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CE Ontiz, Renato, org., Fernandes, Flonestan, coord. PLerne Bourdien = Soctokogia. Sao Paulo: Xtica, 1983, 4. O CAMPO CIENTIFICO * A sociologia da ciéncia repousa no postulado de que a verdade do Produto — mesmo em se tratando desse produto particular que 6 a verdade cientifica — reside numa espécie particular de condigdes sociais de producio; isto é, mais ‘precisamente, num estado determinado da estrutura e do funcionamento do campo cientifico. O universo “puro” da mais “pura” ciéncia £ um campo social como outro qualquer, com suas relagdes de forca e monopélios, suas lutas e estratégias, seus inte- Tesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas espe~ cfficas. A luta pelo monopélio da competéncia cientifica © campo cientifico, enquanto sistema de relagSes objetivas entre Posigdes adquiridas (em lutas anteriores), 6 o lugar, o espago de jogo de uma luta concorrencial. © que esté em jogo especificamente nessa luta 6 0 monopslio da autoridade cientifica definida, de maneira inseparével, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, 0 mono- Pélio da competéncia cientifica, compreendida enquanto capacidade de * Reproduzido de Bounpieu, P, Le champ scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p. 88-104, Tradugfo de Paula Montero. 123 falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com auto- ridade}, que € socialmente outorgada a um agente detecminado '. Dizer que o campo € um lugar de lutas nao é simplesmente romper com a imagen irenista da “comunidade cientifica” tal como a hagiografia cientifica a descreve — e, muitas vezes, depois dela, a prépria sociologia da ciéncia. Nao é simplesmente romper com a idéia de uma espécie de “reino dos fins” que néo conheceria sendo as leis da concorréncia pura ¢ perfeita das idéias, infalivelmente recortada pela forga intrinseca da idéia verdadeira. E também recordar que o proprio funcionamento do campo cientifico produz e supde uma forma espectfica de interesse (as Praticas cientificas nao aparecendo como “desinteressadas” seno quan- do referidas a interesses diferentes, produzidos € exigidos por outros campos). Falando de interesse cientifico e de autoridade (ou de competéncia) cientifica, pretendemos afastar, desde logo, as distingdes que habitam, implicitamente, as discussdes sobre a ciéncia. Assim, tentar dissociar o que, na competéncia cientifica, seria pura representagdo social, poder simbélico, marcado por todo um “aparelho” (no sentido de Pascal) de emblemus ¢ de signos, ¢ o que seria pura capacidade igcnica, € cair na armadilha constitutiva de toda competéncia, razdo social que se legitima apresentando-se como razio puramente técnica (conforme vemos, Por ¢xemplo, nos usos tecnocraticos da nogdo de competéncia) 7, Na 1 Duss observagdes répidas para evitar possiveis mal-entendidos. Primeiramente, nilo se pode reduzir as relagdes objetivas que sfo constitutive: do campo 20 conjunto das interacdes, no sentide do interacionismo, isto ¢, a0 conjunto das estratégias que, na realidade, ele determina. Por outro lado, € necessério precisar © que significa ser socialmente reconhecido. Veremos que o grupo que confere ome reconhecimento tende, cada vez mais, a reduzir-se 20 conjunto dos cientistas (ou concorrentes) & medida que crescem os recursos cientificos acumulsdpe e, correlativamente, a autonomia do campo. 20 conflito relatado por Sapolsky entre os partidérice da fMuorizagio, isto & 08 detentores da autoridade oficial (health officials), que se estimam os tinicos com petentes em matéria de saGde publica, ¢ os adversirios dessa inovacto, entre os quais contam-se intimeros cientistes que, sos olhos oficiais, ultrapassam os “limites de seu proprio campo de competéacia”, permite perceber claramente a verdade social da competéacia como palavra autorizada © de autoridade que esth em jogo a lute ‘entre os grupos (cf. Sarotsxy, H. M. Science, voters and the fluoridation coatroversy. Science, v. 162, 25 out. 1968, p. 427-33). Nunca o problema da compettocia se colocou com tanta acuidade ¢ clareza como nas rela¢Ses com os “profanos”. (Ver BaxNes, S. B. On the reception of scientific beliefs. In: —., ‘org. Sociology of science. Londres, Penguin, 1972. p. 269-91; Botansm, L. ¢ Matomer, P. Carriére scientifique, morale scientifique et vulgarisation. Infor- mation sur les Sciences Sociales, 3 (9), 1970, p. 99-118.) | | Al “424 realidade, © “‘augusto aparelho” que envolve aqueles a quem chamé4- vamos de “capacidades” no século passado © de “competéncias” hoje — becas rubras e arminho, sotainas e capelos dos magistrados e dou- tores em outros tempos, titulos escolares e distingSes cientificas dos pes- quisadores de hoje — essa “ostentacSo t&6 auténtica”, como dizia Pascal, toda essa fic¢fio social que nada tem de socialmente fictfcio, modifica a percepciio social da capacidade propriamente técnica. Assim, os julga- mentos sobre a capacidade cientifica de um estudante ou de um pes- quisador esto sempre contaminados, no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento da posigfo que ele ocupa nas hierarquias institufdas (as Grandes Escolas, na Franga, ou as universidades, por exemplo, nos Estados Unidos). Pelo fato de que todas as priticas esto orientadas para a aqui- sigo de autoridade cientifica (prest(gio, reconhecimento, celebridade etc.), © que chamamos comumente de “‘interesse” por uma atividade cientifica (uma disciplina, um setor dessa disciplina, um método etc.) tem sempre uma. dupla face. O mesmo acontece com as estratégias que tendem a assegurar a satisfacSo desse interesse. ‘Uma anflise que tentasse isolar uma dimensio puramente “pol{tica” nos conflitos pela dominago do campo cientifico seria tho falsa quanto 0 parti pris inverso, mais freqiente, de somente considerar as determinagdes “puras” © puramente intelectuais dos conflitos cient{ficos. Por exemplo, « luta pela obtengfo de créditos ¢ de instrumentos de pesquisa que hoje opde os especia- listas nfo se reduz jamais a uma simples luta pelo poder propriamente “politico”. Aqueles que esto a frente des grandes burocracias clentificas 56 Poderio impor sua vtéria como sendo uma vitéria da citacie se forem capazes de impor uma definigfo de ciéacia que suponha que « boa mancira de fazer citacia implica a villzaglo de servigoe de uma grande burocracia cientifica, provida de créditos, de équipamentos técnicos poderosos, de uma mio-de-obra abundante, Assim, eles constituem em metodologi universal © eterna a prética de sondagens com amplas amostragens, as operapSes de anflise estatistica dos dados @ formalizacio dos resultados, instaurando, como medida de toda pritica cientifica, o padrfio mais favordvel as suas capacidades intelectuais ¢ institucionais, Reciprocamente, os conflitos epistemolégicos so sempre, inseparavelmente, conflitos politicos; assim, uma pesquisa sobre © poder no campo cientifico poderia perfeitamente 95 comportar questSes apa- “ rentemente epistemolégicas. De uma definigéo rigorosa do campo cient{fico enquanto espaco objetivo de um jogo onde compromissos cientificos estio engajados resulta que € inGtil distinguir entre as determinagdes propriamente cientificas ¢ as determinagSes propriamente sociais das priticas essen- SSS eS) 0—0—_ 0 oeaeeareereree_eee_—_ eS oes 125 cialmente sobredeterminadas. 