You are on page 1of 26
F INDICE CONCEITO MARXISTA DO HOMEM Errc# Fromm Prefacio I. A Adulteragdo dos Conceitos de Marx Il. O Materialismo Histérico de Marx . II, © Problema da Conscifncia, da Estrutura Social e do Uso da Férga ..... a Iv. A Natureza do omen Vi. Alienagio .0......0 VI. Conceito Marxista do Soualinns ve VII. A Continuidade do Pensamento de Marx VIII. Marx, 0 Homem MANUSGRITOS ECONOMICOS E FILOSOFICOS Kart Marx Nota do tradutor ings Prefacio ...... Primeiro Manuscr Segundo Manuscr Terceiro Manuscrit “Trabalho Alienado . ‘ ‘A Relagéo de Propriedade Privada Propriedade Privada e Trabalho . Propriedade Privada ¢ Comunismo Necessidades, Produgio ¢ Divisio do Tra- balho .. 7 Dinheiro Critica da’ Filosofia Dialética’ e Geral de Hegel Excertos de IDEOLOGIA ALEMA, Karl Marx Preficio. a UMA CONTRIBUIGAO A CRITICA DA ECONO- MIA POLITICA. Karl Marx Da Introducio A Critica da FILOSOFIA DO DIREITO, de gel. Critica da Religifo. Karl Marx : Reminiscéncias de Marx. Paul Lafargue De Jenny Marx a Joseph Weydemeyer Karl Marx. Eleanor Marx-Aveling Gonfissio, Karl Marx : © Puneral de Karl Marx. Friedrich Engels A PAG. 13 19 29 34 50 62 a 80 85 87 89 103 110 114 127 144 149 171 187 189 190 207 212 ore 220 pIyULoO t Adulteragéo dos Conceitos de Marx U MA das estranhas ironias da Histéria é nfo haver limites para os erros de interpretacio € as deturpagdes das teotias, mes- yo numa €poca de acesso irrestrito as fontes; nfo ha exemplo nals drastico désse fendmeno do que © acontecido com a teoria de Karl Marx nos tiltimos decénios. So constantes as referén- see Maree 20 marxismo na imprensa, nos discusses de poli- ticos, em livos € artigos esctitos por respeitaveis clentistas sociais © filésofos; no entanto, com poucas excegdes, parece que oS jorna- Vistas ¢ politicos jamais viram sequer de telance uma linha es- crita por Marx ¢ que os cientistas sociais se satisfazem com um minimo de conhecimento da obra déle, Aparentemente sentemn- Ara, galyo ein, Gen papel’ de yperitos: no \asaunto,, visto Ae nin: guém com poder ¢ slatus no campo da pesquisa social contesta ‘uas afirmages ignaras. * TP triste dizer, mas_ndo pode, ser evitado, que eas ignorin- } cla © essa deturpagdo de Marx so mais comuns nos Estados Unidos do | fue em outro qusiquer pais ocidental. Deve. st especialmente men lunndigs que’ nos dleinos quince” anos Houve 0% exuraordinario re tlonide Wo de discusses sObre Marx na Alemanhe © 7, Franga, mor | mente em torno dos Manuscritos Econémicos @ Filoséficos publicados Mite volume, Na Alemanba, os participantes dos debates so sobre- Ilo. tedlogos protestantes. _Menciono, inicialmente, os extraordiné- Wie Mfarxiimusstudien (“Estudos Maristas”), organizados por I. Fets- Mean g volumes, 1. CG. B. Mobr (Tubingen, 1954, 1957). Ademais, ( heh fiento introdugio por Landshur A edico Kronee dos Manuscritos. mM ogult, ns obras de Lukacs, Bloch, Popitz, ¢ out, citados adiante. A tition Unidos, tem sido observado tltimaments interésse por Nia que ereace nor poucos. Infelizmente, ep Dalle Oe manifesta atra~ vine dlivorion livros cheios de prevengao ¢ adulteragées, como The Red Prussian do Schwarzschild, ou de livros excessivamente simplifi- 14 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM Dentre tédas as incompreensdes existentes, provavelmente a mais disseminada é a idéia sdbre o “materialismo” de Marx. Ale- ga-se ter sido opinido de Marx que a suprema motivacio psico- légica do homem € seu desejo de vantagem monetiria e con- fétto, e que éste anelo pelo lucto miximo constitui o principal incentivo em sua vida pessoal ¢ na vida da raga humana, Com- plementando esta idéia, hi a suposigio igualmente difundida de tet Marx negligenciado o valor do individuo; déle nao ter tespeito nem compreensiio das necessidades espirituais do ho- mem, e de tet sido seu “ideal” a pessoa bem nutrida e bem ves- tida, porém, “sem alma’, Sustentou-se que as criticas feitas por Marx A religifo equivaliam & negacio de todos os valéres espiti- tuais, e isso pareceu bem mais evidente aos que julgam ser a crenga em Deus a base de qualquer orientagio espiritual. Esta opiniio acérea de Marx prossegue para examinar seu paraiso socialista como um ugar onde milhdes de pessoas se submetem a uma pburocracia estatal todo-poderosa, pessoas que renunciaram & sua liberdade, ainda que possam ter alcangado a igualdade; ésses “individuos” materialmente satisfeitos perderam sua individualidade ¢ foram devidamente transformados em milhdes de rob6s e autématos uniformes, ditigidos por uma pequena elite de Iideres mais bem alimentados. cados ¢ enganadores como The Meaning of Communism de Overstreet. Em contraste, Joseph A. Schumpeter, em seu Capitalism, Socialism and Democracy (Harper & Brothers, 1947), dé uma excelente apre- sentagio do marxismo. Cf, também, sdbre o problema do naturalis- mo hist6rico, ‘Christianity and Communism de John C, Bennet (Asso- ciation Press, New York). Ver, igualmente, as excelentes antologias (e introdugdes) de Feuer (Anchor Books) ¢ de Bottomore e Rubel (Watts and Co., Londres). Especificamente, acérca da opiniio de Marx sobre a natureza humana desejo mencionar Human Nature: The Marxist View, por Venable, que, malgrado sagaz ¢ objetiva, pax dece do fato de o autor nio ter podido recorer aos Manuscritos Econdmicos ¢ Filosdficos. Cf., ainda, para a base filoséfica do pen- samento de Marx, o brilhante e penetrante livro de H. Marcuse, Reason and Revolution (Oxford University Press, New York, 1958). Ver, também, meu estudo de Marx em The Sane Society, ja citada, a minha discussio anterior da teoria de Marx em Zeitschrift fiir So- zialforschung, vol. I (Hirschfeld, Leipzig, 1932). Na Franca, os debates tém sido em parte conduzidos por padres catdlicos e em. parte por filésofos, na maioria socialistas. Entre os primeiros, cito espe- cialmente J. Y. Calvez, La Pensée de Karl Marx, ed. Du Seuil, Paris, 1956; entre os ailtimos, A, Kojéve, Sartre e, sobretudo, as varias obras de H. Lefebvre, A ADULTERAGAO DOS CONCEITOS DE MARX 15 Basta dizer, desde logo, que esta imagem popular do “ma- terialismo” de Marx — sua tendéncia antiespiritual, seu desejo de uniformidade ¢ subordinagio — € inteiramente falsa, A meta de Marx era a emancipacio espititual do homem, sua li- bertagio dos grilhdes do determinismo econémico, sua teinte- gragio como ser humano, sua aptidio para encontrar unidade e harmonia com seus semelhantes e com a natureza. A filoso- fia de Marx foi, em linguagem secular, nfo-tefstica, um névo e radical passo A frente na tradicio do messianismo profético; ela visava a plena realizacio do individualismo, exatamente © objetivo que presidiu ao pensamento ocidental desde o Re- nascimento e a Reforma até a época bem avancada do século XIX, ste quadro, sem divida, deve chocar a muitos leitores, em face de sua incompatibilidade com as idéias acérca de Marx a que tém sido expost Antes de continuar para substancié-lo, porém, quero ressaltar a ironia existente no fato de a desctigio feita da meta de Marx e a do contetido de sua visio do socia- lismo ajustarem-se quase exatamente a realidade da sociedade ca- pitalista ocidental dos dias de hoje, A maioria das pessoas é motivada por um desejo de maiores ganhos materiais, con- forto e aparelhos de téda sorte, e ésse desejo s6 é restringido pelo desejo de seguranca e de evitar os riscos. Elas ficam cada vez mais satisfeitas com uma vida regulamentada e dirigida, tanto na esfera da produgio quanto na do consumo, pelo Estado e grandes emprésas e pelas respectivas méquinas buroctiticas; clas chegaram a um gtau de conformismo que eliminou 0 indi- vidualismo em grande parte. Elas so, para empregar a expresso de Marx, impotentes “homens-mercadoria” que servem a méqui- nas viris. O préprio retrato do capitalismo de meados do século XX € dificil de ser distinguido da caricatura do socialismo mar- xista desenhada por seus opositores. O que € ainda mais surpreendente € 0 fato de as pessoas, qué acusam Marx mais amargamente de “materialista”, ataca- fem 0 socialismo por set visiondrio ao mao reconhecer que 0 Yinico incentive eficaz para o homem trabalhar reside em seu desejo de ganhos materiais, A ilimitada capacidade do homem para negar contradigées flagrantes por meio de racionalizacées, desde que lhe convenha, dificilmente poderia ser melhor de- monstrada, As mesmissimas razdes alegadas como prova das idéias de Marx serem incompativeis com nossa tradigio religiosa 16 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM ¢ espititual, e emptegadas para defender nosso sistema atual cuie Marx, sfo 20 mesmo tempo usadas, pelas mesmas pessoas, para provar que o capitalismo correspond ee humana €, por: tanto, é bem superior a um socialismo “visiondtio". Procurei demonstrar a total falsidade desta interpretagio de Marx, bem como que a teoria déle nfo admite a vantagem ma. terial como principal motivacio do homem; que, além as 8 propria meta de Marx @ libertar 0 homem da pressio das cessidades econdmicas, de modo a poder set completamente hu- mano; que Marx esti fundamentalmente inte ss a Ce cipaséo do homem como individuo, na superagio da_alienacio, na testauracio da capacidade déle para relacionar-se ee com seus semelhantes € com a natureza; que a filosofia de Marx constitui tum existencialismo espiritual em linguagem secular e, pot forca desta qualidade espiritual, opéese & pelle ule lista e A tnuemente disfarcada filosofia materialista de nossa época. A meta de Marx, 0 socialismo baseado em sua teoria dp homem, é essencialmente o messianismo profético expresso em linguagem do século XIX. Como pode, entio, a filosofia de Marx set tio per mente mal interpretada e deformada? Sto diversas as ruzoes. 4 primeita e mais obvia € a ignorancia. Afigura-se que, nfo sendo ésses assuntos ensinados nas universidades e, por conseguinte, nao sujeitos a exames, déo margem de “liberdade” para todos cS sarem, escreverem e falacem como bem entendem ¢ sem qual- quer conhecimento de causa. Néo hi propriamente pica consagradas aptas a insistir no respcito pelos fatos ¢ na_verda- de. Daf todos acharem-se com direito a falar de Marx sem o ha- verem lido ou, pelo menos, sem o haverem lido suficientemente para obler uma idéia de seu sistema de pensamento, deveras com- plexo, intrincado e sutil. Em nada melhorou a situasio 0 fate de 0s Manuscritos Econémicos e Filosdficos, a principal obra fi- Jos6fica de Marx dedicada a seu conceito do homem, de ee de emancipacio etc, nfo tetem sido senfo até bem pouco trad: zidos para o inglés,® e por isso serem desconhecidas do mundo at io inglé: i i 1959, na Gra- 2 A primeira versio inglésa foi publicada em 1959, ; “Bretanha, pot Lawrence and Wishart, Ltd., utilizando uma tzadugio recentemenie publicada pela Editéra de Linguas Estrangeiras de Moscou. A traducio por T. B. Bottomore, incluida neste volume, € a primeira feita por um estudioso ocidental. \ A ADULT RAGAO DOS CONCEITOS DE MARX 17 de lingua inglésa algumas de suas idéias. Este fato, todavia, niio é de forma alguma suficiente para explicar a ignorancia predominante: primeito, porque, nfo ter sido essa obra de Marx traduzida antes para o inglés, é em si mesmo tanto sintoma co- mo causa da ignorancia; segundo, porque a orientacio principal do pensamento filoséfico de Marx € bastante clara nos traba- Ihos anteriormente publicados em inglés para evitar a adulteragio ocortida. Outra razio consiste em terem os comunistas russos se apto- ptiado da teoria de Marx e tentado convencer 0 mundo de que sua pritica e teoria obedeciam as idéias déle. Malgrado 0 oposto seja a verdade, 0 Ocidente aceitou as alegagdes da propaganda déles e admitin que a posigio de Marx corresponde a opiniio ¢ A pritica tussas, Nao obstante, os comunistas russos nfo sao os finicos culpados da ma interpretagio de Marx, Embora o des- prézo brutal dos tussos pela dignidade individual ¢ pelos val6res humanistas seja, de fato, especifico déles, o érro de interpretar Marx como propositor de um materialismo econdmico-hedonista também foi compartilhado por muitos dos socialistas anticomunis- tas e reformistas. Nao é dificil perceber as razdes disso. Con- quanto a teoria de Marx fésse uma critica ao capitalismo, muitos de seus adeptos estavam entranhadamente impregnados do es- pirito do capitalismo que intrepretatam o pensamento de Marx nas categorias econémicas e materialistas vigentes no capitalismo contemporaneo. Com efeito, apesar de os comunistas soviéticos, sim como os socialistas reformistas, acreditarem ser inimigos do capitalismo, conceberam o comunismo — ou socialismo — se- gundo o espitito do capitalismo, Para éles, 0 socialismo nio é uma sociedade humanamente diferente do capitalismo, mas, an- tes, uma forma de capitalismo em que a classe trabalhadora ti- vesse atingido uma posi¢io superior; éle é como Engels certa feita observou irénicamente, “a sociedade de hoje sem seus de- feitos”. Até aqui abordamos razées racionais ¢ realistas para a de- turpagio das teotias de Marx. E inegvel, contudo, haver tam- hén raz6es irracionais que ajudaram a produzir tal distorcio. A Riissia Soyiética tem sido encarada como a propria encarnagio de todo o mal; dai terem suas idéias assumido a qualidade do que € diabélico, Tal e qual em 1917, quando dentro de relativamente pouco tempo o Kaiser ¢ os “hunos” foram olhados como a corpo- rificagio do mal, e até a misica de Mozart se tornou parte do territétio do diabo, assim também os comunistas tomaram o a 18 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM Iugar do diabo e suas doutrinas nfo so examinadas com objetivi- dade, A razio geralmente dada para éste ddio é 0 tertor prati- cado por Stalin durante muitos anos, Ha sérias razdes, contudo, para pér em