessoa ocidental: seu pasado amarrado & taigocitos estereétipos de primitivismo e dege- erage nfo produziri uma histéria de progresso civil, um ‘espaco para 0 Socius, seu presente, desmembrado ¢ desloca: do, no contera a imagem de identidade que @ questionada na dialétien mente/corpo e resolvida na epistemologia da aparéncia € realidade. Os olhos do homem branco destro- ‘gum 0 corpo do homem negro e nesse ato de violéneia episte molégica seu proprio quadro de referéncia & transgredido, seu campo de visio perturbado, *O que quero homem negro?", insiste Fanon, ¢, 20 pric vilegiar a dimensio psiquica, ele nto apenas muda o que entendemos por demanda politica como transforma os pro- prios melos pelos quais zeconhecemas e identificamos sua agéncia bumana, Fanon no esté principalmente levantando a questo da opressio politica como violagao dle uma esséncia humana, embora ele caia em uma lamentagio desse tipo cm seus momentos mais existenciais. Fle ndo esti levantande 2 questto do homem colonial nos termos universalistas do humanista-liberal (De que forma o colonialis os Direitos do Homem?), nem levania uma qu gica sobre 0 ser do Homem (Quem € 0 homem colonial alienado?). A pergunta de Fanon ¢ enderegada nto a uma nocio unificada de hist6ria nem a um conceito unitario de homem. Uma das qualidades originats ¢ perturbadoras de Pele Negra, Mascaras Brancas € historicizar raramente a experi colonial, Nao hi narrativa mestia ou perspectiva realista que forneca um repertério de fatos socials © histéricos contra os conceitual a outro, enquanto a relagao colonial toma forma ras lacunas entre eles, articulada aos embates intrépidas de seu estilo. A medida que os texios de Fanon se desearolam, 0 fato cientfico passa a ser confiontado pela experiencia das suas; observagdes soctoléigicas sia intercaladas por artelatos literrios © a poesia da libertacio € criada remte A prosa pesada, moral, do mundo colonizado, Qual & 2 forga especttica da visto de Fanon? Ela ver, crefo, da tradicao do oprimido, da linguagem de uma conscigacia revolucioniria de que, como sugere Walter Benjamin, “0 estado de emergéncia em que vivemos nio é a excegio, mas a regra. Temos de nos ater a.um conceito de historia que corresponda a esta visio.” E o estado de emergéncia & também sempre um estado de Vir A tonal. A luta contra a opressdo colonial nao apenas muda a direcao da histéria ocidental, mas também contesta sua idéia historicista de tempo como um todo progressivo € ordenado. A anflise da despersonalizacio colonial ato somente aliena a idéia jluminista do *Homen", mas contesta também 2 transparéncia da realidade social Como imagem pré-dada do conhecimento humano. Se a ordem do historicismo ocidental ¢ pestusbada pelo estado colonial de emergéncia, mais profundamente perturbada é a representacio social € psiquica do su Porque a propria natureza da humanidade se aliena na condigo colonial ¢ a partir daquela “declividade nua” la emerge, nao como uma afirmagao da vontade nem como evocacio da liberdade, mas como uma indaggagao enigmatica ‘Ao ecoar @ pergunta de Freud, “O que quer a mulher?", Fanon se posiciona para confrontar 0 mundo colonizado, "O que quer um homem, indaga ele na iuroducao a Black Skin, White Masks Wele Negra, Miscaras Brancash *O que deseja © homem negro? A esta indagagio carregada, onde # alienagio cultural incide sobre @ ambivaléneia da idenuificagto psiquiea, Fanon responde com uma encenagao angustiante de auto-imagens: smengéncia de > humano. Isso n 1 sna de char o haem braaco ace ols Um peso deacon ‘xe oprimia, No mondo branco © homiem de cor encanta die Cuklades no desenvolvimento de seu ecquema corporal. Ei fra atzeado por tants, canibalismo, defieneia intelectual, fe tichismo, defieitacias rasa. Traneporteime part bem lenge de minha prépria presenca.. O que mais me restava sendo uma amputacio, uma excisto, uma hemortagia que me manchava todo 0 corpo de Singue nepic De dentro da metifora da visto que compactua com uma metafisica ocidental do Homem, emerge o destocamento da relagao colonial. A presenca negra atravessa a narrativa representativa do conceito de pessoa ocidental: seu passado amarrado a traigoeiros esteredtipos de primitivismo © dege- neragio no produzir’ uma hist6ria de progresso civil, um ‘espaco para 0 Soctus, seu presente, clesmembrado ¢ desloca- do, no conters a imagem de identidade que € questionada nna dialética mente/corpo € resolvida na epistemologia da aparéncia e realidade, Os olhos do homem branco destro- sam 0 corpo do homem negro e nesse ato de violencia episte mol6gica seu proprio quadro de referencia & transgredido, seu campo de visto perturbado. *O que quero homem negro?*, insiste Fanon, €, a0 pri vilegiar a dimensio psiquica, cle no apenas muda o que entendemos por demanda politica como transforma os pré- prios mefos pelos quis reconhecemos ¢ identificamos sua ‘agéncia bumana. Fanon nao esta principalmente levantando a questo da opressio politica como violae humana, embora ele caia em uma lamentagao desse tipo em seus momentos mais existenciais, Ele no est levantando a questao do homem colonial nos termos universalistas do hurmanista-liberal (De que forma o colonialisme nega (08 Direitos do Homem®), nem levanta uma questio ontolé- gica sobre © ser do Homem (Quem € 0 homem colonial allenado?). A pergunta de Fanon & enderecada nto a uma no¢ao Unificada de histéria nem a um conceito unitério de homem Una clas qualidades originals € perturbacoras de Pele Negra, Mascaras Brancas ¢ historicizar raramente a expe! colonial, Nao ha narativa mestra ou perspectiva fornega um repertério de fatos sociais € histOricos contra os 1% quais emergiriam os problemas da psique individual ou cotetiva. Tal alinhamento socioldgico tradicional do Eu ¢ da Sociedade ou da Hist6ria € da Psique torna-se questionivel 1a Identificagto que Fanon faz do sujeito colonial que & his. torieizado ma associagio heterogenea dos textos da historia, da literatura, da ciéncia, do mito. 0 sujeito colontal é sempre “sobredeterminado de fora”, escreve Fanon.’ £ através da imagem ¢ da fantasia — aquelas ordens que figuram {ransgressivamente nas bordas da histéria e do inconsciente — que Fanon evocs a eondic2o colonial de forma mais profunda Ao articular @ problema da alienagao cultusal colon 1a linguagem psicanalitica da demanda e do desejo, Fanon {questiona radicalmente a formago tanto dla autoridade indi vidual como da social na forma como vém a se desenvolver no discurso da soberania soctal, As virtudes sociais da racions: lidade historica, da coesio cultural, da autonomia da consci- ncia individual, assumem uma idlentidade imediata, ut6pica, com os sujeitos aos quais conferem uma condicio civil. © estado civil & a expressio tiltima da tendéncia inata ética © racional da mente humana; o instinto social € © destino progressive da natureza humana, a transicao necessiria da Natureza a Cultura, O acesso direto dos interesses individuals A autoridade social € objetificado na estrutura representativa de uma Vontade Geral — Lei ou Cultura — onde Psique e Socieds- de se espelham, traduzindo iransparentemente sua diferen: (ca, sem perela, em uma totaldade histérica. As formas de alie- hago € agressio psiquica © social — a loucura, © dio a si mesmo, a traigio, a violéncia — nunca podem ser reconhiecidas como condigdes definidas © constitutivas da autoridade civil, ou como os efeitos ambivalentes do préprio instinto social. Hlas sio sempre explicadas como presencas esiringeitas, odluses do progresso historico, a forma extrema de per- cepgdo equivocada do Homer, Para Fanon, tal mito do Homem e da Sociedade ¢ fundamen: talmente minado na situagio colonial. A vida cotidiana exibe luma “constelagio de delirio' que medeta as relugoes sociais ormais de seus sujeitos: “O preto escravizado por sua infe- Floridade, 0 branco escravizado por sua superioridacle, ambos se comportam de acordo com uma orientagio neurdtica.”