2 preciso citar a descrigio de Fred Reif que mostra, quase involuntariamente, 0 quanto é artificial ¢ mesmo imposstvel a distingZo entre interesse intrinseco e interesse extrinseco, entre o que é importante para o pesquisador determinado ¢ o que é importante para os outros pesquisadores. “Um cientista procura fazer as pesquises que ele considera importantes. Mas a sattsfacdo intrinseca e 0 interesse nao sio suas Gnicas motivoroes. Into tranaparece quando observamos o que acontece quando um pesqui- sador descobre uma publicacio com os resultados que ele estava quase chegando: fica quase sempre transtornado, ainda que o interesse intrin- seco de seu trabalho nfo tenha sido afetado. Isto porque seu trabalho ndo deve ser interessante somente para ele, mas deve ser também impor- tante para .os outros” *. O que € percebido como importante ¢ interessante € 0 que tem chances de ser reconhecido como importante ¢ interessante pelos outros; por- tanto, aquilo que tem a possibilidade de fazer aparecer aquele que © produz como importante ¢ interessante aos olhos dos outros. Para ndo correr 0 risco de voltar & filosofia idealiste, que confere & ciéncia o poder de se desenvolver segundo sua légica imanente +, 6 preciso supor que os investimentos se organizam com referéncia a uma antecipagio — consciente ou inconsciente — das chances médias de lucto em fungo do capital acumulado. Assim, a tendéncia dos pesquisadores a se concentrar nos problemas considerados como os mais importantes se explica’ pelo fato de que uma contribuigéo ou descoberta concemente a essas questdes traz um lucro simbélico mais importante. A intensa competicio assim desencadeada tem todas as chan- ces de determinar uma baixa nas taxas médias de lucro material ¢/ou simb6lico e, conseqiientemente, uma migraco de pesquisadores em di- regio @ novos objetos menos prestigiades, mas em torno dos quais a competicfo é menos forte *. A distingfo que Merton estabelece (20 referirse as citnciss socials) entre conflitos “sociais” e conflitos “intelectuais” constitui uma estratégia, ‘Rawr, F. The competitive world of the pure scientist. Sclence, 15 dex 1961, 134 (3494), p. 1957-62. 4Como faz Kuhn, quando sugere que as “revoloptes cientificas” 96 sperecem apis © eagotamento dos paradigmas. SDeve-se compreender, a partir da mesma Iégica, as transfertaciss de capital de um campo determinado para um campo socialmente inferior, onde uma competicSo an promete lucro maior 0 detentor de um determinado capital EEE Etta IES Ea OnE unEEEEEEEu Onno anEnnTEnEEE ttEREEETEEESSSSSSSSC 126 | a0 mesmo tempo social e intelectual, que tende impor uma delimitacso ; do campo dos objetos legitimos de discussfo *, Com efeito, reconhece-te 2 Ressa distingio uma das estratégias pela qual a sociologia americana oficial tende a garantir sua respeitabilidade académica e a impor uma delimitagio do cientifico e do néo-cientifico que Ihe permita coibir toda pergunta que, considerada como cientificamente inconveniente, ponha em questéo os funda- mentos de sua respeitabilidade 7. Uma auténtica ciéncia da ciéncia 86 pode constituir-se com a con- digo de recusar radicalmente a oposicéo abstrata (que se encontra também na histéria da arte, por exemplo) entre uma anélise imanente ou interna, que caberia mais propriamente a epistemologia e que resti- tuiria a I6gica segundo a qual a ciéncia engendra seus préprios pro- blemas e, uma anflise externa, que relacionaria esses problemas as condigdes sociais de seu aparecimento. Bo campo cientffico, enquanto , _ lugar de luta politica pela dominacio cientifica, que designa a cada } Pesquisador, em fungio da posicéo que ele ocupa, seus problemas, : indissociavelmente politicos e cientfficos, ¢ seus métodos, estratégias cientificas que, pelo fato de se definirem expressa ou objetivamente pela Teferéncia ao sistema de posictes politicas e cientificas constitutivas do campo cientifico, sio ao mesmo tempo estratégias polfticas. Nao h& “escolha” cientifica — do campo da pesquisa, dos métodos em- Pregados, do lugar de publicacio; ou, ainda, escolha entre uma publi- cagio imediata de resultados parcialmente verificados e uma publi- cago tardia de resultados plenamente controlados* — que nfo seja *[Conflito social: distribuiglo de recursos intelectuais entre os diferentes tipor de trabalho sociol6gico. Conflito intelectual: opotigio de idéias sociolégicas rigorota- mente formuladas. (N. do T.)] Ver Mexron, R. K. The sociology of science. Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1973. p. 55. 7 Entre as inimeras expresses desse credo neutralista, esta 6 particularmente tipica: “Enquanto profissionais — universitirios cu técnicos — os socidlogos se consideram essencialmente capazes de separar, em nome do sentido de responsa- bilidade social, sua ideologia pessoal de seu papel profisional nas suas relagdes com ‘seus pares ¢ clientes. Esté claro que este 6 © resultado mais acabado da aplicagio do conceito de profimionalizago A sociologia, particularmente no perfodo do ativiemo universitirio que comera em 1965. A partir da organizagio da socio- logia como disciplina, muitos sociélogos tiveram ideologies pestoais muito intensas que os ievavam a tentar colocar seus conhecimentos a servico da transformacio social, quando, enquanto universithrios, eles deveriam afrontar o problema das normas que se impdem ao professor e a0 pesquisador”. (JANowrTz, M. The American Journal of Sociology, 78, (1), jul. 1972, p. 105-35.) rama 'W. D. The scientific community, Nova York, Basic Books, 1965. P. i { 1 i i } i i d 127 uma estratégia politica de investimento objetivamente orientada para a maximizacao do lucro propriamente cientifico, isto é, a obtengao do reconhecimento dos pares-concorrentes. A acumulagio do capital cientifico A luta pela autoridade cientifica, espécie particular de capital social que assegura um poder sobre os mecanismos constitutivos do canipo ¢ que pode ser reconvertido em outras espécies de capital, deve o essen- cial de suas caracteristicas ao fatd de que os produtores tendem, quanto maior for a autonomia do campo, a $6 ter como possiveis clientes seus proprios concorrentes. Isto significa que, num campo cientifico forte- temente auténomo, um produtor particular sé pode esperar o reconhe- cimento do valor de seus produtos (“reputacao”, “prestigio”, “autori- dade”, “‘competéncia” etc.) dos outros produtores que, sendo também seus concorrentes, so os menos inclinados a reconhecé-lo sem discuss30 ou exame. De fato, somente os cientistas engajados no mesmo jogo detém os meios de se apropriar simbolicamente da obra cientifica e de avaliar seus méritos. E também de direito: aquele que faz apelo a uma autoridade exterior a0 campo s6 pode atrair sobre si o descrédito *. Muito semelhante, sob este aspecto, a um campo artistico fortemente auténomo, o campo cientifico deve, entre outras coisas, ‘sua especifi- cidade a0 fato de que os concorrentes néo podem contentar-se em se distinguir de seus predecessores j6 reconhecidos. Eles sio obrigados, sob pena de se tornarem ultrapasados ¢ “desqualificados”, a integrar suas aquisigdes na construgio distinta ¢ distintiva que os supera. Na luta em que cada um dos agentes deve engajar-se para impor © valor de ‘seus produtos e de sua propria autoridade de produtor legi- * Fred Reif lembra que aqueles que, preocupados em ver seus trabalbos publicados © mais rapidamente possivel, recorrem imprensa cotidiana, atraem a. reprovagso de seus pares-concorrentes, em nome da distingfo entre publicarSo e publicidade. Importantes descobertas em fisica, por exemplo, foram, assim, anunciadas no New York Times. A mesma disting&o orienta as atitudes com relago = certes formas de vulgarizaglo, sempre suspeitas de nfo serem mais do que formas eufemisticas de autodivulgacio. Basta. citar os comentérios do editor do jornal oficial dos fisicos americanos: “Por cortesia para com os colegas, os autores t#m o hibito de impedir toda divulgagio ptiblica de seus artigos, antes de terem aperecido ma revista cientifica, As descobertas cientificas nio sio matérias de sensacio para on jornais ¢ todos os meios de comunicacio de massa devem ter simultaneamente acesso a informacio, De agora em diante, rejeitaremos todos os artigos cujo con- teido j6 tenha sido publicado na imprensa cotidiana” (Rerr, F. Op. cit.). 