davida a sinceridade desta explicagio; os’ mesmos atos de terror e desumanidade quando praticados pelos franceses na Argélia, por Trujillo em Sio Domingos ¢ por Franco na Es- panha nfo provocam nenhuma indignagio moral equivalente; de fato, nenhuma indignagio, Outrossim, a mudanga do sistema de terror itrefreado de Stalin para o reacionirio Estado policial de Kruschey recebeu insuficiente atengio, malgrado fosse de imagi- nar que qualquer pessoa sériamente interessada na liberdade hu- mana perceberia e ficatia feliz com tal mudanca, que, embora_ nfo suficiente, é um grande melhoramento com relacio a0 terror indisfarcado da era de Stalin. ‘Tudo isso faz-nos pensar se a in- dignagio contra a Russia tera deveras suas raizes em sentimen- tos morais e humanitérios, ou antes no fato de um sistema que no admite a propriedade privada set considerado desumano ¢ ameacador. dificil dizer a qual dos fatéres acima mencionados cabe maior responsabilidade pela deturpacio e ma interpretacio da fi- losofia de Marx. Provavelmente variam de importancia confor- me a pessoa € 0 grupo politico, ¢ € improvavel set qualquer déles © tinico fator responsivel. APLILZULO II O Materialismo , : Yistérico de Marx A PRIMMIRA barreira a ser uma conyeniente compreensio yvencida, a fim de chegar-se a pretagio errdnea do conceito ‘a filosofia de Marx, é a inter- lismo histérico, Aquéles que de materialismo ¢ de materia gundo a qual o interésse materlulgam ser esta uma filosofia se- nhos materiais e conférto sempel do homem, seu desejo de ga- tivagiio, esquecem o fato singelare crescente é sua principal mo- terialismo”, como sao utilizadas das palavras “idealismo” ¢ “ma- sofos, nada terem a ver com apor Marx e todos os outros fil6- superior e espiritual comparaday motivagio psiquica de um plano abjeto, Na terminologia filosé, com outras de plano inferior lismo”) refere-se a uma opiniao ica, “materialismo” (ou “natura- ria em movimento € o eleme,filosdfica segundo a qual a maté- universo, Nesta acepgio, os filito constitutivo fundamental do “materialistas”, conquanto nfo sofos gregos pré-socraticos foram sentido acima mencionado da » féssem, de forma alguma, no principio ético, Por idealismovalavra como juizo de valor ou filosofia onde nio € 0 mundo ¢ pelo contririo, entende-se uma Gio que constitui a realidade, ‘»s sentidos em permanente muta- idéias. O sistema de Platao foe sim esséncias incorpéreas, ou qual foi aplicado o nome “ideali’ o primeiro sistema filoséfico ao acepcio filoséfica, um materialjita”, Se bem que Marx fdsse, na quer se intetessou pot essas queita em ontologia, éle jamais se- Entretanto, hé mauitas espe“5¢s, € muito menos tratou delas. idealistas, € para compreender ies de filosofias materialistas ¢ de ir além da definigéo geral | “materialismo” de Marx temos assumiu uma posigio firme c,lada acima. Marx, na verdade, corrente entre muitos dos penjvfre um materialismo filosfico ‘adores mais progressistas (espe- ' 20 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM cialmente cientistas naturais) de seu tempo. Esse materialismo alegava que “o” substrato de todos os fendmenos mentais e es- pirituais devia ser encontrado na matéria e em processos mate- tiais. Em sua forma mais vulgar e superficial, éste género de materialismo ensinava que sentimentos e idéias sao suficiente- mente explicados como resultados de processos da quimica ot- ginica, e que “o pensamento era para o cérebro o que a urina é para os fins”. Marx combateu ésse tipo de materialismo mecinico, “bur- gués”, “o materialismo abstrato da ciéncia natural, que excluia a Histéria e seus processos”,! e para seu lugar advogou o que denominou, em Manuseritos Econdmicos e Filosdficos, “natu- ralismo ou humanismo {que} é diferente tanto do idealismo quan- to do materialismo, e, ao mesmo tempo, constitui a verdade que os unifica”.?- De fato, Marx nunca empregou as expressdes “materialismo histérico” ou “materialismo dialético”; éle falou, isso sim, de seu préprio “método dialético”, em contraste com o de Hegel, ¢ de sua “base materialista”, pelo que se referia simples- mente as condicSes fundamentais da vida humana. Bste aspecto de “materialismo”, 0 “método materialista” de Marx, é que distingue seu modo de ver do de Hegel. Im- plica o estudo da verdadeira vida econdmica e social do homem e da influéncia do estilo real da vida do homem em seus pen- samentos e sentimentos. “Em oposigio direta 4 filosofia alema”, escreveu Marx, “que desce do céu para a terra, aqui ascendemos da terra ao céu. Quer isso dizer: nao partimos daquilo que os homens imaginam, concebem, nem de como séo os homens desctitos, imaginados, concebidos, a fim de chegar aos homens de carne e osso. Partimos de homens reais e atuantes e, ba- seados no processo de sua vida real, demonstramos a evolugio dos reflexor e ecos ideoldgicos désse proceso vital.’ Ou ent@o, segundo éle mesmo diz, de maneita um tanto diversa: “A filosofia da Histéria, de Hegel, nada mais é que a expressio filoséfica do dogma cristio-germinico a respeito da contradi¢io 1 © Gapital, 1, Karl Marx, Charles H. Kerr & Co., Chicago, 1906, pag. 406. 2 Economic and Philosophical Manuscripts, pag. 181. 3 German Ideology, Karl Marx I’, Engels, organizado com uma introdugio por R. Pascal, New York, International Publishers, Inc., 1939, pag. 14, (O grifo é meu — E. F,) © MATERIALISMO HISTORICO DE MARX 21 entre espirito © matéria, Deus e 0 mundo... A filosofia hege- liana da Historia pressupde um espirito abstrato ou absoluto, que evolui de tal forma que a humanidade € apenas 0 corpo por- lador désse espitito, consciente ou inconsciente. Hegel admite uma histéria especulativa, esotérica, precedendo e existindo subja- cente d histéria empitica. A histéria da humanidade é transfor- mada em histéria do espirito abstrato da humanidade, transcen- dente ao homem real.” 4 Marx escteveu seu prdptio método histérico assaz_ sucinta- mente: “A maneira pela qual os homens produzem seus meios de subsisténcia depende, antes de mais nada, da natureza dos meios conctetos de que dispdem ¢ tém de reproduzir, Bate modo de produgio niio deve ser considerado como mera repto- dugiio da existéncia ffsica dos indiyfduos, #, antes, uma forma definida de atividade désses individuos, uma forma definida de expressacem sua vida, um modo de vida definido de parte déles. Como os individuos exprimem sua vida, assim éles o fazem. © que éle si, portanto, coincide com a produgio déles, tanto com 9 que produzem quanto com o como produzem. A natu- reza dos individuos depende, assim, das condigées materiais de- terminantes de sua produgio.” 5 Marx distinguiu o matetialismo histérico do materialismo contemporineo de forma bastante clara, em sua tese sobre Feuer- bach: “O defeito capital de todo o material até agora (incluindo © de Feuerbach) € que o objeto, a realidade, 0 que apteendemos por intermédio de nossos sentidos, sé é entendido sob a forma de objeto ou contemplacio (Anschauung); nfo, porém, como ali- vidade humana sensorial, como pydtica; nao subjetivamente. Por isso, em oposigéo ao materialismo, 0 aspecto ativo foi desenvolvi- do abstratamente pelo idealismo — que, est4 claro, nfo conhece a verdadeita atividade sensocial como tal. Feuerbach quer os objetos sensoriais realmente distinguidos dos objetos do pensa- mento; le nio compreende, porém, a atividade humana em si como uma atividade objetiva.”® Marx — como Hegel — a vé como um objeto em seu movimento, em seu vir-a-ser, € no co- mo um “objeto” estético, suscetivel de explicacio pela descoberta 4K. Marx ¢ F, Engels, Die Heilige Famile (“A Familia Sa- giada”), 1845, (‘Tradug’o minha — E. F.) 6 German Ideology, K. Marx ¢ F. Engels, op. cit., pag. 7. ns on Feuerbach”, German Ideology, op. cit, pag. 197. CONCEITO MARXISTA DO HOMEM de sua “causa” fisica. Ao contrétio de Hegel, Marx estuda o homem e a Histéria partindo do homem teal e das condigdes econdmicas e sociais em que éle tem de viver, ¢ nao primordial- mente das idéias déle. Marx achaya-se tio afastado do materia- lismo burgués quanto do idealismo hegeliano — dai poder dizer, acertadamente, n@o ser a sua filosofia nem idealismo nem materia- lismo, porém uma sintese: humanismo e naturalismo. A ésse ponto, jé deve estar claro por que é erténea a idéia popular acérca da natureza do materialismo hist6rico. Ela pre- sume que na opinido de Marx a mais forte motivacio psicolégica do homem seja ganhar dinheiro e ter mais conférto. material; se esta € a principal forca no intimo do homem, prossegue essa “‘in- terpretagio” do materialism histérico, a chave para se compreen- der a histéria sio os desejos materiais dos homens; portanto, a chaye para explicar a histéria € a barriga do homem, bem co- mo sua cobiga de satisfagio material. O érro fundamental em que se apdia esta interpretacio € a suposisiio do materialismo his- torico ser uma teoria psicolégica concernente aos impulsos e pai- x6es do homem, De fato, contudo, o materialismo histérico nao de forma alguma uma teoria psicoldgica; ela alega que a forma por que o homem produx determina seu pensamento e seus de- Sejos, ¢ ndo que’ seus desejos principais sejam os de méximo ganho material, A economia, neste contexto, refere-se nio a um im- pulso psiquico, mas ao modo de produgio; nfo a um fator subjetivo, psicoldgico, porém objetivo © econdmico-sociolégico. A tinica premissa quase-psicolégica da teoria jaz na suposi- cio de o homem carecer de alimento, abrigo etc, e por isso precisa produzir; dai o modo de produgio, dependente de varios fatéres objetivos, como que precede e determina as outras esferas de sua atividade, As condig6es dadas objetivamente que determinam o modo de producio, e em conseqiiéncia a orga- nizagio social, determinam o homem, suas idéias, assim como seus interésses, Com efeito, a idéia de que “as instituigdes for- mam os homens”, na expressio de Montesquieu, era um discer- nimento antigo; a novidade de Marx foi sua minuciosa anilise das instituigdes, mostrando como estavam enraizadas no modo de prtodugio e nas fdrgas produtivas subjacentes. Certas condigdes econdmicas, como as de capitalismo, ptoduzem como principal incentivo 0 desejo de dinheiro e propriedade; outras condigdes eco- ndmicas podem produzit exatamente os desejos opostos, como os de ascetismo e desprézo pelas riquezas terrestres, tais como sio encontrados em muitas culturas orientais e nas etapas iniciais © MATERIALISMO HISTORICO DE MARX 25 do capitalismo.” A paixto pelo dinheiro e pela propriedade, Segundo Marx, € tao econdmicamente condicionada quanto as paixbes diametralmente opostas. 8 A interpretacio “materialista” ou “econdmica” da Historia feita por Marx nada tem a ver, absolutamente, com um su- posto anelo “materialista’” ou “econédmico” considerado como o impulso mais fundamental do homem, Ela significa que o ho- mem, o homem real e total, os “individuos vivos reais” — e nao as idéias produzidas por éstes “individuos” — sio o tema da His- toria e da compreenséo das Ieis desta. De fato, a interpretagao marxista da Hist6ria poderia ser denominada uma_interpreta- Gio antropolégica da Histéria caso se quisessem evitar as ambig dades dos térmos “materialista” e “econémico”; cla é a compre- ensiio da Histéria baseada no fato de os homens serem “os au- tores e atéres da sua histéria’”. % 10 Com efeito, uma das grandes diferencas entre Marx e a maioria dos esctitores dos séculos XVIII e XIX é éle no consi- 7 “Enquanto o capitalismo do tipo clissico ferreteia 0 con- sumo individual como um vicio contra sua fungdo, de abster-se de acumular, 0 capitalismo modernizado é capaz de olhar a acumulagio como abstinéncia de prazer” (O Capital, 1, loc. cit., pag. 650). 8 Tentei clucidar éste problema em um artigo “Uber Aufgabe und Method einer Analytischen Sozialpsychologie” (‘Sébre 0 Método © Objetivo da Psicologia Social Analitica”), Zeitschrift fiir Sozial- forschung, vol. 1. G. L. Hirschfeld, Leipzig, 1984, p4gs. 28-54. ® Marx-Engels Gesamtausgabe, Marx-Engels Verlag, org. por P. Riazanoy. Berlim, 1932, I, 6, pag. 179. (A abreviatura MEGA seré usada nas referencias ulteriores a esta obra.) 10 Ao rever éste manuseritoe, deparei com uma excelente inter- pretagio de Marx, caracterizada nfo s6 pelo conhecimento perfeito como por uma genuina compreensio, da autoria de Leonard Krieger, “The Uses of Marx for History”, em Political Science Quarterly, vol. XXXV, 3. Diz éle: “Para Marx, a substiincia comum da His. a era a atividade dos homens — “Os homens simultancamente autores ¢ at6res de sua propria hist6ria” — c essa atividade estendia-se igualmente a todos os niveis: modos de producdo, relagies e categorias sociais” (pag. 362). Quanto ao alegado cardter “Materialist” de Marx, escreve Krieger: “O que nos intriga acérca de Marx é sua capacidade para descobrir um racional essencialmente ético através © no longo dos séculos, a0 mesmo tempo que percebe a diversidade © complexidade da existéncia histérica” (pg. 362). (Os gtifos sio mous == E, F.) Ou adiante (p4g. 368): “Nao ha aspecto mais carac- teristica do arcabougo filoséfico de Marx do que sua reprovagio categdrica do interésse econdmico como uma distorgio vis-d-vis do homem moral integral.” M CONCEITO MARXISTA DO HOMEM erat o capitalismo como resultado da natureza humana e a mo- tivagio do homem no capitalismo como a motivacio universal intrinseca ao homem. © absurdo da opinigo segundo a qual Marx considerava set o anscio de lucto maximo 0 mais ptofun- do motivo do homem torna-se mais evidente quando se leva em consideragio ter Marx feito divetsos pronunciamentos bem di- retos sobre os impulsos humanos. le diferencava entre im- pulsos constantes ou “fixos”, “existentes em quaisquer circuns- tancias e mutaveis pelas condigées sociais no tocante a diregio ¢ forma”, e impulsos “relativos” que “devem sua origem apenas a um certo tipo de organizacéo social”, Marx admitia o sexo © a fome pertencendo & categoria de impulsos “fixos”, mas nun- ca Ihe ocorreu considerat o impulso por vantagem econdmica maxima como um impulso constante. 