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Jean-Jacques Courtine Se. ¥ e \ Metamorfoses do DSN EER EET Coordenagao Editorial Eprtora CLARALUZ Diagramagéio Mafra VALENCISE Design de Capa Dez € Dez Murtimeros Impressio e Acabamento j ‘Suprema GRarIca Ficha Catalogréfica elaborada pela Biblioteca do ICMC/USP 864d Courtine, Jean-Jacques, ] | Metamorfoses do discurso politico: as derivas da fala | piiblica / Jean-Jacques Courtine ; tradutores Nilton Milanez, Carlos Piovezani Filho, - Sd Carlos : Claraluz, 2006 | 160 p.: 26 cm. ISBN 85-8863820-7 1. Politica - Discursos. 2. Meios de comunicacdo. 3. Andlise do discurso. I. Milanez, Nilton, trad. IT. Piovezani Filho, Carlos, trad. ITT: Titulo. L_ _ R. Rafael de A.S. Vidal, 1217 CEP.13560-390 ‘Sdo Carlos-SP Fone: 1633748332 www.editoraclaraluz.com.br SUMARIO Apresentacdio Parte I ANALISE DO DISCURSO : HISTORIA E CRETICA O PROFESSOR E O MILITANT, CONTRIBUIGAO A HISTORIA DA ANALISE DO DISCURSO NA FRANCA CRONICA DO ESQUECIMENTO ORDINARTO Uma GENEALOGTA DA ANALISE DO DISCURSO Parte IT LiNGUAS DE MADEIRA LiNGUAGEM, DISCURSO POLITICO E IDECLOGIA DEescONSTRUGAO DE UMA LINSUA DE MADEIRA O POs-STALINTSMO, OU A METAMORFOSE TMPOSStVEL Parte III MUTACOES DAS DISCURSIVIDADES POLITICAS: (© EXEMPLO AMERICANO "EU NUNCA FUE ESTRUTURALISTA"... FOUCAULT € UM “POS~ ESTRUTURALISTA"? AS DERIVAS DA VIDA PUBLICA: SEXO € POLITICA Nos Estavos Unros A PROTBIGRO DAS PALAVRAS | A REESCRITURA DOS MANUATS Escouares Nos Estados UNIDOS 59 87 Ww 7 127 147 Nao se trata aqui de esbogar novas perspectivas para a anilise de discurso, mas retomar, por meio de uma breve cr6nica, sua historia mais recente. Dizer que essa hist6ria coletiva, que foi também aquela de cada um, marcou-se pela agitagdo das rupturas, a aparigio de um vazio politico, o inicio de uma politica sem memoria ¢ a emergéncia de novas formas de assujeitamento que compreendiam o esquecimento de si. Nao se trata também de lamentar que a anélise de discurso seja, atualmente, diferente do que ela foi. mas lembrar ainda a que ela atribui a fungdo critica que de hoje em diante parece ter perdido, ndo esquecer qual foi a sua predilegio: 0 texto como “objeto politico — pois nao hé ‘outro”."* Desejei, enfim, com essa retomada, falar da importancia de uma ética da meméria no trabalho teérico e da escritura: 0 que é pensar de maneira diferente da que se pensou? O que é fidelidade a si mesmo sendo uma repeti¢ao? O que € diferenga a si mesmo sendo uma renegacio? " BARTHES, Roland. Aula. Séo Paulo: Cultrix, 1987. 2 [UMA GENEALOGIA DA ANALISE DO DISCURSO* Gostatia de propor, nas paginas seguintes, uma breve genealogia dessa perspectiva de pesquisa surgida por volta do final dos anos de 1960, na lingiiistica da Franca, a andlise do discurso, Outras tentativas nesse sentido jé foram feitas por outros e por mim mesmo'. Percebo, centretanto, a necessidade de, mais uma vez, fazer essa genealogia, a0 final de nosso encontro, e isso por um conjunto de razées. A primeira conceme & situagio atual dessa disciplina, que, no minimo, & paradoxal: ela contribuiu para promover o emprego, entre os ‘Textoriginalmente publcado em francés na revista Diseours silvia Dsroure “Alyse ique des textes!Discourse Analysis and Tet Societies VoL IN, 1 1992, p. 19-38. Uma verso prelimina deste «du discours et socies & 2, Montreal, Presses de Université McG texto Foi traduzida em portugués por Heloisa Monteio Rosi, sab de titulo "O discurso inaingivel: marxisme linguistica (1968-1988) publicada na Revista Cadermos de Traducio, Instituto de Letras da UFRGS, n. 06, junto de 1999, "Jacques Guithaumou e Denise Maldidier "Courte Critique pour une longue histoire Diatectiques 1979: €. mals ecentemente, Linguitude du dscours. Pris, Editions des Cenes, 1990 (a apresentagao desseconjunto de textos de Michel PEcheu feta por Denise Maldiirfoi ltaduzida no Brasil por Eni Orlandi. sob titulo "A inguietagiodo discurso- Campinas, Poates, 2003), obra na qual Denise Malddier reine textos de Michel Pécheux eretraga seu tier ver também: JJ. Cou tteur tle militant: contribution & histoire de analyse du Aiscours” Arrhives et Docunents de la SHESL. 1 2, Pais 1982 (aduyao brasileira “0 professor 0 militante", neste livto, 3 piigina 0D): “Language, political dseourse and ideology” I: U. ‘Ammon, N. Ditmar, K. J. Mathie (Eds) Soiolinguistes: am Incernational Handbook of the Science of Language and Soviets: BerinNew York, Wate de Gruyter, 1987p 842-854 (raduio brasileira: "Linguagem, discurso politico eideologia, nest vo. pigina 59) As piginas que Seguem nao sao transcriga da exposigio que apresentei oralmente no encontro do CIADEST. (Centre interuniversitaire analyse de dscours & de sociocrtque des textes). A exposigio retomava, em lias gerais, um artigo publicado em Esprit n,164 em setembro de 1990 ("Les slissements du spectacle politique”, radugio brasileira’ "Os desizamentas do espticulo Politico”, In: Gregolin, M. R. V. (Org) Discurso « midia a cultura do espetculo. S40 Ctlos (Claraluz, 2003, p. 21-34). Vollaremos a nos reportara esse texto adiante rs, como qua eles quis 30 8 preocupa gn linguistas, do termo disc aes ela adquiriu um reconhecimenrs anteriormente, Pouco 4 poucd. institucional que faz com que recentemente cla esteja presente em, homenclaturas que distinguem as diferentes disciplinas que compen, atualmente as ciéneias da linguagem. Mas. simultaneamente constatamos apenas 0 esgotamento dessa problematica que tinha com, tarefa, a partir dos anos de 1968-1970, elaborar uma concepg’g dg discurso que firesse dele um objeto essencial para a compreensio day realidades historicas e politicas, um nivel de intervengao tedrica crucial para quem desejava, ao mesmo tempo, compreendera sociedade ¢ operar sua transformagao. A tal ponto que podemos, de maneira absolutamente legitima, nos inquietar sobre sua prdpria existéncia e nos colocar a questo de seu futuro: na definigdo relativamente precisa que era a sua, naguele periodo, existe. de fato, andlise do discurso fora das nostalgias daqueles que a praticam, fora das montagens institucionais que aindaa convocam, ou fora de uma presenga