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TUCHERMAN, leda Breve histéria do corpo e de seus monstros Lisboa, Ed. Vega, 1999. Colegio Passagens Marcio Souza Gongalves Chega até nés, percorrendo um desses caminhos tortuosos tornados possiveis pela globalizagao, 0 livro Breve histéria éo corpo ¢ de seus monstros, da carioca leda Tucherman, publicado em Portugal pela Editoa Vega na prestigiosa colegdo Passagens, que publicou Foucault, Proust, Montaigne, Baudelaire, Burroughs, Heidegger, Nietzsche, Bataille e muitos outros igualmente significz- tivos para nosso tempo. Devidamente traduzido para o portugués de além-mar, o que faz com que 0s deparemos com "actos" e “controlo" em vez de nossos "atos" e "controle", o livro tem como tema o corpo, crucial nessa era de virtualizagio na qual as territorialidades espaciais perdem forea, a velocidade tecnolégica nos libertando do espago. Um pressuposto que pode ser resumido numa proposig&o aparentemente tivial orienta todo o trabalho: 0 corpo nao é um dado natural, mas algo que se constréi mo limite entre © biolégico, o individual e 0 coletivo, Nesse sentido 0 corpo é imagem, imagem produzida. "E a nossa cultura tem sido (...) uma poderosa construtora de espelhos e imagens legisladoras de principios de inclusdo e exclusao, natureza e cultura, _.-RESENHAS mesmo ¢ outro, Entre estas, talvez a mais radicalmente privilegiada tenha sido a ima- gem do corpo (...)" (p. 21). Dado esse pressuposto, propde-se a tarefa de estabelecer que diferentes corpos foram construfdos por nossa longa cultura © 20 mesmo tempo a l6gica de base dessa pro- dugdio. Teda Tucherman consegue percorrer simultaneamente esses dois caminhos, reunindo ao mesmo tempo a capacidade de abarcar num olhar largos perfodos de nossa hist6ria ea capacidade de extrair desses longos perfodos seus elementos ou articu- ages fundamentais. Ao binéculo a autora alia. © microse6pio, manejando ambos com a mesma mestria. A primeira parte do livro se concentra no problema dos diferentes corpo s criados na hist6ria do Ocidente, tomando como momentos significativos a cultura grega antiga, o Cristianismo, a Modernidade e finalmente nosso presente. A Grécia tinha do corpo uma apreensdo bastante diferente da nossa. O “corpo grego era radicalmente idealizado mas devia constantemente ser treinado, produzido em fungo de seu aprimoramento, © que significa que ele era, a0 contrdrio de uma natureza, qualquer que ela fosse, um artificio a ser criado numa civilizagio que alguns helenistas chamam de ‘civilizagio da. vergonha’ por oposigiio a judaico-cristi que serd uma ‘civilizagao da culpa’” (p. 35-36). Esse corpo evidentemente € indissocidvel da. democracia e da politica gregas, sendo essa. associago 0 que da sentido as praticas de 210 | BREVE HISTORIA DO CORPO E DE SEUS MONSTROS/Ieda Tucherman | i | treinamento ou de disciplina corporal: o dominio de si, condigio para o exercicio politico de domfnio sobre os outros, passa primordialmente por uma mestria do corpo proprio. A cada bom cidadao cabe inventar, no Ambito de uma moral no prescritiva que depende de adeséo voluntatia dos sujeitos, um corpo virtuoso. E desse modo que "a idea- lizago do corpo enquanto imagem funcionou como duplo suporte para as relagdes que con- figuram 0 campo politico: a da pedagogia ea do poder que tem, no corpo, o médium necessério" (p. 39). Mas 0 corpo grego 6 também o do prazer, cujo campo mais privilegiado de exercicio foi a pederastia, o que mudaré bas- tante com o advento do Cristianismo. Ora, "o cristianismo pregara a irmandade de todos no amor a Deus, ou seja, propor, no lugar de uma moral assimétrica e livre, 0 seu oposto, quer dizer, uma moral simetrizante e mediada pela figura do proprio Cristo, filho de Deus, tornado corpo e carne, que morreu na cruz para nos salvar a todos, sem