You are on page 1of 14
Ensino ¢ Aprendizado das Citncias Criminals ne Século Xt if Ensino e Aprendizado das Ciéncias Criminais no Século XXI 0 Direito Penal ¢ 0 primeiro amor dos grandes estudantes,fascinados pelo contetido humano, pels palpitagio socal, pela intensidade dos dramas, pela gléria das legendas. O Direito Penal fornece a emulsio vivificante ao bergirio dae voca- (es juridicas. Roberto Lyra) 1. As Expectativas e os Rufdos no Ensino das Ciéncias Criminais A paixdo pelas ciéncias criminais, que pode ser identificada nos olhos dos alu- ‘nos nos primeiros dias de aula na Faculdade de Direito, invariavelmente é explicada, na esteira da epigrafe de Roberto Lyra, pelo pulsante contetido das investigacées, pelo envolvimento da matéria com 0 trigico do humano. Durante o longo periodo do aluno na graduacio, além do direito penal, talvez ‘apenas o direito de familia apresente problemas tio fortes desde o ponto de vista dos afetos, problemas que envolvem enormes cargas de emotividade e que ultrapassam a discussio entre as partes em conflito, transferindo-se aos operadores do direito, Rompidos estes limites, 0 profisional submerge no caldo culeural que o constitui e nota que a pureza do direito é limitada apenas aos que renegam a vida e a condicéo humana do humano. "0 interesse pelas citncias criminais surge na maioria das vezes em decorréacia estas situagbes-limite trazidas a discussdo no palco procetsual e académico, Nao invariavelmente os casos penais dao visibilidade As violéncias que negam a idéia Mo- derma de civilizacdo, defrontando o homem com o brbaro que nele habita em silén- io, pronto para, a qualquer momento, irromper. Sio situagées caracterizadas pela violéncia, pelo abuso da forca e pelos excessos de poder que geram fascinio nos jovens estudantes de direito. ‘No entanto a experiéncia docente tem demonstrado que no decorrer da Facul- ade 0s alunos vio abandonando o entusiasmo pelas ciéncias criminais — quando nio abandonam o préprio curso de direito ~ e, em casos especificos e traumiticos, nada de paixio resta, apenas mégoa e decepsio. ‘Muitos autores referiram, atualmente é consenso no meio académico, a neces- sidade de o ensino e a pesquisa juridica adequarem-se a0 novo milénio. Novas peda- 0 [anna ii gogias e novas metodologias de ensino surgem a todo o momento, no ritmo acelera~ do caracteristico da era da informética e da comunicacio em tempo real ‘No entanto, para além do debate sobre as técnicas pedagdgicas e disciplinares, centende-se fundamental investigar o ruido existente na comunicacio entre os corpos docente e discente, ou seja, tentar compreender qual a dificuldade (ou inabilidade) do professor contemporineo em fazer-se entender, em demonstrar interesse, em entu- siasmar seu aluno. A questo torna-se importante no campo das ciéncias criminais em face de a matéria ser, por sis, apaixonante, Assim, a interrogacio que persiste & sobre ‘@motivo pelo qual a estrutura de ensino, ao invés de acolher, repele o aluno. Intimeros pontos de reflexio podem ser apontados, desde a questo epistemo- J6gica 20 contetido programatico das matérias. Alguns serio debatidos com objetivo de apontar saidas ou caminhos alternativos a crise do ensino das ciéncias criminais, pensando, acima de tudo, em facilitar a comunicago entre professor e aluno no alvorecer do século XI. 2. A Fragmentagio do Ensino das Ciéncias Criminais: Direito Penal e Criminologia © marco referencial das ciéncias criminais da Modernidade é, inegavelmente, a obra Dos Delitos e das Penas, de Beccaria, que nao apenas delineia a principiologia humanista do direito penal e processual penal, mas realiza sua adequacdo com a filo- sofia politica do contratualismo. Legalidade dos delitos, proporcionalidade das penas, jurisdicionalizagao dos conflitos a partir do devido processo legal e da presuncao de inocéncia sio temas reiterados na tentativa