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‘Teoria critica Discussao sobre o receptor ativo na Escola de Frankfurt Francisco Rudiger Doxtorem Ciéncias Sociais, USP Profesor da FAMECOS /PUCRS FABICO/LERGS Revista FAMECOS * Porto Ak A crmnica. A ioestmia cultural frankfurtiana transformou-se-no tiltimes anos numa espé- cie de espectro que ronda a consciéncia dos estudiosos da comunicagao. Nesse periodo, a reflexao critica perdeu terreno diante do discurso entusiasta, quer em relaciio ao pro- gresso técnico, quer em relagao ao bom sen- so das ma Chegada a era pds-moderna, vislumbrada de maneira pioneira pelos velhos frankfur- tianos, a critica 4 industria da cultura pare ce ter sido jogada as tragas pela maior parte dos praticantes dos estudos culturais ¢ pes quisadores da comunicacao. Aparentemente a tendéneia agora @ legiti- mar a cultura de massa e saudar 0 advento da sociedade de comunicagao. As vésperas do novo milénio, o recurso a teoria critica passou a soar como um anacronisme ou ex- pediente elitista, carregado de esquematis- mo @ Visio estreita, promovido por moder- nistas nostilgicos, saudosos da suposta cul- tura auténtica gestada nos primirdios da era burguesa, No Brasil, a perspectiva frankfurtiana tor- nou-se denuncismo rancoroso e discurso: depressivo, baseado em uma concepeao sti- perada da cultura ¢ da midia, metodologi- camente desprovida dos meios para com- preender as benesses da técnica e as cor tra- digdes da sociedade, a cultura no plural ¢ as mediagdes na comunicagao, Os pesquisado- res aderiram acriticamente a idéia de que ‘seu tempo passou [porque] - ainda que possuisse algo relevante a dizer, nds teria mos meios melhores de fazé-lo atualmente. Persistir com o enfoque da Escola de Frank- furt [portanto] é ficar preso a um enfoque que é.a0 mesmo tempo estreito e ultrapa: do” (Strinatti 1995: 52) O presente texto se origina de um trabalho de penquua.waicample.s envandaments 4 onde question esse consenso € procuro confrontar os juizos correntes sobre as idéi- as do grupo com a letra do espélio que nos deixou. Segundo nosso modo de ver, a criti- ca a teoria da industria cultural tornou-se com o tempo uma pratica ritual, desprovida de contetido vivo, onde repete-se uma série de chavoes ¢ platitudes. A perspectiva frankfurtiana foi transformada em um cada- ver que 0s estudiosos da cultura contempo- rinea todavia nao cansam de enterrar, tal- vez menos para provar por que suas teorias esto vivas do que pelo fato que nela esteja inserita sua ma consciéneia. Neste ensaio procuraremas - em resumo - revisar 0 entendimento de que a teoria criti- ca procedeu a uma reificagao dos sujeitos sociais, enquanto pressurpasto da idéia de que nesse modelo “o receptor se encontra reificado por completo” (Wilton, 1995; 20) Defende - a corrente dos estudos culturais, @ jutizo segundo o qual o paradigma frank- furtiano nado tem um conceito de puiblico como receptor ativo e criador de significa~ dos. Deixando para outra ocasifio a exposi- gio dos motivos para afirmar porque nao & bem esse 0 caso, limitar-nos-emos, nessas paginas, a mostrar porque nao procede a critica a sua suposta reificagia: nesse enfo- que se trata © problema do receptor como sujeito. Costumeiramente atribui-se aos frankfurtia- nos o entendimento de que a industria cul- tural realiza um trabalho ideoldgico de la- vagem cerebral nas massas ¢, assim, as mantém num estado de falsa consciéncia (alienagao}. O juizo no condiz com suas idéias mais originais. Algumas vezes Ador- no chegou a dizer quea televise “contribui para divulgar ideologiase dirigir de manei: ra equivocada a consciéncia dos espectado- res" (Adorno, 1995; pp. 77, 80). As princi- pais referéncias 4 midia como ideologia fei- las pelo autor todavia ndo se situam nesse plano. "A concessao de reconhecer que os filmes