You are on page 1of 7
72 AMISTORIA DA ARTE EA CIDADE zagilo humanista, em que a arte tinha uma funedo axial, encerrou seu ciclo; comegou o ciclo do progresso e do poder tecnoldgico. Que 0s historiadores vao embora, pois, que cedam lugar aos arquedlo- gos! Esté bem, Mas a necessidade, hoje, de raciocinar por proble- ‘mas, de expor situagdes draméticas, de ver a hist6ria da arte do pas- sado como uma sucessio de conflitos no préprio seio do campo ou em seus limites, contra pressdes externas e adversas, nada mais & ‘que a nevessidade de ver historicamente animado, talvez agitado, ‘um panorama que a maioria vé apagado ¢ imével como uma paisa~ zem lunar. As grandes sinteses, as perspectivas a partir de pontos de vista inesperados nao so, ou pelo menos nem sempre so, 0 pro- duto ordindrio de uma disciplina hoje a servigo da indistria cultu- ral, pelo que o tempo gasto na pesquisa e na reflexdo é tempo per- dido. Sto, ao contrério, a tentativa, as vezes desesperada, de tragar outros esquemas, outros quaciros, outras diregoes de pesquisa. Os velhos procedimentos historiograticos, todos mais ou menos depen- dentes da pritica do conhecedor, ainda podem servir para redesco- brir uma obra esquecida, um documento inédito, mas ndo server para encontrar aquilo que devemos encontrar: outros campos de inter-relacdo dos fendmenos, outros canais com que a arte se ligou ao contexto da cultura, da realidade social. B preciso encontrar no- vas metodologias, novos equipamentos, novos modos de organiza- 40 da pesquisa, inclusive e sobretudo de grupo. A renovacdo radi- cal dos procedimentos metédicos e do ensino &, hoje, para a histé~ ria da arte, uma questo de vida ou morte. E ndo apenas para a histéria da’arte, pois outros problemas, que ultrapassam os limites da nossa disciplina, esto envolvidos. Hoje, a histéria da arte, co- ‘mo a tinica hist6ria que se faz em presenca do fendmeno, é um pon- to de contestacdo, 0 obstaculo que procuram de todas as formas remover aqueles que, perstadidos de que a teoria da informacao su- plantou a antiquada metodologia da historia, tém necessidade de assegurar-se de que a presenca do fendmeno impede a historia. Mes- mo porque, afinal, a historia ¢ eritica ¢ 0 poder nao a ama. 1969 2 CIDADE IDEAL E CIDADE REAL “A cidade favorece a arte, é a propria arte”, disse Lewis Mum- ford. Portanto, ela nao é apenas, como outros depois dele explici- taram, um invdlucro ou uma concentragdo de produtos artisticos, ‘mas um produto artistico ela mesma. Nao hd, assim, por que surpreender-se se, havendo mudado o sistema geral de produgio, © que era um produto artistico hoje é um produto industrial. O con. ceito se delincow de forma mais clara desde quando, com a supera- Go da estética idealista, a obra de arte nao & mais a expresso de ‘uma tiniea e bem definida personalidade artistica, mas de uma so- ma de componentes ndo necessariamente concentrada numa pessoa ‘ou numa época. A origem do caréter artistico implicito da cidade Jembra o carater artistico intrinseco da linguagem, indicado por Saus- surre: a cidade ¢ intrinsecamente artistica. A concepedo da arte co- mo expressto da personalidade tinka a sua primeira raiz na cuuvep- sao da arte na Renascenga — justamente o perfodo em que se afir- ma, pelo menos em hipdtese, que pode existir uma cidade ideal, con- cebida como uma tinica obra de arte, por um tinico artista. Toda- ‘via, sempre existe uma cidade ideal dentro ou sob a cidade real, dis- tinta desta como 0 mundo do pensamento 0 é do mundo dos fatos, Ainda que algumas amostras de cidade ideal tenham sido real zadas (e todos as conhecemos, de Pienza a Sermoneta ¢ a Palmano- va), a chamada cidade ideal nada mais é que um ponto de referén- cia em relagao ao qual se medem os problemas da cidade real, 2 qual pode, sem chivida, ser concebida como uma obra de arte que, no decorrer da sua existéncia, sofreu modificagdes, alteracdes, acrésci- mos, diminuigdes, deformagées, as vezes verdadeiras crises destru- tivas, A idéia de cidade ideal esté profundamente arraigada em to- dos os perfodos historicos, sendo inerente ao carter sacro anexo ‘74 A msr6nta Da ARTE E 4 CIDADE 8 instituigao e confirmado pela contraposi¢ao recorrente entre ci- dade metafisica ou celeste e