de aniquilar a base inquisitéria do direi- to penal e processual penal pouco harménica com os ideais das luzes, Apés 0 desenvolvimento das disciplinas penal e processual no século XVIII, ‘com 0 fomento da técnica realizado pela Escola da Exegese francesa & formulagio de Ihering no Espirito do Direito Romano, nasce, no plano geral do direito, a ciéncia dogmatica, identificada como modelo cognitivo cuja tarefa seria sistematizar concei- tualmente a interpretagio das normas estatais (objeto de pesquisa e trabalho) Todavia, diferentemente dos demais ramos do direito que se desenvolveram sob a Berspectiva dogmitica, as ciéncias criminais, no final do século XIX, foram coloniza- das pela nascente criminologia, a qual, desde o marco do positivismo etiologico, rei- vindicou para si o estatuto cientifico do estudo do crime e da criminalidade. ‘Na disputa pelo estatuto teérico das ciéncias criminais, direito penal e erimino- logia provocaram a primeira ruptura do projeto integrado proposto pelos penalistas do Muminismo. Com a entrada em cena do homo criminalis eo decorrente deslocamen- to do estudo abstrato das leis penais para 6s processos causais que determinaram o lelito,& criminologia é autonomizada, Assim como o direito, no Ambito das humani- dades, a partir da construgao dogmatica, a criminologia, com a proposicio lombrosia- nna adequada ao empirismo das ciéncias naturais, reivindicavam o status de ciéncia, © confronto no imbito das epistemologias induziu & readequagio do quadro feral das ciéncias criminais. Todavia a euforia dos resultados e a exectativa decor- a ~FLg tate Ayre tu cata ctanssnsidsn | 1 rente da criaglo da ciéncia criminolégica néo foram compativeis com o local que Ihe foi reservado no rol das enciclopédias penais. ‘A (reorganizacao disciplinar das ciéncias criminais encontrou em dois mode- Jos estrutura adequada que permitiu ao direito penal atingir o grau de cientificidade alcangado pelos demais ramos do direito, notadamente o direito civil. Franz Von Liszt ¢ Arturo Rocco serdo 0s responsiveis pela sistematizagao e integracio das maté- ris penal, criminolégica e politico-criminal. A prolusio de Sissari (Rocco) e a pro- posigéo da ciéncia penal conjunta (Liszt) apontam para sistematizagio eminente- ‘mente juridica das matérias através do pensamento de Ihering, com algumas conces- s6es a0 pensamento criminolégico. Com o objetivo explicit de estabelecer as condigGes de aplicabilidade judicial do direito, a dogmatica penal ~ organizada a partir da triparti¢lo teoria da lei, teoria do delito e teoria da pena ~, elaborada e conduzida por intérpretes privilegiados (dog- mitica superior), harmonizaria o material legislativo de forma a propiciar ao opera dor do direito (dogmética inferior!) critérios seguros de aplicabilidade. Desta forma, ser doin pea ste dsinstranenn interprets onion pels \teorias das fontes, (a) diagnosticar lacunas e antinomias e (b) proporcionar critérios J, Ye integracio e colmatacio, assegurando estabilidade a0 cotidiano forense (seguran- ‘ra juridica). Apontadas as falhas do sistema juridico penal pela dogmitica (critica de / lege laa), a politica eximinal estaria responsive pelo aprimoramento do material legislativo, projetando 0 novo direito penal (rica de lege ferenda). A investigacio criminolégica neste modelo foi reduzida a intervencio punitiva. Localizado nos circeres, o laboratério criminolégico sustentado pela matriz determi- nista forneceria elementos acerca do grau de periculosidade dos réus e dos condena- dos, elaborando a pedagogia de reforma e adaptacio do homo criminalis’ sociedade. ‘A ciéncia penal integrada, portanto, na versio de Liszt ou de Rocco, privilegiow e_saber dogmitico e formal, relegando 20 posto de ciéncia auxiliazjqualquer saber diverso que ousasse Investigar o fenémeno crime. 