difundem ideologias j4 ¢ ela mesma uma ideologia difundida”, escrevia cle em Minima Moralia (# 130), As comunicagdes © a industria da cultura nao funcionam com base na transmissio de ideologia, na medi da em que “s6 se pode falar em ideologia quando um produto espiritual surge do proceso social como algo auténomo, subs- tancial @ dotado de legitimidade” (Horkhei- mer e Adorno, 1978: 200). ‘A peculiaridade dos mecanismos de inte- gragao contemporaneos provém do fato de que eles nao funcionam com base na ideolo- gia. © principio de integragio que se impoe na sociedade atual reside na propria forma da mercadoria (Cf, Honneth, 1991: 95), Cos- tumase pensar que a midia tem um carater ideolégico porque veicula certos conteudos. No enfoque em juizo nao se passa dessa ma~ neira. O problema da ideologia est antes no significado que © proprio meio passou a ter na vida das pessoas, na relacao das pes- Soas CoM esse Meio enquanto aspecto do chamado vu tecnologico. Conforme Adorno chama a atengao, contra- Flamento ao suposto por seus criticos, a apa~ relhagem cultural moderna lida com uma “audiéncia desiludida, alerta © dificil de convencer” (1991: 139). A civilizagao mo- derna nao fez vs homens senhores de sua vida. No entanto os tirou da alienacao. A Subjetivizagao da razao tornou-0s mais conscientes de sua situagdo, © os avancos nos meios de informagio ampliaram seus conhecimentos. O esclarecimento desencan- tou os homens e o mundo, expulsando-os do “jardim magico” em que viviam, para usar a expressdo de Weber. A proposicao, inclut as relagdes que acabam travando na esfera da industria cultural, Embora estejam cada vez mais enredados em seus mecanismos, os individ wos, em sua maioria, realmente nao ceéem que ali se de- cida seu destino, A verdade é que, no fun- do, “as massas nio véem e aceitam de ha muito 0 mundo tal como Ihes é preparado pela induistria cultural” (1886: 98). GH Revista PAMECOS # Pris Alegre # a! $+ pul 1998 © seruestral Durante algum tempo, “fizemos, todos nos, a suposicao de que, até certo ponte, a indus tria da cultura atual, a qual devemos atri- buir todos os poderes de integragao social em sentido amplo, realmente condiciona, conforma ou pelo menos conserva os ind duos tal como sto, No entanto, nesta afir- macao se esconde algo realmente dogmati- coe ndo comprovado. Se hé algo que apren- dino curso dos tiltimos anos é que ndo se pode atribuir esta identidade entre os estf- mulos ¢ estruturas objetivas que condicio- nam os individuos ea sua conduta” (Ador- no, 1996; 200) No entendimento do autor, o movimento da industria cultural precisa ser vista de ma- neira histérica ¢ dialética, observanda-se que somente “se nao tivessem sobrevivide muitos residuos do periodo pré-monopoli ta que estio em desacordo com a indtistria da cultura ¢ des bens de consumo, residues esses que os homens devem voltar a levar em conta, [é que] estaria realizada hd algum tempo aquela situagio de utopia negativa, sabrea qual itonizam com prazer os escrito- res que nao querem a positiva” (1976: 235) Na modernidade avancada, a dominagao pessoal praticamente desapareceu e cedeu lugar a dependéncia aos mecanismos téeni- cos, cuja pressio é cada vez mais consciente aos individuos. A racionalizagia dos siste- ma de dominagao leva-a a ser exercida de maneira andnima e pontual na empresa, na escola, no hospital e nos seryigos publicos. Verifica-se o surgimento de uma dominacao an6nima e dispersa, através da qual se man- tém a sujeicho dos seres humanos ao siste- ma de vida capitalista. ‘As mercadorias culturais tecnoldgicas sao a principal mediagdo desse processo, corres pondem @ concepgao de mundo segundo a qual se poderia construir a sociedade dire- tamente a partir da tecnologia, A tecnologia 0 mercado, onde podemos adquiri-la, po- dem resolver todos os problemas