cidade terrena ou humana, Além do ‘mais, a imagem da cidade-modelo aparece logicamente relacionada as culturas em que a representaco-imitagao é o modo fundamental do comhecer-ser e a operagao artistica é concebida como imitagio de um modelo, seja ele a natureza, seja a arte do passado, tida co- mo perfeita ou cléssica, figura ne varietur da unidade de idéia- histéria, mas justamente por isso imével com respeito & arte que se faz no mundo. A cidade real reflete as dificuldades do fazer a arte © as circunstancias contraditérias do mundo em que se faz. Além de modelo de forma, a cidade ¢ modelo de desenvolvi- mento, nos limites em aue isso pode acanterer sem cantradizer al- gumas premissas postuladas, segundo uma légica e um ritmo evo- lutivo préprios. A cidade ideal, mais do que um modelo propria- mente dito, € um médulo para 0 qual sempre é possivel encontrar muiltiplos ou submultiplos que modifiquem a sua medida, mas ndo ‘sua substancia: dada uma planta em forma de tabuleiro, centrali- zada ou estelar, sempre é possivel desenhar o mesmo esquema nu- ma dimensio maior ou menor. Um exemplo tipico de adequacao da cidade @ uma profunda mudanga histérica da qual se tem plena consciéncia ¢ a famosa adicéo herciilea de Rossetti em Ferrara: a cidade da Renascenga acrescenta-se & da Idade Média através de um sistema de nexos que nao reflete uma vontade de contraposicéo, mas de desenvolvimento. Em geral, o desenho da cidade ideal implica © pensamento de que,.na cidade, realiza-se um valor de qualidade que permanece praticamente imutavel com a mudanga da guanti- dade, na medida em que, por postulado, qualidade e quantidade se- Jam entidades proporcionais. A relacdo entre quantidade e qualida- de, proporcional no passacio e antitética hoje, est na base de toda, 8 problematica urbanistica ocidental, Exatamente isso, acredito eu, explica a nflo-continuidade de de- senvolvimento entre as cidades hist6ricas e as cidades modernas, en- tre cidades pré-industriais ¢ cidades industriais ou pés-industriais, E é esta rupture de continuidade ou a impossibilidade de desenvol- vimento que gera a artificiosa concentracao da historicidade intr seca da cidade no nticleo antigo, dando-se assim por aceito que este &, por definicao, histérico, do mesmo modo que o moderno — e Maltese ja sublinhou isso —, em sua realidade e atualidade, seria Por definigao nao-histérico ou mesmo anti-historico. A hipétese da cidade ideal implica o conceito de que a cidade € representativa ou visualizadora de conceitos ou de valores, e que 8 ordem urbanfstica néo apenas reflete 2 ordem social, mas a razio ‘metafisica ou divina da instituigfo urbana, Dai se deduz que a cida- CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 75 de moderna contrapoe-se & antiga exatamente na medida em que reflete 0 conceito de uma cidade que, nao tendo uma instituigao va, rismdtica, pode continuar a mudar sem uma ordem providencial ¢ ue, portanto, exatamente a sua mudanga continua & representati va, de modo que o que resta do antigo ¢ interpretado, sim, como Pertencente & histéria, mas a um ciclo histérico ja encerrado, & rae ytasPOsto 0 problema da forma ne varietur para o seu devir, ¢ facil constatar que o devir nunca tem um ritmo ou um andamento linear, no corresponde a nenlum esquema, ou padrao, @ prior! Ni ¢ certamente a logica da historia, mas a desordem dos eventos que se reflete na realidade urbana herdada do passado. Devenivs, todavia, constatar que a idéia da historia como se- giléncia Imprevista dle eventos, e de eventos nlo previstos nem preor. denados, néo contradiz de forma alguma a hipdtese do carder er. tistico fundamental da cidade. Esta acaba sendo confirmada pelo fato de que a cidade real jamais corresponde a formas idénticas as dos modelos ideais, Dizemos, portanto, que a forma é 0 resultado de urn processo, cujo ponto de partida ndo é a prépria forma. A cidade nao & Gest. alt mas Gestaltung. No entanto, sendo dbvio que a cidade é uma construcio ¢ que 0 ponto de partida de toda construgio ¢ a cons. trutibilidade, antes de considerar a cidade em relagao a categorias estéticas, € preciso consideré-la em relagfo as técnicas que a tornam ao apenas concebivel, mas projetada, ¢, portanto, logicamtente, em