11 Nem € preciso, aliés, de provas assim das idéias psicolégi- cas de Marx’ para mostrar que a suposic¢io popular sObre 0 ma- terialismo marxista est4 totalmente errada, Téda critica feita por Marx ao capitalismo é exatamente de éste ter feito do in- terésse pelo dinheito e pelos ganhos materiais 0 principal motivo do homem, e seu conceito de socialismo é precisamente o de uma sociedade em que ésse interésse material deixasse de ser © dominante. Isto ficar ainda mais clato adiante, quando exa- minarmos 0 conceito de Marx a respeito da emancipacio e li- berdade humanas em pormenor. Como salientei anteriormente, Marx parte do homem, que faz a sua prdptia historia: “A primeira premissa de téda a historia humana 6, naturalmente, a existéncia de individuos humanos vivos. Assim, 0 primeiro fato a ser estabelecido é a organizagio fisica désses individuos e sua conseqiiente relagfo com o resto da natureza, Evidentemente, nao podemos envere- dar aqui pela natureza fisica real do homem ou pelas condigdes halurais em que o homem se encontra — geoldgicas, oro-hidrogré- ficas, climéticas e assim por diante. A descricio da histéria tem sempre de iniciar-se por essas bases naturais e pelas suas modi- ficagbes no curso da histéria gracas 4 acio do homem, Os ho- mens podem ser distinguidos dos animais pela consciéncia, pela Feligifio ou por outro clemento qualquer que se queiza conside- rat, les prdprios comecam a produzir seus meios de subsistén- cli, uum paso que & condicionado por sua organizacio fisica, 1 MIGA, V, pag. 596. © MATERIALISMO HISTORICO DE MARX 25 Pelo fato de produzirem seus meios de subsisténcia, os homens indiretamente estio produzindo sua vida material real,” 12 F muito importante entender a idéia fundamental de Marx: © homem faz sua propria historia; @le € seu proprio ctiador, Conforme éle o exprimiu, muitos anos depois em O Capital: “EB nfo seria mais facil compilar essa histria, desde que, como diz Vico, a histéria humana difere da hist6ria natural por nds tér- mos feito a primeira mas nfo a ultima.”28 © homem dé a luz a si ptéprio no decurso da Histéria. © fator essencial déste ptocesso de autocriagio da raca humana esté na sua relacéo com a natureza. O homem, na alva da Histéria, esté cegamente vinculado ou agrilhoado 4 natureza. Com o cotter da evolucio, @le transforma sua telacio com a natureza ¢, por conseguinte, consigo mesmo, Marx tem mais a dizer, em O Capital, sobre esta depen- déncia_da natureza: “Aquéles antigos organismos sociais de producio eram, comparados com a sociedade burguesa, extre- mamente simples ¢ transparentes. Eram baseados, porém, seja no desenvolvimento imatuto do homem individualmente, que ainda nfo cortou o cordéo umbilical que 0 liga a seus semelhan- tes em uma comunidade tribal primitiva, seja em relagdes dire- tas de submissio. Bles s6 podem surgit ¢ existir onde o desen- volvimento do poder produtivo de trabalho nio tenha saido de um estagio baixo, e quando, por conseguinte, as relacdes sociais dentro da esfera da vida material, entre os homens, e entre o homem e¢ a natureza, sejam propotcionalmente mesquinhas. Esta mesquinhez reflete-se na antiga adoragio da Natureza e nos outros elementos das religiées populares. O teflexo religioso do mundo real s6 pode, em qualquer caso, desapatecer, finalmente, quando as relacées priticas da vida cotidiana nfo oferecem 20 homem senfio relacées perfeitamente inteligiveis e razodveis com seus semelhantes e com a natureza, O processo vital da socie- dade, estribado no processo da producio material, nfo rompe seu véu mistico até ser tratado como producio por homens li- vremente associados, e é conscientemente regulado por éles de acdrdo com um plano assentado, Isso, entretanto, exige da socie. dade un certo fundamento material ou conjunto de condicdes 4 German Ideology, op. cit., pag. 7. 1 O Gapital, 1, op. cit., pag. 406, 26 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM de existéncia que, a seu turno, séo o produto espontineo de um longo ¢ penoso processo evolutivo.” Nesta declaragio, Marx fala de um elemento que exerce papel central em sua teoria: o trabalho. O trabalho é o fator que medeia entre 0 homem ¢ a naturcza; € 0 esf6rco do ho- mem pata regular seu metabolismo com a natureza. O tra- balho € a expressio da vida humana e através déle se altera a telagio do homem com a natureza; por isso, através do tra- balho, o homem transforma-se a si mesmo. Adiante, estender- -nos-emos acérca déste conceito de trabalho. Concluirei éste capitulo, transcrevendo a mais completa formulagio feita por Marx do conceito de materialismo histé- rico, esctita em 1859: "O resultado geral a que cheguei, e que, uma vez alcan- gado, setviu de guia a meus estudos, pode ser assim sintetizado: na producto social de sua vida, os homens ingressam em tela- Ges definidas, que sio indispensiveis ¢ independem de sua von- tade, relacées de produgio correspondentes a uma determinada etapa de evolucio de suas forcas produtivas materiais. O grande total dessas relagdes de produgio constitui a estrutura econd- mica da sociedade, o verdadeiro alicerce sébre o qual se ergue uma superestrutura juridica e politica A qual correspondem for- mas definidas de consciéncia social, O sisterna de produgio da vida material condiciona o proceso da vida social e intelectual em geral, Niio ¢ a consciéncia dos homens que determina seu ser social, porém, pelo contritio, seu ser social é que determina a consciéneia déles, Num certo estigio de sua evolugio, as fércas produtivas materiais da socledade entram em choque com as te- lagSes de produglio existentes, ou — 0 que & mera expresséo legal da mesma coisa —- com as relagées de propriedade dentro das quais elas tém atuado até entiio, De formas de evolugio das forgas produtivas, essas relagdes passam a ser entraves a elas. Inaugurase, entiio, uma época de revolugio social. Com a mu- danga das fundagbes econdmicas, (Oda a imensa superestrutura transforma-se mais ou menos ripidamente, Ao apreciar essas transformagées, sempre se deve distinguir entre a transformacio material das condigées econdmicas da produgio, suscetiveis de serem determinadas com a exatidiio da ciéncia natural, e as for- MO Capital, 1, op. cit., pags. 91-92. © MATERIALISMO HISTORICO DE MARX. 27 mas jurfdicas, politicas, religiosas, estéticas ou filosdficas — em uma palavra, ideolégicas —, pelas quais os homens tomam co- nhecimento désse conflito e tutam para resolvé-lo, Assim como nossa opinito s6bre um individuo nfo se baseia no que éle pen- sa de si mesmo, tampouco podemos julgar um periodo assim de transformacio pela prdpria consciéncia déle; pelo contratio, essa consciéncia tem de ser explicada a partic das contradigées da vida material, do conflito existente entre as fércas produtivas sociais e as relagdes de producio. Nenhuma ordem social pe- rece antes de se terem desenyolvido tédas as fércas produtivas que nela cabem; e novas relacées de produgio, mais elevadas, nunca aparecem antes das condiges materiais para sua existén- cia terem amadurecido no ventre da propria sociedade antiga, Logo, a humanidade sempre se propée apenas as tarefas que possa solucionar; pois, olhando o assunto mais de perto, sempre se constatark que a propria tarefa s6 desponta quando as con- digdes materiais para sua solugio ji existem ou, pelo menos, estio em vias de concretizar-se. Grosso. modo, os sistemas de produgiio asiiticos, da Antiguidade, feudal e burgués moderno podem ser designados como épocas progressivas da formacio eco- ndmica da sociedade. As relagdes de producto burguesas séo a tiltima forma antagénica do progresso social da produgio — nfio-antagonista na acepcio do antagonismo individual, mas de um antagonismo decorrente das condigées sociais da vida do in- dividuo; ao mesmo tempo, as f6rgas produtivas materiais no ventre da sociedade burguesa criaram as condigées materiais pa- ra a solugio désse antagonismo. Essa formacio social, portanto, conduz a pré-histéria da sociedade humana a um fecho.” 5 Seré Util novamente sublinharmos e aperfeigoarmos certas noges especificas desta teoria. Antes de mais nada, 0 concei- to marxista de mudanca histérica. A mudanga é devida 4 con- tradigio entre as fércas produtivas (e outras condiges objeti- vamente supostas) ¢ a organizacio social existente. Quando um sistema de producio ou organizaco social prejudica, ao invés de favorecer, as fércas produtivas consideradas, uma sociedade, para nfo entrar em colapso, escolherd as formas de producto adequadas ao névo conjunto de forcas produtivas ¢ as desenvolverd. 18 “Prefécio a uma Contribuigio A Critica da Economia Poli- ticn”, Marx, Engels, Selected Works, vol. 1, Foreign Languages Pu- blishing House, Moscou, 1955, pags. 362-364. a) CONCEITO MARXISTA DO HOMEM A eyvoluciio do homem em téda a histéria caracteriza-se pela Iu- 4 do homem contra a natureza, Em certo ponto da Histéria (de ucdrdo com Marx, em futuro préximo), o homem teri desenvol- vido as fOrcas produtivas da natureza a tal ponto que o anta- gonismo entre éle ¢ a natureza poderd ser, afinal, solucionado. Nesse ponto, “a pré-histéria do homem” tetminard e principiard a historia verdadeiramente humana. CAPITULO III O Problema da Consciéncia, da Estrutura Social e do Uso da Férga ee PROBLEMA da maxima importincia € aventado na pas- sagem que acabamos de citar, o da consciéncia humana. A afir- macio crucial é: “Nao é a consciéncia dos homens que determina sua existéncia, mas, pelo contrério, sua existéncia social Ihes de- termina a consciéncia.” Marx apresentou uma afirmacio mais completa relativamente ao problema da consciéncia em Ideologia Alema, “O fato, portanto, € que individuos definidos que sio pro- dutivos ativamente de uma forma definida ingressam nessas tela- G6es sociais e politicas definidas. Em cada caso distinto, observagdes empiticas devem revelar empiricamente, e sem qualquer mistifi- cagio e especulacio, a conexio da estrutura social e politica com a producéo, A estrutura social e o Estado esto continuamente evoluindo a partir do processo vital de individuos definidos, mas de individuos no como talvez parecam em sua pr6pria imagi- nagio ou na de outros, e sim como realmente sio; isto é, como silo eficazes, produzem materialmente, ¢ sao ativos dentro de limi tes materiais, suposiges e condigées definidas, alheios a suas vontades, “A produgio de idéias, de conceitos, de consciéncia é, a prin- ciplo, meselada com a atividade material e as selacdes materiais doy homens, a linguagem da vida real. Conceder, pensar, as relagbes mentais dos homens aparecem neste estégio como o aflu- x0 ditelo de seu comportamento material, O mesmo se aplica } produgiio mental expressa na linguagem da politica, das leis, da moral, du religifio, da metafisica de um povo. Os homens sio os 30 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM produtores de suas concepgées, idéias etc. — homens reais, ati- vos, tal como sio condicionados pelo desenvolvimento explicito de suas fdrcas produtivas e das relagdes a estas correspondentes, até suas formas mais adiantadas, A consciéncia nunca pode ser senao existéncia consciente, e a existéncia dos homens em seu Processo vital real, Se em t6das as ideologias os homens e suas circunstancias aparecem de cabega para baixo como em uma camara obscura, * éste fendmeno deriva tanto do processo vital histérico déles quanto da inversio dos objetos na rotina de seu processo vital fisico,” 1 Em primeiro lugar, deve notase que Marx, como Spinoza © mais tarde Freud, achava que a maioria do que os homens pensam conscientemente & uma percepcio “falsa”, & ideologia ¢ racionalizagio; que as verdadeitas molas mestras das ages do homem sio inconscientes para éste. Segundo Freud, clas tém suas raizes nos anseios libidinosos do homem; segundo Marx, em téda a organizacio social do homem que norteia sua petcepcio para certas direges ¢ o impede de dar-se conta de determinados fatos © experiéncias. 2 * Instrumento aperfeicoado no fim da Idade Média, para lan- gar, por _meio de espelhos, a imagem de um cendrio numa superficie plana, Foi largamente usado por artistas para estabelecer as propor- ges de um objeto ou cena natural. A imagem aparecia invertida no papel, embora isso fésse mais tarde corrigido com o uso de uma lente. 