da vida, do homem e da sociedade. A civilizagao produz pessoas racionais que tendem a ser mais dificeis de iludir, mas por outra lado tendem a se deixar fetichizar pe- las mercadorias culturais da industria. Os individuos tendem a desenvolver uma ati- tude exagerada e irracional para com os au- tomoveis, computadores, ténis © outros bens de consumo. A sociedade nao sabe “onde se encontra o limiar de uma atitude racional para com ela e a citada supervalo- rizagao” (Adorno, 1986: 42). O racionalismo € causader de uma irracio- nalidade, segundo a qual tudo tem solucao técnica. Os eletrodomés mais felizes atraso educacional; os servigos telefdnicos, nos tirar da solidao e, a medicina, descobrir © segredo da vida eterna - sem cogitar a hi- potese de que a eternidade nao serd menos problematica do que © ser-para-a-morte (Heidegger). Adorno nata que, vista mais de perto , essa visan todavia & mais ideologica do que to- das as outras anteriores, Basicamente ela co- bre com um véu o fato de que os problemas sociais S10 criados pelos homens e, em tese, 36 eles podem elimina-los, sob dadas condi- goes. A transteréncia das faculdades huma- nas da prdxis para a tecnologia ¢ ideologica porque, realmente, a tecnologia se tornou um denominador comum em todas as esfe- tas ¢ assim permite as pessoas crer que tém resposta para seus problemas, mas também porque essa crenga ¢ falsaz a tecnologia nao somente serve aos interesses politicos ¢ eco némicos dominantes como obedece a uma regularidade cega e irracional, criadora de grandes riscos, que nao tem os poderes apregoados e encontra sua expressao em. uma ansiedadeé “onipresente e livremente flutuante” (Adorno 1986: 74). A transformagao da tecnologia em ideologia entretanto significa uma mudanca de senti- do no conceito dessa ultima porque essa nova crenga se reduz cada vez mais a afir- macao do individuo e do mundo pura e Revita FAMECOS © Porto Alegre © 1° julho 1998 + xemestral 68 simplesmente como sao em nossa socieda- de, Ao contrarios dos. fetiches, as crencas sempre tiveram como objeto as idéias. Na atualidade acontece de os valores e idéias serem coisificados nas mercadorias cultu- rais teenologicas. A confianga social no va- lor das idéias e a crenga em sua realizagio cederam lugar ao realismo desencantado ¢ descrenga em verdadeiras ideais. "Os valo- res perderam sua substincia” e “sio cada yez menos motivo de crenga” (Adorno 1991: 141), A autoconsciéncia dos contemporaneos re- jeitou o idealismo. Os individuos sabem que as idéias valem muito pouco, Realmente, contam apenas 0s interesses, seu eu e as coi- sas tangiveis que podem manipular de ma- neira objetiva. As estruturas ideolégicas que modelavam a consciéneia perderam carater auténomo, passando a se confundir com a cultura material, Entretanto, porque nao acreditam mais em idéias, “tornou-se cada vez mais dificil persuadir as pessoas a cola- borar” (Horkheimer ¢ Adorno, 1985: 135), A sobrevivéncia no interior do sistema que a tudo abarea levou-as a renunciay a viver de acordo com sua aptidia ea se resignarem com as necessidades que padem ser sacia- das de acordo com sua sititagdo no merca~ do, As excegdes continuam a ser privilégio de uma pequena camada social. © conformismo nao significa porém que acreditem no sistema, na medida em que 0 modo de ser da vida social se tornou trans- patente. Resumidamente, os fendmenos ide- oldgicos assumiram o contorno de um véu tecnolégico, porque se por um lado os ho- mens aceitam a mentira que se tornou sua vida, por outro conseguem enxergar sem ilusdes essa realidade (Horkheimer e Ador- no, 1978: 203), A indiistria cultural faz parte dese véu tecnolégico: "O poderio social que os es- pectadores adoram ¢ mais eficazmente afirmado na omnipresenca do esterotipo imposta pela técnica do que nas ideologi- as rangosas pelas