relagdo aos procedimentos e as téenicas do projeto. Naturalmente, o pensamento logo se volta para as téenicas da construcao arquiteténica, ou, melhor, para a otdem de uma orto- Ronalidade estética considerada tipica da racigualidade das teen cas urbanas e contraposta & ondulasdo naturalista do campo, eomo no famoso aftesco do Bom governo de Ambrogio Lorenzetti, (Ob servemos, de passagem, que Ambrogio, tide por seus contempord. eos como filésofo ou sébio, nao representou a cidade como cons. inuila, mas em construcdo, contrapondo, assim, néo apenas 2 es pacialidade diferente, como a diferente temporelidade da vida ¢ do trabalho urbanos e da vida e do trabalho néo-urbanos.) Todavia, uma cidade ndo ¢ apenas 0 produto das téenices da Construcdo. As técnicas da madeira, do metal, da tecelagem, etc. também concorrem para determinar a realidade visivel da cidade, cu, melhor, para visuslizar os diferentes ritmos existenciais da ch dade (muitas vezes distintos segundo as classes sociais) Tanto quanto as que na Renascenca sio as artes maiores ou do desenho, a produ. ‘lo artesanal também tem graus diversos no interior das mesmas ‘ipologias, refletindo, portanto, aquela relagio variada — mas ain, 16 A WISTORIA DA ARTE E A CIDADE da assim relagiio — entre qualidade ¢ quantidade, que é constituti- ve de todas as civilizacdes artesanais. As tBenicas urbanas, que tém seu ponto culminante naquela que foi chamada de arte e foi separa- dado artesanato como seu dpice © modelo, constituem um sistema orginico relacionado com o da economia e da estrutura social. Es- sas técnicas, que, ao contrério das agricolas, mudam em curtos es- pasos de tempo, refletem uma competigao e uma vontade de supe- tagdo tipicas das economias intensas, como @ urbana. Nao esqueca- mos que, em toda esta fase hist6rica e sobretudo na Renascenca, admitiu-se que o progresso das técnicas urbanas, ao contrétio da lente mutagdo das técnicas camponesas, ocorria por invengdes su cessivas, ou seja, através do mesmo processo mental que era enn: derado caracteristico da arte. : Competitividade e seletividade, gradualidade do maximo qua- ltativo com o minimo de quantidade ao maximo quantitativo com © minimo de qualidade sio 0s fatores, ou pelo menos alguns dos fatores, que determinam a mudanga eo devir das cidades. De fato, 2 cidade hist6rica nunca ocorre como um féssil, mas como uma rea. lidade que se desenvolveu faz tempo segundo processos de avalia- do € de selecto que ndo seria diftclidentifiar e desorever. A difi- culdade de relacdo entre antigo e moderno nao depende de maneira alguma do contraste entre a gcometricidade dos modelos e a nfo- geometticidade dos desenvolvimentos reais. Nossa época é rica até ddemais em hipoteses de projetos de cidades-modelos modernas e nfo temos nenhuma dificuldade em afirmar que a cause da situagio cri- ica da cidade, hoje, & em grande parte determinada pelo fato de ue sew informalismo nao tem relagdo alguma com o formalismo programético das cidades ideais, se bem que seja significativa o fa- fo de os arquitetus mudernos imaginarem como ideal uma cidade “informal”, ndo no sentido de que nao tenha uma forma, mas no sentido de que teria todas as formas que pode assumir na experién- cia de quem nela vive. : Voltando 20 problema especifico da arte, que se relaciona a0 dos centros histéricos, pode-se afirmar que as diferentes artes for- mam um sistema na medida em que todas juntas, com as suas di- versidades de categorias, de provedimentos e de niveis quantitati- ‘0s ¢ qualitativos, constituem a cidade, a qual, portanto, pode con- siderar-se 0 campo ot rout se tient, Pode-se objetar que nao existe apenas uma arte urbane, mas também uma arte popular, camponesa ow rural, que tém premise sas, téonicas, finalidades, funcdes completamente diferentes; existe até mesmo uma arte anterior aos assentamentos agricolas e prépria «das sociedades primitivas em que se vivia da colheita ocasional e da ‘CIDADE IDEAL & CIDADE REAL 77 aga. Disso, porém, néo podemos deduzir que a arte seja uma at 7idade Primaria © constitutva para o espiito, mas apenas que ci ferentes tipos de agregagao social colocam de maneita diferente a relacdo de qualidade e quantidade e que ndo 6 a historia da ideo. logia do