1 German Ideology, op. cit. pags. 13-14, 2 Gf. meu capitulo em Suzuki, Fromm e De Martino, Zen Buddhism and Psychoanalysis, Harper ‘and Brothers, New York, 1960. Cf, ainda, a declaragio de Marx: “A linguagem é tao antiga quanto @ consciéncia, ela € conscitncia pratica, pois existe para outros ho- mens, e por essa razio comeca a existir igualmente para mim pes- soalmente: pois a linguagem, como a consciéncia [percepgao], sé brota da necessidade, da necessidade de intereimbio com outros homens. nal nfo tem rela- Onde h& uma relagio, cla existe para mim: 0 a g6es com coisa alguma, nem as pode ter, Para o animal, sua rela~ gio com outros niio existe como tal, A consciéncia, portanto, & descle 0 coméco um produto social, ¢ assim permanece enquanto exis- tam os homens. A consciéncia, a’ princfpio, esta claro, ¢ mera per- cepgiio do meio fisico sensivel ¢ da ligagio ‘limitada com outras pes- soas e objetos extrinsecos ao individuo, que se vai tornando cons- ciente de si mesmo. Ao mesmo tempo, cla € percepcio da natu- reza, que de inicio se afigura aos homens como uma férga comple- tamente estranha, onipotente ¢ inyulneriivel, com a qual as relagdes dos homens sio puramente animais ¢ que os deixam totalmente ate- CONACINNGIA, ISTRUTURA SOCIAL EB USO DA PORGA 31 N importante reconhecer que esta teoria nao pretende con: teatir a realidade ou o poderio das idéias e ideais, Marx fala tle pereepsllo, nlo de ideais, # exatamente a cegueira do pensa- Mento consclente do homem que The impede tomar conhecimen+ (0 de suns verdadeiras necessidades humanas ¢ de ideais néle itnigados, 86 se a falsa percepgio € transformada em verdadeira, isto , 86 se tomamos conhecimento da realidade, ao invés de de. lurpicla por meio de racionalizages e feigdes, podemos também dar-nos conta de nossas necessidades reais e verdadeiramente hu- manas, Também deve ser observado que, paca Marx, a propria cién- cla @ todos 0s podéres intrinsecos do homem fazem parte das fOrcas produtivas que interagem com as f6rcas da natureza, Ainda no atinente A influéncia das idéias sébre a evolugio humana, Marx nilo se mostrou de forma alguma alheio a seu poder, como a inter- pretagio popular de sua obra dé a entender, Sua atgumentaco nao era contra idéias, mas contra idéias nao arraigadas na realidade hu- mana e social, que nao eram, para recorrer 4 expressio de He- Bel, “uma possibilidade seal”, “Acima de tudo, éle jamais esque- Cou que nao 6 as citcunstancias fazem o homem: éste também faz citcunsténcias. A passagem a seguir deve deixar claro quio erréneo € interpretar Marx como se éle, a semelhanca de muitos filésofos do iluminismo € muitos sociélogos de hoje, atribuisse ao homem um papel passivo no processo histérico, vendo neste um objeto passivo das circunsténcias: “A douttina matetialista [ao contrétio da opinido de Marx} teferente i mudanca das circunstincias e da educagio esquece (ue as circunstdncias sto modificadas pelos homens e que o pré- bile educador tem de ser edwcado. Esta doutrina, pot conse- Hulnte, tem de dividir a sociedade em duas partes, cada uma das uals 6 superior & sociedade [como um todo]. "A coincidéncia da mudanga das circunstincias ¢ da ati- Vidile Humana ou mudanga sé pode ser compreendida e tacio- Hulmente entendida como pritica revoluciondria.” 8 Hiorlendon como Ko from »» assim, uma percep¢%o exclusiva- Meni AHlnal di naturesn (religito natural).” — German Ideology, ap. ety phys 10, 8 Geman Ideology, op. cit. pags. 197-198 (grifos meus — HW), Gh, winbém, a’ famosa arta de Engels a Mehring (14 de Ly CONCEITO MARXISTA DO HOMEM © ‘iltimo conceito, o da “pratica revolucionaria”, leva-nos a um dos mais discutidos conceitos da filosofia de Marx, 0 de jorga. Antes de mais nada, deve set observado quiio estranho é ‘as democracias ocidentais sentixem tamanha indignagéo pot causa de uma teoria segundo a qual a sociedade pode ser transforma- da pela conguista, & fot, do poder politico. A idéia de revo- jugio politica pela forca nfo 6 de maneira alguna marxista; ela tem sido a idéia da sociedade burguesa nos ultimos trezentos anos. A democtacia ocidental é a filha das grandes revolugdes inglésa, francesa e norte-americana; a revolugio russa, de feve- teiro de 1917, e a alemi de 1918 foram cordialmente saudadas pelo Ocidente, a despeito de terem recotrido A férca. E claro que a indignagéo contra 0 uso da forca, tal como existe no mundo oci- dental de hoje, depende de quem empregue a forca, ¢ contsa qel Toda guerra baseia-se na forca; mesmo o govérno democratico es- tribarse no principio da f6rga, que permite & maioria utilizar a fore ca contta uma minotia, se necessicio fbr, pare SsseB00%) a perma- eacia do status quo. A indignacio contra a Foren sO & auténtica sob um ponto de vista pacifista, pata o qual a forca € absoluta- mente errada, ou que seu emprégo, salvo quando se tratar da defesa mais imediata, nunca Jeya a uma mudanga para melhor. Entretanto, nao basta mostrar que a idéia marxista de te- yolugio como recurso a fOrca (da qual éle excluiu como possi- bilidades a Inglaterra e os Estados Unidos) seguia a tradigfo da vinese médias deve ser ressaltado que 2 teoria de Mant consti- aia wm considerivel aperfeigoamento em felagso 90 modo de ver da classe média, um aperfeigoamento com raizes em téda a teoria de Marx sébre a Historia. Marx vin que a forga politica nfo pode produzir nada para que nao tenha lhavido preparacio no proceso politico ¢ social. Dai, a fOrga, se necessiria, pode dar por assim dizer, apenas © fltimo empurrio a uma evolucio jt virtualmente ocorrida, mas nunca poder produzir algo de realmente Meron AS farce’, disse éle, “é a patteira de t6da sociedade antiga que carrega 00 jutho de 1893), em que éle afirma terem éle © Marx “negligenciado fao salientar os aspectos formais da relagio entre & estratura s6cio- Ine aremmicn ea ideologia a estudar] ¢ mancita ¢ a forma de apare- cimento das idéias”. consciinel HATRUTURA SOCIAL E USO DA FORGA Cd venive uma nova" * B ésse exatamente um dos grandes dis- vernimenton de Marx, ao transcendet o tradicional conceito da ‘lume média — @le ndo acreditava no poder ctindor da forca, na \iéln de que a fra politica poderia por si mesma criat uma fhova ondem social, Pot essa sazao, a f6rca, para Marx, poderia er_no miximo um significado transitério, jamais o papel de ele- Menlo permanente na transformagao da sociedade, 4 O Capital, I, loc. cit, pag. 824 CAPITULO IV A Natureza do Homem I. O CONCEITO DE NATUREZA HUMANA Mex nao acteditava, como o fazem muitos socidlogos ¢ psicélogos contemporineos, que houvesse algo assim como uma natureza do homem, que éste ao nascer seja como uma félha de papel branco na qual a cultura escreve seu texto. Bem ao contririo désse relativismo sociolégico, Marx partiu da idéia de que o homem como homem & uma entidade identificivel ¢ yerificével, podendo ser definido como homem nao apenas bio- légica, anatémica e fisioldgicamente, mas também psicoldgica- mente. Evidentemente, Matx nunca se mostto tentado a supor que a “natureza humana” fésse idéntica Aquela expressio particular da natuteza humana predominante em sua propria sociedade. Ao argumentar contra Bentham, disse Marx: “Para saber o que é itil para um cio, precisa-se estudar a natureza canina. Essa na- tureza, em si mesma, nfo deve ser deduzida do principio de utili- dade. Ao aplicar isso ao homem, quem criticar todos os atos, movimentos, relagdes etc. humanos, pelo principio de utilidade, teté primeiro de lidar com a natureza humana em geral, e de- pois com a natureza humana modificada de cada época histé- rica,” 1 Deve set notado que éste conceito de natureza humana niio é para Marx — como tampouco 0 era para Hegel —, uma abstragiio. E a esséacia do homem — em contraste com as varias formas de sua existéncia histérica —, e, como falou Marx, “a esséncia do homem nao é uma abstracio inerente a cada indi- 1 O Gapital, 1, p&g. 668. A NATUREZA DO HOMEM. 35. vile de per si." Também deve ser afirmado que esta frase de O Cupitul oscrita pelo “velho Marx” sevela a continuidade do tuicello de esséncia do homem (Wesen) sbre o qual o jovem Minx excteveu nos Manuseritos Econdmicos e Filoséficos. Nao Huis eMpreyou o tétmo “esséncia” posteriormente, por ser abstrato © nilohistérico, mas claramente manteve a nogio dessa esséncia em lima versio mais histérica, na diferenciagio entre “natureza humans em geral” e “natureza humana modificada” de cada épo- eu histéricn Ohedecendo a essa distincio entre uma natureza humana fenil © A expressito especifica da natureza humana em cada cul- tur, Marx reconhece, consoante j4 mencionamos acima, dois ti- pow de impulios ¢ apetites humanos: os constantes ou fixos, como i fome @ © desejo sexual, que sio parte integrante da natureza humana e 46 podem variar na forma e direcio assumidas em diversi cullurns, @ 08 relatives, que nfo fazem parte integrante ti naturewa humana, mas “devem sua origem a certas estruturas soclul @ condighes de produgio ¢ de comunicagio”.8 Marx cita como exemplo ay “necessidades de dinheiro”, escreveu éle nos Ma- nuseritos Heondmieos e Pilosdficos, “é, portanto, a necessidade real triad pela economia moderna, e¢ a tnica necessidade por cla crlidas., — Iiso é demonstrado subjetivamente em parte pelo ato li expansio de produgiio e de necessidade tornar-se uma. subser- vievicli engenhosa @ sempre caleulista a apetites desumanos, de- pravados, wotinatutas @ /magindrios”, 4 1) jolenelil do homem, pare Marx, é@ um potencial dado; OH homem @% por aim diver, & matéria-prima humana que, oie ti, Allo pore wer modificada, tal como a estrutuea do cé- teh Vein periiutieeida a mesma deade a aurora da historia, Con- (ide, o hanem de five muda no decurio da histéria: éle se de- senvalye, ae tianeforma, @ 0 produto da histéria; assim como ée fie A Kitdrli, @le @ yeu préprio produto, A Histéria é a hi (ilk di dutorrealivigio lo homem) ela nada mais é que a auto- tiigte le Homem por tntermédio de seu proprio trabalho e pro- Higias "9 vonjunte daguilo a que se denomina histdria do mun- 4 German Tdeatogy, of) eit, phy, 198, ) “Hollies Paniile’, MRGA, V, pay, 959. [Tradugio minha do alanine Ay Hy + Mevuiiliog Reondmleos ¢ Filosdficos, pag. 141, (Doravante A inaila & alvevintura MIU.) 46 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM lo nlio passa de criagio do homem pelo trabalho humano ¢ 0 aparecimento da natureza para o homem; por conseguinte, éle tem a prova evidente e irrefutivel de sua autocriagdo, de suas proprias origens”. 5 If. ATIVIDADE PROPRIA DO HOMEM © conceito marxista do homem nasce do pensamento de Hegel. Este principia com o discernimento de que aparéncia e esséncia nao coincidem, A misso do pensador dialético é “dis- tinguir 0 essencial do processo aparente da realidade e apreender suas relagées”. Ou, por outras palavras, é 0 problema da re- lagio entre esséncia e existéncia. No processo da existéncia, a esséncia se realiza e, ao mesmo tempo, existir significa um re- térno a esséncia. “O mundo é um mundo alienado ¢ falso enquan- to o homem nao destréi sua objetividade inerte e se reconhece € A sua propria vida “por trés” da forma fixa das coisas ¢ das leis. Quando éle, afinal, adquire essa antoconsciéncia, esta no rumo nio sé de sua propria verdade, mas também da do mundo. E o reconhecimento € acompanhado pela aco, Ble procurard por essa verdade em acho, ¢ fazer do mundo o que € essencial- mente, ow seja, a realizacio da autoconsciéncia do homem.” 7 Para Hegel, 0 conhecimento nfo é conseguido na posigzo de separacio entte sujeito e objeto, na qual o objeto é entendido como algo se- parado oposto a quem pensa, A fim de conhecer 0 mundo, © homem tem de fazer do mundo o seu préprio mundo. O ho- mem e as coisas acham-se em constante transicfo de uma simili- jude para outta; por isso, “uma coisa é por si mesma sdmente quando assentou (geselzé) todos os seus determinantes e tornou-os momentos de sua auto-realizagio, e esté assim, em tédas as con- digdes mutiveis, sempre voltando a si mesma’. ® Neste processo, “penetrar em si mesmo converte-se em esséncia”. Essa esséncia, a unidade do set, a identidade gracas & qual a mudanca, na ex- pressio de Hegel, ¢ um processo em que “tudo enfrenta suas 6 H. Marcuse, Reason and Revolution, Oxford University Press, New York, 1941, pig. 146. 7 Marcuse, op. cit., pag. 113. 8 Marcuse, op. cit. pags. 142-149; Hegel, Science and Logic, vol. I, pag. 404, A NATUREZA DO HOMEM 37 ‘ontindigbes ineventes e@ desdobra-se como conseqiiéncia”. A puiencla é, assim, tanto histérica quanto ontolégica. As potencia- liduilen essenciais das coisas realizam-se no mesmo proceso glo- hal que eslabelece sua existéncia. A esséncia pode “alcangat” sua pulslencia quando as potencialidades das coisas tiverem amadu- fecido nay @ através das condigdes da realidade. Hegel descreve file proceso como a “transigio para a realidade”.® Ao contrétio lo positivismo, para Hegel, os fatos s6 sio fatos se relacionados fom 0 que ainda nfo é fato ¢, no entanto, manifesta-se nos fatos dudos como possibilidade real, Ou, “os fatos s40 0 que sio apenas como momentos em um processo que leva para além déles até jquilo que ainda no se concretizou de fato”. 1° A culminineia de todo 0 pensamento hegeliano € 0 conceito tas potenclalidades intrfnsecas a algo, do processo dialético pelo qual clay se manifestam, a idéia désse processo ser de movimento ativo de tals potencialidades. Esta @nfase no proceso ativo no interior do homem ja f6ra assinalada no sistema ético de Spinoza. Para Splnova, todos os afetos podiam dividir-se em afetos passi- vow Nene © por meio dos quais 0 homem sofre e nio tem wna Idéia da realidade, ¢ afetos ativos (acées) (generosidade ¢ (Higa moral) nos quais o homem € livre ¢ produtivo, Goethe, que A semelhanga de Hegel foi influenciado por Spinoza de varias inanelia, teanslormou a idéia da produtividade do homem em Wi ponto central de seu pensamento filoséfico, Para éle, tédas as fulliivan decadentey caracterizamexe pela tendéncia para a subje- Hividide pari, enquanto todos os perfodos progressivos tentam eHlenler 6 mundo como é por intermédio ‘i subjetividade de fali WHN Mii Hilo separado deste, Mle dé o exemplo do poet “enquanto éle pte Apenan ertay poucay frases subjetivas, nao file alii ger chumado de poeta, mas, logo que sabe como se aiienhoven de manda ¢ expresiddo, @ um poeta, Entio é inexau- tivel, © pole sempre venovanve, ao passo que sua natureza pura- Menie subjetiva se exyotou cedo e deixou de ter o que dizer”. 1 "© homem’, dis Goethe, “conhece-se a si mesmo na medida em que conhece © mundo; ée s6 conhece o mundo dentro de si % Marcuse, of. cit, pag. 149, 19 Mareuso, op, cit, pag. 152. 1} Gf, conversa de Goethe com Eckermann, 29 de janeiro de 1026. 