quais os contetidos efe- meros devem responder” (Horkheimer & Adorno, 1985: 127). © capitalismo dissol- veu as formagdes espirituais. A industria da cultura é uma expressio do agnosti mo desorientado resultante desa situacao, @ uma mediagao através das qual se arti- eula a consciéncia e a inconsciéncia das massas no capitalismo avancado. Adorno afirma varias vezes que o principal mecanismo em que se baseia a industria cultural & 0 da identificagao. “Os programas radiofGnicos, os shaws de televisio e os fil- mes, sobretudo, se caracterizam por mostra- rem herdis, pessoas que de maneira positiva ou negativa resolvem seus propios proble- mas. O espectador vé.a si mesmo neles. De- vido a sua identificagao com o hersi, supoe participar da suficiéncia que Ihe foi negada [na sociedade}” (Adomo, 1986: 37) Pesquisando mais a fundo nota-se porém. que essa identificagio nao tem verdadeiro significado psicoldgico, corresponde antes a uma especie de aplicagao da concepyao dra- matirgica da vida social que se encontra no escritos de Goffman. Na sociedade de mas: sa 0 ambito da vida psiquica & cada vez mais limitado pelo pragmatismo, 0 caracte- ristico nao é a comunhio, mas “a incapaci- dade de identificagao” (Adorno, 1986: 43). O espirito gregario vigente 6 uma reagio a situagdo objetiva. Os individuos realmente nao se identificam com as personagens # modelos de conduta veiculados pelas co- municagdes, Para Adorno as pessoas se espelham neles mas de fato néo ha mimesis: apenas ence- nam essas situagdes; fazem de conta que ‘sua vida pode ser semelhante. A artificiali- dade das celebridades e situagdes criadas pela indiistria da midia tornou-se de amplo conhecimento publico e asim projetam-se sobre as pessoas como simples performan- ce. As pessoas sabem que o que se passa nos. programas, antincios ¢ filmes que assistem nao é factivel mas publicidade, cinema ou 66 Revista FAMECOS * Porto Alegre + m7 8 = jul 1998 © venestral televisao. Na realidade as coisas nao se pas- sam como no cinema, A conduta pode ser comparada com aquela que tem lugar du- rante sessio de hipnose: trata-se de uma si- tuagio em que as pessoas deixam se lograr para obter certa gratificagao, Os individuos conservam a consciéncia de que se trata de um truque, que se joga com stia anuéneia e que cle mesmo nao vai fazer nada contra a sua vontade. A subjetividade e os costumes so submeti= dos a todo tipo de manipulacio - ¢ todos sabem disso, embora nao em toda a sua ex- tensao. Os individuos tém consciéncia de que sio alvo da publicidade, embora sem saber até que ponto se tornaram produto dela, assumindo perante a mesma uma pos- tura de reserva, suspeita au desconfianga: A. complascéncia dos intelectuais com o entre- tenimento popular se reflete nas massas, medida em que a consciéncia dos consumi- dores esté cindida entre o gracejo regula- mentar, que prescreve-lhe a industria cultu- ral, uma nem mesmo muito oculta diavida de seus beneficies” (Adorno, 1986: 96). A formagao de contra-piblicos preconizada por muitos intelectuais progressistas 6 um: processo inserito nas condigbes histiricas sociais de existéncia da industria cultural e, por isso, nao surpreende que nos ultimos ‘anos a cultura da midia venha dando lugar @ personagens e situagdes cujo cardter frau- dulento ¢ hiperbolico nao Ihes permite ser- vir de modelo, servem apenas para que o publico se divirta com a parddia de si mes- mo - que se tornou um dos modelos de con duta em ascensio com 0 surgimento do po- pulismo pés-modernista (CF, Hansen, 1992: 71-73). O capitulo sobre a industria cultural ainda nao havia sido escrito, mas ja se chamava a atencao para o fato de que as massas possu- em uma atitude “ambigua para com a mani- pulagdo”. Os individuos saber que os vei- culos de camunicagto passam por um pro- cesso de concentragiio econémica, que