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Ip peg Aenonm WecAh SINDROME DE MUSEUS? Regina Abrou Pesquisadora da CFCF/Funarte ¢ doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Naciona/UFRJ. Em 1990 defendeu dissertapao de Mestrado sobre a era das grandes: doagdes no Museu Historica Nacional (Os museus estao por toda parte. Grandes e pequenos, eles se multiplicam com base nos mais variados motivos. Da meméria nacional a meméria individual, vivemos um momento paradoxal: na era do descartavel, sentimo-nos cada vez mals obcecados pela idgia de preservagao. “Nunca se guardou tanto, nunca se arquivou tanto!" ~ enunciou 0 historiador francés Pierre Nora. No Brasil, até 1922, os museus eram raros, Trés deles, grandes e de carater enciclo- Pédico, destacavam-se no cenario nacional: 0 Musou Paraefse, em Belém — fundado elo cientista Emilio Goeldi—, o Museu Paulista, erigklo como um museu-monumento nas cercanias do rio Ipiranga, onde foi proclamada a independéncia do Brasil, e 0 Museu Nacional, o maior museu brasileiro, localizado no Rio de Janeiro, capital da Reptblica naquela ocasiao, De 1922, data da criagdo do Museu Histérico Nacional, aos nossos dias, os museus prolferaram numa velocidade surpreendente. Alualmente existem no Brasil cerca de 1.050, dos quais 130 esto no Estado do Rio, e 53, na Cidade do Alo. Ha museus nacionais, como 0 de Belas Artes, o Histérico, o Nacional, o de Folclore Edison Cameiro, Ha est duals e municipais, como o do Primeito Reinado, ein Sao Cristévao, ou 0 Paulista. HA museus de historia, de arte ov consagrados a personalidades histéricas, como a Casa de Benjamin Constant, a Casa de Deodoro. Ha também as casas de meméria dedicadas a intelectuais, artistas, politicos, como a Casa de Euclides da Cunha, em Sao José do Rio Pardo, no interior de Sao Paulo, o Museu Villa Lobos, no Rio de Janeiro, ou, ainda, 0 Museu Francisco Alves, em Miguel Pereira, pequena cidade do Estado do Alo. Nessa profustio de museus, até Pelé, 0 consagrado jogacior de futebol, j4 encomendou seu préprio. Em breve, no Pao de Agticar, cartdo-postal da cidade do Rio de Janeiro, imagem emblematica do Brasil, seré possivel visitar mais um museu brasileiro: 0 Museu Pelé. Essa profusdo de museus conduz a algumas indagagdes. Afinal, nao afirmam os mais céticos ser 0 Brasil “um pals sem meméria"? C: que estaria acontecendo? Alguma mudanga teria efetivamente ocortido no panorama da construgdo da meméria entre nés? De acordo com editorial recentements publicado no Jornal do Brasil (29/3/92), © Brasil teria sido acometido por um terrivel mat: “sindrome de museus”. Nas palavras do editor, quase todas as semanas alguém proporia a criagao de um museu novo, destinado aos mais inimaginaveis assuntos: dos indlos aos espagos audiovisuais: ¢ que, no fundo, seriam apenas repetitivos em face dos | existentes. Qualquer coisa seria motivo para sugerir um novo. No Ri, haveria museus uo trem, da farmacia, de bonde, do negro, da Policia Militar, dos cagadores (com animais empathados), dg telefone, da patologia. A ‘muttiplicagao de museus brasileiros resultaria numa dispersdo de esforgos. A razao dese fenémeno, do ponto de vista do Jomal do Brasil, estaria na auséncia de uma politica cultural definida por parte do govemo federal Se 08 fabuiosos museus francases s0 queixa da falta de verba para aquisieses, 0 {que olzer dos mirrados @ cada vez mais mutiplicados museus brasiilres? No caso os museus, a dspersao de esforcos 6 fatal, sem falar que a malaria dos existontes nao disse ainda a que veto. Por néo serem parte de uma politica definida, cada qual ‘80 dirige para um lado, @ cada vez communes varbas. 