19 f Govthe, em palestra com Eckermann, a 29 de janeiro de 1826. Vrady fio © grifos meus — E. F.] 38 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM mesmo e sé toma conhecimento de si mesmo dentro do mundo. Cada objeto névo verdadeiramente identificado desvenda um névo 6rgio dentro de nés mesmos.” 8 Goethe deu a expressio mais poética e mais vigorosa da idéia da produtividade humana em seu Fausto. Nem a posse, nem o poder, nem a satisfacio sensual, ensina Fausto, podem preencher 0 desejo de significado pata sua propria vida que o homem tem; em tudo isso, éle permanece separado do todo, ¢ por isso infeliz, $6 20 set produtivamente ativo, pode o homem encontrar sentido para sua vida e, embora assim éle a aproveite, nfio se agarra a esta vorazmente. Ble desistiu da cobica de ter, ¢ fica satisfeito em ser; sente-se farto por estar vazio; éle ¢ muito, por fer pouco.’4 Hegel apresentou a expressiio mais metédica e mais profunda da idéia do homem pro- dutivo, do individuo que é éle mesmo, na medida em que nio é passivo-receptivo, mas ativamente relacionado com o mundo; que é um individuo apenas no processo de aprender 0 mundo produti- yamente, e assim tornando o seu mundo. Ele enunciou a idéia assaz potticamente ao dizer que o sujeito, ao desejar levar um contetido a realizacio, o faz “traduzindo-o da noite da possibi- lidade para o dia da realidade”. Pata Hegel, o desdobramento de tédas as faculdades, capacidades e potencialidades individuais s6 € possivel por meio de agéo continua, nunca pela exclusiva contemplacio ou receptividade, Para Spinoza, Goethe, Hegel, assim como para Marx, o homem s6 esta vivo na medida em que é produtivo, na medida em que abarca 0 mundo exterior no ato de manifestar seus prdprios podéres humanos especificos e de abarcar o mundo com éstes. Na medida em que o homem nfo é produtivo, na medida em que é receptivo € passivo, éle nada é esta morto. Neste processo produtivo, o homem tea- liza a sua propria esséncia, retorna A sua propria esséncia, 0 que, em linguagem teolégica, nada mais € que seu retérno a Deus. Para Marx, o homem caractetiza-se pelo “principio do movimento” ¢ é significativo éle citar, a propésito, o grande mistico Jacob Bochme.! © principio do movimento nio de- 18 Gitado por K. Léwith, Von Hegel zu Nietzsche, W. Koh- Ihammer Verlag, Stuttgart, 1951, pag. 24. (Tradugéo minha — E. F.) 14 Gf. a descrigfio minuciosa da orientagio do carater produ- tivo em E. Fromm, Man for Himself. (N. do T. — Em portugues, Andlise do Homem, Rio, Zahar Editéres, 5.* edigio, 1966.) 15 Cf, H. Popitz, Der Enthjremdete Monsch (SO Homem Alie- nado”), Verlag fiir Recht und Gessellschaft, A. G., Basiléia, pag. 119. A NATUREZA DO HOMEM 39 ve see Interpretaco mecdnicamente, mas como impulso, vita- lidude crindota, energia; a paixfo humana, para Marx, "é a fuculdade essencial do homem esforcando-se enérgicamente por aleangar seu objeto”. © onceito de produtividade, em contraste com o de re- teplividade, pode ser mais facilmente compreendido quando Jemos como Marx 0 aplicou ao fendmeno do amor. “Supo- hhamos que o bomem seja bomem”, escteveu éle, “e que a felugio déle com o mundo seja humana, Entéo, 0 amor sé pode jer trocado por amor, confianca por confianca etc. Se se de- soja influenciar uma pessoa, € preciso ser-se uma pessoa teal- mente dotada de efeito estimulador e encorajador nas outras, Cuda uma das relagdes da gente com o homem e a natureza fem de ser uma expresséo espectfica cotrespondente ao objeto escolhido, escolhido por nossa vida individual real. Se uma pes- fon ama sem inspirar amor, isto é se nfo € capaz, ao manifes- tarse uma pessoa amdvel, de tornar-se’ amada, entio o amor dela & impotente e uma desgraca.” 3° Marx também exprimiu niuito claramente © significado central do amor entre homem e mulher como a relacio imediata dum ser humano com ou- tto ser humano, Combatendo um comunismo vulgar que pro- punha a coletivizacio de tédas as relagdes sexuais, Marx es- creveu: “Na relagio com a mulher como présa e setva da lu- xiiria comunal, expressa-se a infinita degradagio de si proprio existente no intimo do homem; pois o segrédo dessa relacao aleancga sua expressio inegufvoca, incontestavel, franca e paten- te na telacio do homem com a mulher e na forma pela qual é concebida a relacio direta e natural da espécie. A relacéo imediata, natural e necessétia de ser humano com ser hu- mano também é a relacéo do homem com a mulher. Nesta telagio matural da espécie, a relagio do homem com a natureza ¢ diretamente sua relagio com o homem, e sua relagio com (ste @ diretamente sua relagio com aquela, com sua prépria fungllo natural, Assim, nesta relagio, & revelada sensorialmente, reduzida a um fato observdvel, a extensio em que a natureza humana se converteu para o homem e também a natureza se converteu em natureza humana para éle. Desta relacio po- deve estimar o nivel total de evolugio do homem, Do carater deita relagio decorre até que grau o homem se tornou, e assim 0 MBF, pag. 168, 40. CONCEITO MARXISTA DO HOMEM te interpretou, um homem-espécie, um ser bumano. A telacio entre homem e mulher é a mais natural telagio dum ser hu- mano com outro. Indica, por conseguinte, até que ponto o comportamento natural do homem se tornou bumano, e até que ponto sua esséncia humana se tornou uma esséncia natural para éle. Ela também mostra a medida em que as necessidades do homem se tornaram necessidades Amanat, e conseqiientemente a medida em que a outra pessoa, como pessoa, se tornou uma de suas necessidades e a medida em que em sua existéncia indivi- dual éle é igualmente um ser social.” 17 E da maxima importincia, para a compreensio do concei- to marxista de atividade, entender sua idéia acérca da relacZo entre sujeito € objeto. Os sentidos do homem, por se tratar de sentidos animais grosseiros, tém sdmente um significado testrito, “Para um homem faminto nfo existe a forma humana de ali- mento, mas apenas seu carater abstrato como alimento. Po- detia também existir apenas na forma mais rudimentar, e € impossivel dizer de que maneira esta atividade de alimen- tar-se diferiria da dos animais. O homem necessitado, cheio de preocupacées, nfio pode admirar nem o mais belo espe- ticulo.” 18 Os sentidos que o homem possui, por assim dizer, naturalmente, precisam ser formados pelos objetos exteriores, Qualquer objeto sé pode ser a confirmacio de uma de minhas proprias faculdades. “Porque no sio sdmente os cinco senti- dos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sen- tidos praticos (desejo, amor etc.), em suma, a sensibilidade e © cariter humanos dos sentidos gue podem concretizar-te pot meio da existéncia do respective objeto, por meio da natureza humanizada.” 9 Os objetos, pata Marx, “confirmam e teali- vam sua individualidade [do homem]... A maneira por gue ésses_objetos se tornam déle mesmo depende da natureza do objeto ¢ da natureza da faculdade correspondente... O cardter distintivo de cada faculdade é exatamente sua ess¢ncia caracterts- tica e, por isso também, a forma caracteristica de sua objetivacio, de sua existéncia viva, objetivamente real. Portanto, nio & ape- nas em pensamento, mas através de todos os sentidos, que o homem se afirma no mundo objetivo.” 2° 1 MEF, pags. 126-127. 18 MEF, pig. 134. 19 MEI 20 MEI A NATUREZA DO HOMEM 4. Ao telacionat-se com o mundo objetivo, por intermédio de win faeuldades, o mundo exterior torna-se teal para o homem, @ de fato & sé 0 “amor” que faz o homem verdadeiramente ‘fer pa fealidade do mundo objetivo a éle extrinseco, 2 Sujeito © objeto niio podem ser separados, “O dlho transformou-se em lho amano quando seu objeto se convertea em um objeto Aumano, social, criado pelo homem e a éste destinado... Bles [os sentidos] se relacionam com a coisa devido a esta, mas a Cols em si mesma € uma relacio Aumana objetiva pata si pt6 pria para o homem, e vice-versa, A necessidade e 0 g6z0 per- Veram, assim, seu caréter egoista, © a natureza perdeu sua mera wilidade pelo fato de sua utilizagio ter-se transformado em uti- lizagio humana. (Com efeito, s6 posso relacionar-me de ma- neira humana com uma coisa quando esta se relaciona de maneira humana com o homem.)” 22 Para Marx, “O comunismo & a abolicio positiva da pro- priedade privada,®® da anto-alienagio humana, e assim a ver- dadeira apropriagdo da natureza humana por meio do e para o homem. Ble € por conseguinte, o tetérno do proprio homem como um ser social, isto é realmente humano, um retérno com- pleto e consciente que assimila toda a tiqueza da evolucio an- ferior, O comunismo como naturalismo plenamente evoluido é humanismo, € como humanismo plenamente evoluido é natu- 21 MEGA, vol. III, pag. 191. 2 MEF, pag. 132. Esta iiltima afirmagdo € quase exatamente A mesma feita no pensamento do budismo Zen, assim como por Goethe. De fato, o pensamento de Gocthe, Hegel e Marx se acha Intimamente ligado ao do Zen, O que ha de comum néles é a idéia ‘loo homem superar a cisio entre sujeito e objeto; 0 objeto é um objeto, mas no entanto cessa de ser objeto, e nesta’ nova abordagem © homem se funde com o objeto, conquanto éle e o objeto continuem 4 ser dois, © homem, ao relacionar-se humanamente com o mundo objetivo, supera. a alienacZo de si mesmo. %8 Por “propriedade privada”, conforme & empregada aqui e em outras afirmacées, Marx nunca se refere & propriedade privada de bons de uso (como uma casa, uma mesa ete.). fle tem em vista a Propricdade das “classes proprietérias”, isto é dos capitalistas, que, por possuirem os meios de produgao, podem contratar 0 individuo esprovide de propriedade para trabalhar para éles, em condigées ‘ue @ste tiltimo se vé obrigado a aceitar, “Propriedade privada”, no mprégo de Marx, portanto, sempre se refere a propriedade privada Na sociedade de classe capitalista, sendo, pois, uma categoria social @ histéricas 0 nome n&o diz respeito a bens de uso, por exemplo, em ma sociedade socialista. 42 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM tulismo, Ble € a solucio definitiva do antagonismo entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. Ele é a verdadeira solugio do conflito entte existéncia e necessidade, entre individuo e auto-afitmagio, entre liberdade e necessidade, entre individuo e espécie. Ele € a solucao do enigma da His- téria ¢ disso @le mesmo tem conhecimento.” 4 Esta relacio ativa com 0 mundo objetivo € denominada por Marx “vida pro- dutiva”. E vida criando vida. No tipo de atividade da vida reside todo o cariter da espécie, seu cardter como espécic; € a atividade livre e consciente € o carater da espécie dos séres hu- manos.5 © que Marx tem em mente como “cardter da es- pécie” € a esséncia do homem; € 0 que é universalmente hu- mano ¢ que realizado no decurso da Histéria pelo homem gracas & sua atividade produtiva. Partindo désse conceito de auto-realizagio humana, Marx che- ga a um néyo conceito de riqueza e pobreza, diverso do en- contrado em Economia Politica. “Ver-se-4 disso”, diz Marx, “como, em lugar da rigueza e pobreza da Economia Politica, temos o homem rico e a plenitude da necessidade bumana. O homem rico é, 20 mesmo tempo, © que precisa de um complexo de ma- nifestagSes humanas da vida e cuja propria auto-realizacao exis- te como uma exigéncia interior, uma necessidade. Nao sb a ri- queza, mas igualmente a pobreza do homem adquirem, em uma perspectiva socialiste, um significado bumano e, pot isso, social. ‘A pobreza € 0 vinculo passivo que leva o homem a yivenciar uma necessidade de riqueza maxima, a outra pessoa O desvio da entidade objetiva dentro de mim, a ruptura sensorial de mi- nha atividade vital, ¢ a paixio que aqui se converte em atividade de meu ser.”25 A mesma idéia f6ra expressa anos antes por Marx: “A existéncia do que verdadeiramente amo [aqui éle se tefere especificamente a liberdade da imprensa] é por mim sen- tida como uma exigéncia, como uma necessidade, sem a aa minha esséncia nfo pode ficar realizada, satisfeita, completa. 24 MEF, pag. 127. 25 MEF, pag. 101. 20 MEF, pags. 137-188. Este conceito dialético do homem rico como sendo 0 nobre necessitando dos outros é, em muitos aspectos, andlogo ao conceito de pobreza exposto por Meister Eckhart, em seu sermio “Bem-Aventurados Sejam os Pobres”. (Meister Eckhart, trad, por R. B, Blakney, New York, Harper, 1941.) 27 MEGA, I, 1a, pag. 184. A NATUREZA DO HOMEM AB “Assim como a sociedade encontra, em seu inicio, através a evolugiio da propriedade privada com sua tiqueza e pobteza (tanto intelectual quanto material), os materiais necessitios a ésse desenvolvimento cultural, também a sociedade plenamente constituida produz o homem em téda a plenitude de seu ser, © homem rico dotado de todos os sentidos, como uma tealidade duradoura, BE s6 em um contexto social que subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e matetialismo, atividade e passivida- de deixam de ser antindmicos e, assim, deixam de existir como tais antinomias, A resolugio das contradicSes sedricas somente & possivel gracas a meios préticos, sdmente gracas energia pra- tica do homem. Sua resolucio, portanto, nao é, absolutamente, apenas um problema de conhecimento, mas um problema porque © via como um problema exclusivamente teérico.” 28 Coztespondente a seu conceito do homem rico é a opiniao de Marx sébre a diferenca entre o sentimento de fer e 0 de ser. “A. propriedade privada”, afitma éle, “tornou-nos tio estipidos © parciais que um objeto s6 & nosso quando o temos, quando le existe para nés como capital ou quando € diretamente comido, bebido, vestido, habitado etc, em suma, wtilieado de qualquer maneira, Apesar de a propriedade privada em si mesma s6 conceber essas varias formas de posse como meios de vida, a vida para a qual éles servem como meios € a vida da propriedade privada — o trabalho e a criagio de capital. Assim, todos os sentidos fisicos ¢ intelectuais foram substituidos pela simples alie- nagéo de todos ésses sentidos: o sentido de ter. O ser humano linha de ser reduzido a essa pobreza absoluta a fim de ficar upto a deixar nascer téda a sua riqueza interior.” 