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Capiruto 3 O Consumo de Luxo ea Ascenso do Capitalismo Luxos mais e menos vulgares Os argumentos sobre a ascensio do «luxo» ou da «socie- dade de consumo» a partir de cerca de 1400 inserem-se em dois grupos. O primeiro destaca 0 crescimento do consumo de luxo pelos ricos e argumenta que a énfase nos objetos manufa- turados caros e geralmente durdveis — sedas, espelhos, mobili rio elegante, etc. — substituiu formas anteriores de expressio de estatuto, tais como a manutencio de grandes séquitos, que contribufam menos para estimular a produgio. Werner Som- bart chamaa este fenémeno a «objetificagao» do luxo(!). Nesta transicdo, os artigos de luxo tornaram-se cada vez mais acessiveis, ‘quem tivesse dinheiro para 08 adquirir, deixando de ser exclu- sivos daqueles que cumpriam determinados critérios sociais para a posse de bens de prestigio. Todavia, estes novos 1uxos $6 se traduziam em estatuto se os objetos fossem utilizados de acordo com canones de bom gosto, 0s quais comecaram a mudar mais rapidamente do que no pas- sado: estes c4nones eram, em parte, uma defesa das antigas elites (©) Sombart (1967), p. 95. 198 | DE UM NOVO ETHos A UMA NOVA ECONOMIA? contra a traducio facil da nova riqueza em estatuto através do ‘consumo. Esta ascensio da «moda» ditou que mesmo aqueles que possufam grandes quantidades de bens durdveis, como 0 mobilidrio ou 0s cristais, se sentiam cada vez mais pressionados para adquirir novos artigos, pelo que a procura destes bens, apesar de continuar a ser considerada socialmente necessaria, tornowse cada vez mais desligada de qualquer expécie de neces- sidade fisica. - E por fim, prosseguem estes argumentos, os padroes de consumo de estatuto clevado foram imitados pelas gentes dietae existiam muitas otras inottuigbes cas caractristcasrelevantes poderiam ter sido adaptadas (© CONSUMO DE LUXO E A ASCENSKO Do CarrTaLismo | 201 tornaram gradualmente trabalhadores assalariados. Por con- seguinte, embora as abordagens sobre a elite € o consumo de luxos duraveis possam mencionar a procura agregada para a totalidade da economia, 0 seu enfoque é outro a forma como 0s crescentes mercados de Iuxo alteraram a producao dos bens, promovendo novas instituicdes e diferenciando entre os produ- tores. Assim, no que nos diz respeito, os argumentos com base nos alimentos estimulantes e nos luxos populares olham para ‘questdes suscitadas no capitulo anterior: a participacao popular nos mercados, a alocagao de mao-de-obra ¢ os niveis de vida populares. Por outro lado, os argumentos assentes nos luxos durdveis mas mais exclusivos apontam para questdes que tem aver com a discussio do capitalismo, no Capitulo 4: as altera- Ges nas estruturas das empresas, o aumento do controlo sobre a producao pelos fornecedores de crédito ¢ a acumulacao de lucros por um niimero relativamente pequeno de pessoas com grandes incentivos para os reinvestir. Por conseguinte, embora o consumismo das elites tenha surgido primeiro, faz mais sentido analitico comecarmos pelos luxos quotidianos. Luxos quotidianos e consumo popular no principio da Europa moderna ideal seria ndo compararmos 0 consumo de cada bem ‘mas sim de cabazes de compras € descobrir que as diversas pre- feréncias culturais eram tdo semelhantes que as diferencas no consumo decorriam apenas do poder de compra. Todavia, os dados referentes ao século xvitr nao nos dio garantias, pelo que se impSe cautela quanto ao significado das comparacdes que se seguem. No entanto, as nossas estimativas, que apontam, para semelhancas na esperanca de vida (no Capitulo 1) ena percentagem do orcamento familiar dedicado a obtengao de calorias basicas (mais a frente, neste capitulo), sugerem que as comparagées de outros tipos de consumo tém algum significado para 0 nosso projeto. wo | DE UM