poder, como também toda a vivéncia da sociedacle ¢ dec {plividuos constituem a mutavel, mas sempre eloaiiente imagem da cidade. Como nao observar desde ji que a relacao de quali dade-quantidede abrange a relacao um-todos, individuo e soda, de © gue, exatamente por isso, ndo ha apenas uma politica, mes também uma ética, da cidade? Bis desde }é uma deduedio que nos parece relevante para a polities dos contros historicos. Se hoje mao Thais consideramos significativo de valores histérico-ideologicos ape. as 0 tnonumento, mas também a casa de moradia ou a oficina frtesanal e, em geral, mais 0 tecico do que o micleo representativo, isso se deve sem diivida ao fato de que o tipo de sociedade coletivs {2 do nosso tempo se recusa a reconhecer como expressao de histé. fia apenas as formas expressivas das grandes instituigoes, Natural. ‘mente, toda intervencdo urbanistica e de construcao na cidade im. Plica, junto da necessidade de responder a umma exigéneia atual, une atitude, uma obrigagio de intervengao e, portanto, uma avaliagao da condicio objetiva e presente da cidade. O que determina tal at tude nao é mais, como outrora, um critério puramente estético, se. gundo o qual apenas a obra de arte absoluta, o monument, tithe Ge ser conservada. A atribuigdo de valor histérico ¢ arlistico nt apenas aos monumentos, mas também as partes remanescentes de {ecidos urbanos antigos, ainda depende certamente de um jufzo seer, ¢a da historicidade destes. Contudo, esse juizo aplica-se a um earn bv iuito dilatado pelas tendéncias atuais da historiogratia artistica com a adogdo de metodologias sociol6gicas ou antropoldgicas, Permanece, todavia, sem uma colocagéo precisa 0 problema de fundo: a cidade moderna ndo pode se agregar e funcionar a nd ser 2 custa, pelo menos em parte, da cidade antiga. Uma vez que new tudo pode ser conservado, ¢ preciso estabelecer 0 que deve ser pre, servado custe o que custar. Alm disso, deve-se levar em conta que a condlicao de sobrevivéncia dos mticleos antigos remanescentes é le, fenminada pela solugdo urbanistica geral e pelos ritérios com que Se disciplina, em torno do chamado micleo histérico, o desastrose periekon das periferias urbanas. Se admitirmos o principio de que os historiadores da arte, por serem também historiadores da cida de, devem exercer uma fungao essencial, de decisdo, sua agao nto é apenas de protero ou censura, mas deve entrar nas escolhes de Plano e projeto urbanistico, Essa acdo nao pode ser apenas defensi, va ou inibidora, pois esta claro que os tecidos antigos nao podem 78 A HISTORIA DA ARTE E A CIDADE ser conservados se tiverem perdido todas as suas fungdes e, cortae os do dinamismo urbano, constituam uma espécie de remenas en. volvido pela desordem e pelo barulho da cidade moderna. Os inte- sralismos opostos dos conservadores ¢ dos renovadores inveterados arecem encontrar uma motivaga0 na mudanea radical do sistema de vida e de trabalho que ocorreu no século passado com a crise do sistema produtivo artesanal e a conquista da hegemonia do sis- tema industrial. Quando se fala em crise e em morte da arte, fala-se também em crise ¢ morte da cidade. De fato, jé foi colocada em discussdo nao apenas a organizagéo exterior, mas a esséncia da ci- dade como instituigdo. Todavia, ndo parece que a instituicao-cidade £0 préprin conreita da cidade como seumulo ou concentragau vul- tural estejam necessariamente relacionados com um tinico sistema de téenicas, o artesanal, Nao se pode afirmar a prioria nao-esteticidade, talvez nem mes- mo a néo-attisticidade da cidade moderna, simplesmente porque 0 sistema das técnicas industriais ndo tem culminancias artisticas. O valor institucional da cidade, como agregado social privilegiado ou de cuipula, é indiretamente reconhecido e até mesmo excessivamen- te absorvido por aquela mesma sociedade industrial que parecia colocd-lo em crise e que, ao contrario, até agora ndo sabe prescin- dir do prestigio hist6rico e da funcionalidade intensificada da cida- de hist6rica, pretendendo ocupé-la porque, com isso, tem a impres- so de apropriar-se da sede ldgica e histériea do pod : ‘Todos sabem que, em sua fase inicial, a grande indiistria se ins- talou nas grandes cidades ou em suas imediagGes, dando