128 timo, esté sempre em jogo o poder de impor uma definigdo da ciéncia (isto €, a de limitagao do campo dos problemas, dos métodos e das teorias que podem ser considerados cientificos) que mais esteja de acordo com seus interesses especificos. A definigdo mais apropriada seré a que the permita ocupar legitimamente a posicéo dominante e a que asse- gure, aos talentos cientificos de que ele é detentor a titulo pessoal ou institucional, a mais alta posigéo na hierarquia dos valores cientificos (por exemplo, enquanto detentor de uma espécie determinada de capital cultural, como ex-aluno de uma instituicéo de ensino particular ou entao como membro de uma instituigo cientifica determinada etc.). Existe assim, a cada momento, uma hierarquia social dos campos cientificos — as disciplinas — que orienta fortemente as praticas e, particularmente, as “escolhas” de “vocagdo”. No interior de cada um deles ha uma hierarquia social dos objetos e dos métodos de tratamento 2°, As discussdes sobre a prioridade das descobertas opGem, em mais de um caso, aquele que descobriu o fenémeno desconhecido sob a forma de uma simples anomalia, de uma falha nas teorias existentes, e aquele que faz do fato desconhecido um fato cientifico novo, inserindo-o numa construgo cien- tifica irredutivel ao simples dado bruto. Essas discussdes politicas sobre o direito ¢ a propriedade cientifica, que sio a0 mesmo tempo debates sobre o sentido do que foi descoberto e debates epistemolégicos sobre a natureza da descoberta cientifica, opdem na realidade, mediante protagonistas particulares, dois princfpios de hierarquizacio das préticas cientificas: um que confere primazia & observacdo ¢ a experimentagio e, portanto, as inclinagdes e capa- cidades correspondentes, outro que privilegia a teoria e os “interesses” cien- tificos correlativos. Debate este que nunca cessou de ocupar o centro da - reflexdo epistemol6gica. Assim, a definico do que est em jogo na luta cientifica faz parte do jogo da luta cientifica: os dominantes sao aqueles que conseguem impor uma definicéo da ciéncia segundo a qual a realizagdo mais per- feita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles tém, sio e fazem. Diga-se de passagem que a communis doctorum opinio, como dizia a escoldstica, néo € mais que uma ficedo oficial que nada tem de ficticia, pois a eficdcia simbélica que sua legitimidade Ihe confere permite que ela Preencha uma funcdo semelhante ao papel que a nogao de opiniao pé- blica preenche para a ideologia liberal. A ciéncia oficial ndo 6 o que, freqiientemente, dela faz a sociologia da ciéncia: o sistema de normas 10 A respeito desse ponto, ver Bourpizu, P. Méthode scientifique et hierarchie sociale des objets. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 1, 1975, p. 4-6. 129 e valores que a “comunidade cientifica”, grupo indiferenciado, imporia € inculcaria a todos os seus membzos, a anomia revoluciondria s6 po- dendo, assim, ser imputada aos que fracassaram na socializagdo cienti- fica, Essa viséo “durkheimiana” do campo cientifico poderia nao ser mais que a transfiguracéo da representagio do universo cientifico que os detentores da ordem cientifica tém interesse em impor, sobretudo aos seus concorrentes. Nao acabariamos nunca de recensear os exemplos desse “funcionalismo”, mesmo num autor que, como Kuhn, d4 lugar ao conflito na sua teoria da evolugio cientifica: “uma comunidade de especialistas (das ciéncias) faré o possivel para assegurar a progressio da acumulacdo dos dados que ela pode utilizar com precisio e detalhadamente” 22, Visto que a “fungdo”, no sentido do “funcionalismo” da escola americana, nada mais 6 que 0 interesse dos dominantes (de um campo determinado, ou a classe dominante no campo da Iuta de classes) em perpetuar um sistema que esteja em conformidade com seus interesses (ou a fungdo queo sistema preenche para essa classe particular de agentes), basta silenciar sobre os inte- resses (as fungdes diferenciais), fazendo da comunidade cientifica 0 sujeito das praticas, para cair no funcionalismo. . Por que a definigéo do que ésté em jogo na luta faz parte da luta (mesmo nas ciéncias como a matemética, onde o consenso aparente sobre 0 que esté em jogo é muito’ alto), esbarramos, sem cessar, com as antinomias da legitimidade. O interesse apaixonado que os pesquisa- dores em ciéncias sociais tém pelas ciéncias da natureza nfo poderia ser compreendido de outro modo: € a definigéo dos prinefpios de avalidgéo de sua prépria prética que esté em jogo na pretensio de impor, em tome da epistemologia ou da sociologia da ciéncia, a definicdo legitima 11Como a filosofia social de inspiragio durkheimiana, que descreve o conflito ial na linguagem da marginalidade, do desvio ou da anomia, essa filosofia da ciéncia tende a reduzir as relagdes de competicéo entre dominantes e dominados as relagdes entre “centro” e “periferia”, reencontrando @ metéfora imanentista cara a Halbwachs da distincia aos “nticleos” dos valores centrais. (Ver, por exemplo, BEN-Davip, J. The scientist's role in society. Englewood: Cliffs (N. J.), Prentice Hall Inc., 1971 e Sums, E. Center and periphery. In: The logic of personal knowlegde, essays presented to Michael Polanyi on his seventieth birthday. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1961. p. 117-30.) 12KuuN, T. S. The structure of scientific revolutions. Chicago, The University of Chicago Press, 1962. p. 168. CL 130 da forma mais legftima de ciéncia — a ciéncia da natureza. Tanto no campo cientifico quanto no campo das relagdes de classe nfo existem instincias que legitimam as instincias de legitimidade; as reivindicagdes de legitimidade tiram sua legitimidade da forga relativa dos grupos cujos interesses elas exprimem: a medida que a propria definigio dos critérios de julgamento e dos princfpios de hierarquizacdo estio em jogo na luta, ninguém € bom juiz porque nao hf juiz que no seja, a0 mesmo tempo, juiz e parte interessada. Vemos, assim, a ingenuidade da técnica dos “juizes” a que recorre comu- mente a tradig&o cientifica para definir as hierarquias caracteristicas de um campo determinado: hierarquia dos agentes ou das instituigdes — as univer- sidades dos EUA; hierarquia dos problemas, dominios ou métodos; hierarquia dos préprios campos etc. B a mesma filosofia ingénua da objetividade que inspira o recurso a “eapecialistas internacionais”. Como se a posicio de observadores estrangeiros pudesse colocé-los a0 abrigo dos parti pris ¢ das tomadas de posicSo num momento em que a economia das trocas ideoldgicas : conhece tantas sociedades multinacionais. B, ainda, como se suas aniilises 7 “cientificas" do estado da ciéncia pudessem ser outra coisa que nfo a justifi- 3 cago, cientificamente mascarada, do estado particular da ciéncia ou das insti- i tuigdes cientificas com o qual compactuam. i ‘Veremos adiante que a sociologia da ciéncia raramente escapa dessa 4 estratégia de perfcia enquanto imposicSo de legitimidade que prepara uma 7 conquista de mercado. Por tris das probleméticas dos especialistas sobre 0 ; valor relativo dos regimes universitérios se esconde, inevitavelmente, = ques- | tho das condigdes dtimas para o desenvolvimento da ciéncia e, conseqiente- 7 mente, do melhor regime poiftico — os sociélogos americanos tendem a fazer : da “democracia liberal” de estilo americano a condigho da “democracia cien- } tifica” 18, A autoridade cientifica é, pois, uma espécie particular de capital que pode ser