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OMC

o que isso tem a ver


com você ?

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 1


Realização:

Apoio:

IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor


Rua Dr. Costa Jr., 356, Água Branca, CEP 05002-000 – São Paulo - SP
Tel.: (11) 3874-2150 · Fax: (11) 3862-9844 · www.idec.org.br

2 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


OMC
o que isso tem a ver
com você ?

Redação e organização:
Francisco Figueiredo de Souza

Coordenação:
Lisa Gunn, Daniela Trettel

Projeto Gráfico:
Guilherme Werner

Ilustrações:
Chico Linares, Flávio Castellan

Agradecimentos:
Esníder Pizzo, Vívian Santana,
Adhemar Mineiro (Rebrip/Dieese),
Márcio Pontual (Inesc)

São Paulo, outubro de 2005

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 3


Sumário

PARTE 1
06 OMC: o que tem a ver?
08 Estrutura e funções
10 Um breve histórico
11 Os assuntos negociados

PARTE 2

13 Motivos para a crítica dos


consumidores
16 O consumo não é para todos
19 A retórica do desenvolvimento
21 Falta democracia, falta
controle social
25 O interesse do Brasil é o
interesse dos brasileiros?
27 As negociações de serviços e os
serviços públicos
30 O que fazer?
34 A atuação do Idec em relação
aos acordos comerciais

4 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Apresentação

Um dos objetivos do Instituto Brasileiro de Defesa do


consumidor, o Idec, é apoiar o desenvolvimento de uma
cidadania ativa nos temas em que atua, buscando uma
nova atitude dos consumidores, individual e coletivamen-
te, na defesa dos seus direitos. O exercício da cidadania
não se restringe à esfera do consumo. Por outro lado, não
se pode ignorar que muitas das relações sociais em que
nos envolvemos diariamente envolvem o nosso “lado
consumidor”.

Além da busca pela justa reparação dos danos e prejuí-


zos causados aos consumidores e da intervenção na
tomada de decisões sobre políticas públicas que aprimo-
rem esses direitos, a ação mobilizadora do Idec incorporou
outra atividade de grande alcance e repercussão: a educa-
ção e a conscientização em temas relacionados ao
consumo. Nessa linha, ficaram conhecidos trabalhos re-
centes do Idec sobre o Sistema Único de Saúde (SUS),
sobre serviços públicos e sobre Responsabilidade Social
Empresarial (RSE). Agora, o tema abordado é o comércio
internacional, mais especificamente o papel da Organiza-
ção Mundial do Comércio (OMC).

Esta cartilha procura explicar, em sua primeira parte, o


funcionamento da Organização em linhas gerais. A se-
gunda parte tem como objetivo expor a posição do Idec
em relação às negociações. Ao longo do texto são apre-
sentados alguns exemplos de problemas gerados pelos
acordos internacionais de comércio, que afetam a vida de
todos os cidadãos.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 5


Parte 01

OMC: o que tem a ver ?

Geralmente, as negociações internacionais Dado nosso modo de vida, boa parte de


parecem ser um assunto distante do cotidia- nossas atividades estão ligadas ao co-
no das pessoas, que interessaria apenas aos mércio, ou a assuntos considerados
governos ou, no máximo, às empresas impor- comerciais pelas regras da OMC. E cada
tadoras e exportadoras. Mas o preço de um vez um número maior dessas questões
medicamento, a qualidade de um produto depende de decisões internacionais.
alimentício, ou a garantia de acesso a um
serviço essencial também estão relacionados Por tudo isso, é importante que o
aos acordos comerciais. Sem mencionar ques- consumidor no mundo todo possa com-
tões como o modelo adotado na agricultura preender o que se passa na Organização,
brasileira, a regulação sobre a concorrência, sob o risco de acabar refém de decisões
e a possibilidade de que o Estado mantenha tomadas em uma esfera em que sua voz
e desenvolva políticas públicas. não tem sido adequadamente ouvida.