afeta a formagao da apiniio publica, As estratégi- as empregadas pelos controladores da in- clustria cultural conflita com um temor cres- cente © universal para com a possibilidade de que isso se traduza em manipulagao, Trata-se de uma alitude que “comesa com a resisténcia as vendas e termina na crenca semi-consciente de que nenhuma palavra dita em publico tem sentido objetivo ou mesmo expressa as conviegées privadas do individuo” (Adorno, 1975: 15-16), Segundo Horkheimer e Adorno, a explica- «ao para tanto deve ser buscada no processo. civilizador maderno, que ensejou o surgi- mento de uma consciéncia dividida. Atual- mente as pessoas ao mesmo tempo se dis- traem conservam uma postura realista di- ante do mundo. Q individuo contempora- neo é ap mesmo tempo esclarecido ¢ supers- ticioso, calculista e irracional, individualista e desejoso de ser como os outros. O reflexo disso ¢ © seguinte; “Por um lado, os indivi- duos obedecem os mecanismos de persona- lizagao, tal como sao dirigidos pela indus- tria cultural; mas por outro [...] sabem que isso nao 6 6 importante” (1996: 200) A comroboragio da hipstese, sugerida bas- tante cedo, surgiu ao longo de diversas pes- quisas conduzida pela equipe do Instituto de Pesquisas Sociais. Desde o inicio, os criticos da indtistria da cultura advertiram que os estudos de con- tetido “proporcionam formulagoes cuja va- lidez somente pode e deve ser definida pes- quisando {o receptor]” (Adorno, 1986b; 15). A postulagao dos efeitos peculiares de um bem cultural supunha a superagao das and- lises de contetido mais antigas, que necessa- riamente partiam demasiado da intengao dos filmes, nao considerando suficiente- mente a amplitude de variagdo entre esta € © efeito” (Adorno, 1986: 102). Resumida- mente entendiam que “quaisquer que sejam as reagdes do espectadores frente a televi- S80 atual, esas s6 poderiam ser estabeleci das ostensivamente mediante uma investi- Revista FAMECOS © Porta Alegre ¢ 1" §« jutho 1988.6 semestral 67 gacio mais detalhada com os espectadores” (Adorno, 1974: 69). A pretendida identidade entre industria cultural e industria da consciéncia (Adorno, 1986: 70) € valida, desde que se esteja ciente de que esta férmula ¢ falsa e verdadeira. E verdadeira e falsa ao mesmo tempo porque, embora a experioneia individual seja esque matizada pelo proceso, jamais se produz uma total identidade entre ela e a conscién- cia do individua. Portanto “a identidade de ambas nao esta tio acima de toda © qual~ quer duivida como imagina o intelectual ¢ tico, enquanto ele fica do lado da produgaio, sem examinar empiricamente o lado da re- cepsio” (Adomo, 1986: 106). Aparentemente os criticos da industria da cultura concluiram que os homens ea distria se adequam entre si, mas cabe duyi- dar desta equacio, que ndo expressa seu tl- timo ponto de vista sobre a matéria. Obser- vagies feitas ao acaso haviam sugerida que os leitores das colunas de hordscopo dos jornais reltitam em levd-las a sério e adotam uma atituide irdnica para com Seu proprio habito. Noutros termos, “as aceitam com 0 que poderia definir-se de reserva mental, um certo jogueteio que consiste em reconhe- cer com indulgéncia a irracionalidade basi- ca da astrologia ¢ a aberragao em que eles mesmos incorrem ao procuré-la” (Adomo, 1986b: 30), O estudo sobre a recepgao da cobertura que a midia alema den as festas nupciais de fi- guras da nobreza européia, entre outros, de- monstrou que diversas pessoas “observa- vam uma conduta realista e avaliavam com sentido critico a transcendéncia politica & social do acontecimento”. Comprovou a idéia de que “as pessoas consomem e acei- tam realmente o que indiistria cultural thes propoe durante o tempo livre, mas com uma espécie de reserva, semelhante aquela ‘com que mesmo os mais ingenuos negam a realidade dos episadios