difusa no disparatado leque das descrigaes linglisticas do discurso? Encontro uma outra razdo, entre aquelas que me incitam a natureza dos debates dessa nossa colocar essas questOes. na prépr jomada inaugural de um centro de pesquisas que pretende destinar seus trabalhos & anilise do discurso. Porque me parece que esse termo, se, uma vez mais, deve conservar alguma coisa de sua acepgao original, nio pode ser verdadeiramente adequado para designar as priticas de ddescrigdo de corpus contra as quais a anilise do discurso se constituiu: assim, as andlises de contetido, de orientagao exclusivamente formalizante, ignoram ou reduzem a quase nada a anélise hist6rica das, condigdes de produgio dos discursos, da qual trata a andlise do discurso. E me parece. ainda, que tampouco podemos continuar a celebrar as virtudes da andlise do discurso praticada & maneira antiga, no que respeita i alianga que ela desejava realizar entre histéria e linguistica, como se nada tivesse acontecido. Ou seja, como se as transformagdes sociais, as agitagdes politicas, as mutagdes tecnoldgicas, os desmoronamentos ideolégicos que conhecemos num passado recente nio tivessem problematizado radicalmente o projeto que cra aquele da anilise do discurso, a ponto de tornar sua prépria existéncia problemética. E preciso que trabalhemos, desde metade dos anos 1980, ct numa paisagem teérica em ruinas. Nesse sentido, nao me agradam as comemoragées nostilgicas nem as depreciagdes engenhosas, nem tampouco os embargos precoces. E por isso que eu quis retornar sobre 6 desenvolvimento e 0 refluxo do projeto da analise e indicar. ao fim desta breve crOnica, um futuro possivel. SEPARAR, ARTICULAR A anilise do discurso pode ser considerada, a partir de uma historia “interior” da lingiifstica, como 0 contragolpe do “gesto decisive de separagio” pelo qual a disciplina se institucionalizou como ciéncia, no comego do século*. Seu projeto foi assim pensado, ao mesmo tempo, como uma “negagao" € como uma “ultrapassagem do gesto separador de Saussure’, Seu primeiro objetivo foi o de querer rearticular 0 que o “corte saussuriano” havia talhado, de fazer ressurgir 0 que a instituigao de uma linguistica formal havia relegado ao exterior do campo da cién: da linguagem: as condigées de uso da lingua. O que é surpreendente na releitura atual dos textos que exprimiam esses objetivos é 0 ambiente de dramatizagao epistemolégica no qual eles estavam mergulhados. Querer analisar os discursos era, entdo, querer fazer muito mais que um simples trabalho de lingiista; era também, de certa maneira, desejar ocupar uma posigZo herdica numa luta teérico- politica: reintegrar, num gesto libertador, o que uma decisdo arbitraria havia excluido*; era ainda "Ora. o que parece ter dado forga a lingufstica é um certo ndmero de gestos decisivos de separagiio. A importincia de Saussure vem dessa determinagio de negayao que permits circunserever um dominio de ciénciae, no mesmo movimento, propor um corpo de axiomas der J.C. Chevalier La Langue: linguistique ethistoire In’ Faire de histoire ‘Tome IL Paris: Gallimard, 1974, p. 131) “J.C. Chevalier, op. eit, p- 132. +0 “corte saussureano” foi o primeira a ser visado. A maioria dos textos de anslise do discurso comeyava assim: adicotomia lingus/fala“cria um obsticulo” 30 projeto de analisar (6 discurso. A relago da teorta saussureana com 0 objeto da linguistica era geralmente apresentada sob a metfora do que encerra, comprime ou coage: quer se tratasse de um “espatilho” que € preciso “estourar” (ROBIN, R. Histéria elingiistica. Sao Paulo. Cultox, 1977, p. 88), de um Fervolho que é preciso “arrebentar” (GUESPIN, L. Problématique des lwavaux sur le discours politique. Langages, n. 23. Paris: Larousse. 1971. p. 11). de um “edificio” no qual respiramos uma “atmosfera empobrecida” € que & preciso “demolir 0 imaginar desempenhar um papel quase terapéutico em relagig lingiiistica e querer produzir nela o retorno do que ela teria “recaleado” Interpretava-se.entio, sobrea cena tedrica, o drama deslocado da politica ¢ do desejo. A andlise do discurso foi, sob certos aspectos, 0 efeito dessa configuragio tedrica do final dos anos 1960, feita de estruturalismo agonizante, de epistemologias da descontinuidade, de uma politica marxista das ciéncias humanas e da considerdvel impregnagio pela psicanilise da atmosfera tedrica do momento: Para os historiadores, 0 discurso nao constitui um objeto (1. No outro pélo, os lingiistas esto rigorosamente isolados no saussureanismo, na lingtifstica estrutural no transformacionalismo. A dicotomia inaugural de Saussure provoca um afastamento do sujeito, da subjetividade na linguagem e da histéria, um afastamento da exterioridade do texto, Em suma, dois recaleamentos, métricos. O historiador recalea o significante, a ista recalea o sujeito € a hist6ria: numa palayra, 0 discurso como pritica ‘materialidade da linguagem, oli A anilise do discurso foi, entio, o lugar privilegiado de um encontro entre a Linguistica e a historia, e isso de duas maneiras. Por um lado, ela participou de um exame histérico e eritico dos fundamentos do gesto inaugural de Saussure. Ela pretendia questionar a propria operagdo de “corte” ¢ de delimitag3o do campo da lingiifstica interpelando centralidade da disciplina, a partir de sua periferia, lembrando-the seus limites e suas insuficigncias, tudo o que ela teria GUESPIN.L. sd_p. 12 14).0u,enfim, de um “velho modelo”, do qual o bloqucio deve ser subencand a uma “3530 corrosiva” (GUESPIN. L. Guespin, Les embrayeurs en discous. Lasousse, 1976, p. 47-48). Acabar com a opressio, se desfazer das iscurso era frequentemente concebida como o momento logaoepisteroligica. Queriamos nos opor a Saussure, reproduzindo, ROBIN. R Le ory tented oe Quebec 8 scours polinyue Recherches en théories N* 19. Université seal. 1979.9 70 41 inicialmente negligenciado. Por outro lado, ela pretendeu proceder & !lagdo do que havia sido cindido: o sistema lingiifstico (entao. rearti concebido como um conjunto de regras sintiticas que determinam as frases, mas também os funcionamentos que se inscrevem numa problemitica da