distingio” (p. 42-43). Feito carne, 0 corpo passa a ser corpo concupiscente, sede de desejos que contrariam a ordem divina. Esse corpo essen- cialmente pecador, articulando-se negativa- mente com o prazer, liga-se positivamente & dor. "A ligao divulgada era a da morte de Cristo e suas torturas e, portanto, lidar bem com a dor do corpo é mais importante do que saber lidar com os prazeres, para estes novos corpos cristios" (p. 44). Os eremitas coptas, nos primérdios da Era Crist, sio emblematicos dessa nova ordem de apreensio do corpo bem como de seu cardter essencialmente artificial. Isolados no deserto, praticamente sem Agua e alimento, os eremitas estariam rompendo com a natu- ralidade humana da vida social e se engajando num processo de invengao de um puro corpo spiritual destitufdo de toda carne, artificial- mente produzido a partir de penosos exeref- cios ascéticos: "a saida para 0 deserto nao significava um retorno a uma vida ‘natural’ — até porque o deserto € uma ‘natureza vazia’-, mas a busca de uma vida t4o antinatural quanto possfvel" (p. 51-52). Essa forma extrema de experiéncia tinha como horizonte ofinal dos tempos eo tiltimo julgamento, que naquele momento pareciam ser iminentes. Mas nao apenas de Cristianismo viveu a Idade Média, ¢ a autora apresenta outras configuragdes que nesse perfodo permitiram a existéncia de outras imagens de corpos, ou seja, de outros corps. A medicina medieval, assim como 0 amor cortés, no que tematizam 0 amor, pdem-em jogo necessaria- mente 0 corpo. Ambos servem-se de um pres- suposto comum: "o amor é uma afecgao violenta que precisa de um vigorso trata- mento; € produzido por uma mulher, freqtientemente sem que ela saiba: ele penetra 0 amante pelos olhos ¢ vai alojar-se no seu coragdo, onde ganha 0 cérebro € os testiculos, que formam com 0 coragdo os trés pontos locais de amor no homem'" (p. 64). Tanto para os médicos quanto para os trovadores, a paixdo amorosa, corporal, pondo em cena um corpo desordenado e violento, deve ser dominada, seja pela raziio ou pelo coito (medicina), seja pela estiliza- ao artistica na erética provengal. Mas essas. semelhangas escondem diferengas: para os trovadores no se trata de inibir, mas de majorar a sensagdo num amor que nao termina com 0 coito. A temporalidade da histéria do corpo no Ocidente é bastante especifica e no coincide necessariamente com a da hist6ria geral: "assim, nio é absurdo propor (...) que, no que se refere ao corpo, de meados da Idade Média até final do século XVII, nfo houve uma modificagtio profunda de sua imagem, 0 que nao significa que ela nao tenha sido submetida a outros movimentos" (p. 68). BREVE HISTORIA DO CORPO E DE SEUS MONSTROS/Teda Tucherman mm 211 A Modernidade, segmentando os espacos sociais em ptiblicos ¢ privados, e fazendo corresponder a ambos os tipos novas formas de organizagao e controle, retira 0 corpo do espago da came que anteriormente predominava no Ocidente. O corpo nao é mais um corpo pecador, mas uma poténcia a ser administrada. Da configuragao do que seja o corpo na Modernidade vio participar elementos heterogéneos: a literatura e 0 romance, criando um espago de interioridade individual; a ideologia individualista; as descobertas de cientistas acerca da fisiologia do organismo humano; a generalizagao do capitalismo. O corpo se transforma num sistema percorrido por fluxos, funcionando como metéfora para que se pense o social Essa nova visio privilegia a nogao de doenga (e conseqtientemente a de satide) no lugar da de pecado valorizada especialmente no espago medieval. © corpo ideal € saudavel, disciplinado, produtivo e, para que exista, tanto as coletividades (biopolitica) quanto os individuos (responsabilidade de cada um) devem cooperar: "o poder que af atua 6, a0 mesmo tempo, massificante e individuali zante, constituindo num