lugar a flu- x0s migratérios que multiplicaram até por dez a populacdo urbana © praticamente destruiram a coesdo das comunidades urbanas tra- Gicionais. Multiplicou-se, portanto, a quantidade ¢, paralelamente, degradou-se a qualidade urbana; em alguns pontos de ocupacdo mais industrializados chegou-se, inclusive devido aos graves danos soft. dos pelos centros histéricos durante a guerra, a uma anula¢do qua- se total da qualidade em favor da quantidade, Num primeiro mo- ‘mento, verificou-se uma hiperfunc&o dos velhos centros, sem que tenha sido suficiente a aniquilagdo ou a devastaco ce zonas intel- ras de interesse histérico a fim de impedir a congestéo, para ndo dizer a paralisia, do trénsito. A exiggncia de defender coisas que con- servavam na cidade moderna um valor € um significado, ainda que transladados, levou & distingao entre os chamados ‘‘centros histori- 0s" protegidos por vinculos e as periferias, que muitas vezes cres- ceram sem planos propriamente ditos, ou, até mesmo, sem plano algum, abusivamente. © conceito de “centro hist6rico”” é instramen- talmente util porque permite reduzir, quando n&o bloquear, a inva- eid CIDADE IDEAL ECIDADE REAL 79 Por parte de organismos administrativos ou de fungoes residenciais novas que fatalmente conduziriam, mais ce- do ou mais tarde, & sua destruiedo. O mesmo conceito, porém, é teoricamente absurdo porque, se se quer conservat a cidade como instituiedo, néo se pode admitir que ela conste de uma parte histért. ca.com um valor qualitativo e de uma parte nao-histérica, com ca rater puramente quantitativo, Fique bem claro que o que tem e de. ve ter ndo apenas organizacao, mas substancia histdrica é a cidade em seu conjunto, antiga e moderna, Por em discussio sua histori dade global equivate a por em discuss 0 valor ou a legitimidade historiea da sociedade contempnrfnes, 0 que talvez alguns quelvan, ‘mas que o historiador no pode aceitar. Enatamente pelo fato de estarem como que enquistados no in- teri6r das cidades modernas ¢ submetidos a um regime juridico es. Pecial, 08 centros histéricos passam por uma gravissimia condigao de perigo. © préprio prestigio maior que o centro histérico tem tornou-se ur motivo de atraeo, chama atividades administrativas antagOnicas & sua estrutura e a sua historia, favorece a didspota, inclusive voluntaria, da populagdo que tradicionalmente nele mors ‘mas que, evidentemente, ali nfo vive mais 4 vontade, Durante o pe- Hiodo em que fui prefeito de Roma — uma cidade-capital em que & concentraao de organismos administrativos é muito forte —, me dei conta de que a proteedo local circunscrita a uma drea privilegia. da da cidade, ainda que rigorosa, em nenhum caso é suficiente ¢ de que os centros histéricos s6 podem ser salvos, e ndo apenas prot. Fogatlos por algum tempo, no ambito de uma politica urbanistica que considere de modo global todos os problemas da cidade e do. ftervitério. A paralista economica e social dos centros historicos & ‘uase inevitével: as pequenas atividades artesanais e comerciais sa0 inevitavelmente sufocadas pela producao industrial e respectivos grandes centros de distribuicao; os custos de restauracdo e manu. {engdo dos velhos edificios comportam despesas que, clato, nfo po. dem ser enfrentadas pela populagdo indigena; 0 engarrafamento.do transito © o actimulo de automéveis estacionados esto em contra. dicdo com as antigas estruturas; o processo de abandono, sobretu, do por parte das geragdes jovens, é répido. Com tudo isso, os solos Uurbanos conservam pregos elevadissimos que favorecem as mato. bras proibidas, mas dificeis de enfrentar, da especulagao imobilis. tla. A substituigao das velhas classes populares e pequeno-burguesas or novas classes ricas provoca verdadeiras falsificacdes, no s6 por- gue os edificios so geralmente esvaziados, reduzidos & simples fa. chada, reestruturados em seu interior, mas também porque as prs. brias classes originais constituem um bem cultural que deveria ser | 80 ASTORIA DA ARTE E A CIDADE protegido. Resultados muito importantes, os mais importantes 8 Fualies foram obtidos em Bolonha, onde a prefeitura assumiu o en ‘cargo de uma regenerapio integral do tecido urbano do centro atra- Cécile procedimentos que, 20 mesmo