* 4 ‘A demanda de Fanon por uma explicago psicanalitica emerge das reflexdes perversas da viewde civil nos atos alicnantes do governo colonial: a visibilidade da mumificagio cultural rna ambigio declarada do colonizador de civilizar ou moder- rnizar 0 nativo, que resulla em “instituigdes arcaicas inertes [que fancionam] sob a supervisio do opressor como uma ca ricatura de instituigoes anteriormente Férteis"? a validade da violencia na propria definicAo do espago social colonial; a viabilidade das imagens febris, fantasmaticas, do ddio racial, que serio absorvidas ¢ encenadas na sabedoria do Ocidente. Essas intexposigdes, na verdad colaboragdes, da violencia politica e psiquica no interior da virtude civiea, a alienagao no interior da identidade, levam Fanon a descrever a cisio do espago da conseiéacia e da soctedade coloniais come mar cada por um “delitio maniquessta” A figura representativa dessa perversio, como pretendo sugerit, € 4 imagem do homem pés-iluminista amarrado a, ndo confrontade por, seu reflexo escuro, a sombra do hor ‘mem colonizado, que feade sua presenga, distorce seu con- torne, rompe suas fronteiras, repete sua agio 3 distancia, perturba e divide o proprio tempo de seu ser. A identificagao ambivalente do mundo racista — movendo-se em dois planos sem ser de modo algum incomodada por ele, como diz Sartre sobre a consci@neia anti-semitica — gira em torno da idéia do homem como sua imagem alienada; nto 9 Eu ¢ 9 Outro, mas a alteridade do Eu ingcria no palimpsesto perverso da identidade colonial, E € aquela figura bizarra do descjo, que se fende a0 longo do cixo em torno do qual gira, que compele non a fazer a pergunta psicanalitica do desejo do sujeito & condigao histérica do hiomem colonial “O que € freqdentemente chamado de alma negra € um artefato do homem branco," esereve Fanon.” Esta transfe- réncla diz ainda outra coisa, Ela revela a profunda incerteza psiquica da propria relagio colonial: suas representagdes fen: dias sto o paleo da divisio entre corpo ¢ alma que encena © anificio da identidade, uma divisto que atravessa a fragil pele — negra e branca — da auoridade individual ¢ social Emergem dai trés condigoes que cstao subjaccntes a uma compreensiio do processo de identificagao na analitica do desejo. Primeira: existir € see chamado A existéncia em relacao a uma alteridade, seu olhar ou locus, £ uma demanda que se estende em dirogio a um objeto externa 6, coma escreve Jacqueline Rose, “f 2 relaca0 dessa demanda com o lugat do ‘objeto que ela reivindica que se toma a base da identifica- cao." ste processo ¢ visivel na iroca de olhares entre o ative ¢ 0 colono, que estrutura sua relacho psiquict na fantasia, parandide da posse sem limites e sua linguagem familiar de reversio: “Quando seus olhares se encontram, ele [0 eolonol verifica com amargura, sempre na defensiva, que ‘Bles que- rem tomar nosso lugar’ E é verdade, pois nlo hé um native que nio sonhe pelo menos uma vez por dit se ver no lugar do colono." # sempre em relagio 20 lugar do Outro que o desejo colonial ¢ anticulado: o espace fantasmatico da posse que nenhum sujeito pode ocupar sovinho ou de modo fixo €, Portanto, permite o sonho da inversio dos papéis. Segunda: 0 proprio lugar da identificagio, retido na tensto da demanda e do desejo, & um espago de cio. A fantasia do native € precisamente ccupar © lugar do senhor enquanto. ‘mantém seu lugar no rancor vingativo do escravo. “Pele negra, miscaras brancas” no € uma divisto precisa; & uma imagem duplicadora, dissimuladora do set em pelo menos dois lugares a0 mesmo tempo, que torna impossivel para o éoolué desva lorizado, insaciivel (um sbandono neurético, afiema Fanon) aceitar o convite do colonizador & identidade: "Voc® € um médico, um escritor, um estudante, voce & diferente, voce € um de nos.” E precisamente naquele uso ambivalente de “diferente” — ser diferente daqueles que sao cliferentes faz de voc 0 mesmo — que o Inconsciente fala da forma da alteridade, a sombra amarrada do adiamento ¢ do desloca- mento. Nio € 0 Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distancia entre os dois que constitui figura da alteridade colonial — 0 antificio do homem branco inscrito no corpo do homem negro. E em relaco a esie objeto Impossivel que emerge o problema liminar da identidade colonial e suas vicissitudes. Finalmente, a questao da identificagao nunca € a afire magio de uma identidade pré-dada, nunca uina profecia autacumpridora — € sempre a produgao de uma imagem de identidade e a transformagao do sujeito a0 assumir aquela imagem. A demanda da identificagio — isto 6, ser para um Outeo — implica a representacao do sujeito na ordem diferenciadora 16 da alteridade. A identificaga0, como inferimos dos exemplos precedentes, € sempre 0 retorno de uma imagem de identi- dade que waz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem, Para Panon, como para Lacan, os momentos primérios dessa repeticuo do eu residem no desejo do olhar € nos limites da Jinguagem. A *atmosfera de certa incerteza" que envoive o corpo, ‘sua existéncia e 0 ameaga de desmembramento, 0 ‘Ougam o meu amigo Adil Jussawalla, poeta de Bombaim, ‘que escreve sobre a “pessoa desaparecidla” que assombra a identidade da burguesia pés-colonial: No Satan ‘warmed in tbe elecric coll of bis ereanures ‘or Gunga Din tell rae bi come before yo To soe an invisible man ora missing person, ‘rust mo Bg. Lit. That ‘Pius bim up, narrows bis eves, scratches bis famgs. Caliban ctl not I Dut faintly penctied bebind a shire Stage of no sensational paint fangs eascete. {Wenham Sati aquecido nas espirais elétricas de suas eraturas ‘ou Gunga Din ies fazer com que ele venha até voce. Para ver um omen iovisivel ou uma pessoa desaparccida, nfo confle na Lit Ing. Ela © dilata com seu sopra, esrelt-the os alhos lixa suns presas, Caliba ainda no é Taso Mas levemente delincado awrés de uma coms, Selvagem sem pintura berrante preses anladas Enquanto essa vox va ougam 0 seu eco nos versos de uma mulher negra, descendente de escravas, que escreve sobre a diispor We arrived in the Northern Hemisphere when summer sss stint way ‘running from the flames that it the sky ‘over dhe Plantation We were a sirageie bunch of immigrants tna bly white landscape One day ttearat Invisible Ness, was called. Tebink w worked ‘as ener now you look ut never see me. Only my eyes wl remain to watch and to base, and to nurs your dreams to cha. Ichegamos 80 HemisGrio Nome quando o verso estava a caminho corendo das chamas que tuminavan 0 eéu sobre propriedade colonial ramos um bando de imigeantes em desordem fem uma paisagem branca como lin. Um dia aprendi Tnvisbil-Dade, era seu nome, Ache que fanclonou pois ainda apora vox 6 meus olhos ficardo para vigiar © assombear © taasformar seus soahos fem ros." 5 olham Fnquanto essas imagens se dissolvem € os olhos vazios mantém incessantemeate seu olliar ameagador, ougam finale mente a tentativa de Edward Said de historicizar seu caos de identidade: um aspecto do mundo eletsnico, pos-maderno, & que tem havido um fortalecimenta dos esteredsipos através dos quals © Oriente visto..Se 0 mundo se tornou imediatamente access vel 2 ui cidadio oeidental vivendo.na ers da cletrnica, 0 Oriente também se aproximou mais dele e & agora menos um mito, talves, do que um lugar cruzado por interesses ociden tais, especialmente americans.” Uso estes retratos pés-coloniais porque eles convergem ‘no ponto de fuga de duas tradigdes familiares do discurso da Identidade: a tradiga0 filosofica da identidade como processo de auto-reflexdo no espelho da natureza (humana) € a visio antropolégica da diferenga da identidade humana enquanto localizada na divisto Natureza/Cultura. No texto p6s-colonial, © problema da identidade retorna como um questionamento persistente do enquadramento, do espago da representagio, onde a imagem — pessoa desaparecidla, ollio invisivel, este reétipo oriental — € confrontada por sua diferenga, sew Ou tro, Este allo & nem a esséncia vitrea da Natureva, para usar a imagem de Richard Rorty, nem a vor pesada da “interpelagio Ideoldgica", como sugere Louis Althusser. © que esté encenadlo de forma Qo grifica no momento da identifleagio colonial € a cist do sujelto em seu lugar histd- rico de enunclagio: “Nenhum Sata.../ ou Gunga Din/ ied fazer com que ele venbs até voce/ Para ver um homem invisivel ou uma pessoa desaparecida,/ no confie em menbuema Lit, Ing eratura Inglesal” (grifos meus). © que estas negacdes repeti- das da identidade dramatizam, em sua clisao do olho vi dente que deve contemplar o que est’ desaparecido ow Invisivel, é a impossibitidade de reivindicar uma origem para (© Eu (ou 6 Outro) centro de uma tradigfio de representagio que concebe a identidade como a satisfagio de um objeto de visto totalizante, plenitudinario. Ao romper a estabi lidade do ego, expressa na equivaléncia entre imagem identidade, a arte secrets da invisibilidade da qual fala 4 poeta migrante muda os préprios termos de nossa percep- eo da pessoa Esta mudanga é precipitada pela temporalidade peculiae na qual 0 Sujeito no pode ser apreendido sem a auséncia ou » invisibilidade que o constitul — “pois ainda agora voces colham, mas nunca me véem” — de modo que o sujeito fal, € € visto, de onde ele ndo esti; ¢ a mulher migrante pode subverter a satisfugle perversa do olhar racista ¢ machista que denegava sua presenga, apresentando auséncia ansiosa, um contra-olhar que devolve © olhar discriminatGrio que nega sua diferenga cultural e sexual © espaco familiar do Outro (no processso de identifica Gio) desenvolve uma especificidade historica © cultural grifica na cisio do sujeito migrante ou pos-colonial. Em lugar daquele “eu” — institueionalizado nas deologias vislonsirias, autorais, da Lit, Jng. ou na nogao de “experiéncia” nos relatos ‘empiristas da historia da eseravidaao — emerge o desafio de ver © que & invisivel, o olhiar que mo pode “me ver" certo problema do objeto do olhar que constitui um referente problemitico para a linguagem do Eu. A elisio do olfo, representada em uma narrativa de negacio € repeti ndo,.. do... nunca — insiste que a frase da identidade nao pode ser pronunclada, exceto se se coloca 0 olho/eu [eye/l ‘na Impossivel posigao da enunciagao. Ver uma pessoa desa- parecida ou olhar para a lavisibilidade & enfatizar a demands rransitiva do sujeito por um objeto direwo de auto-reflexio. um ponto de presenca que manteria sua posi¢a0 enunciaté- tia peivilegiada enquanto sujeito. Ver uma pessoa desa- parecida € transgredir essa demanda; 0 “eu” na posigio de dominio é, naguele mesmo momento, o lugar de sua auséncia, sua re-apresentac do olho através do som do significante no instante em que © desejo escdpico (olhar/ser olhado) emerge e & rasurado na simulagao da escrita 10. Testemunhamos a alienago ‘But faintly pencilled bebind a shirt, ‘trendy jacket oF te It be catches your ey, hel come seaming at yu Hike a et — svage of na sensational pata, Fangs cancelled 80 ltfas levemente delinesdo paleté ou geavata da moda 30 0 obhar de cle voard aos gritos para cima de vocé ~ felvagem sem pinturs Berrante, resis anuladae] Por que a pessoa delineada em trago leve deixaré de chamar sua ateng0? Qual é 0 segredo da Invisibilidade que permite 2 mulher migrante olhar sem ser vista? (© que se interroga nfo € simplesmente a imagem da pessoa mas o lugar discursivo e disciplinar de onde as questoes de identidade so estrarégica ¢ institucionalmente colocadss. ‘Ao longo do poema “voce” € continuadamente posicionado rho espago entre uma série de lugares contradit6rios que coe: xistem, até voc® se encontrar no ponto em que 0 estere6tipo orientalista & evocado e rasurado ao mesmo tempo, no lugar em que 4 LHL Ing. & enistell na mimica ixGniea de sua repetigho indo-inglesa. Esse espago de reinscrigio deve ser pensado de fora daquelas filosofias metafisicas da auto-suspei onde a alteridade da identidade é a presenga angustiada dentro do Eu de uma agonia existencialisia que emerge quando se olha perigosamente através de um vidro escuro, © que permanece profundamente nio-resolvido, até sasurado, nos discursos do pés-estruturalismo 6 aquela perspectiva de profundidade através da qual a autenticidade da identidade vem a ser refletida nas metiforas vitreas do espelho e suas nacrativas miméticas ou realistas. Mover 0 enquadeamento da identidade do campo dle visio para o cespago da escrita pde em questio a terceira dimensio que dé profundidacle & representagao do Eu © do Outro — aquela profundidacle de perspectiva que os cineastas denominam 2 quarta parede © que 05 teéricos lteririos deserevem como a transparéncia das metanarrativas realistas. Barthes diagnostica isso de modo brilhante como effet du réel, a “dimensito profunda, geolégica”™ da significacto, alcancada pela detengao do signo lingiistico em sua Fangio simbélica, © cespago bilateral da consciéncia simbélica, escreve Barthes, privilegia massivamente a semelhanga, constr6i uma relagao ‘analdgica entce signilicante ¢ significado que ignora a questao ‘da forma e cria uma dimensio vertical dentro do signa. Neste esquema, o significante € sempre pré-determinado pelo significado — aquele espago conceitual ou real que # colocado anteriormente ¢ de fora do ato da sigailicagio. Do nosso ponto de vista, esta verticalidade € significativa pela luz que projeta sobre aquela dimensdo de profundidade que 42 Hinguayem da Identidade seu senso de realidacle — uma medida do ‘me/mim”, que emerge do reconhecimento de minha interioridade, da profundidade do meu carat da minha pessoa, para menclonar apenas algumas das qual. dades através das quais normalmente articulamos nossa autoconsciéncia, Minha argumentagio sobre a imporsancia da profundidade va representacao de uma imagem unificad do eu € corroborada pela mais decisiva e influente formula¢io acerca da identidade pessoal na tradiga0 empirista inglesa. 5 famosos critérios de Joh Locke para a continuidade da consciéneia poderiam perfeitamente ser lidos no regi simblico da semethanga e da analogia, Iss0 porque a simi laridadle de um ser racional requer urna conscigneia do passado que € crucial para x urgumentagio— "aa medida em que esta consciéncia pode ser ampliada para frds, até uma acio ou pensamento passado qualquer, na mesma medida se estende a identidade daquela pessoa” — ¢ € precisumente a terceira Gimensio unificante. A agencia lagencyl da profundidade retine om uma relagio analdgica (negadora das diferencas que constroem a temporalidade ¢ a sigaificagao) “aquela mesma conscigncia que une aquelas agdes dista mesma pessoa, nio importa quo substdncias contribuiram para sua producao"” (grifo meu) A descrigiio de Barthes do signo-como-simbolo € convent- tentemente analoga & linguagem que usamos para designar a identidade, Ao mesmo tempo, ela langa luz sobre os conceitos lingGisticos concretos com os quais podemios aprender como a linguagem da pessoalidade vem a ser investida com uma visualidade ou visibilidade da profundidade. Isto torna 0 momento de autoconsciéncia simultaneamente refratado © transparente; faz também com que quesiao da identidade paire sempre de forma incerta, tenebrosa, entce sombra € substincia, A conseiénei dimer bolica di ao signo (elo Eu) uma o de autonomia ou isolamento “como se ele estivesse sozinho no mundo", privilegiando uma individualidade & um cariter Unitério cuja integridade € expressa em uma certa riqueza de agonia € anomia, Barthes chama a isso prestigio mitico, quase totemico em “sua forma [que é] constantemente excedida pelo poder ¢ movimento de seu contetido; ... bem ‘menos uma forma codificada de comunicagao do que um ins- trumento (afetivo) de panicipagio”.* sta imagem da identidade humana e, centamente, a iden tidade humana como imagem —ambas molduras ou espe- Jhos familiares do eu [selfaood que fala das profundezas da cultura ocidental — estio inscritas no signo da semelhanca. ‘A telagao anal6gica unifica a experiencia de autoconseiéncia ao encontrar, dentro do espelho da nawuseza, # certeza sim Doliea do signo da cultura baseada “em uma analogia com a compulsao a crer quando fita um objeto". Isto, como escre- ve Rorty, € parte da obsessio do Ocidente com 0 fato de que nossa rela¢lo primaria com os objetos € com nds mesmos aniloga 4 percepcho visual, Entre essas representagaes sobressai simbélica do signo. Ela demarca o espaco discursive do qual emerge O Bu verdadeiro Gnicialmente como assercao da autenticidade da pessoa) para, em seguida, por-se a revesberar — 0 Bu verdadeiro? — como questionamento da identidade. ‘eflexiio do eu que se desenvolve na consciéneia Meu propésito aqui € definir o espago da inscriglo ou da escrita da identidade — para além das profundezas visuais do signo simb6lico de Barthes. A experiéncia da auto-imagem ‘que se dissemina vai além da representaca0 como consciencla, ialogica da semelhanea. Isto nao & uma forma de con- tradigio dialética, como a consciéncia antagénica de senhor f escravo, que possa ser sublimada e transcendida. O impasse ou aporia da consciéncia, que parece ser a experiencia p6s-moderna por exceléncia, é uma estratégia peculiar de duplicacao, Cada vez. que o encontro com a identidade ocorre no ponto em que algo extrapola o enquadramento da imagem, ele escapa A vista, esvazia o eu como lugar da identidade © da autonomia € — o que € mais importante — deixa um rasiro resistente, uma mancha do sujeito, um signo de resistencia J4 no estamos diante de um problema ontoldgico do ser, 8 mas de uma estratégia discursiva do momento da interro- ‘ga¢lo, um momento em que 2 demanda pels identificagao tomna-se, primariamente, uma reacio a outras quesioes de sig~ nificag2o e desejo, cultura € politica Em vez da conscigncia simbélica que da ao signo da identi dade sua integridade ¢ unidade, sua profundidade, nos depa- amos com uma dimensio de duplicag0, uma espacial sujeito, que € oclufdo na perspectiva ilusoria do que deno- minei a “terceira dimensao" do enguadramento mimético ou imagem visual da identidade. A figura do duplo — para a qual me dirijo agora — nao pode ser contida no interior do signo analégico da semelhanga; como