NOVO ETHOS A UMA NOVA EGONOMIA? Importa nao esquecer os limites da explosio dos «luxos quotidianos», pelo menos até meados do século x1x. A lista de novos alimentos, tecidos, bebidas, etc., que surgiram a partir de 1400 é espantosa, ¢ muitos causavam dependéncia. No entanto, difundiram-se de forma bastante lenta, pelo menos até finais do século xvii e, em geral, com 0 século xrx jé avancado: norma, os grandes aumentos percentuais refletem bases i diminutas, mesmo nas regides mais ricas da Europa. A propria Inglaterra, por volta de 1800, apenas consumia anualmente per capita cerca de meio quilo de café, ¢ 700 g em 1840; 36 depois € aque os precos cairam de forma dristica e as pessoas comuns se converteram em consumidores quotidianos (em 1880, 0 con- sumo anual per capita cra de 2,5 kg[*)). Quanto ao resto da Europa, os niimeros so muito mais baixos. Nos anos 80 do século xviii, a Europa nao-russa consumia anualmente cerca de 11 000 toneladas de cha, o que indica que a totalidade do continente consumiria talvez cerca de 2 on¢as [0,5 kg] per capita ¢ a Europa nao-inglesa consideravelmente menos. Em 1840, as ‘40 000-45 000 toneladas de ché exportadas para a Europ2 mal teriam dado para cerca de 4 on¢as per capita por ano(’). consumo chinés era significativamente superior. Wu Chengming estimou o comércio de cha em cerca de 18 000 toneladas no ano de 1840 e as suas estimativas para o comércio interno chinés sao habitualmente por defeito(’). Se nesta data ‘existissem 380 milhdes de chineses(*), 0 consumo situar-seia pouco abaixo das 11 oneas per capita—_mesmo no caso improvavel de as estimativas de Wu ndo omitirem nenhum circuito local ow regional significativo do comércio do ché. ©) Braudel (1982), p. 252, citando Staunton; Gardella (1994), p. 88: (©) Braudel (1982), p. 251 (7) Com base nos niimeros para a exportacio in Gardella (1994, J 6) e nos niimeros demogrificos in McEvedy e Jones (1978; p. 28)- (6) Asestinativas da populacio chinesa na véspera das catistrofes de -meados do século x1x situamse geralmente na casa dos 425-450 milhdes de ‘pessoas, mas trabalhos mais recentes da autoria de G. W. Skinner sugerem que un nimero aproximado de 380 milhées estara mais correto (1987, pp. 72-76). © CONSUMO DE LUXO E A ASCENSAO Do carrTALIsMo | 209 Mas a comparacéo do consumo de cha é manifestamente injusta, Os custos elevados do transporte marftimo, as tarifas ¢ ‘0s monopélios tornavam o ch muito mais caro na Europa do que na China e os europeus consumiam varias bebidas (café, cacati, vinho) que néo existiam na China. No entanto, € nots vel 0 tempo que decorreu até que o consumo europeu deste «luxo quotidiano» ultrapassasse o da China. Nao dispomos de nimeros para o tabaco, mas Staunton ¢ MacCartney, enviados britanicos 4 China no ano de 1793, ficaram espantados com 0 consumo de tabaco chinés; as suas observacées s40 corroboradas por uma carta chinesa segundo a qual em Zhejiang (uma pro- vincia prospera mas onde o tabaco nao era uma cultura impor- tante) «até as crian¢as com meio metro de altura» fumavam("). QuapRo 3.1 Consumo de agicar per capita (em kg) Europa (s/Gri-Bretanka) | Gré-Brétanka 08 2 095 5 | 9 _Mesmo no caso do acticar, avantagem europeia surge muito mais tarde do que seria de esperar. Embora o consumo inglés ‘per capita fosse de cerca de 2 kg em 1700 € chegasse aos 9 kg em 1800(”), 0 resto da Europa estava muito atrés. Uma boa cstimativa para a Europa continental, por volta de 1800, situa- -se ligeiramente abaixo de 1 kg per capita, o que equivale apro- ximadamente a estimativa de Braudel de 1 kg per capita para a Franca, em 1788(!"). Além do mais, fora da Gra-Bretanha, a (®) Staunton (1799), II, p. 48; Cranmer-Byng (Macartney) (1962) 1p. 285; carta citada in Dermigny (1964), I, p. 1253. “ue () Minez (1985), p. 67. (®) Usando aestimativa de Mintz