corpo tinico aqueles sobre os quais se exerce, a0 mesmo tempo, moldando a individualidade de cada membro do corpo" (p. 90). Os fantasmas que irio assombrat esse corpo “cozido” modemo sero precisamente os do corpo "cru" ¢ os do corpo "pode". © momento hist6rico que vivemos éexatamente o da crise desse corpo modemo, “corpo que foi inventado mas também imposto, propondo uma ‘vontade de forma’ totalizada, singularizada e reconhecivel. Se podemos afirmar que a nossa experiéncia moderna no pode prescindir da idéia de corpo, que nos libertava do ‘comunismo’ da carne, as tec- nologias contemporineas enxertam-se direta- mente sobre este, fazendo uma associagio que destr6i sua inteireza: carbono + silfcio; carne + técnica" (p. 94). Vivemos a época da hibridizagio, da indiferenciagao, do esbati- mentos das fronteiras entre 0 corpo e 0 mundo, entre © organico e o inorganico, entre 0 corpo eseus outrds. Quanto ao segundo problema que decorre do pressuposto da ndo-naturalidade do corpo, a saber, 0 da l6gica de producao dos corpos no Ocidente, Breve histéria do corpo ede seus monstros segue um caminho fecundo. A tese é a seguinte: a construgio de um corpo passa necessariamente pela cons- trugio de uma alteridade que faria limite daria sentido para este corpo. Dito de outra maneira: a construgio do corpo do "mesmo" passa sempre pela construgao de um corpo “outro”. "Determinar e excluir o outro é fun- damental para que se possa delimitar 0 que € id€ntico no sujeito em questo: 0 processo que estabelece identidade é © que demarca uma fronteira entre o que é idéntico (mesmo) €0 que € diferente (outro)" (p. 106). Esses outros corpos, ou esses corpos em alteridade, dada a historicidade dos corpos "mesmos" que Ihes correspondiam, sio varios: monstros, ragas_monstruosas, criaturas miticas, seres humanos que apresentam, deformagies (freaks), etc. Os monstros tradicionais, externos, mas nfo puramente externos, dado que se encontram no limite do humano, sdo efeito de hibridizagdo. "A figura da monstruosidade exerceu uma fungéio simbélica fundamental. Perturbando os sentidos, especificamente a vistio, 0 monstro foi pensado como uma aber- raga, uma folia do corpo, introduzindo, como oposigao Iégica, a crenga na necessi dade da existéncia da ‘normalidade’ humana, do corpo légico" (p. 101). Do mesmo modo, os freak shows, espécie de circo dos hortores eram exibidas pessoas com deformacées (siameses, mu- Iheres barbadas, magros extremos, ou gordos, 212 BREVE HISTORIA DO CORPO E DE SEUS MONSTROS/leda Tucherman ‘eic.), eram 0s locais onde o homem ocidental adulto branco racional se assegurava de sua propria identidade, de sua normalidade ou naturalidade através da contemplagao de seu antfpoda, deformado, torto, ineficiente, improdutivo, freak Frankenstein talvez. seja a0 mesmo tempo o grande exemplo desse jogo légico de oposigo entre mesmo e outro e 0 anunciador da crise desse modelo opositivo binério. Radicalmente outro em relagao aos humanos, {freak no sentido acima utilizado, a criatura nem por isso nos assegura de nosso préprio ser. "O monstro surgira na euforia prometeica do jovem cientista. Representava a superagio pela técnica do enigma da vida. No entanto, ele transforma-se no signo da morte, 0 que nos permite pensar que Mary Shelley anteci- pou a imagem da vit6ria da técnica produzindo a crise da referéncia a partir da intervengao técnica no corpo, a relativizagao das fron- teiras sujeito/objeto e a hibridizacao homem- maquina como a perda das tradicionais iden- tidades e afetos culturais" (p. 136). Essa l6gica de base que permitiu ao Ocidente se ordenar gerando corpos "mesmos" a partir de alteridades, corpos "outros", vai entrar em crise na época atual. O fpice dessa crise pode ser apreendido em todo o movimento da contracultura, quando o freak deixa de designar 0 outro e