29 Marx reconheceu que a ciéncia da economia capitalista, mal- grado sua aparéncia mundana e hedonista, “é uma ciéncia vet- dadeitamente moral, a mais moralizada de todas as ciéncias. Sua lese principal é€ a rentincia a vida e as necessidades humanas. Quanto menos se comer, beber, comprat livros, fér ao teatro ou a bailes, ou & cervejaria, e quanto menos se pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, esgrimir etc. tanto mais se poderé poupar ¢ tan- lo maior se tornaré o tesouro imune as tracas e A ferrugem — © capital. Quanto menos se fér menos se expressari. a vida, Inais se terd, maior seté a vida alienada e maior a poupanga do wer alienado, Tudo que o economista retira da gente no que diz 40 MEF, pags. 134-135, 0 MER, pag. 132 Ad CONCEITO MARXISTA DO HOMEM respeito a vida humanidade, éle restitui sob a Aaah Hf nheiro © riquexa. EB tudo que se € incapaz de fazer, a oe pode fazer pela gente: pode comer, beber, ir a um baile ¢ teatro, Pode comprar arte, saber, tesouros histéricos, poder po- litico, © pode viajar, Ble pode apoderar-se de tOdas essas oe para a gente, pode comprar tudo: € a verdadeira opuléncia. ts Conquanto éle possa fazer tudo isso, 5 deseja eriar-se a Se ey e comprar a si mesmo, pois tudo mais se lhe suber ua ie se possui 0 senhor, também se possui o servo, ¢ nfo se prec do servo do senhor. Assim, tddas as paixdes ¢ atividades sto for- cosamente submersas na avareza. O trabalhador deve ter apenas © que lhe € necessério pata querer viver, e deve querer viver ape- nas para poder ter isso”. ° ‘A meta da sociedade, para Marx, nfo é a producio de coi- sas ‘iteis como meta em si mesma, Esquece-se ee diz éle, “que a producao de coisas fteis em demasia redun ai pessoas indteis em demasia’ 3! As contradigSes Sones iga- lidade ¢ parciménia, Iuxo e abstinéncia, riqueza e pobreza sto meramente parentes porquanto na verdade tédas essas eaten se equivalem, F particularmente importante entender esta be 4 sigio de Marx hoje em dia, quando tanto os comunistas coi is a maioria dos partidos socialistas, com algumas excecbes _noté- veis como o indiano, o birmanés e certos socialistas europeus ¢ norte-americanos, aceitaram 0 principio subjacente a todos os sis- temas capitalistas, segundo o qual o maximo de ean de consumo sio os objetivos inquestiondveis da sociedade. Nao se deve, evidentemente, confundir o objetivo de sobrepujar a po- breza insondavel, que interfere numa vida digna, com o de um consumo cada vez maior, que se converteu em valor, supremo tanto pata o capitalismo quanto para 0 kruschevismo. Bosco de Marx era assaz nitidamente em prol da vitéria contra on breza, mas igualmente infensa A adogio do consumo como fina- lidade absoluta. Independéncia e liberdade, para Marx, baseiam-se no ato de autoctiagio. "Um set nfo se considera independente a me nos que seja seu proprio senhor, ¢ éle so € quando deve cua existéncia a si proprio. Um homem que vive gracas a0 fav de outrem considera-se um ser dependente. Mas eu vivo com- 30 MEF, pags. 144-145. 31 MEF, pag. 145. A NATUREZA DO HOMEM 45 pletamente por graga de outra pessoa quando devo a esta nio apenas a continuagio de minha vida, como também sua criagio; quando ela é minha fowte. Minha vida forcosamente tem uma caus assim externa quando nao € de minha propria ctiagio,” 92 Ou, conforme Marx o diz, o homem sé é independente “... se firma sua individualidade como homem total em cada uma de Jus relagées com o mundo, vendo, ouvindo, sorrindo, provando, sentindo, pensando, querendo, amando — em resumo se afirma © exprime todos os étgios de sua individualidade”, se nfo é apenas livre de, mas também livre para, Part Marx, a meta do socialismo era a emancipagio do ho: mem, @ esta era a mesma coisa que a auto-tealizacio déle no tleetinio de seu relacionamento e identificagio com o homem e com A nature A meta do socialismo era o desenvolvimento li personalidade individual. © que Marx pensaria de um. sis- femA como © comunismo soviético manifestou muito claramente fH win exposigfio daquilo a que chamaya de “comunismo vul- wir com o que se referia a certas idéias ¢ praticas comunistas ‘li époe, Rise “comunismo vulgar” aparece sob dupla forma; A dominagio da proptiedade material agiganta-se tanto que visa i destrule tudo gue é incapaz de ser possuido por todos como roptiedide privada, fle deseja eliminar o talento etc. pela My # A posse fivion imediata parece ser 0 objetivo da vida Pk welsiénel, © papel do wubalbador nao € abolido, mas es- feivlidla & todoy ov homens, A relagio da propriedade privada aie senda A teligio da comunidade com o mundo das ih Hihalivenite, eu tendéncia para contrapor a proprieda- He Hvala Gin yeral A proprledade privada expressa-se sob wma TOA AALNAL) G aiamente (que é Incontestivelmente uma forma le prapredade piivada exclusiva) @ contrastado com a comuni- tide diy mulheres," em que av mulheres se tornam propriedade da comunidade, — Pode-wne diver que esta idéia de comunidade dat mulheres @ 0 segrddo de Polichinelo désse comunismo gros- selto © lnvefletido, “Assim como as mulheres devem passar do MalrimOnio A prostituigio universal, igualmente o mundo intei- 10 di riquexa (isto 6, © ser objetivo do homem) deve passar 4 feligiio de prostituigiio universal com a comunidade. Bsse co- © MEI, pag. 1 8 Marx ref ores comunints B. Se, neste ponto, a especulagdes de certos pensa~ céntricos de seu’ tempo, que imaginavam que se filo era propriedade comum também as mulheres o deveriam ser. 6 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM munismo, que nega a personalidade do homem em todos os se- tores, tinicamente a expresso Iégica da propriedade privada, que é essa negacio. A inveja universal, estabelecendo-se como poténcia, € apenas uma fosma catmuflada de cupidez, que se reinstala e satisfaz-se de maneita diferente. Os pensamentos da propriedade privada de todo individuo sio, pelo menos, voltados contra qualquer propriedade privada mais rica, sob a forma de inveja ¢ de desejo de reduzir tudo a um nivel comum; por isso, essa inveja e ésse nivelamento de fuga constituem a esséncia da competicio. O comunismo vulgar é sdmente a culminagio dessa inveja e nivelamento na base de um minimo preconcebido. Quao pouco representa essa aboligio da propriedade privada como apro- ptiacio genuina € demonstrado pela negacio abstrata de todo o mundo da cultura e da civilizagio, e pela regressio 4 simpli- Cidade antinatural do individuo pobre e que nada quer, que nfo s6 ulteapassou a propricdade privada como ainda nem sequer a atingiu. A comunidade s6 6 uma comunidade de trabalho € de ignaldade de saldrios pagos pelo capital comunititio, pela comunidade como capitalista universal. Os dois aspectos da re- Jacio sio elevados a uma suposta universalidade: 9 trabalho como situagdo em que todos sio colocados, € o capital como a univer- salidade e 0 poder admitidos da comunidade. 34 Téda a concepgio de Marx a respeito da auto-realizacio do homem sé pode ser plenamente compreendida em ligacio com sua concepcao do trabalho. Antes de mais nada, deve ser notado que trabalho e capital nao eram, pata Marx, meras ca- tegotias econémicas; eram categorias antropolégicas, imprcgna- das de um juizo de valor oriundo de sua posigio humanista. O capital, aquilo que € acumulado, representa o passado; o tra- batho, por outro lado, é ou devia ser quando livre, a expressio da vida, “Na sociedade burguesa”, diz Marx no Manifesto Co- munista, “... © passado domina o presente. Na sociedade co- munista, 0 presente domina o passado. Na sociedade burguesa, © capital é independente e possui individualidade, ao passo que a pessoa viva é dependente e nio possui individualidade.” Uma vez mais, Marx acompanha o pensamento de Hegel, que enten- dia o trabalho como “o ato de autoctiagio do homem”. O trabalho, para Marx, é uma atividade, nfo uma mercadoria, Marx inicialmente denominou a funcio do homem de “auto-ativida- de” e nao de trabalho, ¢ falou na “aboligio do trabalho” como 34 MEE, pags, 124-126. A NATUREZA DO HOMEM 47 pine lo socialise, —Ulteriormente, quando estabeleceu a di- frei tite trabalho livre e alineado, a { , empregou a expressio paelpagilo do trabalho”. nee 5 © ttibilho é, em primeito lugar, um Processo de que par- (epi Igualmente o homem e a natureza, e no qual o homem Ppontineimente inicia, regula e controla as relagdes materiais fnlte al prdprio e a natureza. Ele se opde a natureza como uma ue uns prdprias f6rgas, pondo em movimento bracos € pernas, as Uigis natutais de seu compo, a fim de apropriar-se das producses ‘In natueza de forma ajustada a suas proprias necessidade, Pois, tuando assim sdbre o mundo exterior e modificando-o, 20 mes. ino tempo éle modifica sua prépria naturcza, fle desenvolve seus porétes inativos ¢ compele-os a agir em obediéncia A sua prdpria itoridade, No estamos lidando agora com aquelas forms ri. mnitivas de trabalho que os recordam apenas o mero anita Um intervalo de tempo imensurivel separa o estado de coisas cm que um homem leva a forca de seu trabalho a venda no mercado, Como uma mercadotia, daquele em que o trabalho humano ain’ «in se encontrava em sua etapa instintiva inicial. Pressupomos © trabalho em uma forma que o caracteriza como penne humano. Uma aranha leva a cabo operacGes que lembram a le um tecelao, ¢ uma abelha’ deixa envergonhades muitos acquis lelos na construcio de suas colmeias. Mas o que distin; = ° plor arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto ae me a construgio em sua mente antes de a erguer na sealidade. N. extremidade de todo processo de trabalho, chegamos a um resul. lado ja existente antes na imaginacio do trabalhador ao co- meci-lo. Ele nfo apenas efetua uma mudanca de forma no tn terial com que trabalha, mas também concretiza uma finali- lade déle proprio que fixa a lei de seu modus operandi, © 4 qual tem de subordinar sua prépria vontade, E essa subordi- hagio nfo € um ato simplesmente momentineo. Além do. es. forgo de seus orgies cotporais, 0 proceso exige que, durante ‘Oda a operagio, a vontade do trabalhador permaneca em con. sonincia com sua finalidade, Isso. significa cuidadosa atencao Quanto menos éle se sentir atraido pela natureza de seu tra. balho ¢ pela maneira por que é executado, e, por conseguinte quanto menos gostar disso como algo em que emprega suas pacidades fisicas ¢ mentais, tanto maior atenc: a Qf ae 40 € obtigado a % O Capital, I, op. cit., pags, 197-198. Au CONCEITO MARXISTA DO HOMEM © trabalho € a expressio prépria do homem, uma expres- sio de suas faculdades fisicas ¢ mentais. Nesse processo de ati- vidade genuina, 0 homem desenvolve-se a si mesmo, torna-se @e proprio; o trabalho nfo é sé um meio para um fim — 0 produto — mas um fim em si mesmo, a exptessio significativa da energia humana; por isso, pode-se gostar do trabalho, ‘A ctitica central feita por Marx ao capitalismo nfo é a in- justica na distribuigéo da riqueza; € a perversio do trabalho, convertendo-o em trabalho forcado, alienado, sem sentido — por conseguinte, a transformagio do homem em uma “monstruosi- dade aleijada”. O conceito marxista do trabalho como expressio da individualidade do homem € expresso sucintamente em sua visio da aboligio completa da sujeigio do homem a vida inteira a uma tinica ocupacio. Visto que a meta do desenvolvimento humano € a do desenvolvimento do homem total ¢ universal, o homem tem de set emancipado da influéncia mutiladora da especializagio, Em tddas as sociedades anteriores, escreve Marx, © homem foi “um cacador, um pescador, um pastor, ou um critico maldizente, ¢ tinha de assim permanecer caso nio quisesse perder o seu ganha-pio; j4 na sociedade comunista, onde nin- guém tem uma esfera exclusiva de atividade, mas cada um pode tornar-se consumado em qualquer campo que desejar, a socie- dade regula a producio geral e totna possivel, assim, a gente fazer hoje uma coisa ¢ amanhA outra, cacar de manhi, pescar a tarde, criar gado de noite, criticar apés o jantar, tal como se deseje, sem jamais se tornar cacador, pescador, pastor ou cri- tico”. 36 Nao ha maior érro de interpretagio ou de representagio das idéias de Marx do que o encontrado, implicita ou explicitamente, no pensamento dos comunistas soviéticos, dos socialistas refor- mistas ¢ dos capitalistas adversos ao socialismo, todos os quais admitem que Marx s6 desejava 0 aperfeicoamento econémico da classe opetétia e queria abolit a prtopriedade privada de modo que 0 operirio pudesse ter o que o capitalista tem agora, A verdade € que, para Marx, a situaio de um operirio de uma Fabrica “socialista” russa, uma fabrica de propriedade do Estado na Gri-Bretanha ou uma fabrica norte-americana como a Gene- ral Motors se afiguraria essencialmente igual. 0 que Marx exprime muito claramente na seguinte passagem: 38 German Ideology, op. cit., pag. 22. A NATUREZA DO HOMEM 49 Um wimento de saldvios impésto (sem considerar outras ilifieuldades, © especialmente a de que uma tal anomalia sé po- ‘le yor mantida pela f6rga) nada mais seria que uma remunera- (lo melhor de escravos, € nao restauraria, seja para o trabalhador, to) pata o trabalho, seu significado e seu valor humanos, "Ainda a igualdade de vendimentos eclamada por Prou- dhon s6 mudaria a relagio do operitio de hoje com seu traba- Iho para uma relagio de todos os homens com o trabalho, A sociedade seria considerada, entio, um capitalista abstrato.” *7 O tema central de Marx é a transformacio do trabalho ilienado e¢ desprovido de significado em trabalho produtivo e livre, @ nfo a melhor paga do trabalho alienado por um ca- pitalismo privado ou por um capitalismo de Estado “abstrato”. 