enunciagio") com as condigdes histéricas da lingua em uso (por meio da determinagao das “condigdes de produgio” do discurso). Desse projeto, do qual acabamos de esbogar os fundamentos, que foi um lugar de renovacio teérica, de trocas interdisciplinares, de elaboragdes originais, desde uns vinte anos, o que resta em nossos dias? Ele ainda é sustentavel? Podemos duvidar disso, diante da leitura de um nGimero relativamente recente da revista Langages’, que faz 0 balango dos trabalhos realizados e que quer abrir novas perspectivas. Nesse ponto, podemos legitimamente nos perguntar se no estamos aqui, num tempo relativamente curto (1969-1989), diante do que parece ser © possivel ciclo da emergéncia, da constituigdo e da desaparigdo de uma disciplina. A apresentagio desse ntimero da Langages se conclui. com efeito, do seguinte modo: E visto que € preciso concluir: 0 que atualmente estabelece a relagdo entre os artigos que nds apresentamos? Buscava-se um objeto na tensio entre a historia e a lingua; esti claro que a balanga pendeu para 6 lado da lingua. O sintagma “andlise do discurso” estaria condenado? Nada pode ser dito do que saira da atual fase de experimentagao. Qualquer que seja o futuro da "Com efeito, aqui esti as duas Fundagoes da anaise do dscurso, quanto ao mbit nguistco lam quadro sintitico emprestado seja do distribucionalismo hartissiano, seja do ‘ransformacionalismo chomskyano, a0 qual foi atescentada a problemitica da apropiao subjetiva da gua, na perspectiva da enunciagio. al como a concebia Benveniste, ou na perspectiva da identificagio dos aspectos indicia da linguagem, manera dos vier. de Jakobsoa. Esse duplo aspecto (0 sistema sintiico € 0 sueto da enunciagdo) constitu, nos Drimeios textos de Jean Dubois, a base linguistica do que sets conventente articular com © “exterior” da lingua (ver, especialmente: J Dubois Enoneé et énoaciaton. Langages. 2.13, Pani: Larousse, 1969, , 100-110). As perspectivasabertas por Jean Dubos foram essenctats na consituigo do projete da anise do discus, do mesmo modo que revista Langage, que cle irige, fo 6 vetor determinante de sua difusao "Analyse du discours: nouveaux parcours Hommage 3 Michel Pécheus)-organtzada por Denise Maldiier, Langages.». 81. margo de 1986 2 disciplina, podemos, em todo caso, afirmar que, organizando confrontagdes insdlitas, querende apreender, ao mesmo tempo. 0 léxico, a sintaxe, discursivo, a lingua, a sociedade, a historia... ea foi, ela é, ela tera sido?, ela serd um lugar de aventuras intelectuais, das quais ainda nao podemos mensurar todas as repercussdes', HISTORIA £ LINGOISTICAS BREVE ENCONTRO- “Entio, réquiem para a andlise do discurso ou (...) novos percursos?”, interroga-se Régine Robin, no mesmo conjunto. Com feito, a questio merece ser colocada, se comparamos os trabalhos reunidos nessa revista com 0 que constituiu o fundamento do projeto inicial da andlise do discurso. Esse projeto, de fato, queria realizar uma dupla articulagao: por um lado, combinar uma dimensao histérica ¢ critica e uma dimensio instrumental e positiva; por outro, articular os aspectos histéricos e linguisticos no tratamento do discurso. Que resta dele, desde entao? Num trabalho consagrado ao discurso politico soviético toda perspectiva hist6rica foi praticamente abandonada’. O estudo das nominalizagdes no corpus (1961-1966) ndo foi jamais relacionado as condigdes de formagdo dos discursos analisados. Que lugar ocupam, Portanto, esses discursos nas transformagdes do corpus politico soviético? Numa estrutura politica na qual a histéria do discurso se confunde com a histéria do Partido tnico, quais so 0s tragos particulares que 0s discursos estudados constituem no processo de homogeneizagao, de burocratizagdo linguageira essencial na formagao do discurso do Estado, na URSS? E como esses textos foram escolhidos? Se eles sto examinados porque participam de “dois periodos politicos de transigiio", *D. Malis, 1986, p.7. °SERIOT, P Langue ise t discours politique svitique: analyse des nominalisations angages, 81. Paris: Larousse, 1986, p. 11-42 oslo, do mesmo modo, pelo fato de que so “de tipo argumentativo”™. O trabalho se situa, de fato, numa perspeetiva gramatical: aquela do estudo do funcionamento das nominalizagdes na lingua russa sobre um corpus de discurso politico. Um lingdista o lerd com interesse; 0 que ele ensinarii a um historiador? E impossivel aprender ~ a partir dessa neutralizagio gramatical da ordem hist6rica do discurso ~ as transformagoes que podem afetar o regime das discursivi soviéticas lades Ainda que o Secretirio Geral seja um genial ou demente Maquiavel moderno, mestre manipulador de estruturas sintaticas, podemos justamente desvelar em seu discurso ‘uma forma-sujeito consttuida por uma ntida dominancia de relagdes predicativas assertadas, sistema de evidéncias, de significagdes recebidas, de refutagbes implicitas que se impiem ao destinairio, mas igualmente 0 locutor.." Nao 0 Secretitio Geral do PCUS. portanto, mas uma forma- sujeito, a permanéncia de um dispositive discursivo... A Unido Soviética de Stalin e de Khrouchtchev seria, entdo, a mesma? A Unio Soviética ‘serd a mesma antes ¢ depois de Gorbatchev? E a mesma forma-sujeito que, ontem, denunciava os traidores “hitlero-trotskystas” e que, hoje. preside a desmontagem das estatuas do fundador da KGB? E 0 mesmo, “sujeito universal” do discurso soviético que, ontem, justificava a invasio do AfeganistZo e que, hoje. admite a independéncia das reptiblicas do Império soviético? E indtilinsistr: a historia mais recente foi particularmente cruel pura quem queria crerna eternidade das formas- sujeito, Mas para compreender 0 aniquilamento do sistema, 0 enfraquecimento generalizado do discurso sovidtico. a desergio de seus * SERIOT. Pop. cit p. L1-12.As precisdes dadas sures sobre os aspecto polities ¢ histrvos do corpus no modiicam fundamentamente este conju de extcas (ver: SERIOT. P. Analyse du discours politique sovitique. Paris Insuurd'Bues Slaves. 