acumulado, transmitido e até mesmo, em certas condicSes, ‘ Teconvertido em outras espécies. Podemos retomar a descrico de Fred 1 Reif sobre 0 processo de acumulacSo de capital cientifico ¢ as formas de i ‘sua reconverséo. Isto no caso particular do campo da fisica contempo- ranea, onde a posse de capital cientifico tende a favorecer a aquisicfo * 18'Ver, por exemplo, Maxron, R. K. Sclence and technology in a democratic order. Journal of Legal and Political Sociology, v. 1, 1942. Reeditado em Mexton, R. K. Soclal theory end social structure (ed, rev.) Nova York, Free Press, 1967. p. ‘550-1, sob 0 titulo “Sclence and democratic social structure”. Ver também BARBER, ace ee Glencoe, The Free Press of Glencoe, 1952. p. ¢ 83, 131 de capital suplementar e onde a carreira cientifica “bem-sucedida” tor- na-se um processo continuo de acumulacéo no qual o capital inicial, representado pelo titulo escolar, tem um papel determinante: “Desde a high school, o futuro homem da ciéncia tem consciéncia do papel da competicio e do prestigio no seu futuro éxito. Deve esforgar-se em obter as melhores notas para ser admitido no college e, mais tarde, no graduate school. Percebe que a passagem por um college reputado de uma importincia decisiva para ele (...) Enfim, ele deve ganhar a estima de seus professores para garantir-se cartes de recomendagio que © ajudaréo a entrar no college ¢ a obter as bolsas € os prémios (...) Quando ele estiver procurando emprego, estaré em melhor posigio se vier de uma instituigko conhecida ¢. se tiver trabalbado com algum Pesquisador renomado. Em todo caso, para ele é essencial que, no mundo dos homens de primeira classe, se aceite fazer comentirios favo- r4veis sobre 0 seu trabalho (...) © acesso a niveis universitirios mais elevados esté submetido aos mesmos critérios. A universidade exige de novo cartas de recomendagio escritas por cientistas do Exterior € pode, algumas vezes, suscitar a formacio de um comité de exame, antes de tomar a decisio de promover alguém a um cargo de professor titular”. Esse processo continua com o acesso aos cargos administrativos, as comissSes governamentais etc. O pesquisador depende também de sua Teputagdo junto aos colegas para obter fundos para pesquisa, para atrair estudantes de qualidade, para conseguir subvengdes e bolsas, convites, consultas, distingSes (como' Prémio Nobel, National Academy of Scien- ce etc.). © reconhecimento, marcado e garantido socialmente por todo um conjunto de iis especificos de consagracio que os pares-concorrentes concedem a cada um de seus membros, é fungao do valor distintivo de seus produtos e da originalidade (no sentido da teoria da informagdo) que se reconhece coletivamente a contribui¢o que ele traz aos recursos cientificos j4 acumulados. O fato de que o capital de autoridade propor- cionado pela descoberta seja monopolizado pelo primeiro a fazé-la ou, pelo menos, por aquele que a torna conhecida ¢ reconhecida, explica a importancia e a freqiléncia das questées de prioridade. Se acontece que vérios nomes estejam ligados & primeira descoberta, o prestigio atribuido acada um deles diminui na proporgdo inversa. Aquele que chega a uma descoberta algumas semanas ou meses depois do outro despendeu seus esforgos em pura perda, seus trabalhos se reduzindo ao estatuto de du- Plicagdo sem interesse de um trabalho j4 conhecido. Isto explica a pre- cipitagdo que certos autores: demonstram em publicar seus trabalhos, 132 a fim de evitar que sejarn ultrapassados #*. O conceito de visibility que OS autores americanos empregam freqilentemente (trata-se, como sempre, de uma nogdo de uso corrente no meio universitrio) exprime bem o valor diferencial, distintivo, dessa espécie particular de capital social: acumular capital é fazer um “nome”, um nome préprio, um nome conhe- cido e reconhecido, marca que distingue imediatamente seu portador, arrancando-o como forma visivel do fundo indiferenciado, despercebido, obscuro, no qual se perde o homem comum. Vem daf, sem diivida, a importincia das metéforas perceptivas, de que a oposigéo entre brilhante € obscuro & o paradigma na maioria das taxionomias escolares?®. A Iégica da distincao: funciona plenamente no caso das assinaturas milti- plas, que reduzem, enquanto tal, o valor distintivo atribufdo a cada um dos signatérios. Podemos compreender, assim, 0 conjunto de obser- vages de Harriet A, Zuckerman 1° sobre os “modelos da ordem em que os autores de artigos cientfficos sio nomeados”, como o produto das estratégias que visam minimizar a perda de valor distintivo imposta pelas necessidades da fova divisdo de trabalho cientifico. Assim, para explicar 14 Assim se explicam as diferentes estratégias que os pesquisadores utilizam na difusio dos preprints © reprints, Seria ficil demonstrar que todas as diferencas observadas segundo a disciplina, a idade dos pesquisadores ou a instituicfo a qual eles pertencem podem ser compreendidas partir das diferentes fungdes que ‘exsas duss formas de comunicagio’ cientifica preenchem. A primeira consiste em divulgar os produtos rapidamente, escapando aos prazos das publicagdes cientificas (vantagem importante nos setores altamente competitivos), junto a um nimero Testrito de leitores que sfc, muitas vezes, também os concorrentes mais compe- tentes. A segunda consiste em divulgar mais amplamente, junto ao conjunto dos colegas ou da demanda, produtos marcados ¢ socialmente imputados a um nome proprio. (Ver Haosrnom, W. D. Factors related to the use of different modes of Publishing research in four scientific fields. In: Nutsow, C. B. ¢ Potuoce, D. K, orgs. Communication: among sclentists and engineers. Lexington (Mass.), Health Lemington Books, D. C, Heath and Co., 1970.) **Dal as dificuldades que encontramos nas pesquisas sobre intelectuais, cientistas ou artistas, tanto nas entrevistas quanto na publicagio dos resultados: propor o anonimato a pesoas que esto ccupadas em fazer um nome € suprimir a motivacso Principal da participagio numa entrevista; nfo Ihe propor € proibir-se de fazer Perguntas “indiscretas”, isto 6, objetivantes ¢ redutoras, A publicacfio dos resultados coloca problemas equivalentes, nem que seja pelo fato de que o anonimato tem, como efeito, tornar 0 discurso ininteligivel ou transparente segundo o grau de informagio dos leitores (e isto mais ainds nesses casos, visto que muita posicbes *% contam com um elemento: um nome proprio). 1¢Zuckanman, H, A. Patterns of name ordering among authors of scientific papers: 1 atudy of social symbolism and its ambiguity. American Journal of Soclology, 74 (3), nov, 1968, p. 276-91. que os laureados com o Prémio Nobel nao sejam nomeados em primeiro lugar com mais freqiiéncia do que os outros, como era de se esperar, tendo em vista que os autores sio normalmente citados na ordem do valor relativo de suas contribuigdes, nao € necess4rio invocar uma moral aristocrética tipo noblesse oblige; basta, com efeito, supor que a visibilidade de um nome numa série é funcao, em primeiro lugar, de sua visibilidade relativa, definida pelo grau que ele ocupa na série e, em segundo lugar, de sua visibilidade intrinseca, que resulta do fato de que, j6 conhecido, ele é mais facilmente reconhecido ¢ retido (um dos meca- nismos que fazem com que, também aqui, 0 capital leve ao capital). Por compreender que a tendéncia a deixar para’ os outros o primeiro lugar cresca & medida que cresce o capital -possuido ¢, portanto, o lucro sim- bélico automaticamente assegurado, independentemente do grau em que 0s autores sio nomeados '?. O mercado dos bens cientificos tem suas leis, que nada tém a ver com a moral. Arriscamo-nos a introduzir na ciéncia das ciéncias, sob diversos nomes “eruditos”, o que os