3. O Local do Saber Criminolégico Oficial (O saber criminolégico, derivado do positivismo naturalista e etiolégico da escola italiana de Lombroso, Ferri e Garéfalo, serd recepcionado pelos modelos integrais na qualidade de cigncia coadjuvante, Assim, 0 local de fala da criminologia€ o de auxiliar a cidncia principal (direto penal), fornecendo elementos de sustentagio e legtimacio. Nio por outro motivo esta criminologia oficial seré fixada no ambito da atua- ‘si0 dos érgios de administracio do sistema punitivo, ganhando, neste espago, alta funcionalidade e redimensionando seu poder. Neste aspecto, atese de Foucault, no sentido de que o perito criminélogo substitui a atuagio do magistrado, condicionan- 1 Orteranos dogmaica superior e dogmdtice inferior so apropriagbes livres dos concitos de tering ¢ cor ‘emondem 25 adic eurooia, bia de frisoradéoca maior fursprudéncis menor. 12] ima ecg do'a decisio judicial aos seus postulados, é absolutamente pertinente.2 As premissas, da criminologia etiolégica atuardo, nos sistemas de interpretagio e valoragdo das pro- __ Vas nos processos de execuio — ¢ em determinados casos nos processos de cognico (vg. exames de periculosidade nos incidentes de insanidade mental) -, como valora- 0es hierarquicamente superiores, vivificando os sistemas inquisitérios das provas legais tarifadas. O laboratério criminolégico, portanto, definiré as regras 0s critérios que con~ uzirdo o processo pedagégico de regeneracio do criminoso submetido as penas pri- sionais (imputivel), as medidas de seguranca (inimputivel psiquico) ou as medidas ‘educativas (inimputivel etério). Em termos teéricos, esta criminologia administrativa altamente impregnada ¢ ‘comprometida com os fins estabelecidos pelas agéncias de punitividade (instramen- talidade instivucional) serd fortalecida pelas teorias de Defesa Social (Filippo Gra- ‘matica) e de Nova Defesa Social (Marc Ancel). Paradoxalmente, apesar de sustenta- rem 0 positivismo criminol6gico, as teorias defensivistas sio apresentadas ao pibli- co consumidor do sistema penal como teorias humanizadoras, de oposicio aos mode- Jos ilustrados retributivistas. Nesta condicéo, configurario as reformas dos principais ‘ordenamentos juridico-penais e das agéncias punitivas ocidentais do pés-Guerra. 4. A ‘Outra’ Criminologia Paralelo ao desenvolvimento da criminologia institucional fortemente marca- da pelo processo de colonizagio das ciéncias criminais pelos saberes psiquitrico ¢ psicolégico comportamental, o discurso sobre o crime e a criminalidade realiza per- cursos alternativos. Nota-se, assim, que a unidade do pensamento criminolégico nunca existiu, pois logo apés seu surgimento intimeras e diferenciadas correntes foram desenvolvidas Desta forma, importante pontuar que, diferentemente das disciplinas dogmati- as atreladas a0 formalismo (dogmatismo), no houve (sequer hi) padronizagio, ou seja, inexiste 's criminologia, Hé criminologias, entendidas como pluralidade de dis- ccursos sobre o crime, o criminoso, a vitima, a criminalidade, os processos de crimi- nalizacio e as violéncias institucionais produzidas pelo sistema penal. A premissa permite, inclusive, sustentar a fragilidade epistemoldgica de qualquer discurso cri- ‘minolégico que se pretenda cientifico, visto nao ser factivel a visualizagao dos pres- supostos minimos que possam auferir esta qualificasio ~ v.g. unidade e coeréncia metodolégica, definigio de objeto, delimitagio de horizontes de pesquisa, direciona- ‘mento teleoligico das investigacées, A conclusio & possivel pois se as primeiras décadas do século XX assistem a redefinigdo do determinismo etiol6gico a (re)colocagao da criminologia no patamar 2 Nese sentido, conferic FOUCAULT, Vigire Pun, pp. 164-172; € FOUCAULT, Os Anormais pp. 08- 6; 137-210. Easinae Aprendizado dat Giéncat Criminais no Século XI | x a auxiliaridade, fendmeno eminentemente europeu, 0 mesmo tempo, nos Estados Unidos, este perfodo ¢ surpreendido