6 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


As dificuldades crescem porque as con- nem sempre os acordos são integralmen-
seqüências são indiretas, e nem sempre te cumpridos.
mensuráveis. Entre outros, podemos ci-
tar três fatores que explicam essa A OMC não é o único espaço em que
dificuldade. Em primeiro lugar, porque acordos internacionais na área internaci-
as negociações pouco interferem em onal têm sido discutidos. Paralelamente,
nosso cotidiano até que um documento para ficar apenas nos exemplos que en-
seja assinado. Afinal, os acordos têm fase volvem o Brasil, ocorrem as negociações
de negociação, fase de implantação e da Alca (Área de Livre Comércio das
fase de ajuste. Em segundo lugar, porque Américas), do acordo entre o Mercosul e
nem sempre a mudança de uma regra a União Européia (UE), do próprio
leva a uma mudança na economia. Um Mercosul, e de acordos bilaterais (aqueles
exemplo: o fato de um acordo garantir que envolvem apenas o Brasil e um outro
que o suco de laranja brasileiro possa ser país). Por sua abrangência, e por ser o
exportado para a Indonésia não quer di- espaço de negociações que mais têm
zer que uma empresa vá realizar essa “avançado” nos últimos tempos, a OMC
exportação. Em terceiro lugar, porque é o foco dos textos a seguir.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 7


Estrutura e funções

A Organização Mundial do Comércio os membros que descumprem acordos fir-


(OMC) é uma organização internacional e, mados. Por isso, a OMC já foi chamada de
portanto, tem apenas Estados nacionais “GATT com dentes”.
como membros (atualmente, são 148). Em-
presas e sociedade civil buscam ter alguma No que diz respeito às negociações, a Orga-
influência em suas ações, mas ela depende, nização manteve uma característica do
ao menos nas regras, da palavra final dos GATT: a estrutura de rodadas sucessivas de
países. A OMC veio ampliar as negociações negociação entre os países (ver quadro).
sobre comércio internacional que já ocorri- Cada rodada é composta de um “pacote”
am a partir do GATT (sigla em inglês para de negociação, definido pelos países, e de-
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), des- manda uma série de reuniões até que um
de o final da Segunda Guerra Mundial. O acordo seja alcançado. Entre outras razões,
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o o formato está baseado na idéia de que a
Banco Mundial também nasceram no pós- abertura comercial é irreversível e desejável.
Guerra, e formavam com o GATT (agora, A cada rodada novos itens são incorpora-
formam com a OMC) um sistema internaci- dos às conquistas da liberalização.
onal formulado para regular a economia do
mundo. De acordo com o estatuto que estabeleceu
a OMC, as conferências ministeriais são o
Além de servir como foro internacional para seu mais elevado espaço de tomada de de-
negociações comerciais, o que já existia cisões. Nesses encontros, realizados a cada
durante as rodadas do GATT, a OMC acres- dois anos em um local distinto, os ministros
centou outras funções ao sistema. Também de cada país responsáveis pelas negocia-
são tarefas da organização administrar os ções debatem e concluem os acordos mais
acordos assinados, supervisionar políticas importantes. Nos intervalos entre reuniões
de comércio, fornecer “assistência técnica” ministeriais, boa parte das negociações
e solucionar as controvérsias comerciais ocorre em Genebra, na sede da Organiza-
surgidas entre os países. Esta última função ção. Funcionam na cidade os encontros
lhe atribuiu uma força que outras organiza- regulares, os comitês específicos, e a estru-
ções internacionais não têm: ela pode punir tura de funcionários permanentes da OMC.

8 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


As rodadas do GATT...
Anos Nome como Assuntos tratados Países
ficou conhecida participantes
1947 Genebra Tarifas, basicamente 23
de bens industriais
1949 Annecy Idem 13
1951 Torquay Idem 38
1956 Genebra Idem 26
1960 - 1961 Dillon Idem 26
1964 - 1967 Kennedy Tarifas e medidas antidumping 62
Tóquio Tarifas, barreiras não tarifárias,
1973 - 1979 102
marco jurídico
1986 - 1994 Uruguai Agricultura, serviços, propriedade 123
intelectual, solução de controvér-
sias e criação da OMC, entre
outros assuntos
2001 - ? Doha Em aberto 148 (no momento)
Fonte: página da OMC na internet