1985, capitulo I) 8 Jlocutores” e de seus “ouvintes”, seria necessério aceitar sair do texto, separar-se da presungio filolégica que consiste em reduzir a politica ag discurso ea realidade a critica documentaria. Sem fazer isso, 0 analista, enredado por seu objeto, acaba por reforgar essa caracterizagao fantasmadtica que 0 discurso soviético dé a si mesmo, ¢ da qual ele pretendia precisamente se separar: um conjunto homogéneo e eterno de enunciado: A anilise do discurso entrou num periodo de instabilidade. O trabalho ao qual acabamos de fazer alusio foi seguido, naquele nimero da Langages, por um texto de J. Guilhaumou e de D. Maldidier, que, se esforgando para sustentar o tratamento do discurso na perspectiva das preocupagdes dos historiadores das mentalidades, pode ser concebido como uma critica direta ao ponto de vista precedente: Centrada, no inicio, sobre 0 “género” do discurso politico, a andlise do discurso clissica nio tinha o que fazer diante da diversidade do arquivo; doravante (...) nao podemos mais ignorar a multiplicidade dos dispositivos textuais disponiveis. A anélise do discurso (..) passou de um interesse privilegiado pelo discurso doutrindrio ou institucional para o que se poderia chamar de a historia social dos textos." campo da anilise do discurso é, entdo, o lugar de mailtiplas tenses. Ele estd dividido entre algumas maneiras de trabalhar que 0 arrastam para a lingiistica e outras que 0 orientam para o lado da historia. Ele hesita entre exame de corpora doutrinais, com suas séries regulares, "=P, Sérit critica, nos seguitestermos, os rabalhos de M. Heller ede D. Labbe: “Nao hi rortanto, marca de reforgo da unidad, © que € contradit6rio com as conclusbes de M Heller ede D. Labbe, que tendem a apresentar 0 discurso do PCUS e do PCF como ‘monolitco, totalmente fechado sobre si mesmo. O discurso da homogeneidade € fragmentado por suas falhas: os planos de enunciagao descompassada" (SERIOT, P. op. cit, p39). De fato, 0s discursos do PCUS e do PCF, com suas especificidades. si0 absolutamente trabathados por elementos heterogénos e pelo apagamento de toda contadigo,o qv cabe&andlise demonstrat ® GUILHAUMOU, Je MALDIDIER, D. Effets de archive: analyse de discours au cté de histone Langage, n. 81, Pais, Larousse, 1986, p 43-56, de enunciados, privilegiados em suas primeiras tentativas, ¢ 0 exame de priticas linguageiras dispersas © heterogéneas, Enquanto antes a anilise do discurso se detinha na descrigdo dos textos, atualmente ela se volta para as praticas orais; quando ela ainda observava preferencialmente a intertextualidade, os processos “verticais” que atravessam um conjunto de discursos para the dar coeréncia ¢ consisténcia, passou a focalizar a andlise sobre o fio do discurso, sobre a horizontalidade de uma seqiiéncia discursiva enunciada por um sujito. Ela investigava as centralidades discursivas, agora, pretende apreender as margens do discurso. Um dos grandes deslocamentos da anslise do discurso, consoante com as novas conquistas da linguistica, com as crises das diversas ciéncias humanas e com os novos triunfos da historia das mentalidades, consistiu em limiar da anlise de sua propria estraégia no campo, de modo que o texto que ea produ uma modalidade de itervengao, — 48 Laks sublinha a atragio exercida pelas disciplinas proximas, a justaposigao de grupos e de orientagdes sem relagdes nem influéncias reciprocas, a auséncia de consenso. Seria, entio, necessdrio ir além de uma geografia dos grupos ¢ dos temas, limite, ultrapassa."* E incluir outros fatores para compreender a singularidade das posigdes daqueles que foram conduzidos a trabalhar no campo da sociolingiifstica, como no da anilise do discurso: uma vontade critica geralmente fundada num engajamento politico que reclamava a inclusio do politica e do social no dominio da linguagem; uma rebelidio intelectual contra o que era considerado como a centralidade das disciplinas; um gosto pelas margens e pelas aberturas disciplinares, como aquelas de tuma geragio de universitérios macigamente recrutados entre 1969 ¢ 1973, dos cursos e das preocupagdes freqilentemente heterogéneas em relagio aos privilégios dos recrutamentos tradicionais. O desenvolvimento, desde o comego dos anos 1970, da andlise do discurso, bem como o da sociolingilistica, € também uma conseqiiéncia da desestabilizagdo de disciplinas tedrica e politicamente contestadas, que deviam absorver, por acréscimo, uma massa de elementos heterogéneos. E quando Laks sublinha que a percepgio atual do dominio da sociolingfstica produz “um sub-campo dominado pelo campo da lingiiistica™”, ou quando vemos as descrigdes de corpus em andlise do discurso se “gramaticalizarem”, podemos pensar que serio necessdrios uns vinte anos para que a desestabilizagio do campo seja pouco a pouco reabsorvida numa recomposigio discipli FAZER 4 HISTORIA DAS CRENGAS ‘Nessa perspectiva, a hist6ria da anzlise do discurso poderia ser a de uma emancipacdo abortada. A histéria de uma positividade que no péde/nao soube se construir, a de um pais sem territério, a de um “objeto-fronteira”, destinado a permanecer no interior de sua fronteira: Ela trabalha nos limites dos grandes recortes disciplinares, constituindo para cada um deles um dentro! fora inquieto, Longe de qualquer polémica,a priori, com "LAKS, B.op.cit.p. 125, icias humanas efou com a lingistica, ela tenta quebrar 0 eterno mal-entendido que tomava os didlogos dificeis. Para tanto, a andlise do discurso, sem ecumenisimo nem ecletismo, nao se pretende nem dlisciplina auxiliar nem campo auténomo. Ela lembra, na sua tenacidade, no interior da prpria problematica de cada disciplina, que o registro da lingua éiredutivel 41. um conjunto de atos, de condutas ou de préticas soiais, do mesmo modo que ele ndo se poderia ser reduzido a uma méquina légico-semantica ‘Vemos que a mesma hesitagdo, presente na origem do projeto— exercer uma fungio critica, incomodar a cartografia estabelecida dos saberes e constituir uma positividade , uma terrtorialidade disciplinar ~ continua a funcionar. Se essa hesitagdo , para R. Robin, um trabalho sobre 0s limites e, ao mesmo tempo, uma espécie de mi consciéncia das cigneias humanas, ela continua sendo, para J. Guilhaumou e D. Maldidier. um campo