passa a designar 0 mesmo: toda uma geragdo se reconhece como sendo freak, 0 freak passa a ser valorizado e revela nfo um lado externo ao homem normal mas 0 eu secreto que se esconde 0 interior de cada um de nés. Ao regime de exclusdes que marcou 0 Ocidente até a Modernidade se substitui um regime de incluso, nfo mais cindido em oposigées bindrias claras, mas atravessado por correntes de hibridizagio, Breve historia do corpo e de seus monstros nfio cai, contudo, num otimismo ingénuo que veria na atualidade o fim de um longo perfodo de exclusdes. "Os novos cor- pos, ¢ principalmente aqueles que se produ- ziam contra o establishment, eram rentiveis e vendveis ¢ nesta forma de reapropriago dos novos freaks obtinham-se duas excepcionais vantagens, que, incorporando-os como pro- duto, anulava-se a critica que eles represen- tavam e, de outro lado, realimentava-se a juventude, ao mesmo tempo, como categoria como piblico para o consumo" (p. 146). A I6gica do consumo substitui antigas formas disciplinares... As duas tarefas que destacamos acima convergem na reflex3o em tomo da atualidade: 0 corpo no presente nao pode ser compreendido adequadamente sem uma histéria genealégica de seus predecessores nem sem uma reflexiio em torno da crise do modelo I6gico de sua produgio. Ora, o corpo atual & essencialmente hibrido, sendo sua figura exemplar o cyborg. Trata-se de um trago importante pois 0 corpo deixa de remeter para 0 acabado, fechado, e se abre para trocas e misturas, se torna processo sem fim. "O universo dos cyborgs & ‘© mundo dos fluxos" (p. 162), sendo também um universo no qual se desenha talvez a possibilidade de invengio de formas de resisténcia & onipoténcia de um mercado ou de um sistema de consumo cada vex mais ambicioso. Em seu "Ensaio para uma con- clusfio", que fecha o livro, e se servindo do artista Stelare como interlocutor privile- giado, leda Tucherman opera com as tec- nologias de intervengao sobre o corpo ¢ com aarte contemporanea, Nesse mundo artistico- tecnoldgico, o estatuto do corpo esta bastante longe do de todos os outros corpos que tradi- cionalmente marcaram 0 Ocidente. Estamos af distantes de qualquer idéia essencialista do corpo, o que abre para uma nova liberdade possivel: "Nesta reposiciio do corpo e do pés- evolutivo como projeto, vivemos a nova BREVE HISTORIA DO CORPO E DE SEUS MONSTROS/Ieda Tucherman m 213 experiéncia da liberdade da forma que substi- tuitia 0 idedtio modemo da liberdade das idéias (...). A questo agora seria a liberdade para modificar e mudar o corpo, respondeado A provocagao: Qual & 0 corpo que quero ter?" (p. 184-5). Uma bela andlise dos exemplos de Joe Bousquet, atleta corredor tornado teira- plégico por um tiro na coluna, ¢ Aimee Mullins, jovem atleta-manequim que nao tem as duas pernas, fecha o livro e sobre ela silen- ciaremos. Esperamos que a curiosidade impulsione o leitor a se debrugar diretamente sobre a obra, A professora leda Tucherman vem desenvolyendo em seus semindrios uma ten- tativa de complexificagao da leitura do tempo. A importincia central desse trabalho é mostrar que nossa hist6ria ndo € a da sucessio bem arrumada de camadas que se contradizem em bloco: a Modernidade seri: sucedida por uma pés-modemidade, as cite- gorias conceituais sendo cuidadosamente ajustadas para que ambas se oponham como © bem ao mal. © tempo ¢ a histéria seriam, pelo conirério, um enorme e complexo vai-e- vem, no qual sucessivos tempos coexistem ¢ onde os préprios recortes de épocas s6 s40 problematicamente realizaveis. Se sua reflexdo em tomo do corpo materializada em Breve histéria do corpo e de seus monstros foi um primeiro resultado dessa complexificagao, s6 podemos esperar com alegria pelos passos seguintes. Marcio Souza Gongalves é Doutorando da ECO/UFRI

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