fornecidos pelo tea- tro e pelo cinema” 68) Revita FAMECOS + Porty Alegre Conseqiientemente precisamos considerar com toda a seriedade a hipdtese de que a tegragdo sistémica, sempre parcial, nao quer dizer integragao da consciéncia do in- dividuo. O carater simulado dessa ultima mas, ao mesmo tempo, a pressao material da primeira, da qual quem quer sobreviver nao pode fugir, sugerem que a integracao tem um aspecto ideolégieo. Noutras pala- yra, significa que, apesar dele, “Os interes- ses reais do individuo conservam suficiente poder para resistir, dentro de certos limites, 1 sew total aprisionamento. [Note-se de res to que] este fato estaria de acordo com o progndstico social segundo @ qual uma soci- edade cujas contradigoes funcamentais per- manecessem inalteradas tampouco poderia integrar-se totalmente na consciéncia” (Adorno, 1973; 62-63), As formagdes ideoldgicas que circulam soci- almente através das mereadorias da indis- tria nao sao de maneira necessaria a de seus clientes (Adorno, 1973: 122). Basicamente € isto que Marcuse pretendeu dizer ao escre- ver que, atualmente, “os vineulos espiritu- ais entre o individuo © a cultura esto sol- tos”. De todo modo, a lembranga dessa en- tendimento, por si s6, deveria nos por em guarda e questionar os juizos segundo os quais 0s frankfurtianos construfram uma vi- sao impositiva da cultura de massa, redu- zindo as comunicagoes a “um proceso uni- dimensional através do qual a industria cul- tural ‘manipula’ seus consumidores” (Mod- lewski, 1986: p. x). No modo de ver desse grupo, as comunica- ges de massa reforgam as exigéncias que a sociedade coloca a cada individuo para po der funcionar € para que este funcione con forme ela necessita, No entanto para que Seja assim precisam coadunar-se com suas inclinagoes. Raramente transmitem algo que seus clientes nao tenham aprendida antes em sua vida cotidiana, Embora possamos discutir até que ponte sao artificiais, as mer- cadorias culturais sio produtos da praxis humana que estao baseadas, antes, na ex- 8 po 1998 © semestral ploragao do que na negagdo das aspiragdes @ desejos do individuo, Em conseqiiéncia disso precisamos rever 0 juizo segundo o qual a critica da industria cultura parece nado indicar nada mais do que a passividade da audiéncia. Adorno tratou-as assim em diversas passagens, che- gando ao ponto de dizer que, privados de quaisquer residuos de livre-arbitrio, “os in= dividuos sucumbem sem resisténcia ao que Ihes € oferecido” (Horkheimer e Adorno, 1985; 125) © “tendem a produzir reacdes passivas, tornando-se meros centros de re- flexos socialmente condicionados” (1986; 144) Entretanto no método dialético o momento nao deve ser tomado pelo todo; os juizos nao querem dizer identidade. A passivida- de das audiéncia é ideologia (aparéncia so- cialmente necessdria): significa que as pes- soas esto paralisadas, mas nao totalmen- te. O sujeita - por mais reificade que possa estar - continua vivo na esfera da industria da cultura. despeito do grau de reifica- Gao que possuam na realidade, nenhuma das categorias em foeo - cultura e adminis- tragio - esti totalmente reificada; da mes- ma forma que o mais formidavel invento cibernético - ambas remetem ao sujeito vivo (living subject)” (Adorno, 1991: 113). © movimento cultural da industria néo se reproduz de maneira mecanica: 6 um pro- cesso mediado pelo sujeito. As mereadorias culturais nao chegam as pessoas andando com Suias proprias pernas. Precisam ser li- gados aa sujeito pelo proprio sujeito (Ador- no, 1976: 48). As condutas ¢ habitos em que estao prescritas ~ assim como as pessoas que nelas se espelham - sao produto de um sis- tema de vida mais amplo, que nio é aceito sem resistencia interior, exigindo o emprego mais ou menos consciente da vontade para se transformarem em comportamento. A crescente