autnomo, uma “disciplina interpretativa completa yesma’ Longe de ser uma metodologia auxiliar para os historiadores, uma aventura sem margens para os linguistas (J, abarcando, a0 mesmo tempo. as 0: presengas linguageiras que produzem 0 corpus. os wsos reflexivos e a espessura da Iingua, ela se coloea como disciplina interpretativa completa em si mesma final, transformagio radical ou hist6ria imével? E preciso fazer intervir outros fatores, se pretendemos compreender 0 destino da analise do discurso na Franga. Esse destino, me parece, com efeito,indissociivel do conjunto de elementos que moditficaram profundamente “a ordem do discurso”, ao longo dos tiltimos vinte anos. Acompanhando as determinagées proprias a uma histéria interna das disciplinas, que influenciam essas Giltimas. os elementos explicam parcialmente a emergéncia de uma anélise do discurso, as formas que ela pde assumir, *ROBIN.R op cit, 127 " GUILHAUMOU, Je MALDIDIER, D op «it. 54 50 08 objetos que focalizou e as transformagGes que sofreu. As metamorfoses politicas, a evolugdo das sensibilidades, as mutagdes tecnolégicas conturbaram os regimes de discursividade das sociedades ocidentais contemporineas. Para “fazer uma hist6ria” da andlise do discurso, bem como para fazer uma historia de qualquer ciéncia humana, ndo € preciso postular a independéncia e a neutralidade dos métodos, constitufdas 3 distancia do objeto estudado. Os métodos da anilise do discurso sio, 3 sua maneira e nas suas transformagGes, um reflexo das mutagdes do prdprio objeto, nas suas modalidades de existéncia material, nas suas percepgdes individuais e coletivas. Nao fazemos a mesma anilise do discurso politico quando a comunicagao politica consiste num comicio que reiine uma multidio em torno de um orador e quando essa comunicagdo toma a forma de shows televisivos, aos quais cada um assiste em domicilio. Tampouco fazemos a mesma anilise do discurso independentemente das crengas, das segmentagdes sociais e ideolégicas, das polémicas antigas ou recentes; elas exercem suas coergdes sobre 0 discurso das ciéncias humanas, sobre as escolhas dos sujeitos, sobre a definigdo dos objetivos e sobre a reprodugao dos recortes formais. Poderiamos aqui, mutatis mutandis, retomar as observagdes feitas por Michel de Certeau, a propésito da historiografia religiosa, quando ele ressaltava a dependéncia do discurso historiogrdfico em relagio as ideologias e as priticas que Ihe sio contemporaneas: Da mesma forma que discurso, hoje, nao pode set desligado de sua produgo, tampouco o pode ser da praxis politica, econémica ou religiosa, que muda as sociedades € que, num momento dado, torna possivel tal ou qual tipo de compreensio cientitica.” A andlise do discurso dificilmente admitiu, até entio, o que das riticas ideol6gicas e politicas dava sentido e forma a suas operagdes © organizava a prOpria estrutura de seus dispositivos. Ela resistiu 2 ® CERTEAU, M. de L'feriture de "histoire. Paris: Gallimard, 1975, p.41 [rad bras: A Esert {da HistOria. 2 ed. Rio de Jancito: Forense Universitiria, 2000, p. 41) si transformagio de suas crencas em abjetos de estudo.” A situagio atualmente mudou e pode permitir, desvencilhada dos confitos de utrora, compreender algumas especificidades das formas assumidas pela analise do diseurso, na Franga, desde o final dos anos 1960: Afastados das situagdes conflitantes, cada vez mais dlistantes, ¢ mais fil para nds revelara sua marca nestes estudos. Estamos, ns mesmos,adiante dito. A medida que se diluem as divisdes que, ontem, organizaram 20 ‘mesmo tempo uma épocaesuahistoriogafa elas podem set analisadas nos priprios trabalhos deste tempo * Uma povitica pa Lerrura E preciso, particularmente, explicar esse fato central: o discurso politico tinha se tornado a essencial preocupagio dos analistas do discurso, ainda que ele nio fosse seu tinico objeto.® De fato, podemos compreendé-lo sem fazer intervir a relagio que a pesquisa lingiifstica estabeleceu com o marxismo, na Franga do final dos anos 1960, ¢ sem situar o lugar que esse iiltimo ento ocupava nos debates te6ricos e politicos, E preciso sublinhar que a aparigio de uma problematica lingiistica do discurso € contemporinea dos 0 ‘Supor uma antinomia entre uma ands srl da cdi un interpret em ters histeia ds dias, falsidade dagueles qu acreitam que ciaca auéaomae qe. lo petinente ands das determina soci. como sstrankas ou acessGrias as imposigdes gue cla desvenda sts imposiges nv si aeaas tas fazem parte da pesquisa, Longe de representa inconessivlntomisso dem estatho no Samo dos santos da vida intletul,consttuem a extra dos provements cet (CERTEAU,M, Op. cit. p. 72 ed. as. p-73) * de Certeau, 1975, p. 44 fed. bras, p. 3-44) ® Se consideramos, com efeito, a toaliade ds ahah em anise do dscusoeetundos ‘desde osanos 1960-70, o peso das dsergbes de corporapoiicos conserve e ult amplamente as anlses sobre odiscurso pedagégico,cienfico sobre os iverss conpora tuatados pelos historiadores. Neste ponto, a situogio francesa ¢ singular: enquant se Aescreviam textos cientficos, ns Estados Unidos, aplicando os procedmetos definidos or Harris, em Discourse Analysis, enquanto se claborava gramateas de text, Aleman, © enguanto se desenvolvia, em diversas ples, diferentes tpos de pragmsticas texts, ‘os dedicamos, durante muito tempo, na Franga, a descrevero mesmo génerode ajto(0 {iscutso politico), valendo-nos, para tanto, de um mesmo de még (uma combiagss ‘onal eas ideniicagbesenuneavas dessa dicotoia,consideram como cemtre a anise distrib q acontecimentos de maio de 1968; e lembrar que a revolta estudantil foi uma obsessio discursiva: maio de 68 foi uma revolugdo discursiva — uma exasperagao da produgdo de discursos, uma multiplicagio de sua circulagio, uma inundagdo verbal que enchia as ruas e as midias —deixou numerosas marcas textuais, que cobriam os muros das cidades. E 9 paradoxo de Maio: 0 processo de modernizagdo das estruturas e das mentalidades que se completava por meio da revolta estudantil foi narrado com as formas discursivas amplamente arcaicas de uma fraseologia revoluciondria, que, desde cedo, estava destinada