para. totalidade da Europa (1985, p. 78) € subtraindothe a sua estimativa para a Gré-Bretanha (1985, ae | DE UM NOVO £TNOS A UMA NOVA ECONOMIA? tendéncia de subida do consumo nao € muito vincada, como indica 0 Quadro 3.1(). Isto nao significa que 0 aumento do consumo de acticar tenha sido um fenémeno exclusivamente britanico. A catego- tia «Europa s/Gra-Bretanhay € demasiado lata; pelo menos a ‘Holanda ¢ as regides em torno de Paris, Bordéus e Hamburgo denotam um aumento muito mais acentuado do que o resto do continente, embora nao tanto como na Gri-Bretanha (em 1846, o consumo parisiense per capita ainda estava ligeiramente abaixo de 4 kg[']). Além do mais, uma data de meados da primeira década do século x1x — a meio das Guerra Napoles- nicas — deprecia os ntimeros do consumo (alis, 2s carestias de agticar em Paris desencadearam o descontentamento popular na fase inicial da Revolucdo Francesa['*]). No entanto, vale pena ponderar estes mimeros. Em primeiro lugar, apesar da utilizagao de mao-de-obra escrava para cultivar acticar barato, a tendéncia de aumento do consumo néo foi constante em toda a Europa. Hoje, quando © consumo per capita europe torna insignificante 0 consumo inglés em 1800, a «conquista do mundo» ("") pelo acicar parece inexoravel a partir do momento em que comegou a ser culti- vado em plantacdes especializadas e atentas aos custos para uma «sociedade de consumo» emergente. E 0 acticar, como Mintz sublinha, ndo era uma mercadoria qualquer. Fora procurado pelos europeus durante séculos, fora oferecido entre reis ¢ papas ¢ continha um folclore e uma mistica que 0 tabaco ou 0 cacau, - 67). Em relagio estimativa para a Franca, vejase Braudel (1982, p. 226) (€) Nameros relativos & producio das colénias portuguesa e espa- nholas in Phillipps (1990) pp. 58-61, ¢ das col6nias francesas, holande- sas e inglesas in Steensgaard (1990a), p. 140; mtimeros para a populacdo ccuropeia in McEvedy ¢ Jones (1978), pp. 2629; ntimeros para o consumo britinico in Mintz (1985), pp. 67, 73, usando o mimero referente a 1700 para 1680. (®) Brandel (1982), p. 26. (*) id, p. 27 (8) Mid, p. 224 © CONSUMO DF LUXO E A ASCENSKO Do caPITALISMo | 205 de descoberta mais recente, ndo podiam igualar, era agressiva- mente promovido por investidores poderosos e pelos governos mercantilistas, que tinham a ganhar com 0 aumento do con- sumo, € podia criar dependéncia fisica(""). Tendo em conta tudo isto, uma pausa de cinquenta anos no aumento do con- sumo europeu de aciicar — durante uma perturbacao econémica geral —sugere que imaginar como irreversivel o «nascimento da sociedade de consumo» ("") antes de 1850 poderd ser bastante enganador. Pela mesma légica, os argumentos que atribuem demasiada importancia as pausas no aumento do «consumo de luxo» noutras paragens poderao estar a tratar algo bastante normal como uma anomalia indiciadora de interferéncias num processo que deveria seguir «normalmente» o seu curso. Em segundo lugar, 0 quadro recorda-nos de que antes de 1850, a revolugao é principalmente inglesa e nao europeia. Em termos absolutos e relativos, o fosso entre a Gr&Bretanha € a maior parte da Europa estava a aumentar ¢ néo a diminuir. A observacio de Sidney Pollard sobre a produgdo ~ que varias regides europeias ndo contiguas e nao a Europa como um todo passaram por uma revolugao no século x1x ~ parece aplicar- Se também ao consumo(""). Esta desigualdade geografica € 0 padrao irregular do consumo devem ser tides em conta quando comparamos outras regides com uma histsria «europeia» idea- lizada. Oagticar tinha usos rituais importantes no seio da ciasse alta chinesa (principalmente nos rituais budistas) desde a Dinastia ‘Tang("") e também era usado na medicina(®), Na Dinastia Song (960-1279), sua sucessora, 0 uso do agticar pelos ricos extravasou as ocasides especiais: «Os produtos