81 presente artigo se prope a problematizar a questao da proliferagao dos museus brasileiros. Em cerca de setenta anos, o pais passou de menos de uma dezena para mais de um milhar deles. Estamos efstivamente diante de um fendmeno social importante. O que esse fenémeno expressa? © editorial do JB assinala como “socialmente visfvel" a falta de uma politica cultural para os museus brasilelros, Algumas perguntas saltam aos olhos: - essa falta sempre existiu? Ou, pelo contrario, teria havido uma potitica cultural para os museus brasileiros @ esta teria entrado em crise? No caso de ter havido, quais © valores e critérios que a estruturavam? Por que ela entrou em crise? Por outro lado, qual a rela¢do entre a auséncia de politica cultural e a proliferagao dos museus brasileiros? Existe sie falo uma rolagao entre esses dois termos? Ou nao? Meméria nacional enquanto sistema: uma hipétese sobre sua constitui¢éo 6 do junho de 1818, D, Joio Vi-sentenciou: "Querendo propagar os conhecimentos © estudos das ciéncias naturais do Reino do Brasil, hei por bem que nessa Corte se estabelega um Museu Real.” Assim comesou a histéria do Museu Real, futuro Museu Nacional, ainda hoje um dos miaiores do pals. Durante muito tempo ficou sediado no editicio onde hoje se encontra o Arquivo Nacional. Mais tarde, 1892, apés a Proclamagao dda Republica e o banimento da familia imperial, ol transterido para o Palacio da Quinta da Boa Vist Do final do século XIX até meados dos anos 20, assistiu-se, na érea museoldgica 420 apogeu do museu do tipo enciclopédico. Essa instituigae cumpria papel relevants enquanto local de ensino e.de produgao cientitica (Stocking, 1985:3-13). O grande patadigma era o evolucionismo e, sob essa égide, os museus problematizavam a tematica {da evolugdo das espécies. Gereimente abrigavam colegdes que representavam indistin- tamente variedades da flora, da fauna e da espécie humana, Segundo Schwartz, (98 museus transfoimam-se aos pousos em ‘depésios ordenados’ de uma cultura ‘material fetichizada e submetida a uma légica evolutiva, Comparar,classifcar, con. Cluir eam as grandis metas desses ciontistas, verdadeiros ‘hidsofos viajantes’ quo, {inanciados por mueus ou oulras instituigoes européias, vinham a terras distantes @ exdticas, como 0 Brasil, em busca de colegses (..). (1990:9) O Brasil era palco de viagens @ excursées de naturalistas estrangeiros que aqui coletavam vestigios de culturas em extingdo. Evidentemente, consideravam que esses vestigios estariam mais bem preservados nos museus metropolitans, Desse modo, als meados do século XIX, toda a ‘sciencia' era feita por viajantes estrangeltos que para c& vinham exclusivamente para coletar’, (Schwartz 1990:10) Nos titimos anos do século XIX, esse quadio softe alteragdes significativas. Segundo F. de Azevedo, citado por Schwartz, varios centros de intslectuais, tomando por base a teoria da evolugdo, vo reelaborar as teorias eurgpéias em termos do contexte especttico brasileiro, peneando fam sua aplicagao local. € ness periodo que entram em atividade trés dos maloros museus brasileiros: o Paraense, fundado por Emilio Goeldi, em 1885; o Paulista, dirigide pelo cientista alemao Hermann Von Ihering, em 1893; 0 Nacional, ciiado om 1818, que passa por grandes transformagées sob a diregdo de Batista Lacerda (1895-1915). (Schwartz, 1990:11) A perspectiva enciclopédica, evolutiva, comparativa e classificatéria marcou a especificidade desses érgios, Nao havia ainda nenhuma instituigao de cultura ‘material voltada para a tematic do nacional. Nos museus enciclopédicos, a categoria hago nao era privilegiada nos crtérfos que presiciam a ordenagao do acervo museclégico A énfase recala nas espécies da vida animal e vegetal, pouce importando a questo das naclonalidades, A primeira