37 MEF, pag. 107. 4 CAPITULO V Alienagdo © Concerto do homem ativo e produtivo, que compreende € controla 0 mundo objetivo com suas proprias faculdades, nfo pode ser plenamente entendido sem 0 conceito de negagéo da produtividade: a alienagio, Pata Marx, a hist6ria do género humano € uma histéria do crescente desenvolvimento do homem €, concomitantemente, da crescente alienacio. Seu conceito do socialismo & a emancipacio da alienagio, a volta do homem para si mesmo, a sua realizacio de si proprio. A alienagio (ou “alheamento”) significa, para Marx, que © homem so se vivencia como agente ativo de seu contrdle so- bre o mundo, mas que 0 mundo (a natureza, os outros, e éle mesmo) permanece alheio ou estranho a éle. Bles ficam acima € contra éle como objetos, malgrado possam ser objetos por éle mesmo criados. Alienar-se é, em Altima anilise, vivenciar o mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente, como 0 su- jeito separado do objeto. Todo ésse conceito de alienagio foi pela primeira vez ex- Pfesso, no pensamento ocidental, através do conceito de ido- latria do Antigo Testamento.! A esséncia_do que era cha- mado de “idolatria” pelos antigos profetas nao esti em o homem 1A ‘conexiio entre alienacZo e idolatria foi também. salien- tada por Paul Tillich em Der Mensch im Christentum und im Mar- xismus, Diisseldorf, 1953, pig. 14. Tillich indica igualmente, em outra conferéncia, “Protestantische Vision”, que o conceito de’ alic- nacho pode também ser encontrado, no fundo, no pensamento de [Santo] Agostinho, Léwith também mostrou que 0 que Marx combate nao silo os deuses, porém os idolos [cf, Von Hegel zu Nietzsche, op. cit, pg. 278], ALIENAGAO 51 iilorit muitos deuses em vez de um nico, Est& em os idolos seem a obra das mios do proprio homem — éles sio coisas, € fi entinto o homem curva-se ante elas e as revérencia; adora jill que éle mesmo criou. Ao fazé-lo, éle se transforma em tol “Transfer as coisas de sua ctiagio os atributos de sua vida, © em yeu de expetienciar-se com a pessoa criadora, sO entra em COnLALO cOnsigo mesmo através da adoracio do idolo. Ele se itheou As Forgas de sua propria vida, A riqueza de suas pré- prlas potencialidades, e s6 entra em contato consigo mesmo de Maneita indireta, ¢ submetendo-se 4 vida congelada nos idolos, 2 © torpor ¢ a vacuidade do idolo estiio expressos no Anti- ho ‘Testamento: “Olhos éles tém ¢ nao véem, ouvidos éles tém e nilo ouvem” et Quanto mais 0 homem transfere seus prdprios podéres para os fdolos, tanto mais pobre éle fica e tanto mais ependente dos fdolos, pois éstes sé Ihe permitem reaver pe- quena parte do que cra originalmente déle. Qs idolos podem ser Imagens de deuses, 0 Estado, a Igteja, uma pessoa, posses, A idolatria muda de objetos; nio é absolutamente encontrada ape- Hay nas formas em que o idolo tem sentido pretensamente re- ligioso, A idolatria € sempre a adoragéo de algo em que o ho- mem colocou suas préprias forcas criadoras e a que agota se tubmete, em vez de experienciar-se a si prdprio em seu ato cria- dor, Dentre as indmeras formas de alienagio, a mais freqitente corre na linguagem, Se exptimo wm sentimento por palavras, digamos, se eu filo “Eu te amo”, as palaveas visam a indicar a fealidade existente em meu {ntimo, o poder de meu amor. A Palaven “amor” & tomada como simbolo do Jato amor, mas assim que 6 pronunclida ela tende a assumir vida prépria tornando-se twit realidicle, Teo na ilusio de que pronunciar a palavra equi- vile ter a experiéneia, ¢ em breve digo a palavta sem nada sentir, excelo o pensamento de amor expresso pela palavra, A 2 Esta 6, incidentalmente, também, a psicologia do fandtico. Mle est dco, morto, deprimido, mas, para compensar seu estado de Gepressio ¢ insensibilidade interior, escolhe um idolo, seja o Estado, um partido, uma idéia, a igreja, ou Deus. Converte ésse idolo no absoluto, e submete-se-lhe de maneira total. Ao fazé-lo, a vida déle logra obter um sentido, e éle se entusiasma com a submissao ao idolo escolhido, Seu entusiasmo, entretanto, ni brota da alegria do rela« cionamento produtivo; € um entusiasmo intenso, mas no entanto trio, oriundo do torpor interior, ou, para falar simbdlicamente, &€ “gélo candente”. (NV. do T. — Gf, Sinclair Lewis, Elmer Gantry.) * N. do T. — Salmos, XXXV. 4a CONCEITO MARXISTA DO HOMEM » da linguagem demonstra téda a complexidade da lienagio. A linguagem € uma das mais preciosas conquistas humanas; evitar a alienagio deixando de falar seria tolice — contudo, € mister ter sempre em conta o perigo da palavra fa- Jada tender a substituir a experiéncia vivida. © mesmo ap! ca-se a tédas as outras realizagGes do homem: idéias, arte, qual- quer espécie de objetos criados pelo homem. Elas sio criacSes do homem, ajudas valiosas para a vida; no entanto, cada uma € também uma armadilha, uma tentagio para confundir a vida com coisas, experiéncia com artefatos, sentimento com capitula- cio ¢ submissio, Os pensadores dos séculos XVIII e XIX ctiticaram sua €poca por ser cada vez mais rigida, vazia e insensivel. No pen- samento de Goethe, uma pedra angular foi o mesmo con- ceito de produtividade que ocupa posig¢éo central em Spinoza assim como em Hegel e Marx. "“O divino”, diz éle, “é eficaz no que esté vivo, mas no no que esti morto. E eficaz no Vit-a-set, no que esté evoluindo, mas nfo no que esta acabado € rigido, Por isso ¢ que a razto, em sua tendéncia para o divino, 86 lida com 0 que se acha em evolugio, ¢ esti vivo, enquanto o intelecto lida com o que esti acabado ¢ rigido, a fim de uti- lizé-lo,” 3 Encontramos criticas andlogas em Schiller e Fichte, e de- pois em Hegel © Marx, que faz uma critica generalizada de que em seu tempo “a verdade € sem paixiio, e a paixio é sem ver- dade”, 4 Essencialmente, téda a filosofia existencialista, desde Kier- kegaard, é no dizer de Paul Tillich, “um movimento de mais de cem anos de rebeldia contra a desumanizagio do homem na sociedade industrial”. Deveras, 0 conceito de alienacio é, em linguagem nio-tefsta, 0 equivalente do que em linguagem teista seria denominado “pecado”: a rentincia do homem a si mesmo, o abandono do Deus que existe dentro do homem, © pensador que cunhou o conceito de alienacio foi Hegel. Para @le, a histéria do homem era, ao mesmo tempo, a hist6- ria da alienagéo do homem (Entfremdung). “Aquilo por que a inteligéncia de fato anseia”, escteveu éle em Filosofia da His- 3 Gonversagées de Eckermann com Goethe, 18 de fevereiro de 1829, publicadas em Leipzig, 1894, pég. 47. [Minha tradugdo — E. F] 4 18 Brumdrio de Luis Bonaparte. ALIENAGAO 353 fdrla, “& a percepsio de si prépria; mas, 20 fazé-lo, ela oculta aguéle objetivo de sua propria visio e fica orgulhosa e bem sa- tisfeita nesta alienacio de sua propria esséncia.”® Para Marx, tal como para Hegel, o conceito de alicnagio baseia-se na distin- gio entre existéncia ¢ esséncia, no fato de a existéncia do homem ficar alheada de sua esséncia, de na realidade éle nio ser 0 que é potencialmente, ou, por outras palavras, de éle nao ser 0 que deveria ser, e de éle dever ser aquilo que poderia ser, Para Marx, o processo de alienacgéo manifesta-se no trabalho e na divisio do trabalho. O trabalho é, para éle, o relaciona- mento ativo do homem com a natureza, a criagio de um mun- do névo, incluindo a criagio do préprio homem. (A atividade intelectual, esté claro, para Marx, sempre é trabalho, como a atividade manual ou a artistice), Com a expansio da proprie- dade privada e da divisio do trabalho, todavia, o trabalho perde sua caracteristica de expresséo do poder do homem; o trabalho ¢ seus produtos assumem uma existéncia & parte do homem, de sua vontade e de seu planejamento, “O objeto produzido pelo trabalho, seu produto, agora se opde a éle como um ser estranho, como uma férca independente do produtor. O produto do tra- balho € trabalho humano incorporado em um objeto e transfor- mado em coisa material; ésse produto é uma objetificagéo do trabalho humano.”® © trabalho humano é alienado porque tra- balhar deixou de fazer parte da natureza do trabalhador e, “conseqlientemente, éle nfo se realiza em seu trabalho mas nega-se 4 sl mesmo, tem uma impressio de softimento em vez de bem- -estar, nilo desenyolve livremente suas enetgias mentais e fisicas mas fica fisicamente exaurido e mentalmente aviltado. O tra- balhador, portanto, s6 se sente A yontade quando de folga, a0 80 que no trabalho se sente constrangido,”? Assim, no ato de produzir, a relagio do trabalhador com sua prépria atividade € vivenciada “como algo alheio e nfo pertencente a éle, a atividade como sofrimento (passividade), 0 vigor como impoténcia, a cria- fio como emasculagio”.® Enquanto o homem se torna, pois, alienado de si mesmo, o produto de seu trabalho torna-se “um objeto estranho que o domina. Esta relagio € ao mesmo tempo a 5 The Philosophy of History, tradugdo de J, Sibree, The Colo- nial Press, New York, 1899. © MEF, pag. 95. 7 MEF, pag. 98. 8 MEF, pag. 99. 54 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM relagio com o mundo sensorial externo, com objetos natu- tais, como um mundo estranho ¢ hostil’.® Marx ressalta dois pontos: 1) no processo do trabalho, ¢ especialmente do trabalho nas condigées do capitalismo, 0 homem se afasta de suas pro- prias faculdades criadoras, ¢ 2) os objetos de sea préprio tra- balho tornam-se séres estranhos, ¢ eventualmente o dominam, totnando-se forcas independentes do produto. "O. trabalhador existe para o processo da produgiio, e nio este para aquéle,”10 E bastante difundida uma incompreensio de Marx neste as- sunto, mesmo entre socialistas, Cré-se ter Marx falado primor- dialmente da exploracio econdmica do trabalhador, e do fato de Sua participagio no produto no ser tio grande quanto deveria, ou que o produto deveria pertencer a éle em vez de ao capitalista. No entanto, consoante ja mostrei anteriormente, 0 Estado como capitalista, tal como existe na Unido Soviética, nao teria sido mais bem recebido por Marx do que o capitalista particular. le nao esta interessado primariamente na igualagio da renda. Esta interessado na libertacio do homem de um género de trabalho que destt6i sua individualidade, converte-o em coisa, € torna-o esctavo de coisas. Assim como Kierkegaard estava interessado na salva- séo do individuo, também Marx estava, e sua critica da socie- dade capitalista nfo € ditigida contra seu processo de distribui- c&o da renda, mas contra seu modo de producao, sua destruicio da individualidade e sua esctavizacio do homem, nfo pelo ca- pitalista, mas a escravizagio do homem — trabalhador e capi- talista — por coisas € circunstancias feitas por éle préprio. Marx vai ainda mais fonge. No trabalho nao-alienado, o homem nfo s6 se realiza como individuo, mas também como um ente-espécie, Pata Marx, tal como para Hegel, e muitos outros pensadores do iluminismo, cada individuo representa a espécie, isto é, a humanidade como um todo, a universalidade do homem: 0 desenvolvimento do homem conduz ao desabro- char de tdda a humanidade néle existente, No processo de tra- balhas, éle “nfo mais se teproduz a si mesmo meramente de forma intelectual, como na consciéncia, mas ativamente e em sen- tido real, © vé seu préprio reflexo em um mundo que éle cons- truiu. Enquanto, por conseguinte, 0 trabalho alienado afasta do homem o objeto da produgio, também afasta déle sua vida como pag. 99. 10 O Gapital, I, op. cit., pag. 536. ALIENAGAO 55 espécie, sua objetividade real como ente-espécie, e muda sua su- periotidade s6bre os animais em uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorginico, a natureza, é afastado déle, Exatamen. te como o trabalho alienado transforma a atividade livre e diti- gida pela prépria pessoa em um meio, também transforma a vida como espécie do homem em um meio de existéncia fisica, A consciéncia de espécie é transformada por intetmédio da aliena- sfio de modo que a vida como espécie se torna para éle apenas um meio”, 1 Como indiquei antes, Marx admitiu que a alienagio do tra- balho, apesar de existir através de téda a Historia, atinge o auge na sociedade capitalista, e que a classe trabalhadora é a mais alienada de tddas. Esta suposicio baseou-se na idéia de que 0 ope- ritio, nfo patticipando da direcio do trabalho, sendo “emprega- do”, como ‘parte das miquinas a que serve, é transformado em coisa, em sua dependéncia do capital. Por isso, para Marx, “a emaneipagiio da sociedade da propriedade privada, da servidéo, ume a forma politica de emancipagio dos operdrios; nfo na acepgfio da emancipagio déstes ser a tinica em jégo, mas por esta abranger a emancipagio da humanidade como um todo. Pois téda servidio humana esti abrangida na relacio entre trabalhador € producio, e todos os tipos de serviddo so apenas modificagées ou conseqiiéncias desta relacao”. 12 Novamente deve set salientado que a meta de Marx no se limita & emancipagio da classe operdria, mas visa A emanci- pacio de todo ser humano através do retérno A atividade nio-alie- nada, e portanto livre, de todos os homens, e a uma sociedade em que 0 homem, € nio a produco de coisas, seja 0 objetivo, em que o homem deixe de ser “uma monstruosidade aleijada, tornando-se um ser humano plenamente evoluido”.3 0 con- ceito marxista do produto alienado do trabalho vem expresso em um dos pontos mais fundamentais expostos em O Capital, no que éle denomina “o fetichismo das mercadorias”. A produ- Go capitalista transforma as relagdes de individuos em qua- lidades de coisas em-si, e essa transformacio constitui a natu- reza da mercadoria na producéo capitalista. “No poderia ser de outta maneira, em uma forma de producio em que o tra: 11 MEF, pégs. 102-103, 12 MEF, pag. 107. 