da cana-de-acticar integra- ram-se plenamente no estilo de vida € nos habitos alimentares (Mintz (1985), pp. 16:18, 188-139, 164. () MeKendrick, Brewer e Plumb (1982), pp. 1-6, em especial, pp. 45. (*) Pollard (1981), pp. 84106, 111-128, () Governou a China de 618 a 907. (N. T.) (¢*) Daniels (1996), pp. 55, 59, 6263, 70-71 206 DE UM NOVO ETHOS A UMA NOVA ECONOMIA? dos ricos.» (#2) Nos séculos xv1 € XVHL, varios visitantes europeus observaram que 0 uso do acticar era muito mais alargado entre ‘os chineses ricos do que entre os seus homélogos europeus(*). Entretanto, 0 uso do acticar em ocasides especiais parece ter chegado a populacao em geral: um relato da provincia de Can- to, de cerca de 1680, diznos que 0 agticar era moldado em formas de pessoas, animais ¢ edificios, e 0s frutos cristalizados constituiam uma parte crucial das ceriménias de casamento, «quer a rapariga fosse rica ou pobre». Os ricos onganizavam festas nas quais eram servidos «varios milhares de jarras» des- tes frutos. Diziase que a quantidade de docura distribuida influenciaria a experiéncia da noiva aquando dos partos e que «quando alguém nao convida as pessoas [para uma festa com frutos cristalizados], toda a gente Ihes chama ‘miseros da fruta cristalizada’» (®). Outra fonte mais ou menos da mesma época observa que até os muito pobres comiam biscoitos de agticar na passagem de ano e que nas casamentos era tao essencial uma grande quantidade de fruta cristalizada que algumas familias se arruinavam para cumprir este requisito(™). Estes usos do agticar, uma combinacao de utilizacdes medicinais ¢ cerimoniais, com consumo imitativo — com 0s ricos a usarem 0 acticar com frequéncia ¢ os pobres em ocasides especiais -, assemelham-se 208 que Mintz observa no principio da Europa moderna, que abriram o caminho para a ascensao do agticar, no século xix, como uma importante fonte de calorias para as pessoas comuns. Esta transformacao nunca se deu na China, mas isto nao pode ser explicado com os padrées de consumo do século xvi, Nao dispomos de ntimeros totais para o consumo de acticar cchinés em meados do século xvii, mas até os dados fragmen- térios que possuimos geram estimativas notavelmente elevadas. ‘A grande maioria da producio de acticar chinesa localizavase em Canto, Fuquiem (incluindo a Taiwan) ¢ Sichuan. Feliz- ~~ @) Mazumdar (1984), p. 62 ©) Bid, p. 64. ©) Chu (1968), 14: pp. 20692, () Daniels (1996), pp. 78,75, 8081. © CONSUMO DE LUXO E A ASCENSAO DO CAPITALISMO | 207 mente, dispomos de ntimeros razoavelmente completos no que toca aos carregamentos enviados da Formosa para 0 continente por volta de 1720: cerca de 52 000 toneladas. A producao de acticar taiwanesa s6 voltow a subir de forma assinalavel depois da Guerra do Opio, mas parece terse verificado um aumento lento € continuado. Por conseguinte, é seguro usar 0 nimero relativo a 1720 como uma estimativa conservadora para 1750. ‘Nao temos estimativas da producdo total de Canto. Temos ‘© que aparenta ser uma estimativa bastante conservadora da producio por acre das «plantagdes» de cana de Cantio ~ 1,4 toneladas(®) ~ mas nao possuimos mtimeros sobre a extensio de terras cultivadas. No entanto, Mazumdar regista pelo menos 15 condados na provincia (em 92) que no século XvItt eram centros de producdo de cana("*); em 3 destes 15 condados, 40% da terra estaria cultivada com agticar, noutros 60% (*"). Os trabalhos recentes de Robert Marks sugerem uma abor- dagem alternativa, Segundo as suas estimativas, pelo menos (©) Manumdar (1984), p. 207. Mazumdar argumenta, e bem, que no era provavel que a produeio de acticar na China fosse muito inferior a de outras partes da Asia, Henry Botham, um cultivador de finais do século xvi com experigncia nas Indias Orientais e Ocidentas, era da ‘mesma opinido: segundo o seu testemunho, a mo-deobra lie chinesa