grande agéncia constitulda com o objetivo de formular uma representacao da nacionalidade do ponte de vista do Estado nacional fol institute Historice Geogratico Brasileiro, criado ainda no tempo do Império, em 1838, sob os auspicios de D. Pedra ll. A tarefa especifica do IHGB consistia em “escrever a histéria brasileira enquanto paleo de atuagao de um Estado iluminado, esclarecido e civilzador’. (Guimaraes, 1988:5-27) 52 © principal expoente do IHGB foi Francisco Adolio Vamhagen, histeriador que sinte- tizou uma tendéncia da historiogratia expressa na idéia de que a historia era o meio indis- ensAvel para forjar a nacionalidade. Esses estuciosos incorporavam a visao lluminista de que o historiador era um homem esclarecido capez de infuir, com seu conhecimento, nos destines do pais, Segundo Guimaraes, 0 IHGB configurava um momento de introdu- 40 no pais de uma concepedo modema de histéria. que implicava traté-la na linha do tempo, articulando pasado, presente @ futuro num processo linear marcado pela nogao de progresso. A preocupagao fundamental dos histcriadores do IHGB consistia em dar conta da especificidade nacional brasileira, torjando sia identidade, Vamhagen explictaria “os fundamentos definidores da identidace nacional brasileira enquanto heranca da colo- nizagao européia’. A nagao brasileira seria definida enquanto “representante da idéia de Civilzagéo do Novo Mundo". O conceite de nacao, asim operado, resultaria fortemente excludente, fleando restrito aos brancos das elites. Os outros estarlam excluldos, otadamenie os indios e os negros, que nao eram considerados portadores da elviiza- Gio. (Abreu, 1991-94-95) Além disso, até principios do século XX, nao havia uma pradugéo de material didético capaz de fornecer uma visio histérica, geografica cu mesma lteravia do pals para um publico amplo, notadamente para as escolas. Nesse contexto, alguns intelectuals come- garam a postular a necessidade, para o pals, de uma politica cultural que abrangesse varias areas. Alguns se referiam 4 necessidade de livros didaticos bom llustrados ou ‘mapas para distrbuigdo nas escolas, outtos sugeriam que fossem criados sfmbolos capa es de fortalecer a adesdo da sociedad a um projet de nagdo soberana Nesse sentido, vale a pena citar dois escritores que, embora com visdes bastante dlferentes, foram igualmente atuantes na Area cultuial, scbretudo na area da preserva- 780, do patriménio @ dos museus. Gustavo Barroso (1888-1959) fol um escritor de reno- me, com muitos ttulos publicados, membro da Academia Brasilelra de Letras e do Institu- to Histérico Geogratico Brasileiro. Sua grande contibuigao na area museolégica foi a idealizagao, a fundagao e a estruturagao do Museu Histérico Nacional, em 1922, Mario de Andrade, um des precursores do perisamento modeinista, teve intensa aluagao na area cultural principalmente entre as décadas de 1920 e 11140. Foi idealizador do Departamen- to de Cultura de Sao Paulo; tundado em 1935, @ responsavel pelo anteprojeto que orig nou 0 Servigo do Patriménio Histérico @ Artstico Nacional ~ SPHAN, Esses escritores deixaram ragistrados, em livros de meméria, techos que revelam a preocupago com uma cultura nacional 8, principalmente, com “lugares” (material didatico, museus, simbo- los) que disseminassem de forma objetiva a idéia de nagéo, Ao descrever o colégio em que estudara, Gustavo Barroso mencionou ama impres- ‘880 que the causou 0 fato de ndo encontrar material idatico de qualidade sobre o Brasil: (Nas paredes, grandes painéis pandentes como mapas, representando as cinco par- tes do mundo: No da Europa, um tipo foure de hometn civiizado, redeado de espi- .gas de trigo, de folhas de finho, de galhos dé Wjpulo © de cachos