...E reuniões Ministeriais desde a criação da OMC


Local Ano
Cingapura 1996
Genebra 1998
Seattle 1999
Doha 2001
Cancun 2003
Hong Kong 2005
Fonte: página da OMC na internet

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 9


Um breve histórico

A OMC entrou em funcionamento no dia Sociedade Civil e de grande parte dos cha-
1o de janeiro de 1995. Desde então, foram mados “países em desenvolvimento”
realizadas cinco conferências ministeriais. A contribuiu para que as negociações aca-
mais marcante talvez tenha sido a terceira, bassem novamente paralisadas. Havia, na
ocorrida em Seattle (EUA), no final de avaliação desses atores, um claro
1999. A insatisfação de cidadãos do mun- favorecimento às nações mais ricas do
do todo com o modelo de globalização mundo. Mas nem entre os mais poderosos
econômica representado e defendido pela houve acordo. A reunião também de-
OMC ficou clara nas ruas da cidade. Hou- monstrou que era crescente a articulação
ve massiva manifestação popular e uma de organizações e movimentos sociais de
forte repressão policial. O encontro – que todo o planeta em redes de ação e de
deveria lançar uma nova rodada de nego- monitoramento das negociações.
ciações – foi considerado um fracasso do
ponto de vista das expectativas dos nego- Os acordos foram retomados em um en-
ciadores. Nem entre os atores mais contro ministerial menos oficial realizado
poderosos houve consenso. Do ponto de em Genebra, em julho de 2004. E passam
vista dos que protestaram, consolidava-se agora por um momento crucial antes da
ali uma aliança mundial por uma outra próxima reunião de ministros, agendada
globalização. para ocorrer entre os dias 13 e 18 de de-
zembro, em Hong Kong.
Dois anos depois, a conferência ministerial
ocorreu em Doha, no Catar, onde os minis- Estudos e textos políticos de diversas orga-
tros tentaram isolar-se dos protestos. nizações têm mostrado que, após 10 anos
Finalmente, uma nova rodada foi lançada, de vigência, as promessas feitas no lança-
e recebeu o nome de “Rodada do Desen- mento da OMC não foram cumpridas. A
volvimento”, devido às preocupações Organização não colaborou para o desen-
centrais que, em tese, deveriam guiá-la. volvimento dos países mais pobres, para a
diminuição da desigualdade ou para a
No Encontro de Ministros que veio a seguir, melhoria das condições de vida das popu-
em Cancun (México-2003), a pressão da lações menos favorecidas.

10 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Os assuntos negociados

Dentro da OMC, vários assuntos são tratados. Parte das negociações na OMC gira em tor-
Acordos sobre temas específicos costumam ser no da redução de tarifas, que são os
chamados por uma sigla, derivada de seu impostos que os governos cobram dos pro-
nome em inglês. No momento, os que mere- dutos importados. Em tese, com tarifas
cem mais atenção dos negociadores estão menores, haveria mais liberdade para a
ligados à Agricultura (AoA), aos Serviços competição no mercado internacional.
(GATS) e aos chamados bens não-agrícolas Outro assunto importante para as negoci-
(NAMA). Discutem-se também maneiras de su- ações diz respeito às políticas adotadas
postamente favorecer as nações mais pobres pelos governos que interferem no comércio
por meio do comércio, entre outros assuntos. internacional. É o caso do apoio dado pe-
los países ricos aos seus agricultores, ou as
Na Rodada Uruguai, anterior a atual, outros leis que limitam a participação de empresas
temas também redundaram em acordos, com estrangeiras em certos negócios.
conseqüências diretas para o consumidor bra-
sileiro. Foram definidos compromissos em As negociações não são fáceis porque a
investimentos, produtos têxteis, propriedade competição de produtos importados pode
intelectual (acordo conhecido como TRIPS) e levar à falência certos setores em cada eco-
barreiras sanitárias, entre outros assuntos. nomia. Permitir sem o devido planejamento
a livre entrada de sapatos chineses no Bra-
Durante os anos de GATT, prévios ao estabe- sil, por exemplo, poderia diminuir o
lecimento da OMC, as negociações sobre as número de vendas e os empregos da indús-
tarifas de bens industriais eram preponderan- tria nacional de calçados. Quase sempre há
tes. Por muitos anos, os países ricos evitaram grupos que reagem à abertura, e nem sem-
discutir a abertura comercial do setor agríco- pre é fácil para os governos justificar esses
la, e seu poder era suficiente para barrar cortes, mesmo quando outros setores be-
qualquer discussão. Na OMC, no entanto, neficiam-se, ocupando novos espaços em
tem funcionado uma regra que pretende fa- outros mercados.
zer com que negociações em diferentes
setores, incluindo o de agricultura, caminhem Outra dificuldade está relacionada com o
ao mesmo tempo. Esse mecanismo facilita a número de países, muito maior agora do
barganha de interesses entre países. que nas negociações do antigo GATT.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 11