disse Barthes, isto fez com que se desenvolvesse sua dimensio tot@mica, vertical, justamente porque *o que the interessa no signo € 0 signifi= cado; © significante & sempre um elemento determinado" Para o discurso pés-estruturalista, a prioridade (e 0 jogo) do, significante revela o espaco da duplicagao (e no da profu didade), que € o proprio prinefpio articulador do discurso. através daquele espago da enunciagio que os problemas do sentido e do ser penetram nos discursos do pés-estruturalismo como problematica da sujeigio © da identificagao. odo © que emerge nos poemas citados acima, como 0 delinea- mento do palets e gravata da moda, ou © sinisiro, vingativo olho descncarnado, nao deve ser lido como revelagao de iguma verdade suprimida da psique/sujelto pés-colonial, No mundo de inscrigdes duplas em que entramos agora, nesse cespago da escrita, nfo pode haver tal Imediagao de uma pers- pectiva visualista, nenhuma epifania face-a-face a0 espelho da natureza. Em um nivel, o que se apresenta 2 voce, leitor, no retrato incompleto do burgués p6s-colonial — que lembra estranhamente o intelectual metropolitano — 6 a ambiva- Iéncia de seu desejo pelo Outro: Voct! hypocrite lecteur! ‘mon semblable, — mon freret Aquela perturbagdo do seu lar voyeurista encena a complexidade ¢ as contradigdes de seu desejo de ver, de fxar a diferenga cultural em um objeto abrangivel, visivel. O desejoy pelo Outro € duplicado pelo desejo na linguagem, que fende 4 diferenga ence Eu e Quteo, tornando parciais ambas as posigdes, pois nenhuma & auto-suficiente, Como acabei de a ‘ \ mostrar no retrato da pessoa desaparceida, a propria questio da idemificacio 86 emerge no infervalo entre 2 recusa © a Gesignacao. Bla & encenada na luta ag6nica entre a demanda epistemal6gica, visual, por um conhecimento do Outro ¢ sua representacio no ato da articulagao e da enunciacao. tha, um neqra.. Mamie, oha negro! Estox com medo, Nao pude mals rt, porque eu [i sabla onde havia lendas, hstorise, istérla, ¢, cima de tudo, a bororiidade... Eno, atacado em divorsos pontos, @ esquema corporal desmoronou, Seu higartomado por um esquema racial epilérmica.. Je ABO fra uma queso de esr conseiente do mew compo na terccira pessoa, miss em uma pessoa tipl.EU era responsive! por riew corpo, por minha raga, por meus ancestral Pele Negra, Méscaras Brancas, de Fanon, revela a duplicagio da identidade: 2 diferenga entre a identidade pessoal como indicaglo da realidad ou intuigio do ser © 0 problema psica- ralitico da identificagio que sempre evita a quesito do seit +O que quer um homem2* A emergéncia do sujeito humane ‘como social e psiquicamente legitimado depende da nogasdo de uma narrativa origindria de realizagio ou de uma coinci- déncia imaginaria entre interesse ot instinto individual © a Vontade Geral. Kssas identidades bindrias, bipartidas, funcio- ram em uma espécie de reflexo narcisiea do Um no Outro, ‘confrontados na linguagem clo desejo pelo processo psicanae Iitico de idemuificagao. Para a identificagao, a identidacle nunca & uma priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre © proceso problemitico de acesso a uma imagem da totali= dade, As condig6es discursivas dessa imagem psiquica da identificagdo sero esclarecidas so pensarmos na arriscada perspectiva do pr6prio conceito da imagem, pois a imagem como ponto de identificagao — marca o hugar de uma ambi- valencia. Sua representagao € sempre espacialmente fendida cla torna presente algo que esti ausente—e temporalmente adiada: € a representagao de um tempo que esti sempre em ‘outro lugar, uma repeticzo. ‘A imagem é apenas e sempre um acessério da autoridade da identidade; ela nto deve nunca ser lida mimeticamente como aparéneia de uma realidade. © acesso 3 imagem da identidade 56 € possivel na negacdo de qualquer idéia de originalidade cou plenitude; o proceso de deslocamento e diferenciagte (auséncia/presenca, representacio/repetigao) torna-a uma realidade liminar. A imagem é a um s6 tempo uma substituiga0 metaforica, uma ilusao de presenga, e, justamente por isso, luma meroninmia, um signo de sua auséncla © perda. # precisa mente a partir dessa extremidade do sentido e do ser, a partir dessa fronteira deslizante de alteridade dentro da identidade, que Fanon pergunta: *O que quer um homem negro” ‘Quando encontra a resstéacla do outro, a autoconscicta passa por uma experiéncia de desefo... Assim que passo 2 desejar, eco pars ser considerado. Ni estou simplesmente aqui e agora, felado, coisflerdo, Eu s0u a favor de outro hugar e de otra ‘ois. Bxijo que se tome conhecimento de minha atividade ne fadora na medida em que persigo algo que nao vida Fu ocupava 0 espago, Mavia-me na direcao do outro... © 0 outro evanescente, hostil, mas nto opaco, tamsparente, sem fesae I, decapstecew. Nawsoa Daquele esmagador vazio da nfusea, Fanon constr6i sua resposta: 0 homem negro quer © confronto objetificador com a alteridade; na psique colonial hi uma negagao inconscieate do momento negador, fendente, do desejo. O lugar do Ouro no deve ser representado, como as vezes sugere Fanon, cor tum ponte fenomenolagice fixe opasto a0 eu, que representa, uma consci@ncia culturalmente estrangeira. © Outro deve ser visto como a negagio necessiria de uma identidade primordial — cultural ou psiquies — que introduz o sistema de diferenciagao que permite ao cultural ser significado como realidade linguistica, simbéliea, hist6rica. Se, como suger, 0 sujeito do desejo nunca simplesmente um Bu Mesmo, entic o Outro nunca é simplesmente um Aguile Mesmo, wina frente de identidade, verdade ou equivoco. Como principio de identificacao, © Outro outorga uma medida de objetividade, mas sua representagio — seja cla 0 processo social da Lei out 0 processo psiquico do Edipo — & sempre ambivalente, desvelando ums falta. Por exemplo, a istingZo comum, usual, entre a letra e o espirito da Lei poe a nu a pr6pria alteridade da Lei; a ambigua deen cazenta entre a Justica e 0 procedimento judicial é literalmente, um, 26 conflito de juizo. Na linguagem da psicandlise, a Lei do Pai Gu 2 metifora paterna nao pade ser tomada a0 pé da letra ria € um processo de substituigao © troca que inscreve um ugar normative, normalizador, para o sujeito; porém, esse acess metafGrico identidade € exatamente o lugar da pro picto e da cepressio, um conflito de autoridade, 4 identifica ‘20, como € pronunciada no desejo do Outro, é sempre uma iquestio de interpretacio, pois ela € um encontro furtivo entre mim ¢ um si~prOprio, a elisio da pessoa € do lugar. Se a forge diferenciadora do Outro € © processe de signi cago do sujeito na Hnguagem e a objetificagio da socieds de na Lei, entao como pode o Outro desaparecer? Pode 0 desejo, 0 espirito motor do sujeito, jamais evanescer? uw A-excelente, embora criptica, sugestio de Lacan de que “0 Outro é uma matriz de dupla entrada" deveria ser compreendida como a rasura parcial da perspectiva de profundidade do signo simbélico; através dla cizculagaio do significante em sua duplicacio e deslocamento, o significante io permite 20 signo nenhuma divisto reeiproca, bindria, de forma/conteddo, superestrutura/infra-estrutura, eu/outro. E somente pela compreensao da ambivalénca e do antagonismo do desejo do Outro que podemos evitar a adogio cada vex mais ficil da nogio de um Outro homogeneizado, para uma politica celebratéria, oposicional, das margens ou minorias. A atwagio da duplicidude ou da cisdo do sujeito & enconada na eserita dos poemas que citei; isso fica evidente no jogo ‘com as figuras metonimicas do “desaparecido” e da “invisibi- em tomo das quais gira seu questionamento da iden lidade. Articula-se naquelas instancias interativas que simul: taneamente marcam a possibilidade ¢ a impossibilidade da ‘dentidade, a presenga por meio da auséncia. “Apenas meus olios permanecerio para vigiae e assombrar", avisa Meiling Jin, enquanto aquele ameagador objeto parcial, 0 olho desencamado —o mau olho [mau-olhado, evil eyel—vorna-se ‘© sujeito de um violento discurso de restentiment. Aqui, uma ira fantasmitica e (preyfigurativa rasura as identidades natu- ralistas do Eu e do Nos que narram uma historia mais convencional, até mesmo realista, de exploragio colonial & racismo metropolitang, dentro do poema © momento de visio que esta retido no mau olho [mau-olhadol inscreve uma atemporalidade, ou um congela- mento do tempo — "permanece/para vigiar € assombrar” — que s6 pode ser representado na destrui¢ao da profund dade associada com o signo da consciéncia simbolica, & uma profundidade que vem daquilo que Barthes descreve como a relagio analdgica entre forma superficial « gigantes- co Abgrundl a “relagho entre forma e conteto lenquantel