de uvas. Mais ‘embaivo, cavaios, bois, carneiros de raga, cabrilos dos Alpes, ursos dos Plrineus @ lobes dos Urals, ‘No da Asia, uma figura emoldurada do arrozaise jangalas, de elefantes, camolos & tigres. No da Africa, um guerrero sudanés, cercado de baobs, famareiras, cinocéiales, girafas, apes e dromedérias. No da Oceania, um selvagern caledénio ‘no meio de ramos de fruta-pao, de copas vie cicciceas, de monos, cangurus, aves- ttuzes a pangolins. No da América, 0 pert. aquilin dum pele-verneiha emplurriado, Ssobressaindo duma cercadura. de sequélus © paimares, de cactos @ hoveas, de ccastores © esquilos, de jaguares © pumas, de tucanos @ araras, Com os olhos a cerrar por aqueias imagens que alé certo ponto ma deslumbram, procure o painel do Brasil. Néo ha. Ponho-me a pensar que niio via nunca o Brasil citado em livros ou pintado om quadros. lmagino, depots, como devia ser 0 seu painel, so all estivesce ‘epresentado: @ cabeca dum tupi ou dum aimoré; em redor, sussuaranas e jacarés, papagaics e gavibes, agals e ips, bunts vigantos w jequitibas colossais, Mas sera 1possivel que nao haja mesmo o painel do Brasil? Néo. Nd hd, Dave ser porque © Brasil nao é uma das cinco partes do mundo @ sim uma parte dessas cinco partes. Comeco apensar que, se um dia for algum. cousa na vida, mandrel fazer um liido Paine! do Brasil e distribute por todas as 2scolas. (Barroso, 1939) 53 Aldéia de representar o Brasil através de figuras alegéricas, munir as escolas de um aparato de livres, graficos, mapas 2 outros materiais didéticos e, especialmente, organizar museus com sentido educativo e preservacionista aparece também em Mario de Andrade numa carta a Paulo Duarte. 3s livros didéticos sc horrorosamente iistrados, o¢ grificos, mapas, pinturas das aredes das saias de aula #0 pobres, pavorosos @ melancolcamente pouce inciet .) Outra coisa que me paroce de enorme e Imediata necessidade é a organi: apo de museus. Mas, pelo amor de Deus! museus & modema, museus Vivos. QU ‘Sejam um ensinamenio ative, que ponham realmente toda a populapao do estado Contra o vandalsmo e 0 exterminio, (Duarte, 1938: 217-222) Gradativamente, rum percurso que se desenrolou dos primsiros anos a meados deste século, foram tragados projetos e configuradas idéias no sentido, senao de uma Politica cultural, ao menos de uma preccupagao com a cultura de um ponto de vista hacional. E no inicio dos anos 20 que surge por parte de alguns Intelectuais a preocupa: a0 em fundar instituigBes, centres e museus destinados a preservar e promover uma cultura nacional. A criagad dessas instituigées fazia parte da crenga lluminista de que pela razio seria possivel integraro pats no “concerto das nag6es’. Havla intencao de objetificar a cultura nacional, ou seja, preservar e expor objetos singulares, expreseao da singular dade nacional, bem como criar painéis, mapas @ material didatico representative, A asso. clagao desses intelectuais com 0 poder do Estado possibiltou a implantagao de alguns projetos especiticos de musous biasiteiros." Para uma reflexao sobre pollica cultural no Brasil, especiticamente relacionada aos ‘museus, um primeiro ponto merece ser assinalado: a formulagao de uma politica cultural assou por duas instancias que se associaram ~ os intelectuais e o Estado. Era corvicga0 {dos intelactuals preacupados com o tema da cultura nacional em todas as suas nuangas (educagao, politica preservacioninta, museus, monumentos, reliquias...) que o Estado deveria ser o responsavel polo astabelecimento de uma politica de conservagao e valor ago do pattiménio histérico e artistico nacional (A esse tespeito ver Bomery, 1991:4-5) A histétia da preservagtio do patriménio cultural, e, especialmente, a historia