pelo que se convencionou denominar rupeura criminoldgica (Rosa del Olmo), fenémeno que evidencia as feridas narcisicas do direito penal. ‘A partir da enunciagio de Durkheim (As Regras do Método Sociolégico, 1895) de ser o crime experiéncia normal no convivio social ~ “el crimen es normal porque tuna sociedad sin el es completamente imposible”® -, sio criadas condigdes de possi- bilidade ao giro criminol6gico (criminological turn). Baratta sustenta com preciso que, com a teoria estrutural-funcionalista de Durkheim, e,a partir dele, Merton, ocorre a virada sociolégica da eriminologia con- tempordnea, constituindo “(..) a primeira aleernativa cldssica & concepso dos carac- teres diferenciais biopsicoldgicas do delinguente e, por conseqiiéncia, a variante positivista do bem e do mal’ Ao considerarem o crime ¢ o desvio dondutas normais em qualquer estrutura social, inexistindo organizagio isenta de tais fendmenos (“o delito faz parte, enquan- to elemento funcional, da fisiologia e ndo da patologia da vida social", sendo negati- vo apenas quando ultrapassados determinados limites), Durkheim e Merton possi- bilitam radical critica ao modelo etiolégico. A negacio da pesquisa das causas do des- vio nos fatores bioantropolégicos e naturais (clima, raca), ou em determinadas situa- ses patol6gicas da estrutura social, abre espago para o nascimento de novos discur- s0s, desvinculados das concepcées causal-deterministas e, conseqiientemente, dos seus efeitos deletérios aos sujeitos criminalizados. ‘Ocorre que se & possivel criticar a criminologia positivista-etiolégica por (a) es- tar demarcada pelos saberes sanitaristas psiquiatricos e psicol6gicos, (b) ter adquiri- do feiglo essencialmente institucional, (c) reproduzir concepeao patolégica do cri- 1¢ ¢ do criminoso e, em decorréncia, (d) operar sua demonizacio; parte do discur- “SSE My pi critico derivado do giro criminolégico padecerd por (a) estar colonizado pela ‘iologia, (b) nao ter rompido com a institucionalizagio do saber, visto que seu Fg Igkal académico ¢ igualmente institucional, (c) reprodusirigualmente perspectivas 8, “wx. neo gia) mas estruturais como os econémicos — e, em conseqiéncia, (A) realizar a ausal-deterministas ~ nao individuais como 0 modelo etiolégico (microcriminolo- romantizacio do criminoso : ‘Ademais, importante perceber que a ruptura criminolégica proporcionada teoria do etiquetamento mio produziu, como desejado, a superagio do postivismo etiolégico. Possivel sustentar, inclusive, como ingémua a crenga de sezem irreversi- veis e indiscutiveis as conclusdes advindas do novo paradigma. Tais assertivas so funcionais apenas para a legitimacio do saber-fazer da criminologia critica, Contudo ‘DURKHEIM, fas Reglas del Método Soiolipicop. 86 BARATTA, Criminologia Critica Ceti do Dirito Penal, . 59 BARATTA, Geiminologia.. p. 60. Sobre o tema do idealismo e do romantismo, bem como em religio & critica invesio dos posulados postvisas, confer LARRAURI, La Herencia dela Criminologia Critic, pp. 156191, 18 [sound ciate nio possitilitam verificar que o espaco criminolégico critico restou limitado & aca- emia, e a criminologia tradicional, ao ser relocada ao interior das instituigdes ope- ncbois 5 sistema punitivo (instituigdes policiais, prisionais e manicomiais), ape- sar de implicar perda de status, conquistou privilegiados espagos de poder. Poder que produz e reproduz efeitos na vida forense. . 