Parte 02

12 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Motivos para a crítica
dos consumidores

O principal intuito da OMC é promover a Ao contrário, o aumento do consumo de


liberalização crescente das economias dos um produto ou serviço pode ser bastante
Estados membros. De acordo com a teoria negativo em alguns casos. Por exemplo,
econômica liberal, a liberdade comercial quando gera maiores volumes de lixo e de
entre fronteiras tornaria o comércio mais poluição, ou quando aumenta o risco de
justo. Aumentaria a concorrência, a especi- doenças cardiovasculares, como vem ocor-
alização e a produtividade; haveria maior rendo em populações que consomem
justiça nos preços, e seria elevada a quali- quantidades exageradas de sal e gordura
dade dos produtos. Também haveria por meio de alimentos industrializados.
aumento do consumo, que, em teoria, tra-
ria consigo um aumento do “bem-estar” Além disso, vários fatores causam
da população. E, no final das contas, o li- distorções à suposta justiça do comércio
vre comércio traria crescimento econômico livre. Entre eles, a desigualdade social, que
e diminuição da pobreza. Quem coloca a cria enormes diferenças no acesso (proble-
questão nesses termos é a própria organi- ma retomado no item a seguir), e os
zação, como se pode verificar em sua desequilíbrios das relações entre fornece-
página oficial na internet. dores e consumidores, que costumam ser
maiores quanto maior é o poder econômi-
Seguindo essa linha de raciocínio, se leva- co do fornecedor. Se há uma lição que
ria a maior justiça nos preços, a OMC pode tiramos da experiência com o direito do
ser vista como benéfica aos consumidores. consumidor é a de que o mercado e a com-
Por que, então, o Idec posiciona-se critica- petição, por si sós, não produzem soluções
mente em relação a ela? Antes de tudo, nesse ambiente distorcido.
porque preço, qualidade e quantidade
consumida não devem ser as únicas preo- Estudo recentes de organizações de consu-
cupações do consumidor. midores indicam os mercados de café e
cacau como exemplos dessa situação: por
A noção de consumo responsável nos indi- conta do aumento da competição, o preço
ca que não há relação direta entre o pago aos agricultores declinou dramatica-
“bem-estar” e o aumento do consumo, mente nos últimos anos, o que gerou
como proposto pela teoria que rege a OMC. problemas em muitas regiões rurais. Mas

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 13


os consumidores mal puderam notar dife- tes entre países, entre indivíduos, e nas rela-
rença no preço dos produtos. A indústria ções de consumo.
processadora e o comércio de atacado –
concentrados por conta da nova situação As matrizes que deram origem à OMC não
comercial – absorveram todo o ganho. foram as necessidades nacionais e sociais e,
portanto, dos consumidores. A organização
Alguns argumentam que os problemas sur- relaciona o comércio quase que exclusiva-
gem porque uns países cedem muito, mente à dimensão do lucro. A pobreza, os
outros muito pouco. Ou seja, que a Direitos Humanos e a sustentabilidade
liberalização completa seria boa para todos, ambiental não parecem estar entre as ques-
e que é o desequilíbrio nas negociações en- tões que preocupam os negociadores. Na
tre os países que gera perdas. Essa visão medida em que as regras de comércio têm
ignora, em primeiro lugar, que qualquer sobreposto outros direitos e retirado o po-
medida de justiça internacional esbarra na der de ação de instituições nacionais e
desigualdade de poder típica da relação internacionais, como indicam os exemplos
entre Estados. Em segundo lugar, que a que acompanham o texto, isso se torna um
liberalização pode trazer mais problemas problema grave. Seria preciso rever desde aí
que soluções para os desequilíbrios existen- o sistema.