tempo, destinavam-se a resi: Telecer um grau de dignidade social ea submeter os edificios a uma Festauragao propriamente dita, Devo, porém, observar: 1) que nas carelas populares bolonhesas subsiste um grau bastante elevado Grrntesto e de apego & cidade e ao bairro de origem; 2) que, em Bolonha, as opebes politicas da administracdo municipal facilita- penn adoedo de uma politica que procurou conter e reprimir a es peculagdo na construcéo civil. A preteitura de Rouse inspiros ce ne premplo metodoldeico de Bolonha, apesar de, por enquanto, numa Gaeala bem menor, limitando as suas intervengbes restauradoras @ Sinus reas onde o tecido de construgio estava mais gravemente de- (crlorado, Mas nfo ha diivida de que, quando um tecido estd prat teitlate necrosado, a recuperagdo social e funcional € bastante di- fell, ainda mais se ndo solicitada pelo desejo dos nativos. ‘Portanto, para tevitalizar os centros hist6ricos nao se pode con- tar apenas com as possibilidades téenicas de recuperacto. Se a rea, aa ergo deve traduzit-se numa refuncionalizagao mais organica, € Taro que a intervengo dos téenicos do patriménio cultural é neces- aria desde a primeira fase do estudo do projeto e que tal interve Sop no deverd set imitada 20s centzos hist6rieos propriamente di ee nas estendida a toda a area da cidade na medida em que inflve (os, Matto histdrico eo condicione. E restaurar, ébom lembrar, nfo significa recuperar, nem modernizar, Wale também para as intervengdes nos grandes tecidos a expe rincia, mais nica do que rara, fita em Bolonha com a restaura; ‘ho de fachada de So PetrOnio: uma restauragdo sem sombra Ce Suwida perfeita, uma conquista, como seria conseguir debelar pele Grimelra vez uma doenca mortal, mas que cystou muito em termes semmpenho, de investimento e de tempo. E preciso, agora, faiet som que, formando mifo-de-obra espesializada, o exemplo bolonhés fossa ser repetido em larga escala, ou, melhor, generalizado, CP De Peds de tempo mais curtos e com um gasto menor, Os edificios [fue estdo em condigdes andlogas a Sdo PetrOnio sto muitos. Como sesso as grandes iniciativas cientificas, essa nova metodologia de ‘RStauragto também deve poder ter uma ampla area de influéacia Tebtocar-se como exemplo néo Unico ¢ irrepetivel. Por isso, dize- ‘jos que mesmo o problema da testauracio dos centros histéricos ove passat doravante da fase de pioneirismo a da utilizagio gene- atirada, com tudo o que comporta em termos de pessoal de pes- CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 81 quisa, pessoal de intervencio, meios financeiros e, insti guis pessoal (05 e, talvez, de insti plano diretor de uma cidade histérica con: projet desea attri do ‘sinente cde ums presto ie futuros desenvolvims ém pode can envolvimentos, que também podem nfo fr apenas freqiiente associar-se, € com acento negativo i cent nines ode sde’musc Bum terme ce aut dose de ve ter medo, contanto que 0 museu nao seja considerado wim depo~ sito ou um hospicio de obras de arte, mas sim um instrumento cien- tific e didatico para a formacao de uma cultura figurative ou da dquilo que Arnheim chama “pensamento visual”, Entendida como sistema de comunicasdo visual, mesmo a mais moderna das cidades modernas pode ser um museu, enquanto 0 museu como centro vivo da cultura visual €um componente ativo do estudo e do desenvolvi- mento da cidade (tal é, de fato, a fungo que foi institucionalmente confiada 20 Centre Pompidou em Paris). sua ao; Ti um caso mie de cdadesmuse, Vere. Por 7 aco especial e por sua configurasio, o desenvolvime rail ovate, com une seo upretenentecorcn, para uma cidade vizinha, Mestre, que cresceu com a rapidez de to- das as cidades industriais, mas que, justamente por isso, € um ver- dadeiro monstfo usbanistico, um acdimulo puramente quantitativo de instalagées industriais ede seus compementos habitacionais, De- pois, aconteceu que Mestre adquiriu um peso ndo apenas econdmi co ¢ demogrificoinfinitamente superior ao de Veneza, que ficou ais espa um prose de empobrecmenin no we Pes je, poder-seria dizer que Veneza é o centro historico da vizinha e devoradora cidade industrial, destituido de outras Fungdes que no a do turismo e respective comtso 1¢ uma maneira no muito diferente da de Roma, peculago