dos ‘museus no Brasil, é uma histéria de projetos de intelactuais particularmente “esclareci- dos" que encontraram a benevoléricia de um ou de outro chefe de Estado. E curioso, mas vale a pena notar, que pollticas culturais que efetivamente vingaram no Brasil resuitaram de atos do poder executive. Em geral, em regimes onde o poder executivo se encontrava especialmente fortalecido. Fol assim com a criagao do Museu Real, por D. Joao VI, ou com a instituigao do Instituto Histérico Geogratico Brasileiro, por D: Pedro li, Apés a Proclamagao da Republica, essa jrostura pouco se alterou. Embora a historia da politica | Preservacionista no Brasil nao tenha séguido um iinico fio eondutor, mas, pelo contratio, tenha admitide Inhas @ projetos Mweu lps 63 ‘3@ aproximam da pluralidade das tradigdes existentes no conjunto da sociedade? Até que ponto a meméria coletiva preservada no conjunto dos museus brasileiros tem a ver com memérias coletivas dos varios segmentos contidos no territério nacional? Acctise da meméria no Ocidenty ‘Apés a enumeragao de algumas caracteristicas particulares na tentativa de encan- {rar pistas para 0 fenémeno da proiiferagao de museus no Brasil, nao seria 0 caso de indagar sobre a ocorréncia desse masmo fenémeno em outras nagées? Analisando 0 caso francés, historiador Pierre Nora parece deparar-se com fend- meno semelhante. No entender desse autor, nas socledades modemas, a acentua- da fragmentagao da vida coletiva ¢ a crescents valorizagao do individuo teriam gerado a desagregagao dos lagos de continuidade. Em contrapartida, teria surgido a necessi- dade de criagdo de “lugares” para.a preservagao das memérias coletivas que antes eram geridas pelos préprios grupos socials. Nora chamou a esses “lugares” de “lugares de meméria’. Os “lugares de meméria" enunciados por Nora indicam que, nao podendo mais haver ‘meméria espontanea, passou-se a criar arquivos, manter aniversrios, organizar celebra- (¢628, pronunclar elogios flnebres. [lesse modo, os “lugares de meméria" foram gerados ‘numa sociedade onde a operagao da memétia j& néo era mais natural, onde ja nao mais existia o melo ambiente da meméria (milieu de mémoire). O advento da modemidade no Ocidente terla sido responsavel pelo deciinio de um tipo de sociedade que tinha na meméria um de seus principals sustentaculos. As sociedades que asseguravam a conser- vvagao e a transmisséo dos valores escasseatam. O Ocidente modemo assistiu ao entra- quecimento gradativo das ideclogia-memérias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado ao futuro ou indicavam, de passado, o que era necessario Teter para preparar o futuro. Num precesso crescente, os tempos modemnes sinalizaram o declinio das sociedades-meméria com forte capital memorial, tals como grupos, familias, etnias. ‘Osurgimento dos Estados-nagdes propiciou uma nova forma de adesdo social, Norbert Elias observou que, no século XX, o desenvolvimento de ideais nacionais impregnou todo © Ocidente. A idéia de totalidade n> mundo modemo passou a ser representada pelo conceita de nagao. A idéia de uma meméria nacional em muitos casos passou a ocupar 0 lugar de antigas tradigdes coletivas, As construgdes dos Estados-nagoes seguiram dife- rentes caminhos. Em alguns casos, como a Franga e os Estados Unidos da América, a idéia de nagao se implantou, forjando tradig6es nacionais que se capilarizaram no tecido social. Nestes casos, a meméria nacional passou a significar um novo melo ambiente da ‘memeéria, uma forte tradigao coletiva, Em outtos contextos, a consirugao do Estado-nagao se deu de manelra mais problematica. A adestio social a um projeto nacional fol fraca ou atingiu apenas alguris setores. A meméria nacional néo