clivava’o agticar com maior efciéncia do que os trabalhadores servis das colénias europeias na Asin e na América (citado in Daniels, 1996, p. 98); ainda nosanos 40 do século x1x, outros ocdentasafizmavam a superiori+ dade dos métodos de cultivo de agicartrazidos pelos chineses. Shepherd (1993, p. 159) apresenta uma estimativa significatvamente mais baixa para a producio por acre em Taiwan, mas auma regio fronteitica tio esparsamente povoada havia muito menos pressio do que no continente para maximizar a produgéo por acre. Além do mais, ocultiv do agicar em “Taiwan ainda era de sequeiro, ao pasto que uma grande parte do acticar de Cantio e Fuguiem era culvada com irigagio, que possibilita uma pprodugio muito maior (Daniels, 1996, pp. 105, 236). Eugene Anderson (1988, pp. 8081) calcula a producio de acdicar da época imperial tardia «em 800 4g-1600 kg por acre; 0 niimero de 1200 kg avancado por Mazumdar situase exatamente a meio desta gama. (®) Mazumdar (1984), pp. 280-29. () Gitado ia wi, p. 272. 208 | DE UM NOVO ErHos A UMA NOVA ECONOMIA? 24.000 000 mu (4 000 000 de acres) de terrenos agricolas de Cantao ¢ Guangxi eram dedicados a0 cultivo de acticar por volta de 1753, ¢ 0 mimero poderd ter chegado aos 41 500 000 mu Nesta época, Cantio tinha mais de 70% do total de acres culti- vados nas duas provincias ¢ uma percentagem ainda maior das culturas néo-alimentares (Guangxi tinha a sua principal cuitura comercial no arroz, que era vendido em Cantio). Por conse- guinte, a estimativa de que Cantao tinha 70% dos terrenos nao cultivados com cereais da regiao seria conservadora: pelo menos 16 800 000 mu (2 800 000 acres) € talvez até 29 050 000 mu (4.841 666 acres). Marks sugere que uma boa estimativa seria que metade das terras de Cantao ~ 21 500 000 mu - estavam cultivadas com culturas ndo-cerealiferas(*), pelo que nao parece exagero usar o niimero de 16 800 000 mu. ‘Acana-deacicar era.a cultura ndo-cerealifera que ocupava provavelmente mais terra do que qualquer outra(®); se nao era a primeira, era a segunda (atrés das amoras} ou pelo menos a terceira (Cantio importava a maior parte do seu algodao e cultivava muito pouco tabaco; » cha e a fta so os outros con. correntes plausiveis ao segundo lugar na lista[™]). Mas mesmo uum décimo do nosso niimero minimo para as culturas nao- -cerealiferas de Cantao, por volta de 1753, €de 280 000 acres, 0 qne atribui 3,9% do total dos terrenos cultivados da provincia & producio de acticar. Multiplicando este ntimero pela estimativa de produgao por acre feita por Mazumdar, temos 336 000 tone- Jadas de acticar por ano em Cantio, Acrescentando a produgio de Taiwan, chegamos a 388 000 toneladas em 1750, excluindo Sichuan, a parte continental de Fuquiem, ou os muitos lugares ‘onde eram plantadas quantidades menores de cana("") Segundo uma fonte do século xvi, Fuquiem (incluindo ‘Taiwan) e Cantéo produziam 90% da cana da China, Isto indica (®) Mant, comunicagio pessoal a0 autor, agosto de 1996, ) mid (©) Mazumdar (1984), pp. 271, 372. (°) Vejase o mapa in Daniels (1996), p. 90, que inclui prefeituras de outras seis provincias que produziam alguma cana. © CONSUMO DE LUXO EA ASCENSAD po CAPITALISMO | 0% que devemos aumentar 0 nosso total em pelo menos 43 000 toneladas (um nono da producio de Fuquiem ¢ Cantio). Na verdade, deverfamos talvez aumentar este ntimero por um fator maior, de modo a refletir a dispersio da cana-de-agticar em 1750: a cana difundiuse geralmente para onde os habitantes de Fuquiem emigraram (quer para outras partes da China, quer para o Sudeste Asidtico) e a sua emigracao foi muito maior no século xvimt do que no século anterior(*). No entanto, omitirei todaa producio fora de Cantio ¢ Taiwan, Finalmente, exce¢io feita a0 periodo em que os holandeses controlaram Taiwan, as exportacées de agiicar chinesas foram bastante