adensou as populosas periferias em torno de. ‘om teal Simo centro histérico, em Veneza, a cidade moderna tende a des- truir inclusive materialmente a cidade antiga: a fumaca das instala- Oes industriais de Mestre desagrega as pedras de Veneza, como os insmas dos automdveise das instalagdes dos equipamentos de ca- Tefagio desagregam as pedras de Roma. Assim, o historiador da ar- te deve preocupar-se néo com o congelamento ou a fixagdo da cida- de antiga da qal pode apenas prorrogar axel, as com Un jesenvolvimento coerente com a sua realidade histérica, de modo ue, mesmo na diversidade das organizagdes e dos niveis, uma arti- culacio funcional assegure o dinamismo de todo o tecido urbano. ee 82. A MISTORIA DA ARTE E A CIDADE Isso, 6 bom deixar claro, nao significa de maneira alguma moders aves cdades antigas: elas tém um valor na consciéneia dos nossos Gontempordneos exatamente por serem antigas. A cultura moderna fem ou deveria fer a capacidade de compreender na sua estrutura hstoriea tanto O valor de uma meméria, presenca do seu passado, como uma previsto-projeto do seu futuro. ‘Mas de que instrumentos dispomos para impedir que a vida da cidade historica se congele na conservagio intransigente, se pertur- pe numa absurda tentativa de modernizar o antigo, se entorpera nos compromissos, se empobreca na representacdo visivel exclusiva da fictéin das grandes instituigdes ou do poder, descuidando, ao con- trirfo, com @ historia das existéncias humanas transcussidas entre bs seus muros, da imagem ainda bem viva do vivido? De um lado, {amos 2s repartigdes governamentais ou municipais praticamente in- vestidas apenas de umna autoridade de veto ou de limite, sem nenhu- qa possibilidade de intervengao ativa nos processo vitais da cidade. De putro, temos os técnicos, urbanistas ¢ arquitetos, que elaboram projetos a curto ea longo prazos com urna perspectiva de futuro que Putopista ou mecanicista, como se fosse inevitdvel o crescimento fimitado com base nas premissas atuais. Temos, por fim, dnicas a possufrem um real poder de deciséo, as autoridades governamen- Pus e municipais, muitas vezes mais preocupadas em responder a bportunidades de necessidades contingentes do que em organizar & passagem histériea do presente ao futuro da cidade. ‘Sabemos que o conceito de arte, aparentemente abstrato, indi- ca, na verdade, a convergéncia ¢ a cooperacio de um conjunto de caves distindas, que mantém e devem manter a sua autonomia disci- Shinar, mas que admitem uma metodologia de base ¢ uma possibli: Fade de sintese. No entanto, porventura podemos dizer, concreta qtonscientemente, que a cidade, como realidade complexa que en- Sontra na arte seu fator unitério, & objeto de estudo histérico-artisticg em nossas universidades? Tal estudo também no é, na maior parte flos casos, abandonado aos socidlogos? Podemos acaso dizer que fhossas escolas de historia da arte preparam estudiosos capazes de participar de equipes de projetistas, de colaborar para o estudo dos processos vitals da cidade e no apenas de colocar obstéculos ¢li- nites, os quais tm certamente sua raza0 de ser, mas apenas na me- {ida em que os pontos da conservagdo forem enquadrados e, de certo modo, gerantidos por um tipo de cultura urbana que nao repudie f sua historicidade, mas tenha consciéncia dela? ‘Podemos acaso dizer que sdo ensinadas com referéncia & cida- des diseiplinas complementares, da sociologia a economia, ind} pensivels para o estudo da histéria da cidade? Podemos aeaso di- CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 83 ze ae realhemos e elaboramos ns noses escola ness ‘dadosinformativos necessirios para tum estudo histri univoco da cidade? é Reet ‘Ouvi dizer muitas vezes,e sem ai 288, vida é verdade, que, para efe- war uma protertoergince do patimdnio cultural indpesive por de uma catalgario dor bens eed com base na 2, so, juridicamente definida, de bem cultural, Julgo indispensdvel tima catalogacdo cientifica ¢ sua continua atualizaglo, mas julgo examen pra a dfn «ron de a de os rem protegidas, com a implicta admissio de que tudo © que ndo et aa to meer de odo algun Se protegido, Ede. cerlu possivel eyuideuat es netaduloes da poteyau wus do pio isto formar egupes de hseriaores da are