incessantemente renovada pelo tempo ¢histéria), a superes- trutura subjugada pela infra-estrutura, sem que jamais scja mos capazes de aprender a estrutura em si” Os olhos que restam — os olhos como uma espécie de residwo, produzindo um processo iterative — nao podem ser parle desse renovar copioso e progressivo do tempo ou da historia. Eles sao 0s signos de uma estrutura da eseriza da histéria, uma bistéria das potticas da disspora pés-colonial, que a consciéncia simbalica jamais poderia aprender. Mais, significativamente, esses olhos parciais testemunham a escrita de uma muller sobre a condi¢a0 pés-colonial. Sus circulaga0, © repeti¢fo frustram tanto © desejo voyeurista diferenga sexual como 0 desejo fetichista de esteredtipos racistas. © mau-olhiado aliena fanto 0 eu narratorial do es cravo como o olho vigilante do senhor. Ele desestabiliza qual: quer polaridade ou binarismo simplista na iclentificagio do exercicio do poder — Eu/Outro — e rasura a dimensio anal6: st val. Fle est6 esvaziada da quela profundidade da verticalidade que cria uma semelhan: a totemica entre forma e contetido (Abgrund) incessante- mente renovada e reaastecida pela fonte da histéria. O mau olho — como a pessoa desaparecida — nao € nada em si; & cesta estrusura de diferenca que produz.o hibridismo de raga e sexualidade no diseurso pos-colonial <2 na articulacto da diferenca se A elisié da identidade nesses tropos da “arte secrets da Invisibilidade* de onde filam esses escritores nao é uma ‘ontologia da fata que, por seu reverso, se torna uma demanda nostilgica por uma identidade liberatéria, nao reprimida, F o estranho espaco e tempo entre aqueles dois momentos do ser, suas diferengas incomensuravels — se 6 que se pode imaginar um lugar — significados no processo dla repeticao, que dio a0 olho mau ou a pessoa desaparecida seu sentido. sem sentido em/como si proprios, essas figuras inauguram 0 cexcesso retérico da realidade social ¢ a realidade psiquica da fantasia social, Sua forca poética e politica desenvolve-se atra- vés de uma certa estratégia de duplicidade ou duplicagio Ce into semelhanga, no sentido barthesiano), que Lacan elabo- rou como "o processo da falta" dentro do qual a relagio do sujelto com 0 Outro se produz.® A duplicidade primaria da pessoa desaparecida dlelineada diante de scus othos, ou dos olhos da mulher que vigiam © assombram, é esta: embora cessas imagens emerjam com uma cert fixides« finalidade no presente, como se fossem a Gltima palavra sobre o sujeito, clas nao podem identificar ou interpelar a identidade como ‘presenga. Tso porque so eriadas na ambivaléncia de um tempo. duplo de iteragdo que, na feliz frase de Derrida, “desconcerta o processo de aparigdo ao deslocar qualquer tempo ordenado no centro do presente”. © efeito desse desconcerto, em ambos os poemas, é inaugurar um principio de indecidibili: «dade na significagao de parte ¢ todo, pasado e presente, eu © Outro, de modo que no possa haver negagao ou teanscen. déncia da diferenga, Chamar a pessoa desaparecida de “Selvagem sem pintura berrante* € um exemplo caracteristico. A expresso, dita no fim do poema de Adil Jussawalla, nao nos leva simplesmente de volta ao discurso orientalista de esterestipos © exotismos — Gunga Din — preservado na histGria da Lit. Ing. nem aos Permite accitar 9 delineamento da pessoa desaparecida Olleitor é posicionado — junto com a enunciagao da questao dla identidade — em um espaco de indecisio entre “desejo € realizagao, entre a perpetragao ¢ sua lembranga... Nem Futuro ynem presente, mas entre 0s dois.” A repetigio de elementos oricntais ¢ de seu pasado imperialista sao re-apresentados, tornados presente semanticamente, dentro do mesmo tempo ¢ enuinciado nos quais suas representacbes so sintaticamente ‘negaclas — "sem pintura berrante/ Presas anuladas’. & partie 39 dessa rasura, na repetigzo daquela negativa, que nao é de forma alguma articulada na propria expresso, emerge a parecida que presenga em leve ago da pessoa de: in absentia, tanto esti presente na, como € constiuriva da selvageria. £ possivel distinguir 0 burgués pés-colonial do intelectual de elite do oeidente? De que forma a repetigio de uma categoria gramatical — no! — transforma a imagem da ivilidade no upto da selvageria? Que papel desempe- nha a artimanha da eserta na evocagio dessas ténues figuras a identidade? E, fnalmente, onde ficamos nds naquele eco testranho entre o que pode ser descrito como a atenuagio da identidade ¢ seus simulneras? Estas questoes demandam uma dupla resposta. Em cada tuma delas coloque’ um problema teérico em tezmos de seus efeitos politicos e socials, Foi a fronteira entre elas que ten- tel explorar em minhas vacilagbes entre a textura da poesia € uma cerca textualidade da identidade, Uma resposta a mints erguntas seria dizer que estamos agora no ponto da arg. mentacao pos-estruturalista de onde podemos ver a duplicida- de de seu pr6prio terreno: a estranha igualdade-na-ciferenca ou a alteridade da Identidade de que falam essas teorias, € 4 partir das quais, em linguas bifarcadas, se comunicam umas com as outras para constituir aqueles discussos que deno- minamos pos-modernistas. retGriea da repeticao ou da duplicagZo que tracei expde a arte do tornarse através de tuma certa légica metonimica desvelada no “pessoa desaparecida”, A metonimia, figura de contighicade que substitut uma parte pelo todo Cam olho por um ex lar eye foran ID, nao deve ser lida como uma forma de substitu Ho ou equivaléncia simples. Sua circulagio de parte « wodo, Identidade e diferenga, deve ser compecendida como wm mo- vimento duplo que segue o que Derrida denomina a Wgica 64 jogo do "suplemento” ‘au olho" ou na Se ele representa ¢ constebi uma insagem, € pela fala antestor ‘de uma presengs. Compensatorio e vicivio, © suplemento [o ‘mats olhal € um adjunto, wma instineia eubalterna qe toma — 0— lugar. Come substitute... [pessoa desapatecidal.. nto pro due televo, seu lugar @ assinalado ma estrutura pela marca de ‘um vazio, Em algum lager, algo pode se preencher de si Préprio... apenas 20 se permit ser preenchido por meio do ‘Signo e da procurigto.®" ‘endo ilusirado, através ce minha leitura dos poemas acioa, ‘a natureza suplementar do sujeito, focalizo agora a instancia, subalterna da metonimia, que € a procuragdo igualmente da presenca ¢ do presente: o tempo (tem lugar em) © o espace Goma 0 lugar de). Conceitualizar essa complexa duplicagao dle tempo € espago como o lugar de enunciago ¢ a condicio- nalidade temporal do discurso social & tanto © encanto como © risco dos discursos pos-estruturalista © pos-modernista. ‘Quanta diferenca hi entre essa representagao do signo € 2 conscigncia simbolica na qual, como diz Barthes, a relagio entre forma e contetido € incessantemente renovada pelo ‘Tempo (como Abgrund do hist6rico? 0 mau olho, que tenta subjugar a histria linear, continufsta, € transformar seu sonho progressista em caos de pesadelo, & mais uma vez exemplar, O que Meiling Jin denomina ‘a arte secreta da Invisibili-Dade" cria uma crise na representaglo da pessoa e, esse instante eritico, inaugura a possibilidade de subversio politica. A invisibilidade apaga a autopresenca daquele “Eu” ‘em termos do qual funcionam os conceitos tradicionais de agéncia politica e dominio narrative. © que toma (o) lugar, no sentido do suplemento derridiano, € 9 mau olho desen- camado, a instineia subalterna que exccuta a sua vinganga circulando sem ser visto. Ble atravessa as fronteiras entre senhor ¢ escravo; ele abre um espaco tnlervalar entre os dois locais do poema, o Hemisfério Sul da escravidao e 0 Hemis- ferio Norte da didspora e da migracio, que entio se tornam estranhamente duplicados no cendrio fantasmético do inconsciente politico. Esta duplicagao resiste 20 tradicional elo causal que explica o racismo metropolitano contemporineo como resultado dos preconeeitos histdricos das nagbes impe- listas. O que ela de fato sugere & a possibilidade de uma nova compreensio de ambas as formas de racismo, baseada lem suas estruturas simbélica ¢ espacial comuns — a estrutura maniquefsta de Fanoa — articuladas dentro de diferentes relagdes temporais, culturais e de poder. © movimento anti-dialético da instineia subaltema sub: verte qualquer ordenacio, bindria ou negadora, de poder & signo; ele adia o objeto do olhar — “pois ainda agora vocés otham/mas nunea me véem” — e 0 dota de um impulso estratégico, que podemos aqui, analogamente, chamar de movimento da pulsio da mort. © mau olho, que nio € nada o fem si, existe em scus tragos ou efeitus letais como forma de iteragdo que retém o tempo — morte/caos — ¢ inaugura um espaco de entrecorte que articula