13 O Capital, I, op. cit., pag. 396. 56 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM balhador existe para satisfazer a necessidade de expansio prd- pria dos valéres existentes, em vez de, ao contrétio, a tiqueza material existir para satisfazer as necessidades de desenvolvimen- to por parte do trabalhador. Como na religiio o homem é governado pelos produtos de seu proprio cérebro, assim na pro- ducio capitalista € governado pelos produtos de suas proprias mios.” 14 “A maquinaria é adaptada a fragilidade do ser humano, de molde a converter o set humano fraco em uma méquina.” 1 A alicnacio do trabalho na producéo humana é muito maior do que o era quando a producio se baseava nos oficios manuais e na manufatura. “Nos oficios manuais e na manufatura, o tra- balhador utiliza-se de uma ferramenta; na fabrica, a méa- quina utiliza-se déle. La, os movimentos do instrumento de trabalho procediam déle; aqui, € o movimento das miqui- nas que éle tem de acompanhar. Na manufatura, os tra- balhadores séo partes de um mecanismo vivo; na fabrica, temos um maquinismo vivo, independente do operatio, que se torna mero apéndice vivo.” 16 & da maxima importancia, para se compreender Marx, ver como 0 conceito de alienacfo foi ¢ con- tinuou sendo o ponto focal do pensamento do jovem Marx que escreveu os Manuscritos Econémicos e Filosdficos, e do “yelho” Marx que escteveu O Capital. Além dos exemplos da- dos, as seguintes passagens, uma dos Manuscritos e outra de O Capital, devem deixar bem clara essa continuidade: “Este fato simplesmente sugere que 0 objeto produzido pe- Jo trabalho, seu produto, agora se Ihe contrapde como um ser estranbo, como uma férca independente do ptodutor. O produto do trabalho humano é trabalho humano incorporado em uma cbjetificacéo do trabalho humano. A execucio do trabalho € con- comitantemente sua objetificagio. A execugio do trabalho apa- rece na esfera da Economia Politica como uma perversio do ope- ratio, a objetificacéo como uma perda e como servidéio ante o objeto, @ a aptopriacio como alienagio.” 17 Eis o que Marx escreveu em O Capital: “Dentro do sis- tema capitalista, todos os processos pata aumentar a produtividade social do trabalho séo empregados A custa do trabalhador indi- 4 O Capital, I, op. cit., pags. 680-681. % MEF, pig. 143. 6 O Capital, I, op. cit, pags. 461-462. 7 MEF, pig. 95. ALIENAGAO 57 vidual; todos os meios pata o desenvolvimento da producio trans. formam-se em meios de dominagio ¢ exploracio dos produtores; éles mutilam o trabalhador, reduzindo-o a um fragmento de ho- mem, rebaixam-no ao nivel do apéndice de uma maquina, des- troem todo resquicio de atrativo do trabalho déle e convertem-no em uma ferramenta odiada; afastam-no das potencialidades inte- lectuais do processo do trabalho, na mesma proporcéo em que a ciéncia é néle incorporada como um poder independente.” 1 ‘Também o papel da propriedade privada (claro que niio co- mo proptiedade de objetos de uso, mas como capital que con- trata trabalhadores) ja foi visto nitidamente em sua fungio alie- nadora pelo jovem Marx: “A propriedade privada’, escteven éle, “é por conseguinte, o produto, o resultado necessério, do trabalho alienado, da relagio eterna do operario com a nature- za e consigo mesmo. A propriedade privada, pois, detiva-se da anilise do conceito de trabalho alienado; isto 6, homem alienado, vida alienada, e homem separado,” 19 Nao é sé 0 mundo das coisas que se torna superior ao ho- mem, mas também as circwnstancias sociais e politicas por éle ctiadas se tornam seus senhores. “Esta consolidagio do que nés mesmos produzimos, que se converte em um poder objetivo aci- ma de nés, escapando a nosso contrdle, frustrando nossas ex- pectativas, reduzindo a mada os nossos calculos, é um dos prin- cipais fatéres da evolugio histérica até a presente data,” 20 © homem alienado, que julga ter-se tornado o senhor da na- tureza, tornou-se esctavo das coisas e das circunstincias, o apén- dice impotente de um mundo que é simultaéneamente a expres- sio congelada de seus proprios podéres. Para Marx, a alienacéo no proceso do trabalho, do. pro- duto déste e das circunstdncias esti inseparavelmente ligada a alienagio de si proprio, de seus semelhantes ¢ da natureza. “Uma conseqiiéncia direta da alienagio do homem do produto de seu trabalho, da atividade de sua vida e da vida de sua espécie é que 0 homem é alienado dos outros homens. Quando o homem se enfrenta a si mesmo, também enfrenta os outros homens. O que é verdade quanto & relagio entre 0 homem e seu trabalho, 0 18 © Capital, I, loc. cit, pag. 708. 19 MEF, p4gs. 105-106. 20 German Ideology, op. cit., pag. 23. SH CONCEITO MARXISTA DO HOMEM produto de sew trabalho ¢ éle proprio, também & verdade quanto & sua relacio com outros homens, © com o trabalho e os objetos do trabalho déles. De maneira geral, a afitmagio de o homem estar alienado da vida da espécie significa cada homem estar alie- nado dos outros e cada um déles estar alienado, analogamente, na vida humana.”2! © homem alienado nfo o esta apenas dos outros homens; éle esti alienado da esséncia da huma- nidade, de> seu “ente-espécie”, tanto em seus atributos naturais como espirituais. Essa alienacio da esséncia humana leva a um egofsmo existencial, descrito por Marx como a esséncia humana ‘do homem convertendo-se em “uin meio para a existéncia indivi- dual déle. Ele [o trabalho alicnado] aliena o homem de (se proprio corpo, natureza externa, vida mental e vida Aumana”. © conceito de Marx alude, nisto, a0 principio kantista de 0 homem sempre dever ser um fim em si mesmo, ¢ jamais um meio para um fim. Mas éle amplia 0 principio ao asseverar que a esséncia humana do homem nunca deve converter-se em_ meio para a existéncia individual. O contraste entre a opiniio de Marx € 0 totalitarismo comunista nfo poderia ser manifestado de maneira mais radical; a humanidade no homem, fala Marx, nunca deve vir a ser sequet um meio para a existéncia individual déle — muito menos podera ser considerada um meio para o Estado, a classe ou a nacao. A alienagio conduz 4 perversio de todos os valéres, Fa- zendo da economia € de seus valéres — “lucro, trabalho, poupanca ¢ sobriedade” *3 — a meta suprema da vida, o homem deixa de desenvolver os valéres verazmente morais, “as riquezas de uma boa consciéncia, de virtude etc., mas como poderei set virtuoso sc nao estiver vivo, e como poderei ter uma boa consciéncia se nao tomar conhecimento de nada?” #4 Num estado de alienacio, cada esfera da vida, a econémica e a moral, é independente da outra, “cada uma se concreta em uma Area espectfica de atividade alienada e esta, ela prépria, alienada da outta”. 25 Marx reconheceu o que sucede com as necessidades humanas cm um mundo alienado, ¢ previu realmente, com nitidez espanto- 21 MEF, pag. 103. 22 MEF, pag. 103. 23 MEF, pag. 146. 24 MEF, pag. 146, 2 MEF, pag. 146, 59) Hi conclusio dessa marcha conforme & hoje em dia perceptive, Nnquanto em uma perspectiva socialista a importancia capital de- veria ser atribuida “a rigueza das necessidades humanas e, con- seqiientemente, também a um ndve modo de produséo e a um novo objeto de produgéo", a “uma nova manifestacio dos podéres humanos e a wm néyo enriquecimento do ser humano”, 25 no mundo alienado do capitalismo as necessidades no sio manifes- tagbes de podéres latentes do homem, isto é elas no sio neces dades bumanas; no capitalismo, “cada homem especula sébre como criar uma nova necessidade em outto homem a fim de forgd-lo um névo sactificio, colocé-lo em uma nova dependéncia, e in- cité-lo a um névo tipo de prazer e, por conseguinte, a ruina eco- ndmica. Todos tentam estabelecer sdbre os outros um poder es- tranbo para com isso lograr a satisfagio de sua prdptia necessidade egoista. Com a massa de objetos, portanto, cresce também o sol de entidades estranhas a que o homem fica sujeito. ‘Todo produto névo € uma nova potencialidade de embuste ¢ toubo mituos. O homem torna-se cada vez mais pobre como homem; €le tem necessidade cada vez maior de dinheiro a fim de apos- sat-se do ser hostil. O poder do divheiro diminui diretamente com © aumento do volume de produgio, isto & sua necessidade cresce com o poder ctescente do dinheito. A necessidade de di- nheiro, por conseguinte, é a necessidade real criada pela economia Moderna, e a tinica necessidade pot esta criada. A quantidade de dinheito cada vex mais se torna sua tinica qualidade importante. Assim como ela reduz tdda entidade a sua abstragio, também re- duz-se a si mesma, em sua propria evolucio, a uma entidade quan- iitativa. O excesso e a imoderagio passam a ser seus verdadeiros padrdes. Isso é demonstrado subjetivamente em parte no fato de a expansio da producio e das necessidades se converter em uma subserviencia engenhosa e sempre calculista a apetites desu- manos, depravados, antinaturais e imagindrios. A propriedade Privada nao sabe como transformar a necessidade ctua em necessidade humana; seu idealismo é fantasia, capricho © ilusio. Bunuco algum bajula seu tirano de maneira mais vergonhosa ou procura estimular-lhe o apetite embotado por meios mais infa- mes, para granjeat qualquer favor, do que eunuco da indéstria, © homem de emprésa, ‘para adquirir algumas mocdas de prata ou para atrair o ouro da bélsa de seu bem-amado proximo. (Todo Produto € uma isca por meio da qual o individuo tenta apanhat 26 MEF, pag. 140. 60 CONCEITO MARXISTA DO HOMEM a esséncia da outra pessoa, o dinheito dela. Téda necessidade real ou potencial é uma fraqueza que trard o passatinho para o visgo. Exploracio universal da vida humana em comum, Assim como téda imperfeicio do homem é um vinculo com o céu, um ponto em que o coragio déle é acessivel ao sacerdote, também ca- da necessidade € uma oportunidade para se achegar ao proximo com um ar de amizade, e dizer: “Caro amigo, dar-lhe-ci aquilo de que vocé precisa, mas vocé conhece a conditio sine qua non. Vocé sabe qual tinta tem de usar para se entregar a mim. Eu o trapacearei ao proporcionar-lhe satisfagio.”) © homem de empré- sa concorda com os mais depravados caprichos de seu préximo, desempenha o papel de alcoviteiro entre éle e suas necessidades, desperta apetites mérbidos néle, e presta atencio a cada fraque- za a fim de, posteriormente, reivindicar a remuneragio por ésse setvico de amor”.2? © homem que assim se tornou sujeito a suas necessidades alienadas é “um ser mental e fisicamente desu- manizado — a mercadotia com consciéncia e atividade préprias’’, %® Esse homem-mercadoria sé conhece um meio de relacionar-se com © mundo exterior: o de té-lo ¢ consumi-lo (usi-lo). Quanto mais alienado estiver, tanto mais a sensagio de ter e usar constituira sua relagio com o mundo. “Quanto menos vocé é, quanto menos ex- Prime sua vida, tanto mais vocé fem, tanto maior é sua vida alie- nada e maior a poupanga de seu ser alienado.” 2 S6 hi uma correcio introduzida pela Histéria no conceito marxista de alienagio. Marx acreditava set a classe operitia a mais alienada; dai a emancipacéo da alienagio ter de comecar ne- cessiriamente pela libertacio dessa classe. Marx nfo previu até que ponto a alienagio chegaria a ser o destino da vasta maioria das pessoas, especialmente do segmento cada vez maior da_po- pulagio que manipula simbolos e homens, em vez de miquines. Se possivel, o empregado de escritério, 0 comerciitio, o director de emprésa estio hoje em dia mais alienados ainda do que o operitio especializado. © funcionamento déste tiltimo ainda depende da expresso de certas qualidades pessoais, como ha- bilidade, confianca de que € merecedor etc., e éle nio é obrigado a vender sua “personalidade", seu sorriso, suas opinides, ao. set contratado; j& os manipuladores de simbolos nao sio contratados 27 MEF, pags, 140-142. 28 MEF, pag. 111. 29 MEF, pag. 144. ALI 'NAGAO 61 apenas por sua pericia, mas também por tOdas as qualidades pes- soais que os tornam “acondicionamentos de personalidades atraen. tes”, de facil trato e manuseio. Bles sio os verdadeiros “homens da organizagio” — mais ainda que o trabalhador — cujo idolo € a emprésa, Porém, no que toca ao consumo, nio hi diferenca entre trabalhadores manuais ¢ membros da burocracia. Todos an- Seiam por coisas, coisas novas, para ter e usar. Bles sio os recep- tores passivos, os consumidores, presos e debilitados pelas prdprias coisas que satisfazem suas necessidades sintéticas. Bles nao se relacionam com 0 mundo produtivamente, apreendendo-o em téda sua realidade e, com isso, unindo-se a éle; éles adoram coisas, as maquinas que produzem as coisas — e nesse mundo alienado sentem-se estranhos e bastante sozinhos. A despeito de ter Marx subestimado o papel da burocracia, sua descri¢io geral poderia perfeitamente ser esctita hoje em dia: “A producio nfo produz simplesmente o homem como mercadoria, 0 homem-mercadoria, © homem no papel de wilidade; ela o produz em harmonia com éste papel como um ser espiritual e fisicamente desumanizado — {a} imoralidade, deformacio e embrutecimento dos trabalhadores e dos capitalistas. Seu Produto é a mercadoria com consciéncia ¢ atividade préprias... a metcadotia humana.” 30 Até onde as coisas ¢ circunstincias por nés mesmos criadas Se totnaram nossos senhores, Marx dificilmente poderia prever; ontudo, nada poderia provar mais drasticamente sua profecia do que o fato de téda a raga humana estar hoje prisioneira das armas nucleares por ela criadas, e das instituigées politicas também por ela claboradas, Uma humanidade aterrorizada aguatda angustiada para ver se ser salva do poderio das coisas que ctiou, da acto cega das butocracias por cla designadas, 80 MEF, pag. 111,

You might also like