chegou a se consolidar enquanto uma forte tradigao coletiva. No case brasileiro, desde 0 século passado os intelectuais vém debatendo sobre uma cultura nacional capaz de arregimentar uma adesdo social ignificativa para a consolidagao do modelo Estado-nagao. A circunstancia de pais perifé- rico tem sobressaido como fator complicador. Chegamos ao final do século XX sem que 0 Estado-nagdo nos moldes modemos. se tenha consolidado plenamente. ‘Apés 0 declinio das sociedades tradicionais ¢ a implantagao dos Estados-nages, 0 Ocidente parece viver um terceiro momento. Cientistas sociais assinalam algumas tendéncias que vém repercutindo coin vigor no mundo modemo, especialmente no mode- lo Estado-nagao. O chamacio fenémeno da globalizagao consiste em uma dessas tendén- las. Hobsbawn chama a atengao para o fato de que 2 ‘napao’, hoje, visivelmente, estd em vias de perder uma parte importante de suas Velhas funpdes, nominalmente aquela da constituipo de uma ‘economia nacional” continada torrtoriaiments (..). Desde a Segunda Guerra Mundial, mais especifica- mente desde os anos 61), 0 papel das ‘economias mundiais’ fem sido corrofdo ou ‘mesmo colocado em que sto pelas principaistransformagées na divis4o internacio- nal do trabalho, cujas unidades basicas sao organizagces de todos os tamanhos, 64 ‘muttinacionals ou transnacionals, ¢ pelo desenvolvimento correspondente dos con- tros intemnacionais @ redes de transagves econémicas que esto, para fins praticas, fora do controle dos yovernos dos Esados (Hobstawm, 1991:206). Iss0 nao significa que as fungdes econémicas dos estados diminulram ou estio prestes a acabar, mas observa-se que essa tendoncia repercute diratamente na ideologia das nagdes @ do nacionalismo, Hobsbawm sinaliza quo, diante de um mundo cada ‘vez mais globalizade, a ideologia das nagdes ¢ do nacionalismo perde muito de sua relevancia Paralelamente, 6 possivel observar o ineremanto de uma tendéncia que jé se anun ‘ava desde as origens do mundo modemno: a tendéncia a fragmentagao e a individualizagio. Uma de suas manifestagdes 6 visfvel no crescimento dos movimentos étnicos e separalis- tas que agita o mundo neste final de século. Eribora nao seja o caso de analisar esse fendmeno no curto espago deste artigo, cabe assinalar que nos finais do século XX esses movimentos sao em grande numero e assinalan um certo desconforto de populagdes ingerdas em Estados-nagdes com os quais pouco se identificam. Com base na insistér- cia colocada nas diferengas &tnicas e linguisticas, eles aparecem as vezes de forma comibinada com a religiao e sao essenciaimente separatistas, Desse modo, diferenciam- 80 radicaimente da histéria do nacionalismo e das nagdes do século XIX e inicio do XX, que se caracterizava pela idéia de unificagao. A andlise deseas manifestagdes 6 crucial para a apreensao dos valores e ideais em jogo no mundo contemporaneo. Hobsbawm cita como exemplo contundente a recente emergéncia do “funcamentalismo” em varias partes do planeta, (Hobsbawm, 1991:199-202) Outra manifestagao visivel da tendéncia & fragmentagao e A individualizagao consis- te no apelo crescente a idéia de singulatidade. Cada individuo 6 visto como detentor de caracteristicas intemas e de uma subjetividade prépria. A valorizagao das singularidades ‘emerge num mundo que se opée a idéia de um tudo social encompassador e redutor cas individualidades, Cada subjetividade é uma ménada, um centro irradiador e para o qual tudo converge. Essa manifestacdo repercute dietamente no campo da meméria. Uina profusao de biogratias, memoriais, museus dedicados a personalidades é produzida pura expressare stemizaras varias singularidades. Os individuos vistos dessa forma nao inte- gram um pantedo