politica/psique, sexuatidade/ raga. Isto se faz em uma relaglo que & diferencial ¢ estratégica fem vez de origindria, ambivalente, em vex de acumutativa, duplicadora, em vex de dialética, © jogo do mau-olhado & camuflado, invisivel na atividade comum, carrente, de mirar — tornando presente, enquanta implicado no olhar pétreo € Petrificante que cai, como a Medusa, sobre suas vitimas ~ traficando 2 morte, extinguindo tanto @ presenga quanto 0 presente. H4 uma re-apresentagio especificamente feminista da subversio politica nesta estratégia do mau olho. A nege- ‘980 da posigdo da mulher migrante — sua énotsibitidade social € politica — ¢ usada por ela em sua arte seereta de vinganga, a mimica. Nessa sobreposigio de signifieacao — nessa dobra da identificagto como diferenga cultural e sexual — 0 en" [1] € a assinatura inicial, iniciatéria do sujeito; 0 “olho” leyel (em sua repeticao metonimica) € 0 signo que it terminal, a detengio, a morte: pois ainda agora voces olham 86 meus olhos ficatto para assombra f transformar seus somos E nesse espago da sobreposigao entre o apagar da identi- dade © sua inscri¢a0 ttnue que tomo posicae frente a0 sujeito, fem meio a uma celebrada assembléia de pensadores pés-estru- ‘uralistas, Embora haj ciferengas significaivas entre eles, quero por em foco aqui a atengao dada por esses pensadores 20 lugar de onde o sujeito fala ou € falado, Para Lacan — que usow a retengio do mau olho em sus anilise do olhar — este & o instante da *pulsacao temporal” “10 significante no campo do Outto) peteifica 0 sujeito no ‘mesmo movimento em que o chama a falar como sujeito."® Foucault de certa forma ecoa © mesmo movimento estra- ho da duplicagio quando discure a *quase-invisibilidade da afirmagao” 2 Talvez seja como 0 superfamiliar que constantemente aos Lembro-me do problema do auto-retrato em Os Embaixa- escupa; aquelas transparéncias fanifiares, que embora nada dores de Holbein, do qual Lacan faz uma leitura surpreen- fcltem em sua densidad, mesmo assim nto sie inteirimente dente. As duas figuras estiticas estao na centro de seu mundo, claras. O nivel enunciativo emerge bem em sua cercadas pelos atributos da vanitas— um globo, vm alatide, fproximidade..-Tem essa quase-invisibiidade do "ha", que & livros € compassos, ilustrando riqueza. Eles estio também apagadi na prdpria coisa da qual se pode dizer: *hi sto ou 3 q 7 “ no momento de instantaneidade temporal em que 0 sujeito pelo ou ler dames el'€ cous pe ausnce cantesiano emerge como a relacio subjetivante da perspectiva . geométrica, descrita acima como a profundidade da imagem da identidade. Mas fora do centro, no primeira plano (vio. lando as profundezas significativas do Abgrund), hi um objeto esférico plano, obligquamente angulado. A medida que voce se afasta do tetrato e virese para ir embora, ve que 9 A tadicto €aquilo que de respeto 40 temp, no 20 conte disco € uma caveir, uma lembrarga Ce resdve) da sone, Por outro lado, 0 que © Ocidente deseja da autonomis, a que torna visfvel nada mais do que a alienacao do sujeito, o Invencio, da novidade, da surodeterminagio, & @ epost — eee ‘Succes tempo eps sca coteos ator Sno no qu thamanos hse penser que et rosie prodzté a lgica do suplemento em sua repetito Porque sons ho come no cioo das waugoes pope duplicagio — una des hitorizncto, una “cultura” de teria fe msn et sas vem ee que tna imponsivel confers sent 2 especie Hist ‘ds tempo todo pogo sy eqn ooo eno. has "ea Esta atpla pergunia que s6 poswo respond au Oras ni’ cage tw so por tla Por procuracio,ctando un texto notivel por si expect artes 06 memetima> pars 9 esquecinicnt dade pds-cotonial e por seu questionamento do que se quer diner com expecicdade eutuat, Lyotard prende-se ao ritmo pulsante do tempo do enunciado quando discute a narrativa da Tradigae: [Esa € uma situagdo de constante enctixe, que torn Impossivel encontrar um princi enuneisdor™ A= sa giggte now bout om it Osis, Ra Ant Shaan er a cough Once spoking yorrcalleys with Nght Vv But thea’s here 1 stay On it St Pancras sation, Posso ser acusadlo de uum tipo de formalismo lingtistico ou tbe tnd and the african reshuays te6rico, de estabelecer uma regra de metonimia ou suple- Thar’s by you learns today. mento ¢ de estabelecer a lei opressiva, universalista até, da "Get back 10 your language’, they 2a. diferenca ou da duplicagio, De que forma a atengio pds-estru- turalista dada 2 écriwre © A textualidade influencia minha [A~ 6 um quase riso agora experigncia de mim mesmo? Nao dizetamente, eu diria; entre- masnele Osiris Ba tanto, alguma vez nossas fébulas de identidade ja deixaram Gin Fi, som er. pigarre, uma we coroara ses ales de luz ‘Mas 0.4 veio para ficar. Com ele a esto St, Paneras, de ser mediadas por outrem? Alguma ver. j4 foram mais (ou menos) do que um desvio que passa pela palavra de Deus, @ escrita da Lei ou 0 Nome do Pai, ou, ainda, 0 torem, 0 1s ferrovias da India va Africa. fetiche, o telefone, 0 superego, a vor do analista, o ritual 4 E por 0 que voet o aprende boje. fechado da confissio semanal ou 0 ouvido sempre aberto “ da corffeuse mersal? Vote sua Hirgua’, dizem eles) 95 ” Estes versos si de uma parte anterior do poema “Pessoa pesaparecida”, de Adil Jussawalla, Bles nos do uma visto dda dobra entre as condig6es culturais ¢ lingtifsticas articuladas hha economia textual que descrevi come metonimica ou suplementar, O discurso do pas-estruturalis plamence explicado por meio de uma curiosa repeticao do a, Sela no petit objet a de Lacan ou na différance de Derrida CObservem, envio, a agéncia desse a pés-colonial, 10 tem sido ame Existe algo de suplementar nesse @ que 0 torna a letra inicial do alfabeto romano e, a mesmo tempo, o artigo indle- finido em Inglés, O que & dramatizado nessa circulagio do a uma cena dupla em um palco duplo, para usar ums frase de Derrida. 0. A— com 0 qual o verso se inicia ~ € 0 signa de uma objetividade Linguistica, inserito na arvore das linguas indo-européias, institucionalizado nas diseiplinas culearais do império; ¢ todavia, como demonstra a vagal hindi 3H, que €a primeira letra do alfabeto hindi e se pronuncia como “er, 6 objeto da cieneia lingiistica sempre i se encontra em um processo enunclat6rio de tadugio cultural, expondo o hibri- dismo de qualquer filiaglo geneal6gica ou sistemstica Oucam: "Um ST um er... pigarra": ao mesmo tempo couvimos © @ repetido na (radugio, nao como objeto da lin: _aliistica, mas no ao da enuinciagao colonial da contestagior cultural. Esta dupla cena articula uma elipse... que marca a differance entre © signo hindi 34 ¢ o significante em ingles demético — “er, pigarro*. E através do vazio da elipse que a diferenga da cullura colonial € articulada como um bibridismo, reconhecendo que toda especificidade cultural € extemport- nea, diferense em st 3H... et... ugh! As culturas vém a ser representadas em virude dos processos de iteragao © tradu ‘sao através dos quais seus significados sio enderegadas de forma bastante vicéria a — por meio de — um Outro. Isto apaga qualquer reivindicaglo essencialista de uma autentici dade ou pureza inerente de culturas que, quando inseritas ho signo naturalistico da consciéneia simbélica, freqiiente- mente se tornam argumentos politicos a favor da hierarqut ascendéncia de culturas poderosas. » E nesse intervalo hi brido, en que nao hi distingto, que 0 sujeito colonial rom lugar, sua posigio subalterna inscrita naquele espago de iterago onde JH toma (0) fugar do “er” 3 Se isto parece uma piada pés-estruturalista esquemitica — “tudo sio palavras, palavras, palavras... — devo entio lembrar-Ihes de que a insisténcia linguifstica na influente afir- magho de Clifford Geen de que a experiéncia de compreender outras culturas assemelha-se "mais a entender um provérbio, captar uma alusto, perceber uma piada fou, como jf sugeri, ler um poemal do que a aleangar uaa comunhio"." Minha insisténcia em localiza © sujeito p6s-colonial dentro do jogo da instincia subalterna da eserita & uma tentativa de desen- volver © comentirio ripido de Derrida de que a hist6ria do sujeito descentrado © seu deslocamento da metafisica euro- péia € concomitante com a emergéncia da problematica da diferenga cultural dentro da ctnologia.” Ele percebe a natue reza politica desse momento mas deixa a nosso cargo especi- ficé-lo no texto pés-colonial wiped ou, shay say. Turn lot or right, there's milions tke you tp bers picking thelr way through refuse, looking for words they es, You're jour country's lost property ‘with no office to claim you back You're polluing our sounds. You've so rude "Get back fo your language”, they say. (Apagado", dizem eles, A esquerds ou a dicta hi mikes como voc’ por aqui, abrindo caminho