pequenas até 0s anos 40 do século x1X(); por outro lado, nos anos 30 do século xvir, a China importou anualmente do Vietname cerca de 40 000 toneladas de acticar(*) (omito a quantidade muito mais pequena importada da Tailandia{™]). Acrescentando estas importagbes, ficamos com um consumo anual chines de cerca de 428 000 toneladas em meados do século. Sendo a populagio da China, em 1750, de 170-225 milhdes de pessoas(™), isto indica um consumo de acticar anual per capita de 1,9 kg-2,5 kg. Acrescentando a restante producio chinesa, ‘temos mais uns 200 ¢-250 g por ano; usendo o parametro infe- rior de Anderson para a producio na época imperial tardia, subtraimos 550 g-750 g. Mesmo aumentando ligeiramente a percentagem das terras de Cantao cultivadas com cana, as esti- mavas sobem em flecha. Estas estimativas excedem de longe as médias europeias para 1750 e até para 1800. O agticar chinés tinha um teor de saca- (©) Daniels (1996), pp. 97, 105, (°) Mazumdar (1984, pp. 357, 374, 376) refere, para 1792, 66 000 pcos ou cerca de 4300 toncladas com origem em Cantao ¢ 1300 toneladas para o japio. Em 1833, as exportaces de Cancio tinham apenas aumen- {ado para 17 000 tonetadas (5) Nguyen, citado in Reid (19882), p. 31 (©) Cushman (1975), p. 105. (**) 0 total oficial para 1741 foi de 141 milhées de pessoas, mas segundo Ho (1959, pp. 3646) tratase de uma estimativa pelo menos 20% or defeito, e outros especialistas avancam cope niimeros maiores, 210 | pp UM Novo Twos A UMA NoVA ECONOMIA? ‘ose menor do que o consumido na Europa e pelos padrées de hoje seria considerado um produto inferior. Contudo, até a0 século xx, muitas pessoas preferiram o seu acticar com mais impurezas, logo, com um sabor mais intenso(°”).. Em finais do século xvutr, aos precos de Beijing [Pequim], — que seriam relativamente elevados mesmo para este acticar com mais impurezas, dado que todo o acéiear vinha do longin- quo Sul -, um soldado necessitaria de 8 a 4,5 dias e meio de pré para comprar esta quantidade de agticar branco(*). Nao € implausfvel. Um trabalhador rural necessitaria de quase um més de salario em dinkeiro, o que parece demasiado para o agticar. No entanto, o dinheiro era apenas uma parte do rendimento dos trabalhadores rurais; se usarmos as estimativas do rendimento total (em dinheiro ¢ em espécie) apresentadas no Capitulo 2 (que sio algo generosas, € certo), um trabalhador agricola ganharia, em meados do século, 0 equivalente a 10 800 moe- das de cobre por ano. Neste caso, dois quilos e meio de agticar de primeira qualidade representariam apenas 4% do seu ren- dimento anual, uma percentagem elevada mas nao totalmente impossivel tendo em conta a estimativa de Fang Xing de que cerca de um quarto do rendimento dos pobres rurais era gasto em alimentos nao cerealiferos(™). Sendo os trabalhadores sem terra chineses mais pobres, é de esperar que 0 seu consumo de acticar fosse inferior A média. Os totais agreyados chineses, tal como os europeus, dissimu- Iam diferencas regionais enormes. Shepherd coloca 0 consumo anual em cerca de 5 kg per capitaem Taiwan, onde oacacar seria o mais barato(®). As rotas dos barcos de transporte de agticar e a gastronomia regional (em especial, fruta cristalizada e varios (©) Daniels (1996), p. 276. (*) Néimeros calculados com base nos presos citados in Mazumdar (1984), p. 84. As imprecisdes adicionais resultam da incerteza sobre se a medida jin citada nesta fonte € 0 «catty aduaneito», equivalente a cerca ‘de 550 g, ou 0 «catty de mercado», igual a cerca de 650 g. No que nos diz respeito, a variarao no € suficiente para fazer grande diferenca, (®) Daniels (1996), pp. 93, 97 (®) Shepherd (1993), pp. 482n, 78 0 CONSUMO DE LUXO F 4 ASCENSAO DO CaPITALISMO | 211 molhos doces no Sul e no Sudeste) indiciam um consumo muito maior no Sul e no Leste da China do que no Norte(*").. Parece, pois, bastante provvel que o consumo de acticar chinés, em 1750, fosse superior ao da Europa continental em 1800. Mesmo que as nossas ¢stimativas para 1750 sejam o dobro do consumo real, a China continuaria a estar muito mais pré- xima da Europa do que'a maior parte da Europa estava da GraBretanha. Porém, a dada altura, o consumo de acticar chinés per capita diminuiu, ao passo que na Europa disparou a partir de 1840. 