simbolizando uma totalidade que os ultrapassa como a ldeia de nagio. Desse ponto de vista eles apenas podem reprasentar a si mesmos, Essa 6 uma das razBes que faz com que proliterem na Europa e nos Estados Unidos certos “lugares de memérla” dadicados a escritores, artistas, pintoves até personagens ficticios, como 0 museu dedicado a Sherlock Holmes na Inglaterra ‘Assim, as indicagdes que apontam para mudangas na ordem mundial e no panora- ma dos Estados-nagées tém implicages diretas no campo da mamaria, As memérias rnacionais enquanto tradigdes coletivas e importentes bastides para o desenvolvimento e a legitimidade dos Estados-nagdes se deparam com novos fatores. As institulgées, @ agéncias relacionadas ao campo da meméria nos diferentes contextos nacionais devam continuamente adaptar-se aos riovos tempos. Entretanto, nao podem renegar acuilo que 6a fungao mesma de sua existéncia, qual seja a de contribuir para a produgdo e a preser- vagao do arcabougo simbélico necessario para a manutengao de cada Estado-nagao. Pois as nagdes sao essencialmente “comunidacies imaginarias” que dependem da ade- 880 social a determinados projetos @ ideals e da aceltagao do poder unificador de simbo- los criados até certo ponte arbitrariamente. (A ecse respeito ver Benedict, 1983 e Cania- tho, 1990.) Por outro lado, @ preciso analisar com mult culdado fendmonos recontes como o8 da globalizagao e da fragmentagao. No que tangje especificamente ao campo da mené- ria, nao ha fazao alguma para crer que a prolifinfago dé museus @ casas de meméria expresse de antemao um fenémeno de estacelanento da meméria nacional ou de opesi- 0 ao social. Em muitos casos, memérias localizadas, aparenterente individualizadas @ fragmentadas, podem estar indicando tentativas de retotalizagao. Em alguns casos, 0 culto a um individuo pode indicar um “lugar de ineméria” onde uma meméria social (por vvezes nacional) esta sendo atualizada, Cito o exeniplo por mim estudado do culto a Euciiies da Cunha em Sa0 José do Rio Pardo, no interior de 840 Paulo. 65 Concluséo Voltemos ao caso brasileiro @ Z's questées colocadas no inicio do artigo. Em primeiro lugar, estamos jé em condigées de qualficar a famosa afirmagao de ser o Brasil “um pals ‘sem meméria’. A perda de Um certe tipo de meméria nao constitu atributo tinico e exclu- sive do Brasil. Essa perda atinglu todo o Ocidente, com 0 advento da modemidade @ 0 declinio das chamadas sociedades tradicionais. No final do século XIX e inicio do século XX as socladades com forte capital memorial; como grupos, familias @ etnias, declinaram ¢ foram substituldas por sociedades nacionais. Nesse sentido, pode-se apontar a perda. de um certo tipo de meméria no mundo ocidental. Um outro ipo de memétia fol construlde ® passou a representar uma forte tradigdo coletiva: a meméria nacional. Quando se aflrma que o Brasil é um pals sem meméria é preciso pois indagar: - de que meméria se esta falando? Esta afirmagao s6 faz algum sentido no contexto da meméria nacional, Ou seja, de um ponto de vista relacional, ce comparado com outros Estados-nagdee, como os Estados Unidos e a Franca, o Brasil carece de um conjunto expressivo de simbolos € alegorias referenciados a ldéia de nagao. O que existe nessa diregao também nao encon- tra uma ampla adesao social, capaz de criar uma comunidade de sentido (a esse respeito, ver Carvalho, 1990). Em segundo lugar, concluimon que a auséncia de uma politica cultural para os ‘museus brasileiros 6 antiga. As poucas tentativas de criagdo @ implementagao de uma politica cultural com esse fim mostraram-se infrutiferas. A tonica dos musous brasiliros tem sido 0 isolamento @ a existéncia auténoma onde nao sao contempladas as relagdes com