agentes chamam as vezes de “valores” ou “tradig6es” da “comunidade cientifica”, se ndio soubermos reconhecer enquanto tais as estratégias que, nos uni- versos onde se tem interesse no desinteresse, tendem a dissimular as estratégias, Essas estratégias de segunda ordem, através das quais nos colocamos dentro ‘das regras, permitem somar as satisfagSes do interesse bem-compreendido os lucros mais ou menos universalmente prometidos as ag3es que nao tém outra determjnagdo aparente sendo a do respeito puro ¢ desinteressado da regra. Capital cientifico e propensio a investir A estrutura do campo cientffico se define, a cada momento, pelo estado das relagdes de forca entre os protagonistas em luta, agentes ou instituigdes, isto é, pela estrutura da distribuigdo do capital espectfico, resultado das lutas anteriores que se encontra objetivado nas instituigdes ¢ nas disposigdes ¢ que comanda as estratégias e as chances objetivas dos diferentes agentes ou instituigdes. Basta perceber, aqui como em qualquer outro lugar, a relacdo dialética que se estabelece entre as ¢s- 370 modelo aqui proposto explica perfeitamente — sem apelar para nenhuma determinante moral — 0 fato de que 0s laureados cedem o lugar de destaque mais freqllentemente depois da obtencio do prémio e de que sua contribuicko para ‘& pesquisa coroada de éxito ¢ mais visivelmente marcante que a contribuiglo que eles tiveram em outras pesquisas coletivas. 134 truturas e as estratégias ~ por meio das disposigbes — para fazer desa- Parecer a antinomia entre a sincronia e a diacronia, entre a estrutura ¢ a Histéria. A estrutura da distribuicio do capital cientifico est4 na base das transformagdes do campo cientifico e se manifesta por intermédio das estratégias de conservacio ou de subverséo da estrutura que ela mesma produz. Por um lado, a posiclio que cada agente singular ocupa num dado momento na estrutura do campo cientifico é a resultante, objetivada nas instituigSes e incorporada nas disposigdes, do conjunto de estratégias anteriores desse agente e de seus concorrentes (elas pré- Prias dependentes da estrutura do campo, pois résultam das propriedades estruturais da posicfo a partir da qual sfo engendradas). Por outro lado, as transformagdes da: estrutura do campo s&o o produto de estratégias de conservaciio ow de subversio que tém seu princfpio de orientagio ¢ eficdcia nas prapriedades da posicfo que ocupam aqueles que as pro- duzem no interior da estratura do campo. Isso significa que, num determinado estado do campo, os investi- mentos dos pesquisadores dependem tanto na sua importincia (medida, Por exemplo, em tempo dedicado & pesquisa) quanto na sua natureza (e, particularmente, no grau do risco assumido) da importfncia de seu capital atual e potencial de reconhecimento e de sua posicfo atual-e po- tencial no campo. Segundo uma légica muitas vezes observada, as aspi- ragSes — 0 que chamamos muitas vezes de “ambigdes cientfficas” — sdo tanto mais altas quanto o capital de reconhecimento € elevado: a Posse do capital que o sistema escolar confere, sob a forma de um titulo raro, desde o comeco da carreira cientffica, implica e supde — através de mediagSes complexas — a busca de objetivos elevados, socialmente detejados e garantidos Por esse titulo. Assim, tentar. medir a relaciio estatistica que’ se estabelece entre o Prestigio de um pesquisador e o Prestigio de seus titulos escolares de origem (Grande escola ou facul- dade francesa, universidade que conferiu o doutoramento nos EUA), uma vez controlados os efeitos de sua produtividede™*, 6 assumir impli- Citamente @ hipétese de que a producfo e 0 prestigio atual so indepen- dentes (entre eles) e independentes dos titulos de origem. De fato, & medida que © titulo, enquanto capital escolar reconvertivel em capital universitério ¢ cientifico, encerra uma trajet6ria provavel, ele comanda, Por.meio das “aspiracSes razofveis” que ele autoriza, toda a relago com # carreira clentifica — escolha dos assuntos mais ou menos “ambiciozos”, _—_ 18Ver, por ekediplo, Hancaxs, L. I. @ HageTaom, W. D. Sponsored and contest ene Suerte sendeme selentists. Sociology of Education, 40 (1), inverno Pe . 135 uma maior ou menor produtividade etc. De maneira que-o efeito do © Prestigio das instituigdes nao se exerce somente de maneira direta, “con- taminando” 0 julgamento das capacidades cientificas manifestedas na quantidade e na qualidade dos trabalhos, ou de maneira indireta, por meio de contatos com os mestres mais prestigiados que a elevada origem escolar garante (freqilentemente associada a uma elevada origem social), mas ainda pela mediagéo da “causalidade do provével”, isto é, pela virtude das aspiragSes que autorizam ¢ que favorecem as chances obje- tivas (poderfamos fazer observagdes andlogas a respeito dos efeitos da origem social para t{tulos escolares de origem sémelhantes). Assim, a oposiggo, por exemplo, entre os investimentos’ seguros da pesquisa in- tensiva e especializada e os investimentos arriscados da pesquisa exten- siva que pode conduzir a vastas sinteses tedricas (revoluciondriss ou até ecléticas) tende a produzir a oposicdo entre trajet6rias elevadas e tra- jet6rias inferiores no campo escolar e cientifico’*. Do mesmo modo, para compreender as transformagdes das préticas cientificas que acom- panham o avango na carreira é preciso relacionar as diferentes estra- tégias cient{ficas (por exemplo, os investimentos macicos € extensivos unicamente em pesquisas ou investimentos moderados e intensivos em Pesquisas associados a investimentos na administra¢do cientifica), no com os grupos de idade, posto que cada campo define suas proprias leis de envelhecimento social 2°, mas com a importancia do capital possufdo, que, definindo a cada momento as chances objetivas de lucro, define as estratégias “razofveis” de investimento ou desinvestimento. Nada € mais artificial que descrever as propriedades genéricas das diferentes fases da “carreira cientffica”*'. Ainda que se trate da “carreira média” mum 4° Ver Bounpreu, P., BOLTANSK!, L. ¢ Matproter, P. La défense du corps. Infor- mation sur les Sclences Sociales, 10 (4), p. 45-86. achievement. Princeton, Princeton University Press, 1953). Ver Rawr, F, ¢ Steves, A. The impact of rapid discovery upon the scientist's career. Social Problems, inverno, 1965, p. 297-311. A comparacSo sistemética carreira singular, suas propriedades mais importantes. SS 136 campo particular **. Com efeito, toda carreira se define fundamental- mente pela posicfio que ela ocupa na estrutura do sistema de carreiras Poss{veis 1*, Existem tantos tipos de trajetérias quantas maneiras de entrar, de se manter e de sair da Pesquisa. Toda descrigio que se limita as caracterfsticas gerais de uma carreira qualquer faz desaparecer o essen- cial, isto 6, as diferencas. © decréscimo da quantidade ¢ da qualidade do trabalho cientifico com aidade, que podemos observar no caso das car- i Teiras “médias” ¢ que aparentemente se compreende se admitimos que © crescimento dé capital de consagragéo tende a reduzir a urgéncia da alta produtividdde que foi necesséria para obte-lo, s6 se torna comple- tamente inteligfvel se comparaimos as carreiras médias com as carreiras i mais elevadas, que so a8 tnicas a conferir até o fim os lucros simbélicos necessérios & reativacio continua da Propensio a investir, retardando, assim, continuaménte o desinvestimento. A ordem (clentifica) eatabelecida A forma que reveste a luta inseparavelmente cientifica e politica pel: legitimidade depende da estrutura do campo, isto 6, da estrutura da distri- buicio do capital especifico de teconhecimento cientifico entre os pi cipantes na lute. Esta estrutura Pode teoricamente variar entre dois li- mites te6ricos, dé fato jamais alcancados: de um lado, a situacio de : monopélio de capital especifico de autoridade cientifica, de outro a 3 situagdo de concorréncia Perfeita supondo a distribuicfo eqilitativa desse capital entre todos os concorrentes, O campo cientifico é sempre o i lugar de uma (uta, mais ou menos desigual, entre agentes desigualmente i dotados de capital especifico ¢, Portanto, desigualmente capazes de se apropriarein do produto do trabalho cientifico que © conjunto dos con- correntes produz péla sua colaborapdo objetiva ao colocarem em acio © Conjunto dos méiés dé piodugfo cientifica disponfveis. Em todo campo se péem, com forcas ‘mais ou .menos desiguais segundo a estrutura da distribuigtio do capital ng ‘campo (grau de homogeneidade), os domi- nantes, ocupands as posigées mais altas na estrutura de distribuigfio de Ver Grasea, B. G, Variations in the importance of recognition in scientist's Gureer. Social Problems, 10° (3), inverno 1963, p. 268-76. pears svitar refarer, equi, toda a demonstracio, contentome em remeter a Bouanamy, P. Les catégories de Nentendement professoral. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 3, malo 1975, p. 68-93, 137 capital cient{fico, e os dominados, isto €, 0s novatos, que possuem um ca- pital cient{fico tanto mais importante quanto maior a importancia dos recursos cientfficos acumulados no campo. Tudo parece indicar que, 4 medida que crescem os recursos cien- tificos acumulados, e que, em conseqtiéncia da elevacdo correlativa do direito de entrada, eleva-se o grau de homogeneidade entre os concor- rentes, a concorréncia cientifica tende a distinguir-se em sua forma e intensidade daquela que se observava' em estados anteriores desses mes- mos campos ou em outros campos onde os recursos acumulados sdo menos importantes e 0 grau de: heterogeneidade mais elevado. Esque- cendo de levar em conta essas propriedades estruturais e morfolégicas dos diferentes campos (o que mais ou menos eles sempre fazem), os sociélogos da ciéncia se expdem a universalizar um caso particular. B assim que a oposicéo entre as estratégias de conservacao ¢ as estratégias de subversio — que seré analisada a seguir — tende a se enfraquecer na medida em que a homogeneidade do campo cresce e que decresce correlativamente a probabilidade das grandes revolucdes periédicas em proveito das inimeras pequenas revolugdes permanentes. Na luta que os opSem, os dominantes € os pretendentes — os no- vatos, como dizem os economistas — recorrem a estratégias antagdnicas profundamente opostas em sua Iégica ¢ no seu principio. Os interesses (no duplo sentido da palavra) que os motivam ¢ os meios que eles podem colocar em ag&o para satisfazé-los dependem estreitamente de sua posigéo no campo, isto é, de seu capital cientifico e do poder que ele Ihes confere sobre o campo da produgdo ¢ circulagao cientifices e sobre os lucros que ele produz. Os dominantes consagram-se as estra- tégias de conservagdo, visando assegurar a perpetuaco da ordem cientf- fica estabelecida com a qual compactuam. Essa ordem nio se reduz, conforme comumente se pensa, a ciéncia oficial, conjunto de recursos cientfficos herdados do passado que existem no estado objetivado sob forma de instrumentos, obras, instituigdes etc., ¢ no estado incorporado sob forma de hébitos cientfficos, sistemas de esquemas gerados de per- cepgiio, de apreciagdio e de acio, que sio o produto de uma forma espe- cifica de agdo pedagégica e que tornam possivel a escolha dos objetos, a solucéo dos problemas e a avaliago das solugdes. Essa ordem englobe também o conjunto das instituigdes encarregadas de assegurar a producio € a circulacdo dos bens cientfficos ao mesmo tempo que a reproducdo ¢ a circulagio dos produtores (ou reprodutores) e consumidores desses EEE AEEEEa Anna aEnEERnnnEE aanEE eR naee RaRRR Rae eee ceeeem eee ee es 138 bens, isto é, essencialmente o sistema de ensino, Gnico capaz de assegurar & ciéncia oficial a permanéncia e a consagracfo, inculcando sistematica- mente habitus cientificos a0 conjunto dos destinatérios legitimos da acfo Pedagégica, em particular a todos os novatos do campo da produgio Propriamente dito. Além das instancias especificamente encarregadas da consagrago (academias, prémios etc.), ele compreende ainda as revistas cientificas que, pela selecio que operam em func&o de critérios domi- nantes, consagram produgSes conformes aos princ{pios da ciéncia oficial, oferecendo, assim, continuamente, o exemplo do que merece o nome de ciéncias, e exercendo uma censura de fato sobre as produgdes heréticas, seja rejeitando-as expressamente ou desencorajando simplesmente a in- tengio de publicar pela definigfo do publicével que elas propdem 24, B o campo que designa a cada agente suas estratégias, ainda que se trate da que consiste em derrubar a ordem cientifica estabelecida. { “Segundo a posic¢fo que eles ocupam na estrutura do campo (e, sem : davida, também segundo as variéveis secundérias tais como a trajet6ria social, que comanda a avaliagio das oportunidades), os “‘novatos” po- dem orientar-se para as colocagdes seguras das estratégias de sucessio, Proprias para thes assegurar, ao término de uma carreira previsfvel, os lucros prometidos aos que realizam o ideal oficial da exceléncia cien- tifica pelo prego de inovag6es circunscritas aos limites autorizados; ou Para as estratégias de subversio, investimentos infinitamente mais cus- tosos e arriscados que s6 podem assegurar os lucros prometidos aos Hq detentores do monopélio da legitimidade cientifica em troca de uma H redefini¢io completa dos princfpios de legitimagio da dominaclo. Os j novatos que recusam as carreiras tracadas #6 poderfio “vencer os do- ; minantes em seu proprio jogo” se empenharem um suplemento de inves- | timentos propriamente cientfficos sem poder esperar lucros importantes, 3 a ed & curto prazo, posto que eles tem contra si toda a légica istema, { i t j i i g i e i‘ i [ : inconscientemente, os lugares de publicago em fungSo da idéia que eles ttm de & auto-tliminacio, evidentemente pienos perceptivel, 6 so menos to importante quanto a eliminasSo expresta (sem le uma norma do publichvel), F & & z 2 i 139 Por um lado, a invengdo segundo uma arte de inventar j4 inventada, que, resolvendo os problemas susceptiveis de serem colocades nos limites da problemética estabelecida pela aplicagio de métodos garantidos (ou trabalhando para salvaguardar os princfpios contra 8s contestacSes heré- ticas), tende a fazer esquecer que ela s6 resolve os problemas que pode colocar ou 86 coloca os problemas que pode resolver. Por outro lado, a inveng&o herética que, colocandd em questo 03 préprios princfpios da antiga ordem cientifica, instaura um alternativa nitida, sem compro- misso possivel, entre dois sistemas mutuamente exclusivos. Os funda- dores de uma ordem cientifica herética rompem © contrato de troca que os candidatos A sucesso aceitam a0 menos tacitamente: nZo reconhe- cendo sendo o principio da legitimagio que pretendem impor, eles nao aceitam entrar no ciclo das frocas de reconhecimento que assegura & transmissdo regularizada da autoridade cientifica entre os detentores € os pretendentes (quer dizer, muito freqlientemente, entre membros de geragdes diferentes, o que leva muitos observadores a reduzirem os con- flitos de legitimidade a conflitos de geragio). Recusando todas as cauges garantias que a antiga ordem oferece, recusando a participacio (pro- gressiva) ao capital coletivamente garantido que se realiza segundo pro- cedimentos regulados de um dos contratos de delegacio, eles realizam a acumulacio inicial através de um golpe de forca, por uma ruptura desviando em proveito proprig o crédito de que se beneficiavam os antigos dominantes, sem conceder-Ihes contrapartida do reconhecimento que Ihes oferecem aqueles que aceitam se inserir na continuidade de uma linhagem *°. Tudo leva a crer que a propensio as estratégias de conservacéa- ou as estratégias de subversio é tanto mais dependente das disposigdes em relacdo a ordem.estabelecida quanto maior for a dependéncia da ordem cientffica com relagdo & ordem social dentro da qual ela est4 inserida. Tem, portanto, fundamento supor que & relago que Lewis Feuer esta- belece entre as inclinagdes universitéria e politicamente subversivas do jovem Einstein e seu trabalho cientificamente revolucionério, vale, de certa maneira, a fortior! para as ciéncias como a biclogia ou = socio- logia que estiio longe de terem alcangado o grau de sutonontia da fisica dos tempos de Einstein. A opdsico que esse autor estabelece entre as 38 Veremos, adiante, a forma original que es transmissio regulada do capital ientifico reveste, now campos onde, como na fisica de hoje, a conservaglo © & subversio so quase indiscerniveis. 