0 estudo realizado por John L. Buck nos anos 30 do século xx aferiu consumo chinés em 1,1 kg per capite, 60% da nossa esti- ‘mativa mais baixa para 1750(*). Ora, tendo provavelmente a producao de acticar chinesa aumentado depois dos calamitosos anos 50 € 60 do século x1x (embora grande parte fosse para exportacio), € muito possivel que esta queda no consumo de acticar se tenha verificado entre 1750 e 1870. © consumo de cha nao caiu a pique mas poderd ter estag- nado, Uma estimativa feita em 1912 foi de 1,3 kg per capita, o que representa um aumento impressionante, mas parece tratar-se de um nimero demasiado elevado, porque uma amostragem principalmente urbana realizada na mesma década estimou pouco mais de 1 kg per capita. Chang Chungili cita como mais provavel uma estimativa nacional, feita nos anos 30 do século xx, de 550 g-650 g(*). Este mimero ainda excede em muito as 11 oncas dos anos 40 do século x1x, mas onmero anterior, como dlissemos, inferior ao real. Na China muito mais préspera de 1987, o consumo de cha per capitaera ligeiramente inferiorao de 1840(“), mas tratase de uma comparacdo injusta porque hoje ‘em dia 0 ch4 compete com a cerveja, 0s refrigerantes ¢ outras () Ng (1983), pp. 134-135; Ng (1990), p. $06, () Gitado in Daniels (1996), p. 85. (9) Chang (1955), p. $03. (9) Este ntimero foi obtido subtraindo as exportagées da producto total constante na tabela in Gardella (1994), p. 8, ¢ dividindo por uma populacio de 1,2 mil milhes de pessoas. 22 | px UM Novo Eros A UMA NOVA ECONOMIA? bebidas. Nao hi diivida de que o consumo global per capita de «alimentos estimulantes» aumentou mais Jentamente no século xrx e no principio do século xx. O apetite crescente dos ‘chineses pelos luxos quotidianos no século x1x no era necessa- riamente autossustentado; pela mesma l6gica, o que iria acon- tecer ao consumo europeu também nao era inevitavel. Todavia, nao basta observar que a Europa poderia ter seguido o caminho da China, algo que o continente ters efetivamente feito entre 1750 e 1800; hé que explicar a divergéncia, A divergéncia foi muito exacerbada pelas tendéncias demo- ‘graficas. Como veremos em maior detalhe, o crescimento populacional chines p6s-1750 concentrou-se principalmente em regides de relativa pobreza. Por conseguinte, mesmo que © consumo de cada regido se tivesse mantido nos niveis de 1750, as médias nacionais teriam diminufdo. Isto aplica-se, em especial, ao acticar, dado que no século xvitt 0 consumo se concentrava sobremaneira nas prosperas macrorregides liga das as plantagées de acticar por transporte aquético: Lingnan, a Costa Sudeste ¢ 0 Baixo Iangtsé. Estas trés regides (exceto ‘uma pequena concentracio perto da capital) poderdo ter sido responsaveis pela quase totalidade do consumo de agticar em 1750 quando albergavam cerca 40% da populagio(). Em 1848 (e 1953), nestas trés macrorregides j4 s6 I4 viviam prova- velmente 25% dos habitantes da China('*). Bastaria isto para baixar a média nacional de consumo de agiicar em 37,5%, expli- cando a maior parte da diferenga entre a nossa estimativa mais (®) Esta grande concentragio € indiciada pelo carster das gastrono- :miasregionais, pelo que sabemos das rotas de transporte do acticar e por relatos episédicos sobre o uso generalizado do acicar aquieasua auséncia acolé. Se esas regides consumiram realmente todo o agticar chinés em Imeados do século xv1Ie