integragao das pessoas que es- capam a exclusio é funcional mas ndo me- cinica, A propaganda no basta para fazer as pessoas agirem. Conforme nota 0 autor, os comportamentos de massas ndo sido re- sultado de pura e simples doutrinagao pelos meios de comunicagio. “A explicagio de que 0 interessados em tal situagéo contro- lam todos os meios de opiniao publica, jé antiga, nao basta por si sé agora. As massas nao se deixariam enganar por uma propa- ganda burda e falsa, se algo nelas mesmas nao desse acolhida a mensagens que exal- tam [até mesmo] © sacrificio ¢ © viver peri- gosamente” (Adorno, 1976: 35) A planificacdio sistemitica e distribuicao or- ganizada de mereadorias culturais sem dit- Vida sio um fator decisive: reforcam as con- digGes sociais favoraveis para uma identifi- cacao do individuo mutilado pelos proces- sos de trabalho com os modelos de conduta afinados com a producio de mercadorias. A devogio maniaca ao consumo ¢ a vontade com que as pessoas se entregam A sua prati- ca evidenciam porém que ha algo mais além nisso tudo. O-consentimento com isso tudo de alguma expressa a resisténcia a rei- ficagao, que nao pode deixar de ocorrer mesmo no mundo administrado. A subjeti- vidade jamais se deixa reificar totalmente © indiviciuo continua procurando ele mes- mo se fazer sujeito inclusive diante da eres- cente massificacao (Adorno, 1991: 40). Adormo trata a questio no artigo “Sobre a musica popular”: “Entusiasmo pela musica popular requer deliberada resolucio por parte dos ouvintes, que precisam transtor- mar a ordem extema a que sia subservien- tesem uma ordem interna.” © consumo obsessivo da mtisica pop - as~ sim como de outros bens simbdlicos - é ma- nipulado pelo sujeito, A corrida a loja de discos, a procura de noticias sobre os astros, a formagao de clubes, © comparecimento aos shows, os exercicios de vassalagem pes soal el, que se vé entre os fas - tudo isso envolve uma decisao no sentido de vencer 0 ‘senso critico. Revista FAMECOS + Pon Alegre © £ fulho 1998 ¢ semestral “O fa da masica popular precisa ser imaginado como percorrendo 0 seu ca- minho com olhos firmemente fechados ¢ dentes cerrados a fim de evitar que se desvie daquilo que deeidiu aceitar ‘Uma visio clara e calma colocaria em Perigo a atitude que the foi infligida e que, por sua vez, ele tenta infligir a si mesmo.” (Adomo, 1986: 144-145) O esclarecimento no € nem pode ser reyo- gado de maneira arbitréria ¢ mecinica pela indiistria da cultura, As performances atra- vés das quais os individuos encenam sua pretendida identificagio com as condutas que sabem fantasiosas requer seu esforco como sujeitos. Somente dessa maneira eles logram equilibrar as contradigoes de que silo paleo suas vidas e que como tal nao se pode abdicar sob pena de se entrar em pai Co-e cair no vazio subjetive da desorienta- $80. A industria cultural é um proceso em que as pessoas se entregam aum feitico hip- ndtico socializado: depende de sua vontade em se deixar enganar e nao de uma submis- sio meeanica Portanto, “nao podemos nos contentar sim- plesmente em afirmar que a espontaneida- de [individual] for substituida pola coga aceitagao do material imposto” através da indiistria da cultura (Adorno, 1986: 146). O movimento todo poderoso que emana das mercadorias culturais esquematiza em esca- la cada vez maior a subjetividade, mas isso “nao implica a absoluta eliminacao da resis- téncia”, conduzida a estratos cada vez mais profundos da alma humana. A reproducio da industria cultural por parte dos sujeitos € um movimento precdtio e que carrega consigo as forgas que em principio poderi- am livri-lo do feitigo a que voluntariamente: se entregam, dentro de condigdes historicas determinadas « Referéncias ADORNO, Theodor: Consigns. Buenos Aires, Amorrortu, 1973. 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