a desaparecer. Sendo a primeira “revolugao” midiatizada, ela deveu boa parte de seu impacto is imagens; no entanto, ela se auto-celebrou numa profusio barroca de discursos, que aliava a irrupgdo das falas espontineas e os tiltimos murmirios das linguas de madeira. Esse "momento discursivo” intenso fez sentir seus efeitos além dos clamores nas ruas. No trabalho te6rico, a idéia que se impos foi a de que a critica dos discursos era a primeira tarefa de qualquer critica Michel Foucault desejou, em Arqueologia do saber (1969) e na Ordem do discurso (1971), desfazer os lagos que, silenciosamente, teciam a relacdo entre o discurso e 0 poder, na materialidade de seus enunciados Mas, essa opinido critica sobre 0 “todo discursivo” foi. sem davida nenhuma, levada a seu paroxismo pelas concepg6es althusserianas da pratica filos6fica como “luta de classes na teoria”. Bla fez. emergir um conjunto de questdes, centradas na relagao entre discurso e ideologia, que se tornou um verdadeiro programa de pesquisa critica para as ciéncias humanas: 0 que é um discurso te6rico? Como reconhecer um discurso ideoldgico? Como diferencid-lo de um discurso cientitico? Essas questdes inauguraram o debate aberto por L. Althusser, a propésito da releitura do corpus marxista.® Os lingiiistas, bem como outros pesquisadores, foram sensiveis a esse debate. Mas, esperdvamos deles 0 empreendimento althusseriano de teletura do Capital cotribuiv amplamente pat romover a necesidade de uma andise do discurso. Era preciso “romper com 0 mio reigioso da letra (0 € preciso arescentar que, uma ver romps esses ages: Uh sova eoncepco do discuso se tmmaria possivel”” (ALTHUSSER. Lire le Capital Tome I. Paris: Masper, 1968, p. L415 [tad bras. Ler © Capital. 2 vo. Rio de Janet Zaha, 1979) 3 uum pouco mais: que eles fornecessem dispositivos objetivo ¢formais que permitissem distinguir um discurso cientifico de um discurso jdeol6gico, um discurso revolucionério de um discurso reformista, que possibilitassem separar 0 joio do trigo. Esperavamos da linguistica que ela viesse dar sua legitimidade cientifica a uma politica de leitura dos textos: e, As vezes, até mesmo que ela constituisse o instrumento de uma pedagogia da verdade. Observamos isso, nesta resposta de J. B Marcellesi a uma interrogagiio que Ihe foi dirigida acerca do fundamento legitimo da andlise do discurso: Sim, nés temos alguma coisa para fazer por agul. A reflexio sobre o discurso politico (..) deve ser desenvolvida eensinada a cidadio. O discursoofeecido pelo Estado ao cidadao francés € caracterizado por uma ambigtidade de superticie que, em principio, permite Teituras pluras, das quais uma,a verdadeira, possivel do ponto de vista lingtiistico, esté censurada porque assimilivel no quadro da ideologia dominante” O projeto de andlise se inscreve, aqui, num episédio modemo da longinqua relagio entre a pedagogia e a politica, quando se tratava, desde a Revolugio Francesa, para o professor republicano e, depois, para o militante operdrio, de “esclarecer 0 povo", de Ihe ensinar a ler sua opressiio nos préprios textos que, a0 mesmo tempo, a exprimeme a mascaram2* Ha aqui um dos fatores que explicam essa predominiincia do curso politico entre os corpora tratados, durante esse periodo.” Se ” MARCELLESI, J. B. Analyse du discours en France: oppositions ou contradictions Documento mimeogratado, Universidad do Mexico, 1977, p. 2 Tentet dar alguns elementos dessa historia em "L'insituteur et e militant” (1982) ("0 professor o militante”: neste livro, pagina 0° Nao somente escolha das earpora, mas tabém sua propria forma, dependeu da insricso {esse tipo de trabalho na conjuntura politica. Lembro aqui um argumento que deseavoli mais amplamente alhures: a andlise do diseurso politico se desenvolveu a Fangs uma cconjuntura dominada, apés 1968, pelo “scontecimento discursivo” que constiuiy 3 assinatura do Programa Comum da Unido da Exquerda, A opacidage discurvva dese texto e sua ambiguidade polities -, compromissoresullante da uso de dos dscursos ‘em um nico, reforcou a “disposigdo natural” da andlise do discurs, conduzino-a a Drivilegiar as descrigaes tipol6gicas eonstrastivas dos discuss do Pardo Socialists edo Partido Comunista, 4 amitide se quis pensar sobre a histéria da andlise do discurso independentemente desse conjunto de fatores sécio-historicos, & em fungio do medo de enfraquecer seus resultados. de langar uma suspeita sobre sua legitimidade. de desqualificar sua neutralidade cientifica, & uma posigdo que me parece extremamente fragil: as determinagdes, politicas de uma pesquisa constituem um vigs bem menos decisivo, medida que nos preocupamos em focalizii-las ¢ em anallisé-las." Nao poderiamos fazer desaparecer 0 que sentimos como um problema, recobrindo-o. Certamente, nao se trata de explicar a emergéncia e a formas de andlise do discurso somente a partir desse conjunto de razdes exteriores ao campo cientifico. O comego dos anos 1970 € também 0 esgotamento do paradigma da lingiifstica estrutural e o ressurgimento, na linguistica francesa, de uma perspectiva socioldgica inscrita, desde hé muito tempo, na sua tradigdo; & ainda a ocasidio, promovida pelo contexto de abertura das disciplinas, na qual se pensa a relacio entre a historia e a lingufstica. E, enfim, o desenvolvimento dos primeiros algoritmos de tratamento de texto que permitem a elaboragdo de métodos de andlise automética do discurso. Mas ha, aqui, ainda, 0 retorno da tradigao socioldgica na linglifstica que promoveu a constituigao de uma sociolingistica de inspiragio marxista, engajada, antes de mais nada, em descrever a diferenciagdo discursiva dos grupos politicos e sociais" a alianga interdisciplinar da historia com a linguistica se efetuou tam com base nas polémicas opostas ligadas 3 interpretagio politica da Revolugdo Francesa, Quanto a elaboragdo de uma andlise automatica do discurso, ela ndo pode ser evocada sem que nos lembremos do consideravel papel desempenhado por Michel Pécheux nos debates que acompanharam 0 Ness sentido, meus prpris textos de andlise do discursoadquiriam sent na vonade de produzir uma critica “de esquerda” do dscurso eda ptiea do Partido Comuunista Francés Ver: GARDIN, Be MARCELLESI, J. B. Introduction a la sociolinguistique. Pars: Larousse, 1974, [trad pon. Introdugdo a sociolingistica, Lisboa : Aster. 