5 4 ; 140 disposigdes revolucionérias de Einstein, membro, em sua juventude, de um grupo de estudantes judeus revoltados contra a ordem cientifica estabelecida ¢ contra a ordem estabelecida, e as disposigdes reformistas que demonstra um Poincaré, perfeito representante da “repdblica dos professores”, homem da ordem e pela reforma ordenada, tanto na ordem politica quanto na cientifica, nfo pode deixar de evocar a oposi¢io homéloga entre Marx e Durkheim. “Em seu esforgo dé reflexfo original”, diz Lewis Feuer, “Einstein foi apolado por um estranho pequeno circulo de jovens intelectuais, cheios de sentimentos de revolta social e cientifica propria de sua geracdo © que formavam uma contracomunidade cientifica fora da instituicio oficial, um grupo de bo&mios cosmopolitas levados, nesses tempos revo- lucionérios, a considerar 0 mundo de uma maneira nova” *, Superando a oposi¢fo ingénua entre Aabitus individuals e condigdes sociais de sua realizacho, Lewis Feuer sugere a hipétese, corroborada pelos recentes trabalhos sobre o, sistema de ensino cientifico %", de que o ficil e répido acesso as responsabilidades administrativas que se ofereciam na Franca aos alunos das Grandes Escolas cientificas tendia a desencorajar a revolta contra & ordem (cientffica) estabelecida. Nos grupos de intelectuais marginais, 20 contrério, a revolta encontrava um terreno favorivel, posto que estes ‘se achavam em situaglo de precério equilfbrio entre o sistema de ensino e a botmia revolucionéria: “Podemos, na verdade, arriscar a hipdtese de que, precisamente porque 8 Franca era uma ‘repdblica de professores’ e porque os mais brilhan- tes alunos da escola politécnica eram rapidamente absorvidos para a alta fungio militar e a engenharia civil, nfo seria verossimil que uma Tuptura radical com os principios recebidos pudesse ter lugar. Uma revo- luglio cientffica encontra seu terreno mais fértil numa contracomunidade. Quando o jovem cientista encontra muito rapidamente responsabilidades administrativas, sua energia esté menos dispontvel para a sublimacfo no radicalismo de ‘uma pesquisa pura. Tratando-se da criatividade revolu- ciondria, a propria sbertura da administrayfo francesa 20s talentos cien- tificon constitui, talver, um fator explicativo do conservadorismo cienti- fico, mals importante que todos oe outros fatores habitualmente adian- * Frura, L, 8. The social roots of Einstein's theory of relativity. Anals of Sclence, ¥. 27, n. 3, set. 1971, p. 278-98 @ 0. 4, dex. 1971, p. 313-44, 3 Ver Sancr-Mantm, M, de, Les fonctions sociales de enselgnement aclentifique, Parit-La Haye, Mouton, col. Cahiers du Centre de Sociologie Europeenne, n. 8, 1971 © Bounonsu, P. ¢ Saner-Mantin, M. de. Le systdme dex grandes écoles et la reproduction de Ia classe dominante, 20 preto. 144 Da revolucao inaugural & revolugio permanente ~ Quais séo as condigdes sociais que devem ser preenchidas para que se instaure um jogo social jonde prevalecga & idéia verdadeira, porque os que dele participam tém interesse na verdade, em vez de ter, como em outros jogos, a verdade de seus interesses? E evidente que nao se trata de fazer desse universo social de excegdo uma excecio das leis fundamentais de todo campo, e, em particular, da lei do interesse que pode conferir uma violéncia impiedosa as lutas cientfficas mais “desin- teressadas” (0 “desinteresse” no sendo senfio, como vimos, um sistema de interesses especificos: tanto artfsticos ¢ religiosos quanto cient{ficos, que a relativa indiferenga para com 0s objetos ordinarios do interesse, dinheiro, honras etc., implica): O fato de que 0 campo cientifico com- porte sempre uma parte de arbitrério social na medida em que ele se serve dos interesses daqueles que, no campo e/ou fora dele, s30 capazes de receber os proveites, nao exclui que, sob certas condigdes, a propria Iégica do campo (em particular, a luta entre dominantes ¢ recém-che- gados ¢ a censura midtua que daf resulta) exerca um desvio sistemédtico dos fins que transforma continuamente 8 busca dos interesses cientificos privados (no duplo sentido da palavra) em algo de proveitoso para o Progresso da ciéncia **. , As teorias da ciéncia ¢ de suas transformagdes predispdem-se a preencher fungdes ideolégicas nas lutas dentro do campo cientffico (ou nos campos que pretendem a cientificidade, como © das ciéncias sociais) porque elas universalizam as propriedades ligadas a estados particulares desses campos: é o caso da teoria positivista: que confere a ciéncia o poder de resolver todas as questdes que ela coloca (desde que cientifi- camente colocadas) ¢ de impor, pela aplicago de critérios objetivos, © consenso sobre ‘suas solugdes; inscreve, assim, © progresso na rotina da “ciéncia normal” e age como s¢ pudesse passar de um sistema para outro — de Newton a Einstein, por exemplo — pela simples acumulacSo de conhecimentos, pelo refinamento das medidas e pela retificagio dos principios, © mesmo pode ser dito da teoria de Kuhn que, valida pare as revolugSes inaugurais da ciéncia debutante (de que a revolugio co- pernicana nos d4 o paradigma no verdadeiro sentido da palavra) retoma 588 tal mecaniemo que tende a aseegurar 0 controle das relagSes com © univers exterior, com os leigos. (Ver Bortansny, L, ¢ Maxomrer, P. Op. cit.) EE STNVvuSééCSST de “ascensiio”. Falsa ciéncia destinada a produzir e a manter a falsa consciénci a sociologia oficial (de quem a politicologia 6, hoje, o mais belo ori mento) deve ostentar objetividade e “neutralidade ética” (isto é, nev tralidade na luta entre as classes cuja existéncia, por outro lado, el nega) manter as aparéncias de uma Tuptura categérica com a class dominante ¢ suas demandas ideolégicas, multiplicando os sinai: riores de cientificidade: temos, assim, do lado do “empirico’ tagdo tecnolégica e, do lado da “teoria”, a retérica do “neo” (flores cente também no campo artfstico) que imita a acumulacio cientific aplicando a uma obra ou a um conjunto de obras do passado *! o pro cedimento tipicamente erudito da “releitura” — operagio paradigma. ticamente escolar de simples reprodugio (ou de reprodugZo simples) feita para produzir, nos. limites do campo e de suas crencas, as apa- réncias da “revoluclo”. 