earauteton de esti jem o estado atual das cidades e seus impulsos evolutivos em rela- ¢0 com o ritmo dos seus desenvolvimentos passados. Em toda a iu Hite ldade rene compose pelo eelacamro deen Boralidade diversas, 9 que Qutallerecordava to einer a pluralidadee diversidade das duracéesexistencias, as diversas tem- poralidades indicadas por Le Goff para a Idade Média. Cada uma das artes em sn individual tem seus eps de ele € ale podem ser estudados tanto em se i mo em sentido diacrOnico ee A 0 ste ser seaes entre as ats a conertna num conto uo date, qualauer qu sje a consists ds plano teérico, tem sempre uma realidade histdrica precisa © inonzovenel, pice o cones de ate nao €ua ena da Mlosfia moderna; le prtence a todas as cilzades Nitra fa conscidncla da sua convergtncia inencional numa unida- de que se chama arte, mas se realiza, de f ismo 2 "de fato, naquele organism cull complex qu a iad. se perf als une tensdo de cidade a0 teri, nfo send poste prestind de une il 0 perlekon natural que envolva e inte deo periekon at sare a area da cidade como Portanto, € necessétio que os histo , 16 0s historiadores da arte consi o eto sienico de todos o fentnenos vias da clade como ne rente a sua disiplina, a conservagao do patriménio artstico como feeder insprivel de esau ci vendo no devirda cidade como o tema fundamental i tevento fundamental de sua étiea ‘Ao deplorar o caréter excessivamente testi 1 excessivamente tedrico e escassamente apieado dos estes supetoes de histria da ate, qu io so cen rados o bastante no zelo das coisas, que €o primero ponto deon- tolégico e metodolégico das nossas dsciplinas, nfo pretendo de for- 84. Amisronia Da ARTE E A CIDADE, ‘ma alguma propor uma prevaléncia do empirismo aplicado sobre 2 pesquisa cientifiea, pelo contrario, Infelizmente, esté-secaindo nesse equivoco, na Itélia — ¢ 0 de- nuncio como um perigo ~, a0 se projetarem cursos universitrios separados da pesquisa cientifica no dominio arqueolégico ¢ historic artistico ¢ visando a formasdo de “conservadores”, distintos no ‘mais segundo categorias disciplinares, mas segundo categorias bu- rocréticas. A pesquisa cientifica do historiador da arte sempre tem como objetivo a conservacdo das obras de arte, na medida em que, contudo, esse empenho pratico realiza e verfica seus métodos de pesquisa cientifica. Lembramos, porém, que, se é sempre possivel deducir as aplicagdes empirieas da pesquisa cientifica avaugada, eit rnenhum caso é possivel o proceso inverso, de ascensto do empiris- ‘mo a cigneia. 1979 3 A ARTE NO CONTEXTO DA CULTURA MODERNA Qualquer discurso sobre a arte ndo pode dizer respeito a arte em geral, mas & precisa condigio da arte e dos estudos sobre a arte yuma determinada situacdo histdrica. Fala-se de uma crise da arte, ou seja, de uma separacio das atividades artisticas do contexto day atividades que, nesta condisao da sociedade, produzem cultura. Pelo ‘menos para um diagndstico sumétio, tudo indica que a causa da crise Seia a indubitavel preponderdncia da cincia e das tecnologias cor. relatas. Entretanto, nao se pode afirmar que a arte e os estudos so- brea arte devam decair e desaparecer, por no mais gozarem de uma condicao de centralismo ou de hegemonia. Tampouco pode-se di- Zer que a crise de uma disciplina se manifeste como nan-prospe. ‘idade. A cléncia contempordnea estd em crise, apesar de ninguém poder negar que desfrute de uma condligao de centralidade e de hegemonia. Ligo, ou, melhor, identifico propositalmente o problema da arte com 0 dos estudos sobre a arte. Se pela palavra arte néo entende. ‘mos uma atividade abstrata d6 espfrito, uma entidade metafisica, mas um conjunto de coisas nas quais reconhecemos uma afinidade estrutural, esti claro que nao é possivel ocupar-se da arte sem se ocupar dessas coisas, isto é, dos produtos das téenicas artisticas. Jus. tamente porque a produgo artistica esta em crise, o problema do atrimOnio artistico assume um destaque maior. E féeil constatar ue, quanto mais se veio reduzindo o campo das fungdes dos bens 08, tanto mais se estendeu o dos conhecimentos cientificos correlatos. Enfim, pode-se dizer que os produtos da arte, ou, mais Precisamente, das artes, se inserem no contexto cultural contempor i

You might also like