os demais museus @ muito menos cogita-se em observar experiéncias adquiridas no assado e planejar para o futuro Constatamos ainda que, se aluma coisa entrou em crise, ndo foi uma politica cultu- Fal, que, de fato, nem sequer existiu, mas sim um modelo de cultura nacional que s¢ {entou implantar no Brasil e que emnbasou a atividade museoiégica desde a criagao do Museu Histérico Nacional, em 1922, Esse modelo estruturava-se numa visdo dicolémica entre 0 popular @ o eruulit. Por fim, entendemos nao existr relago alguma entre a auséncia de politica cultural @ a proliferagao de museus brasilsiros, como assinalou o editorial do Jornal do Brasil Devemos pois procurar a razio para a proliferagéo dos museus brasileiros em outras estoras. Nesse sentido, sugetimos alguns pontos de partida para futuras investigagaes, ‘como 0 fenémeno da globallza¢ao, que vem implicando o enfraquecimento das ideclogias hacionals, © a tendéncia a fragmentagao e 4 individualizagdo, que vem acarretando 0 culto a singularidades. Evidentemente, a tematica da neméria e dos museus brasileiros s6 podera ser mais bem avaliada quando a partir de alguns eixos comegarem a ser realizadas pesquisas Concretas. Um desses elxos, no meu entender, relaciona-se com o processo de consti 40 do Estado-nagao no caso brasileiro e da implantacae de tradigdes nacionais capazes de forjar a adeso social necesséria a consolidagao de um projeto nacional. A meméria nacional, produzida por um conjunto de agéncias @ institulgSes, entre as quais se inscre- ver os museus, constitui uma das laces dessas tradigges, Sugiro que olhemos com mals: cuidado para este panorama de proliferagao de museus. A emergéncia de insténcis aparentemente desconectadas ¢ fragmentadas no campo da meméria @ dos museus brasileiros pode ser também perisada como um indica dor de novas tendéncias. Muites desses museus vém desempenhando importante papel nna sociedade brasileira contemporinea. Se, por um lado, eles so titeis para salvar do esquecimento antigas tradig&es, per outro, oferecem um contraponto necessario e dese. javel para a ago dos homens num mundo em permanente transformagao e mudanga, Os “lugares de memétia”, que incluem nao apenas museus, mas arquivos, cemitérios, cole. es, festas, aniversarios, tratados, processgs verbais, monumentos, santuarios, asso clagées, rituais, cultos aos mortes, odem também estar expressando a utopia da socie- dade como um todo, a busca de uma meméria coletiva enquanto locus da tradigaio, 0 resgate dos lagos de continuiciade. Desse modo, quem sabe, ei paquenos @ aparentemente insignificantes museus, antigas utopias estejam sendo atuallzadas? Quem sabe, em casas dedicadas a preserva: 66 ‘go da meméria de um individuo, esteja sendo perpetuado um sistema de valores e cren- as? Quem sabe a aparente fragmentagao esteja sinalizando novas formas de Vida no ‘campo da meméria social? Bibliogratia ABREU, Regina Maria do Rego Monteiro de. Sangue, nobreza e politica no templo dos imortais. Dissertagao de Mestrado apresentada 20 PPGAS/Museu Nacional ~ UFR, mimeo. 1980. ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Loncion, Verso,1983, ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. Rodrigo ¢ 0 SPHAN. Rio de Janeiro, Ministério da Cultura, Fundagao Nacional Pré-Meméria, 1944 [1987], BARROSO, Gustavo. Coragao de menino. Rio de Janeiro, Getilio M. Costa, ed., 1939. BENJAMIN, Walter, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, in: Obras escolhidas, vol. 1, S40 Paulo, Brasiliense, 1987. BOMENY, Helena, Pattiménlos da meméria nacional, in: Idediogos do patriménio cultural, Caderno de Debates, Rio de Janeira, IBPC, 1991 BURKE, Peter. 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