consumo nacional se sinuase na parte inferior do espetro que estimei acima, o seu consumo anual per capita teria sido de 5,4 kg um miimero bastante elevado mas néo implausivel, dadas as estimativas de que as pessoas da regiao do aciicar de Taiwan consumiam 5 kg de agticar por ano (Shepherd, 1993; pp. 482n, 78). (¢*) Com base em Skinner (1977a, p.213), ajustando de acordo com as conclusses de Skinner (1987). © CONSUMO DE LUXO EA AScENSAO DO Cagrratisuo | 28 baixa para 1750 os resultados de Buck para 0 principio do século xx (1,1 kg de agticar centrifugado, acrescido de algum transformado com outros processos ¢ uma parte consumida crua nas regides produtoras). Este fator demogréfico também ajuda a explicar como é que a queda no consumo ocorren sez: dar origem a muitos comentarios sobre um declinio do nivel de vida: se 0 consume nido caiu muito em nenhum lugar especifico, nao hhaveria muitas razdes para alguém reparar num declinio, Além disso, esta distribuicao do crescimento populacional contrasta de forma bastante acentuada com a situa¢ao na Europa, onde, pelo menos entre 1750 e 1850, a populacdo cresceu geralmente mais depressa nas regides continentais de relativa prosperidade (ena Irlanda). No entanto, as tendéncias demograficas s6 explicam parte da divergéncia no consumo. Por exemplo, o consumo de tecidos de algodio nao podia estar tio geograficamente concentrado como o do agiicar e existem provas de um declinio absoluto na produgao de algodio no Norte da China. (Embora também aqui se possa ter Verificado pouca ou nenhuma diminuicg0 no consumo local, mas apenas um declinio no algodio expor- tado pelo Norte da China para o Baixo Iangtsé. Os dados € as suas limitacGes sio discutidos no Anexo F). Aliés, entre 1750 € 1900, o consumo europeu nao s6 nao caiu como aumentou mais depressa do que nunca, embora principalmente a partir de 1840, Como veremos no Capitulo 4, a estrutura do comércio destes novos «luxos quotidianos» diferia em aspetos que seréo ossivelmente significativos. Na China, 0 acticar, 0 tabaco € 0 cha eram, na sua esmagadora maioria, produtos domésticos; 0 seu comércio era extremamente competitivo e envolvia muitos comerciantes de pequenas dimensdes que tinham margens de lucro relativamente baixas(”), Além do mais, este comércio nao gerava receitas significativas para o Estado, pelo que nao hasia interesses particularmente poderosos a promover 0 consumo destes produtos alguns funciondrios governamentais até 0 () Ng (1983), pp. 99, 157; Ng (1990), pp. 805-906. 2 DE UM NOVO krH0S A UMA NoVA ECONOMIA? desencorajavam de forma ativa("*). Também encontramos na Europa alguns funciondtios e moralistas que tentaram desen- corajar estes novos gostos (e no Japao, no Império Otomano ena india), mas havia interesses muito poderosos decididos a promover 9 aumento do consumo: funcionarios ptiblicos em busca de receitas ¢ os mercadores € plantadores colomiais que tinham feito grandes investimentos na capacidade produtiva e ios monopolistas. Mesmo assim, consumo aumen- tou lentamente na maior parte da Europa continental e entre 0s britanicos pobres até & grande baixa de precos de meados do século xix, Foi formulada 2 hipstese de a gulodice inglesa ter resul- tado, em parte, de uma gastronomia bastante simples e que, de forma inversa, o consumo muito inferior de acticar da China se explica pela complexa gastronomia chinesa, com a sua miriade de outros adocantes e especiarias("”). Porém, tendo em conta os nossos ntimeros elevados para o consumo de acticar na China no século xvii, esta explicacao nao tem muito peso, Na China, © acticar transitou com grande sucesso da medicina para uma tilizacdo generalizada como «especiaria», a par do periodo aaprenderem a gostar do acticar; o que nunca aconteceu foi a transigio de

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