5. A Fragmentacao da Criminologia e o Ensino Formal A inexisténcia de um tinico saber criminolégico, desde sua origem desenvolvi- do, estabilizado, criticado, superado e novamente compartilhado pelos membros da comunidade cientifica (de criminélogos) ~ hipétese das revolugdes cientificas mo- demas trabalhada por Thomas Khun’ ~ gerou, no ensino académico (formal) da cri- minologia, problemas de dificil superacio. Os primeiros problemas derivam do percurso apresentado como histéria oficial a criminologia. Ao pressupor o avango linear da técnica criminolégica, concebido a partir da idéia de que novas teorias sucedem padrées de investigacio defasados e que 0s novos modelos sio necessariamente mais avangados em termos cientificos, restou _esquecido o fato de que as teorias€ os intimeros processos de conhecimento (inclusive no cientificos) acerca de determinados temas coabitam, coexistem simultaneamente €¢ slo compartilhados no fluxo histérico. Ademais, mesmo quando hé efetivamente superagio de sistemas e de estruturas de pensamento, a5 novas “estrururas emergem Jentamente”, para utilizar a terminologia de Cordero, ao refe: e ent”, pa ninologia de Cordero, ao referir 0 processo de edifica~ ‘40 do sistema inquisitério medieval a partir do Coneifio de Verona, em 11845 « substituicdo dos modelos deterministas de anélise do individuo que cometeu o fi! Ri to (paradigma etiolégico) pelas concepodes criticas de avaliacdo dos processos de cri- Nitida, pois, a impossibilidade de sustentar, visto nio ser factivel, a superaciee minalizagio (paradigma da reacio social) F isto inclusive no ambito académ Ne atulidade se constata a coeistencia de imimers tendéntar dervadah 77 Pensamento critico, que intentam superar a crise deflagrada na década de 90, com'a, ue se poderia denominar neurocriminologias, concepgées eticlégicas derivadas das neurociéncias que adquirem cada vez mais espaco e forga nas instituigées. Contudo a histria oficial do pensamento criminolégico reproduzida nos ma- nuais ¢ nos programas de ensino acaba por limitar o avango das investigacbes & supe- ragdo da etiologia. O segundo problema ¢ relativo & limitagio do ensino da criminologia a este per ‘curso, ou seja, invariavelmente o contetido transmitido é 0 da gradual superagio de ‘modelos por escolas e teorias criminol6gicas. Em outros termos, o ensino da crimi: nologia é restringido & cansativa descri¢o da histéria da criminologia ou das teorias KHUN, A Bstrucure das RevolugbesClentfcas, pp. 219-224. CCORDERO, Guida ala Procedure Peale, p 46. ™ IGINALN 4 al Ape icine Senos [15 criminolégicas, nio conquistando espago como recurso interpretativo dos sintomas (individuais, sociais, institucionais) contemporineos. ‘A conseqtiéncia, para além da manutencio das idéias deterministas, ¢ a debili- dade das instituigdes de ensino em formar e desenvolver pensamento criminolégico ‘com capacidade de critica nos seguintes planos: (a) critica interna ao modelo inte grado, voltada aos saberes dogméticos que sustentam o direito penal e o direito pro- cessual penal; (b) critica externa do modelo integrado, direcionada & atuacio das ins- tituiges punitivas (agencias policiais, judiciais e carcerérias) e & politica criminal que legitima este agir; (c) critica externa a0 modelo integrado, apontada ao saberes nao criminais que legitimam os saberes criminais (discursos politico-econdmicos, agenda dos meios de comunicacio, manifestacGes literdrias e expressbes artisticas em. geral, eraditas e populares); (d) autocritica, dirigida aos préprios saberes que se desenvolvem no Ambito das intimeras criminologias. ‘Nao obstante qualquer pretensio cartesiana de propor métodos de ensino das, cigncias criminais, importante assinalar a necessidade de suscitar 0 pensamento cri- minol6gico na condigio de ferramenta de leitura da realidade. A criminologia, por- tanto, enunciada como recurso interpretativo dos sintomas contemporiineos e no ‘como método ou técnica para estudo dos seus objetos referencias (crime, crimino- so, vitima, sistema criminalizador) ou como objeto mesmo de estudo, confundindo- se a histéria da criminologia com a criminologia mesma, Necessério, pois, avancar no sentido de pensar com a criminologia e no restar limitado & sua descrigio histérica e/ou ao desenvolvimento de suas principais teorias. 