1977] fr: ROBIN. R. Histoire et linguistique. Paris: Armand Colin, 1973, p. 79 [tral bras, Mistriae lingistica, Sao Paulo Cultsix, 1977] desenvolvimento da anilise do discurso” e na posigdo defendida por ele no interior desse desenvolvimento, Quando tomamos como tarefa querer consideré-la, uma vez mais, em nossos dias, percebemos que essa posigao produziu uma forma maxima de tensio entre objetivos que a dividiam: ela quis, com efeito, cumprir, absolutamente ao mesmo tempo, uma fungio politica e critica e uma fungio cientifica e postiva quis sustentar 0 conjunto, cimentar a alianga entre uma teoria marxista do discurso, uma leitura engajada dos textos, por um lado, e uma anise automatica do discurso, por outro; andlise concebida como um dispositivo neutro de reconhecimento das frases, uma espécie de “miiquina de leitura”, da qual se esperava a produgio de uma “leitura (informaticamente) dessubjetivada”. Desde a origem, estava inserita nessa posigdo uma instabilidade que iria se agravar. Até se tornar insustentavel, quando comeca a desabar pouco a pouco, minado pelos acontecimentos politicos e pelas transformagdes ideol6gicas, o projeto de uma teoria do discurso. Discurso & PRATICAS Sem voltar aos detalhes dessa articulacio™. gostaria, contudo, de me deter sobre dois de seus tragos: de um lado, a posigdo central da » Ver PECHEUX, M. Analyse automatique du discours Paris: Duno, 1969 vad bras, Anilise automiética do discurso, In: Gadet, Fe Hak. (Org) Por uma andlise automatiea do diseurso: uma introdugio a obra de Michel Pécheux. 3 ed Campinas: Bd. da Unicamp, 1997, p. 61-161]: Les Vérités dea Palice. Paris Maspeo, 1975 rad. bras, Semantica ediscurso: uma critica afirmagio do bio. Campinas Ed. da Unicamp, 1988]; Langages, n. 37, 1975 (trad. bras. A propio da Analise omatica do diseurso:atalizagoe perspetivas. In: Gaet, Fe Hak. (Org) Por uma anise automiitiea do discurso: uma introducdoa obra de Michel Pcheus, 3 ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997, p. 163-252] 0 fato de que essas teses, outrora celebradas. stejam hoe totalmente ausenes do debate te6rico parece-me colocar dois tipos de questdes: 1 80 sublnha a surdez dessas teses em relagdo a uma realidad politica e social que elas quenam analsare sobre a qual elas pensavam refletir, de modo que a transformaybes dessa reside, que elas ndo conseguiram ver, simplesmente thes igudassem: 2) sso condus a, interrogagio sobre anatureza do debate intelectual a Frang.e sobre a meme dos itelectuats: a “implosio” das teses althusserianes¢ também feito de uma amnés coletiva da maioria daqueles que a cla se referiam c té mesmo, ds veces, dacs ‘ue se thes opunham, 8 amitide se quis pensar sobre a histéria da anélise do discurso independentemente desse conjunto de fatores s6cio-histéricos, & em fungdo do medo de enfraquecer seus resultados, de langar uma suspeitg sobre sua legitimidade, de desqualificar sua neutralidade ciemtifica, & uuma posigdo que me parece extremamente fragil: as determinagdeg politicus de uma pesquisa constituem um viés bem menos decisivo, j ‘medida que nos preocupamos em focalizé-las e em analisé-tas.” Nig poderiamos fazer desaparecer 0 que sentimos como um problema, recobrindo-o. Certamente, nao se trata de explicar a emergéncia e as formas de andlise do discurso somente a partir desse conjunto de razdes exteriores ao campo cientifico. © comego dos anos 1970 é também o esgotamento do paradigma da lingiiistica estrutural e 0 ressurgimento, na lingiistica francesa, de uma perspectiva sociolégica inscrita, desde ha muito tempo, na sua tradigo; & ainda a casio, promovida pelo contexto de abertura das disciplinas, na qual se pensa a relagdo entre a histéria e a lingufstica. E, enfim, 0 desenvolvimento dos primeiros algoritmos de tratamento de texto que permitem a elaborago de métodos de andlise automstica do discurso. Mas hi, aqui, ainda, 0 retorno da tradico sociolégica na lingUistica que promoveu a constituigao de uma sociolingiifstica de inspiragio marxista, engajada, antes de mais nada, em descrever a diferenciacdo discursiva dos grupos politicos e sociais"; a alianga interdisciplinar da hist6ria com a lingtifstica se efetuou também com base nas polémicas opostas ligadas & interpretagao politica da Revolugdo Francesa.” Quanto a elaborago de uma anélise automética do discurso, ela nao pode ser evocada sem que nos lembremos do considerdvel papel desempenhado por Michel Pécheux nos debates que acompanharam © » Ness sentido, meus prprios textos de andlise do discursoadquiriam sentido na vont de produit uma erica “deesquerds”dodscusoe da pritiea do Partido Comunsta Francés. ° Ver: GARDIN, B. € MARCELLESI, |. 8. Introduction a la sociolingustique Paris: Larouse, 1974. tad por. Introdugio socolingistica. Lisboa : Aster. 19771 © Ver: ROBIN, R. Histoire et linguistique. Paris: Armand Colin, 1973. p. 79 [urad. bras. Histia lingifstica, Sao Paulo: Cultrix, 1977) desenvolvimento da andlise do diseurso™ tle no interior desse desenvolvimento. Quan querer considerd-la, uma ver mas, ae a — essa posigdo produziu uma forma mixima de tensio ene arent {quea dividiam: ela quis, com efeto, cumprir,absolutamente sn oe tempo, uma fungi politica eerica una aniocentins yo quis sustentar 0 conjunto, cimenta a alianga ene uma teria mang dd discurso, uma leituraengajada ds textos, porumlado,e unaandes automatica do discurso, por outro; andlise concebida como um dispositivo neutro de reconhecimento das frases, uma espécie de “miquina de leitura", da qual se esperavaa produgio de uma “letra (informaticamente) dessubjetivada”. Desde a origem. estavainsrita nessa posicdo uma instabilidade que iria se agravar. Até se tomar insustentivel, quando comega a desabar pouco a pouco, minado pelos acontecimentos politicos e pelas transformagées ideol6gicas, o projeto de uma teoria do discurso © Ma posigio defendida por DISCURSO E PRATICAS Sem voltar aos detalhes dessa artculagio™, gostaria,contudo, de me deter sobre dois de seus tragos: de um lado, a posigio central da "Ver: PECHEUX, bras. Anlise automitica do discuso In: Gat. Fe Hak, (Org) Por uma a automatica do diseurso: uma introducio a obra de Michel Pécheox 3 e ‘Campinas: Ed. da Unicamp, 1997. p. 1-161}: Les Vrs dela Pali. Pas: Messe 1975 trad, bras, Semvnticaediscurso: uma eiticaafrmagio do Obvie Capos: Ea. da Unicamp, 1988]; Langages. 