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SILVIA HUNOLD LARA Fragmentos setecentistas Escravidao, cultura e poder na América portuguesa —~ otto — 2. Diferentes e desiguais Nos ttimos anos, vrios autores tem se dedicado a estudar @ordenamento politico eo modo das elas sociais no Antigo 20 Portugal dos séculos xvi e xvin,? ses trabalhos, no entanto, nfo tm aprofundado uma dis. 14 cultura “jurdizada” trouxe grandes contribuigées analiticas, mas |kambém impés algumas restrigaes. |. Como bem observou Anténio Manuel Hespanha, até 0 sé- culo xvi a reflexto sobre as formas de organizacao social, sobre « prépria sociedade ¢ seu governo, era produida essencialmen- te pelos juristas, Retomadas pelos historiadores, tais definigdes e idéias foram fundamentais para uma reavaliagdo da politica no Antigo Regime, que deixou de ser vista a partir de nogdes abstatas de absolutism (e julgada segundo valores do liberalismo oitocen- tista) para ser dlesvendada historicamente, ganhando os contornos cde uma densa e peculiar arquitetura de poderes corporativos Contudo, talvee por forga das circunstincias desses ganhos analiticos e das préprias fontes utilizadas, as andlises permanece- ram restritas & auto-representacdo expressa nos textos consulta- dos. Assim, a sociedade no Antigo Regime continuow a ser pensa- da como sendo composta por estados ou ordens, cada uma delas regrada por um conjunto de privilégios ¢ jurisdigées, tal como definidos pelas leis e pelos costumes. Na maior parte das vezes, as pessoas sem privilégios nem distingdes permaneceram pouco sstudadas, fcando dificil estabelecer diferenciacdes no interior do chamado terceiro estado — tao importantes para a investigacio 4a histria sociale também da histéria politica, Mesmo que leve- -mos em conta o contetido politico das oposicées entre povo e vas- salos do reino ou entre nobrezae plebe, que apatecem em vétios textos nos séculosxvu e xvi, certamente esse tem sido um univer- 40 historiografico no qual a dominacao e as desigualdades sociais (tais como as entendemos hoje) nao costumam ser abordadas, Nao pretendo enveredar sobre 0 debate acerca das possibili- dades de uma andlise classsta da chamada sociedade de ordens, Seguindo uma das vertentes nesse debate, creio que perguntas so- bre as relagdes de dominacio podem sim presidir uma investiga- ‘#0 arespeito do tema.® Nao de pouca interesseinguirie sobre as fe relagdes de poder que estao diretamente ligadas ao modo da pro- dugio e da distribuigdo das riquezas numa certa sociedade, ain- da que essas relagdes no se expressem em termos clasistas. As tenses ¢ 05 confitos que podem ser descobertos a partir desse tipo de pergunta permitem desvendar relagbes de poder que nem sempre foram abordadas pelos discursos intencionalmente pol ticos produzidos por aqueles que se dedicavam a pensar o tema, Dito de outro modo, elas permitem passar da anslise da politica para 2 das relagdes de dominagao — tema central para os que se ddedicam 2 historia social No caso portugués e de suas colonias na América, ha pelo menos duas dimensdes importantes a considerar: a das relagdes * As regras socinis pressupunham a rede hicrarquizada e o proprio odo das relagdes envolvia ceriménias erituais que levavam em conta essasdiferencas. A ostentagio piblica do lugar ocupado por cada um e de suas prerrogativas tinha importante significado politico. As relagbes de poder se mostravam jos pequenos gestos e nas grandes cerim nias, e a linguagem das relagdes socaisestava toda permeada de prerrogativasedistingbes, de deveres eo ‘vam sempre acima ¢ abaixo de alguém. Dat os freqientes conti tos de precedéncia nas procisses, os adjtivos ¢ hipérboles na conespondléncia oficial os constantesrituais de afirmagao do po- der (qualquer que fosse ele, em todas as instincias ou niveishie- rérguicos em que se efetivasse). Dai também a importincia das ‘marcas fisicas (lo vestudrio, dos brasoes) e cerimoniais (expressos em gests, formas de tratamento et): essa era uma sociedade que se mostrava e precsava ser vista. Num mundo em que a maior parte das pessoas ef anafabeta ve era expetitncia das mais im- Portantes:© poder e o prestigio deviam saltar aos olhos2” Por isso mesmo as formas de tratamento eoutras marcagies ‘isuais atribuidas a cada categoria social eram cuidadosamente pensadias por leisladores e supervisionadas por diversas instan- 1gbes — todos esta- 86 cias de controle. Dentre todas as regulamentagdes, destacavam- se aquelas referentes a0 vesturio. Os que j se dedicaram 20 es- tudo do tema observam que a linguagem dos trajes tornava visi- veleexibia aos sentidosa hierarquia social.” Revelador dos jogos hieréirquicos no interior dos quais as diferensas eram mostradas, ‘ tema das roupas e ornatos torna-se particularmente interessan- te para a anilise que pretenda avangar em busca dos modos de dominagao social ¢ das distingbes situadas além daquelas prati- «cadas por nobres e pessoas de maior qualidade, 0 legislativa portuguesa a respeito das roupas per- mnitidas as diversas categorias sociais é bastante antiga. A biblio- srafia indica que as primeiras determinagies legais a fixarem 0 tipo € a qualidade dos tecidos e materiais para a confecgdo das roupas e das armas que cada grupo social poderia usar datam da segunda metade do século xv, Desde os tempos mais antigas, a necessidade de regular a questdo caminhou junto com aquela de reprimir 05 excessos — sempre no sentido de manter ¢ controlar as marcas vistveis das distingbes sociais. Tanto Costa Lobo quan- to Vitorino Magalies Godinho mencionam a insisténcia dos 1e- presentantes dos estados nas Cortes de 1472 e 1481-2 com relagao aos ‘desregramentos do vestudrioluxuoso, [que] nfo somente pro- grediram na aristocracia, mas alastraram-se pelo povo"® A preo- cupasio fica evidente em um poema do Caicioneiro geral (1516), ‘em que um poeta se lamenta, lembrando nostalgicamente um passado no qual todos viviam “ordenados [e] compassadlos’ "cada um segundo sua qualidade’ para denunciar os “trajos demasia- dos" que vinham tornando “confusos os tres estados"®” Outros dispositivos legis ligados ao controle e manutengao das distingSessociais eram as determinasies telaivas as armas insignias utlizadas pelos nobres ou as formas de tratamento per itdas as diferentes “quaidades” de pessoas, cuja tradicio lei. lativa parece iniiar-se no final do século xvi." Dentre essas lis ‘mais antiga, e apesar do perigo de confusio entre os tds estados apontado pelo poeta, apenas as que se referiam ao uso de més.

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