6. Os Dom{nios e as Fronteiras dos Saberes Penal e Criminolégico © estudo do delito como ente jurfdico ¢ a limitagio das hipSteses criminaliza- doras exclusivamente & lei penal (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, scripta, stricta) ~ a maior conquista do direito penal da Modernidade em termos de garantias individuais, apesar do cardter meramente retérico assegurado pelo princi pio da legalidade? -, consolidaram-se, apés o ataque do positivismo criminol6gico, como epicentro dos estudos e das investigagdes da dogmstica penal. A partir da lega- lidade foram estabelecidos os critérios e os requisitos que justficariam apontar a res- ponsabilidade criminal e, em conseqiiéncia, sancionar 0 autor do fato criminoso. esta forma, por mais sofisticada que seja a dogmstica do direito penal contem- porinea, as fronteiras do seu saber sio rigidas e limitadas & estrutura da teoria da lei penal (precondicio da existéncia do crime), da teoria do delito (delimitagio dos, requisites de atribuigio de responsabilidade penal) e da teoria da pena (aplicagao € execucio da conseqiiéncia juridica do delito). E no universo da estrutura tripartida da dogmatica penal, as principais investigagées do século XX ocorreram na teoria do 3 Nese sentido, confers a importantes desde CUNHA, O Carter Retérico do Principio da Legalidade, pp. 59-182; WARAT, Inrodugdo Geral 20 Direto lp. 169-230. eee delito, acontecimento natural em face de a teoria da tipicidade englobar o estudo da legalidade e de a teoria da pena estar vinculada ao juizo de culpabilidade. ~ + = Assim, 0 horizonte de andlise do direito penal nio transpassa o estudo do crime entendido como conduta (comissiva ou omissiva) tipica, ilicita e culpével, cuja con- seqiiéncia é a imposigdo da sangio. E por mais dispares que sejam as perspectivas dos tedricos do direito penal ao estabelecer distintos eritérios de interpretacio, bem como por mais diferenciados que sejam os efeitos politico-criminais destas interpre tagdes em matéria de aumento ou diminuigéo da criminalizagéo e da punibilidade, em sua integralidade operam na estrutura rigida das teorias do delito e da pena. A evolugio da teoria da conduta com superagio do causalismo pelo finalismo de Welzel e as projecdes realizadas atualmente pelos distintos modelos funcionalistas, . ex, por mais que alterem a forma de conceber os requisitos de aufericio da res- ponsabilidade penal, nio ultrapassam os rigidos limites das categorias conduta, tipi- Cidade, ilicitude e culpabilidade. E possivel afirmar, portanto, que a dogmética penal adestrou seu objeto de extu- do, adquirindo ao longo do século XX pleno dominio sobre a sua estrutura e seu contetido. ‘A criminologia, porém, em decorréncia da fragmentaglo interna e do desenvol- vimento de intimeros discursos com matrizes epistemoldgicas distintas (v.g. antro logia, sociologia, psicologia, psiquiatria, pricandlis), diferentemente do direito pep ndo logrou delimitar unidade de investigagio. A pluralidade de discursos gicos, com a conseqtiente diversidade de objetos e de técnicas de pesquisa, tomob ili- ‘mitadas as possibilidades de exploragio, podendo voltar sua atengo ao criminolg, & ‘vitima, & criminalidade, a criminalizagio, & atuacio das agéncias de punitividade, tos esvios nio criminalizados e, inclusive, ao delito e a0 proprio discurso dogmética, spar Singela experiéncia de laboratério, aprofundada em Freud Criminélogo, pode ‘nuxiliar a anamnese, Freud, em dois momentos espléndidos de sua obra, desenvolve a teoria do cri- ‘inoso por sentimento de culpa, exposta nos textos Varios Tipos de Cardter Desco- bertos na Pritica Analitica (1916) e Dostoyevski e o Parzicidio (1927). Centra sua ani- lise na possibilidade de o autor do crime buscar, com a pratica do ilicito, sano penal redentora, alfvio psiquico. A hipétese freudiana é a de que 0 sujeito sofre pesaroso sentimento de culpa, de origem desconhecida (inconsciente), precedente ao crime, € ‘que “..) una vez cometida una falta concreta sentia mitigada la presién del mismo, El sentimiento de culpabilidad quedaba asi, por lo menos, adherido a algo tangible” !0 ‘A criacio freudiana possiblitou a interdisciplinaridade nos estudos sobre 0 crime ¢ fomentou producio tedrica de importantes autores das ciéncias criminais. Veja-se, p. ex, a titulo de registro hist6rico, as pesquisas, no Brasil, de Porto-Carrero ~ Criminologia e Psychanalyse, 1932 —e, na Espanha, de Jiménez de Asta ~ Valor de Js Psicologia Profunda (Psicoandlisis y Psicologia Individual) en Ciencias Penales, 10 FREUD, Vario Tipos de Caractar Decubiotos en ls Labor Analtcn,p 2227 (Rastas © Apvonticads des Citacies Crteninsis no Steulo 300 ff 1935. Ademais, abriu espaco para exploragdes posteriores nas diferentes éreas da psi- canilise - vg, pela importincia na hist6ria da psicanilise, Lacan, Introdusio Tedrica 4s Fungdes da Psicanélise em Criminologia e Premissas a todo Desenvolvimento Possivel da Criminologia, ambos de 1950. ‘A pluralidade de discursos e a auséncia de fronteiras do saber criminol6gico permitem perfeitamente o didlogo com a psicandlise e a incorporagao de suas criti- ‘as na andlise dos fendmenos criminais. No ambito da criminologia a interface é per- feitamente licita e os resultados obtidos permitem 0 desenvolvimento comum de ambos os saberes. Contudo a insergio da categoria psicanalitica inconsciente no direito penal, sobretudo na teoria do delito, desencadearia processo que poderia levar a dogmética penal ao esfacelamento. Em decorréncia de a teoria do delito, independentemente do modelo tedrico de eleigio (causal ou final), trabalhar como pressuposto da responsabilidade penal a con- duta humana consciente,"! a inserco da possibilidade de 0 autor do crime agir sob influéncia, impulso ou causa inconsciente geraria a inadmisstvel hipdtese da ilegit ‘midade da intervengio penal punitiva. Ao ser inadmissivel a atribuicio da sangio des- provida do qualificativo consciéncia - escolha livre ¢ consciente da ago e, por con seqiéncia, adesio ao resultado juridico da conduta - 0 didlogo com a psicanzlise resta ‘obstaculizado. A dogmética penal, presa aos dominios da razio e da consciéncia, é inacessivel o saber psicanalitico, A abertura interdisciplinar neste nivel colocaria 0 saber penal na critica situagdo de confissio da inconsisténcia dos seus pressupostos. ‘Nao se quer afirmar, porém, com a experiéncia de laboratdrio realizada, a abso- luta inviabilidade do didlogo entre direito penal e psicandlise, ou ainda a maior ou ‘menor qualidade cientifica do saber penal ou criminolégico. O objetivo & apenas apontar as diferengas do proceder exploratdrio criminolégico e penal e as possibili- dades e os niveis de abertura interdisciplinar. 7. A Fragmentacao do Ensino das Ciéncias Criminais Se for possivel direcionar a lente investigativa a invencio do discurso criminal da Modenidade, procurando nao incorrer no tradicional apego romintico ao proje- to liberal, constata-se que mesmo projetos com distintas bases politicas e filos6ficas de sustentacio apresentam, em suas propostas origindrias, concepcio conjugada de ciéncias criminais. Direito penal e direito processual penal, em aperfeicoamento, € ccriminologia e politica criminal, de forma prototipica, encontraram-se no mesmo ‘espaco de saber, possibilitando sofisticada interlocugio e critica reefproca, ‘Note-se, de forma exemplificativa, que 0s diversos projetos politico-criminais expostos na Tlustragdo ~ Beccaria (Dos Delitos e das Penas, Itlia, 1765), Marat (Pla- no de Legislagao Criminal, Franga, 1780) e Feuerbach (Tratado de Direito Penal Co- ‘mum Vigente na Alemanha, Alemanha, 1801) -, integravam a determinada concep- finda se coming © so sobre o agir delitivo respectivo modelo de resposta penal e de instrumentaliza-

You might also like