37 175 (rad: bas A ops da de automatica do discurso: tualizag e perspectivas I: Gat F< Hak F One dina analise automtica do discurso: uma introduce a obra de Niche! 3d. Campinas; Ed. da Unicamp, 1997. p 18-252) “0 fato de que esss tess, outora celeras, eam Boke we dchateteérico parece-mecoloca dvs ios de uestes ) W9 r esas tees em rlagao ama realidad politica sci eo, Sobre a qual els pensavam eit de mod a= 3 UO ag 3, Gur elas no conseguram vet, simples Is IMB ene ds interogueto sobre a natuyeza do debate mltual FNS £0 esa tclectaisa"implos™ das tesesahsserians€ IMIS, ds coletiva da maioria daqueles que a elas se eer ‘que se Ihes apunham. “Analyse automatique du disours. Pas: Dunod, 1969 ues do je totalmente aus ina a sure are is 56 categoria de contradigio, nico ponto a partir do qual se poderia pensar a ideologia e, portanto, passagem obrigat6ria da and Esses tiltimos, com efeito, so considerados como a forma material de formagées ideoldgicas” que nao existem fora das contradigSes que as unem e as opdem, A Gnica coisa que a burguesia e a classe operiria tinham em comum era seu confronto. Tudo isso repousava sobre uma inflise de classe” situada num considerdvel descompasso com movimento politico, ideoldgico e social da sociedade francesa, dos anos 1960. No exato momento em que Althusser escrevia, a classe operdria i qual ele se referia ja no existia mais: em pleno desenvolvimento do aparelho audio-visual de informagao, as vésperas do reino das imagens, E escola e as suas priticas de leitura que Althusser atribui o papel de “aparelho ideolégico dominante”. Obsessio pelo texto e, por extensio, pelo texto escrito", considerado como vetor ideoldgico essencial. E no texto, enfim, a redugdo do discursivo ao sintético e ao lexical, excluindo qualquer outro funcionamento lingiifstico: ha um “real da lingua”, a sintaxe. O apoio sobre uma tradigdo exclusivamente formalist considerada como a vanguarda da cientificidade linguistica. e a referéncia & gramatica gerativa, que “contém elementos materialistas” = apesar de suas inclinagdes manifestamente neuro-biologizantes foram 0 Gltimo momento do fracasso dessas anilises diante das mudangas ideoldgicas que Ihes eram contemporaneas e da historicidade das novas préticas que se desenvolviam no interior dessas mudangas Reducdo do histérico ao politico, do politico ao ideolégico, do ideolégico ao discursivo, do discursivo ao sintético: a crenga filolégica que, atualmente, se desenvolve na andlise do discurso estava jé inscrita nela mesma, desde sua origem. O projeto de uma andlise dos discursos que restitui a discursividade sua espessura hist6rica ndo esti, entretanto, ultrapassado. ™ Bssa obsessio pelo texto e pela escola me parece que pode ser compreerilid. se dmitirmos que, em seu célebre artigo sobre os “apareliios ideoldgicos do Estado” Althusser falava, a0 mesmo tempo. mas sem, de lato, o perceher, da escola “capitalist” do Partido Comunista Francés. A descrigdo de um aparetho perseguido pelas prticas escrturais ¢ destinado somente a sua reproduso me parece uma visdo mais bem adequada do PCF que da escola da Replica. Esse tipo de confusao Foi constant na linha politica “althusseriana”, que verdadeiramente jamais soube se se debatia priortariamente contra o Estado capitalista ou contra o aparelho comunista Mas, ele deve ser repensado em fungao dos resultados aos quais ele conduziu, das dificuldades que ele encontrou, dos impasses nos quais ele se enredou. Parece-me, particularmente, que esse projeto poder administrar a andlise das represemtagdes compostas por discursos. imagens e priticas. A transmissio da informagao politica, atualmente dominada pelas midias, se apresenta como um fendmeno total de comunicacio, representacao extremamente complexa na qual 0s discursos esto imbricados em priticas nio-verbais, em que o verbo no pode mais ser dissociado do corpo e do gesto, em que a expressio pela linguagem se conjuga com a expresso do rosto, em que 0 texto torna-se indecifrvel fora de seu contexto, em que no se pode mais separar linguagem e imagem.** Analisar discursos no pode mais se limitar a caracterizar um texto em diferentes niveis de funcionamento lingiiistico. Mas, pensar e descrever a maneira como se entrecruzam regimes de priticas ¢ séries de enunciados; e rearticulara perspectiva do lingtistae ado historiador, numa diregdo que, aproximadamente, poderia ser aquela indicada por Roger Chartier, nos seguintes termos: Os discursos (..) constituem nao 0 Gnico, mas o mais, macigo dos materiais da hist6ria, Nenhum discurso pode ser manejado sem ser submetido ao duplo questionario, critico e genealégico, proposto por Foucault, que visa a ‘dentificar suas condigies de possibilidade ede produgi seus principios de regularidade, suas imposigies € suas apropriagoes. A tarefaé inserever no centro da critica do documento, que constitui a mais durdvel © a menos contestada das caracteristicas da hist6ria, o questiondrio € as exigéncias do projeto de andlise dos discursos, tl como ele foi formulado, em articulago "com o trabalho efetivo dos historiadores”, € cujo objeto so, Finalmente, as imposigGes e os modos que regulam as priticas discursivas da representagio .. Por outro lado, taretaé pensar 0 trabalho histérico como um trabalho sobre a relagdo entre as representagoes € as prticas, % 0 que tentei fazer, de modo um pouco programitico, em “Les glissements du Spectacle politique”. In: Esprit. n. 164, Paris. 1990, p. 152-164. (radio brasileira ‘Os deslizamentos do espeticulo politico”. In: GREGOLIN, M. RV. (Org. Discurso € midia:a cultura do espetdculo. Sio Carlos: Claraluz, 2003. 21-34)

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