entre © refuge, procurande as palavras que peederam. Voce € 4 propiedad perdida do seu pats sem escrtério para buscicla de volta Yoo? ests poluindo nossos sons. Mal educado, Volte para a sus lingua", dizem eles" Esta implicita nessas afirmagdes uma politica cultural de diispora e parandia, de migracio e discriminagio, de ansie dade e apropriaglo, que € impensivel sem uma atengo Aqueles momentos metonimicos ou subalternos que esteuturam © sujeito da escrita ¢ do sentido, Sem a duplicidade que des- revi no jogo pos-colonial do “a JH", seria dificil compreender 96 4 ansiedade provocada pela hibridizagio da linguagem, aiivaca na angistiaassociada a fronttras vacilancs — psiquicas, Culturais, tevrtoriais — das quais falam estes versos, Onde se waca a linha divisoria entre as linguas? entee as caleuras? entre as disciplinas? entre 0s povos? Propus aqui que uma linha politica subversiva é wacada em uma certa poctica da “invisibilidade”, da “elipse", do mau colho € da pessoa desaparecida — todos instancas do *subal: temo” no sentido derridiano, e préximos o suficiente do sentido que Gramsci da a0 conceit: “Indo simplesimente um supe oprimido) mas sem autonomia, sujeto 4 influencis ou hegemonia de outro grupo social, nao possuindo sua prapria posigio hegemdnica”.” E com essa diferenga entee 08 dois tusos que as nogdes de autonomia e dominagio dentro do hegemOnico ceria de ser cuidadosamence repensadas 2 luz do que eu disse sobre a satureza vieasia de qualquer aspi ragio 2 presenga ou A autonomia, No enlanto, 0 que est ‘mplicito em ambos os conceitos do subaltemo, na minha opinizo, € uma estratégia de ambivaléncia na estrucura de identificagto que corre precisamente no tntervaio eliplico,, fonde @ sombra do outro ai sabre o ew Daquela sombra (em que joga 0 a pds-colonkal) emerge a Giferenca cultural como categoria enunciativa, oposta a nogdes relativistas de diversidacle cultural ou a0 exotismo da “diversidade" de cultura. # 0 “entre” que é articulado na sub- versio camuflada do “mav-olhado” © na mimica transuressora dla “pessoa desaparceida". A forca da diferenga cultural é, como disse Barthes centa vez sobre a pritica da metonimia, “viola $80 do fimite de espaco significante, ela permite no prbprio nivel do discurso uma contra-divisio de objetos, usos, signi ficados, espacos ¢ propriedades"™ (grifa meu. F colocando a violéncia do signo poético no interior da ameaga de violagio politica que podemos compreender os poderes da linguagem. Assim, podemos aprender a impor tneia da imposigao do a imperial como a condigto cultural para o proprio movimento do império, sua logomogio — a criagao colonial das festovias da india e da Africa como esereveu 0 poets, Agora podemos comecar a ver porque a ameaga da (ma) tradugie do Ste do "er", entre os povos deslocados ¢ diaspéricos que revirum o relugo, & um lembrete ‘onstante ao Ocidente p6s-imperial da hibridismo de sua lingua materna e da heterogeneidade de seu espago nacional 7 v Em seu modo analitco, Fanon explora questOes afins da ambivalencia da inscrigao ¢ da identifieagao coloniais. © estado de emergéncia a partir do qual ele fals cemancla respostus insurgentes, idemificagdes mais imediatas. Fanon frequentemente tenta estabelecer uma correspondéncia proxima entre a mise-en-scene da Fantasia inconsciente € 6 fantasmas do medo ¢ dio racistas que rondam a cena colonial; ele parte das ambivalenesas da identificagao para as identidades antagénicas da alienagio politica e da diseriminagio cultural. Ha momentos em que cle € por demais apressado ao nomear 0 Outro, pessonalizar sua pre- senga na linguagem do racismo colonial — *o Outro real para o homiem branco € € continual a ser © homem negro, E vice-versa." Restaurar o sonbo a seu tempo politico € espago cultural pr6prios pode, 38 veres, tomnae cega « Gas brilhantes exemplificagdes que Fanon apresenta da complexidade das projecdes psiquicas na relagIo patologica colonial. Jean Veneuse, © evolué antithano, nao deseja sim plesmente estar no lugar de homem branco, sas procura com: Pulsivamente langar a si pr6prio, 2 partir daquets posigao, um olhar de cima ¢ de longe. Da mesma forma, o acista branca ‘io pode simplesmente negar o que teme e deseja a0 projetar isso no “eles". Fanon algumas vezes se esquece de que paranoia social nio autoriza indefinidamente suas projegdes. A identificagio compulsiva, fantasmitiea, com um “les” persecutério € acompanhada, e até mesmo minads, por um esvariamento, uma supressio do "eu" racista que projet [A psiquiatria sociodiagaéstica de Fanon tende a resolver as volts ¢ revo ambivalentes do sujeito do desejo colonial, sua pantomima do Homem Ocidental e a “longa” perspectiva hist6rica. & como se Fanon temesse suas percepgoes mals radicais: que a politica da raga nao estaria inteiramente con- ‘da no mito humanista do homem ou da necessidade econd- rica ou do progresso hist6rico, pois seus afetos psfquicos formas de deverminismo; que 2 sobe social © a subjetividade humana s6 sto compreensiveis: na cordem da alieridade. £ como se a questdo do desejo que questionam 98 emergiu da tradigio traumatica do oprimido tivesse de ser modificada, 20 fim de Pele Negra, Mascaras Brancas, para dar lugar a um humanismo existencialista que é Wo banal quanto beatific: Por que no a tentativa simples de tocat o outro, de sentir @ ‘outro, de explicar © outro a mim mesmo?..a conclusio deste esto, quero que @ mundo recoaheca, comigo, @ porta aberta de cada consciéncia Apesar de Fanon penetrar no lado escuro do homem, uma fome to profunda de humanismo deve ser uma supercom: pensago pela consciéncia fechada ou “narcisismo dual” a0 qual ele atribui a despersonalizacao do homem colonial: 'Lé esto as pessoas, corpe a corpo, cada uma com sua negrura ou sua brancura em total grito narcisico, cada um selado em sua propria particularidade — tendo, embora, lampejos ocasionais."® E esse lampojo de recanhecimento seu sentido hegeliano, com seu espirito transcen- negador — que deixa de luzir na relagio colonial onde hi apenas indiferenca narcisica: *E todavia 0 negro sabe que hd uma diferenca, Ble a deseja...0 ex-escravo pre- cisa de um desafio a sua humanidade."® Na auséncia desse desafio, argumenta Fanon, 0 colonizado so consegue imitar, ‘uma ago bem definida pela psicanalista Annie Reich: "Trata-se de imitagao... quando a crianga segura o jornal do mesmo modo que seu pai o faz. Trata-se de identificagio quando a crianga aprende a ler."* Ao negar a condigao culturalmente diferenciada do mundo colonial — ao ordenar "Vire branco ou desapareca” — 0 colonizador fica também preso na ambiva- [éncia da identiicagao paransica, alternando entre Fantasias de megalomania ¢ perseguicao, Entretanto, 0 sonho hegeliano de Fanon de uma realidade humana em-si-e-por-si € ironizado, até satirizado, por sua visio da estrutura maniquefsia dla conseléncia colonial e sua divisto nao-diatética. O que cle diz em The Wretched of the Earth (Os Condenadios da Terral a respeito da demografia da cidade colonial reflete sua visto da estrurura psiquica da relagdo colonial. As areas de natives e colonas, como a justa- osigao de corpos negros ¢ brancos, sio opostas, mas nio a » servigo de uma unldade superior. Nenhuma conciliagao € possivel, conelul ele, pois, dos dois termos, um & supértiuo, Nao, nto pode haver reconciliagao, nem reconbecimento, hegeliano, nem promessa simples, sentimental, de umn "munca, do Voce” humanista. Poder haver vida sem transcendéncia? Politica sem o sonho da perfectibilidade? Ao contritio de Fanon, penso que 0 momento ndo-dialética do maniqueismo, sugere uma resposta. Seguindo-se a trajet6ria do desejo coto- ial — na companhia da bizarra figuea colonial, a sombra acortentada — torna-se possivel cruzar, até mesmo alterar, as fronteiras maniquefstas. Onde mo ha natureza humana, esperanga dificilmente poderia jorrar eterna, porém, ela emer- ‘Re com certeza, sub-reptictamente, no retorno estrategica da quela diferenga que informa ¢ deforma a imagem da identi- dade, na margem cla alteridade que exibe a identificagao, Pode nao haver negagio hegeliana, mas Fanon precisa as veues ser lembrado de que a negagio do Outro sempre extrapala as bordas da identificacio, revela aquele lugar perigoso onde a identidade e a agressividade se enlacam. Isto porque a nega: ‘glo € sempre um processo relroative; uma Semi-reeonhecimento, daquela alterldade deixou sua marca traumatica, Nessa incerteza espreits © homem negro de mascara branca; dessa identificago ambivalente — pele ne} isearas brancas — ¢ possivel, ereio, transformar 0 pathos da confusio cultural em uma estratégia de subversio politica Nao podemos concordar com Fanon quando afirma que, “como o drama