2 preciso analisar sistematicamente essa reté- rica de ctentificidade através da qual a “comunidade” dominante pro- duz a crenca no valor Cientffico de seus produtos e na autoridade cientifica de seus membros: seja por exemplo, o conjunto das estra- tégias destinadas a dar aparéncia de acumuloco, tais como a refe- réncia as fontes candnicas, geralmente reduzidas, como se diz, a “sua mais simples expresso” (pensemos, por exemplo, no destino péstumo do Suictdio), isto 6, protocoles ins{pidos imitando 0 frio rigor do dis- curso cientifico, e aos artigos recentes, na medida do Possfvel, sobre o mesmo assunto (€ conhecida a oposico entre as citncias “duras” — hard — ¢ as ciéncias “brandas” — soft); ou ainda as estratégias de fechamento, que entendem marcar uma separac&o categérica entre a Problemftica cientifica e os debates profanos e mundanos (sempre Presentes mas a titulo de “fantasmas na méquina”), isto muitas vezes Pelo prego de simples retradugdes lingiifsticas; ou as estratéglas de denegacio, que florescem nos politicélogos, hdbeis em realizar o ideal dominante da “objetividade” num discurso apolitico sobre a politica onde a politica recalcada 56 aparece sob aparéncias irreconhecfveis e, Portanto, irrepreensiveis, da denegagio politicolégica **, Mas essas es- ——_ . a Mo PARSONS, ene structure of social action. Nova York, Free Press, 1968. ‘er Bounparv, P. Les doxosophes, Minuit, 1, 1973, p. 2645 Particul 8 anklise do efeito Liteet), a Mead “ 153 tratégias preenchem, além disso, uma fungdo essencial~ a circulagio circular dos objetos, das idéias, dos métodos e, sobretudo, do reconhe- cimento no interior de uma comunidade produz **, como todo cfreulo de legitimidade, um universo de crencas que encontram seu equivalente tanto no campo religioso quanto no campo da literatura ou da alta cos- tura &, Mas € preciso ainda evitar, aqui, dar a falsa ciénela oficial a signi- ficag&o que Ihe confere a critica “radical”. Apesar de sua discordfncia sobre o valor que eles conferem so “paradigma”, principio de unifi- cacao necessério ao desenvolvimento de ciéncia num caso, forga de Tepressao arbitréria no outro — ou alternadamente um e outro, para Kuhn — conservadores ¢ “radicais”, adversérios e cémplices, concordam de fato no essencial: pelo ponto de vista necessariamente unilateral que eles tem do campo cientffico ao escolher, pelo menos inconsciente- Mente, um ou outro dos campos antagonistas, eles ndo podem perceber que © controle ou a censura n&o so exercidos por tal ou tal instncia mas pela relacdo objetiva entre adversdrios cimplices, que, pelo seu Préprio antagonismo, delimitam o campo da discussio legitima, excluin- do como sendo absurda, ou simplesmente impens4vel, qualquer tenta- tiva de tomada de posicSo nfo, prevista (neste caso particular, de co- locar, por exemplo, a servigo de uma outra axiomética cientffica as ferramentas elaboradas pela ciéncig oficial) °°. Expressio levemente eufémica dos interesses dos dominados do campo cientifico, a ideologia “radical” tende a tratar toda revolugdo contra a ordem cientffica estabelecida como revoluc&o cientifica. Assim ® A sociologia oficial da citncia oferece uma justificagio para cada um deses tragos. Assim, por exemplo, o evitar problemas tedricos fundamentais encoatra uma justificagio na idéia de que, nas ciéncias da naturezs, os pesquisadores nllo #e preocupam com a filosofia da cigacia (ver HacsTeom, W. D. Sponsored end » cit., p. 277-79). Pode-se ‘ver sem dificuldade o que « tal da sociologia da ciéncia deve a necessidade de legitimar um estado de fato e de transformar os limites a que esth submetida em exclusses eletivas. % Sobre a produso da crenca ¢ do fetichismo no campo da alte costore, ver Bounpmu, P. e Detaaur, Y. Le couturier et sa griffe. Contribution & use théorie de Ia magie, Actes de la Recherche en Sclences Sociales, 1 (1), jan. 1975, p. 1-36. 5S Tais pares epistemolégicos, que so so mesmo tempo pares sociolégicos, fan- cionam em qualquer campo (ver, por .exemplo, 0 Posliivismusstrett, que Opie Habermas ¢ Popper no caso da Alemanha — mecanismo de derivacko que, tendo sido testado na Europe, comeca a fazer estragos nor EUA com a importagfo da Escola de Frankfurt). 154 ela faz,como se bastasse que uma “‘inovacfo” fosse exclufda da ciéncia oficial para que ela pudesse ser considerada cientificamente revolucio- néria, A ideologia “radical” se omite, assim, de colocar a questdo das condigSes sociais através das quais uma revolucdo contra a ordem cieny tifica estabelecida 6 também uma revolucio cientifica e nfo uma simples heresia que visa derrubar a correlagfo de forcas estabelecida no campo sem transformar os principios sobre os quais repousa seu funciona- mento **. Quanto aos dominantes, inclinados a admitir que a ordem ci¢ntifica na qual estio colocados todos os seus investimentos (no sen- tido da economia e da psicandlise) @ de cujos lucros se apropriam é © dever-ser realizado, sto logicamente levados a aderir a filosofia espon- tinea da ciéncia que se expressa'na tradigio positivista, forma de oti- mismo liberal que deseja que a ciéncia progrida pela forca intrinseca da idéia verdadeira e que os mais “poderosos” sejam também os mais “competentes”. Basta pensar nos antigos estados do campo das ciéncias da natureza ou no estado atual das ciéncias sociais para perceber a funcio ideolégica de sociodictia dessa filosofia da ciéncia que, dando o ideal Por realizado, exclui a questio das condic6es sociais de realizacio desse ideal. Ao se colocar que a prépria sociologia da ciéncia funciona se- gundo as leis de funcionamento de todo campo cientffico, a sociologia da ciéncia n&o se condena de modo algum ao relativismo. Com efeito, uma sociologia cientifica da ciéncia (¢ a sociologia cientffica que ela contribui para tornar poss{vel) s6 pode constituir-se com a condicio de perceber claramente que as diferentes posigdes no campo cientifico associam-se representagSes da ciéncia, estratégias ideoldégicas disfar- gadas em tomadas de posigéo epistemoldgicas através das quais os ocupantes de uma posicfo determinada visam justificar sua prdépria Poticfo ¢ as estratégias que eles colocam em acfo para manté-la ou melhoré-la © para desacreditar, a0 mesmo tempo, os detentores da po- siglo opostae suas estratégias, Cada sociélogo & bom socidlogo de- 'B preciso analisar todos os usos estratégicos que os dominados de um campo Pode fais trunsfigurasto Weolégica de ava posigto objetiva: por exemplo, excluso uma garantia de clentificidade; ov, ainda, a contestaglo da “compe- téncla” dos dominantes, que esté no centro de todo movimento herético (ver a contestagfo do monopélio da sagragfo) © que deve tanto menos armarse de ‘argomentos cientificos quanto mais fraco for o capital cientifico acumulado etc. i 2 lt 8 i f E L i 1 ' | | i 1 1 | 155 seus concorrentes, a sociologia do conhecimento ou da ciéncia nada mais sendo do que a forma mais irrepreensfvel das estratégias de des- qualificagao do adversério enquanto ela tomar por objeto os adversérios ¢ suas estratégias e ndo o sistema completo de estratégias, isto é, 0 cam- po das posigées a partir do qual elas se engendram*". A sociologia da ciéncia 36 € tao diffcil porque 0 socidlogo est4 em jogo no jogo que ele pretende descrever (seja, primeiramente, & Cientificidade da sociologia e, em segundo lugar, a cientificidade da forma de sociologia que ele pratica); ele s6 poder’ objetivar o que est4 em jogo e as estratégias correspondentes se tomar por objeto néo somente as estrattgias de seus adversérics cientificos, mas 0 jogo enquanto tal, que comands também. suas préprias estratégias, ameacando governar subterranes- mente sua sociologia, ¢ sua sociologia da sociclogia. ST Sobre a neceesidade de construir, enquanto tal, o campo intelectual possivel uma sociologia dos intelectusis que seja algo além de ums troca de injérias ¢ de anétemas entre “intelectusis de direita” ¢ “intelectusis de ”, ver Bouroreu, P. Les fractions de In clesse dominante et les modes appropriation de Tocuvre d'art. Information sur lex Sciences Sociales, 13 (3), 1974, p. 7-32.

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