racial é encenada as claras, @ homem negro nao tem tempo de torné-le inconsciente";*" no entanto, esta € uma idéia instigante. Ao ocupar dois lugares ao mesmo tempo — ou ts, a0 caso de Fanon — o sujeito colonial despersonalizado, destocado, pode se tornar um objeto incalculavel, literalmente dificil de situar. A demanda da autoridade nto consegue vnificar sua mensagem nem simples- mente identificar seus sujeitos. Isto porque a esteatégia do desejo colonial & representar © drama da identidade no ponte em que © negro destiza, revelande a pele branca, Na extremidade, no intervalo entre 0 corpo negro ¢ 0 corpo branca, hi uma tensio de ser ¢ sentido, ou, alguns diriam, de demanda e desejo, que é a contrapartida psiquica daquela tensio muscular que habita 0 corpo nativo: (0 simbolos da ordem social — a poles, os toques de claim nt asema, 2 peradas militares © as bandeicas desfaldads — sig Son 66 tempo inibidores e estimulantes: pois nto transmiven fi mensagem "Nio ouse se mover", mas, 20 contrrio, eritam “prepare-se para o ataque® £ dessas tensbes — tanto psiquicas quanto politicas — que emerge uma estratégia de subversio. Ela ¢ um modo de egagao que busca no desvelar a completude do Homem, mas manipulas sua representacao. & uma forma de poder que € exercida nos proprios limites da identidade e da autoridade, no espitito zombeteico da mascara © da imagem; ¢ a listo ensinada pela mulher argelina coberta com véu no decor- rer da revolugto, quando cruzava as linhas maniquefscas para reivindicar sua liberdade, No ensaio de Fanon, "Argélia sem vVéu", a tentativa do colonizador de retirar o véu da mulher argelina faz mais que transformar 0 véu em simbolo de resis- téncia; ele se torna uma técnica de camuflagem, um instru: mento de luta — 0 véu oculta bombas. © véu que antes assegurava a fronteira do lar— os limites da mulher — agora mascara a mulher em sua atividade revoluctondria, ligando a cidade rabe ¢ o bairro francés, wansgredindo a fronteisa familiar e colonial. Como o véu é liberado na esfera publica, circulagio entre ¢ lem de normas e espagos culturais ¢ sociais, le se toma objeto de vigilancia e interrogatério parandicos. Cada mulher de véu, escreve Fanon, tornou-se suspeita. E, quando 0 véu & retirado para penewrar mais profundamente no bairra europen, a policia colonial vé tudo e nde vé nada. Uma mulher argelina & apenas, afinal de contas, uma mulher Mas a fidat argelina é um arsenal e, em sua bolsa, ela carrega suas granadas de mao, Relembrar Fanon é um processo de intensa descoberta & desorientagao. Relembrar nunca € um ato tranguilo de intros peceo ou retrospecco. £ um doloroso re-Jembrar, uma reagre- gagio do passade desmembrado para compreender 6 trauma do presente, f essa meméria da historia da raga e do racismo, do colonialismo e da questio da identidade cultural, que Fanon revela com maior profundidade e poesia do que qualquer outro eseritor. O que ele realiza, assim ereio, & algo muito maior: pois, 20 ver a imagem fobica do negro, do native, do colonizado, profundamente entremeads na padronagem do Ocidente, ele © refletio mats profinda de suns inerpesgces, sans comes esperanca de uma liberia dif, sté mesmo perio o ds permanente tens dle sa liberal, que Os howiene see capsacs de criar as condisdes ideas de exinteneis pan og mundo humang,"# il ve uma medasto acre da experigoi d dea ulgio @ do desloctmento — psiguicoe sel ue fala Condigio do marginalizado, do alenado, daqucles ue en de viver sob a vigtncia de un signe de Kdontcade efanat gue Ihes nega a diferenga. Ao desloca 0 Toco do come cultural da poltiea do nacionalismo pats» politica do were sim, Fanon abre uma margem de interogegto que cauee un desizamento subversivo de identi © tis auterilade 2m nenhum hug esa avid sullen mais vise doe ém sua prpria obra, onde una série de textos cundbes desde o repertério lésico& cultura quatidana, coer do racsmo — lata para profes peemanece nao-dia aquela ultima palavea que A medida que uma série de grupos cultural ¢ racialmente ‘marginalizados assume prontamente a mascara do negro, ou 4 posigdo da minoria, nao para negar sua diversidade, mas ara, com audcia, anuinciar o importante artficio da ident! dade cultural e de sua diferenca, a obra de Fanon torna-se imprescindivel. A medida que grupos politicos de origens diversas se recusam a homogeneizar sua opressio, mas fazem dela causa comum, uma imagem priblica da identidade dla alteridade, a obta de Fanon torna-se imprescinclivel — imprescindivel para nos lembrar daquele cmbate crucial centre mascara e identidade, imagem ¢ idemificagio, do qual vem a tensdo duradoura de nossa liberdade © a impressto duradoura de nds mesmos como outros No caso de haves uma exposigio... 9 jogo do combate em Forma de intinidagto, o ser da de si, ou sevebe do outro, algo ‘que ¢ como uma miscara, um diplo, um envelope, vine pele Jogada fora, jogida fora para cobwir 1 moldura de um cect 2 auravds dessa forma separada de 8) mean de ent em ou © ser em seus efeitos de vids © morte.” “ Chegou a hora de voltar a Fanon; como sempre, acredito, ‘com uma pergunta: de que forma 0 mundo humano pode river sua diferenga; de que forma um ser humano pode viver Outra-mente [Other-wise vi Bscolhi dar a0 pés-estruturalismo uma proveniéncia especificamente pOs-colonial para enfieacar uma importante objegao repetida por Terry Eagleron em seu ensaio “A Politica da Subjetividade” Ainda mio femos uma teorls politics, 08 uma teori do sujeito, ‘que seja capar, de forma dialética, de apreender a transforma {Io sotial 30 mesmo tempo enquanto difusio © alirmacto, morte € nascimento do suleito — ou pelo menos nao temos teorias esse tipo que nio scjim vaziamente apocaliptcas Tomando como deixa a instincia subaltema “duplamente inserita", cu poderia argumentar que é a dobradiea dialética entre 0 nascimento © a morte do sujeito que precisa ser imerrogada. Talvez @ do sujeito resulte em um apocalipse oco & em si uma reagae & sondage pés-estruturalisa da nogio de negagdo progressiva — ou recusa — no pensamento dialético, O subalterno ou 0 etonimico nto sio nem vazios nem chelos, nem parte nem todo. Seus processos compensatorios e vicirios de signi cag20 sio uma instigagio a tradugao social, 4 produgio de algo mais além, que nao € apenas o corte ou lacuna do sujelto mas também a intersegao de lugares e disciplinas sociais. Pste bibridismo inaugura 0 projeto de pensamento politico Gefrontando-0 continuamente com o estratégico € 0 contin gente, com o pensumemto que contrabalanca seu proprio ‘ndo-pensamento", Fle tem de negociar suas metas através de um reconhecimento de objetos diferenciais © niveis Aiscursivos articulados nie simplesmente como contecidos mas em sua interpelagdo como formas de sijeigoes textuais Ou narrativas — sejam estas governamentais, judiciais ou artisticas, Apesar de seus firmes compromisses, 0 politico deve acusagao de que uma politica 10 sempre colocar como problema, ou indagacio, a prioridade do lugar de onde ele comeca, se nko quer que sua autoriddade se tome autocritica © que deve ser deixacio em aberta é como haveremos de nos Tepensar, uma vez tendo minado a imediagio © a autonomia a autoconsciéneia, Nao é diffeil questionar o argumente civil de que © povo ¢ uma conjugacao de individuos, harmoniosos sob a Lei. Podemos pdr em divida o argumento politico de uc o partido radical, vanguardista, ¢ suas massas representam luma certa objetificacao em um proceso, ou estigio, histories de transformacio social, O que resta a ser pensado € 0 descjo repetitive de nos reconhecermos duplamente como, sinvulie, neamente, descentrados nos processo solicirios do. grupo politico €, ainda assim, nosso ser como agente de mudanga conscientemente comprometido, individualizado até —o portador da crenga. O que € esta pressio ética de “nos justify cuemos" — mas s6 parcialmente— dentio de um teatro politico de agonismo, da ofuscagio burocritiea, violencia e vielaca? Sera este deseja politico de ientificagio parcial uma tentative belamente humana, até patética, de negara percepcao de que, ‘os intersticios ou para além dos elevados sonhos do pensa mento politico, existe um reconhecimento, em algum ponto entre © fato © a fantasia, de que as técnicas e teenologias da polities nao precisam absolutamente ser humanizanies nem endossar de forma alguma o que entendemos ser a difiel condigdo humana — humanista? ‘Teremos talver de forgar os limites do social como 0 conhecemos para redescobrit um sentido de agéncia potitica ou pessoal através do ndo-pensado clentro dos dominios civico € psiquico. Talvez nto seja este o lugar de terminar, mas pode ser o lugar de comegar

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