Uma lei lá na Índia,


um aumento aqui na farmácia
Milhões de portadores do HIV em países do terceiro mundo, principalmente na
África, dependem da indústria de medicamentos genéricos da Índia. No Brasil,
boa parte dos genéricos também está relacionada a importações feitas do país
asiático. Porém, isso pode ficar mais difícil, ou no mínimo mais caro, nos próximos
anos. Por conta de um compromisso assumido em 1995 na OMC, a Índia alterou
no final de março de 2005 sua lei de patentes. As patentes são um mecanismo
criado para beneficiar quem inventa algo novo, para sua remuneração, e para que
se impeçam cópias. Elas acrescentam um certo valor aos preços de produtos
relacionados a descobertas científicas, entre os quais estão os medicamentos.
Precocemente, o Brasil também passou por um processo de alteração em suas
normas de propriedade intelectual (nas quais se incluem as patentes) para adaptá-
las a compromissos assumidos na OMC. Mas o encarecimento das importações da
Índia pode ter conseqüências inesperadas no Brasil. O caso mostra como aquilo
que parece um assunto distante pode influenciar o cotidiano do consumidor.

14 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 15
O consumo não é para todos

Calcula-se que 1.3 bilhão de pessoas – ou de quantidade de produção, vive-se a


aproximadamente um em cada cinco seres conseqüência de uma péssima distribui-
humanos – viva com menos de um dólar ção da renda e do consumo. Em muitas
por dia1. No mundo, os 20% mais ricos regiões em que parte dos habitantes vive
concentram 86% do consumo; os 20% abaixo da linha da pobreza, não faltam
mais pobres ficam com apenas 1%2. Em recursos. Falta dividi-los de maneira me-
outras palavras, boa parte dos habitantes nos desigual.
do planeta não vive em condições adequa-
das para consumir da forma como proposto Outro ponto importante, dentro desse
nas linhas teóricas do livre comércio. A situ- quadro, é a questão trabalhista. A especi-
ação é ainda mais grave para as mulheres, alização, que é uma das conseqüências da
e para minorias que sofrem discriminação. abertura comercial, pode fazer com que
grandes contingentes da população fi-
Nesses casos, o que falta antes de tudo é quem sem trabalho. É preciso traçar
acesso a produtos e serviços básicos, tais cenários sobre os impactos sociais,
como alimentos, água e saúde. Nota-se, ambientais e trabalhistas dos acordos.
porém, um aumento na concentração de Mas na velocidade com que têm sido ne-
renda como conseqüência da liberalização gociados, nem sempre isso tem sido feito
comercial. Se eventualmente as mudanças adequadamente.
geraram vantagens, elas acabaram concen-
tradas nas mãos de um número restrito de
indivíduos. 1
Dados do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD).
Alguns argumentam que a liberalização
geraria aumento de produtividade. Com 2
“The inequality Predicament: Report on
mais alimentos sendo produzidos, acabaria the World Social Situation 2005. Nova
o problema da fome. O raciocínio esconde Iorque: Nações Unidas, 2005.
o fato de que, mais do que um problema

16 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Pode até ganhar. Mas leva?
Regras internacionais precisam ser avaliadas com uma dose de ceticismo. Ao
observar os acordos, não se pode perder de vista que os países são desiguais, e
exercem seus poderes desigualmente. Um dos componentes da OMC é o Órgão de
Solução de Controvérsias, responsável por avaliar as queixas apresentadas por países
quando outro país descumpre as regras acordadas. Esse é o “dente” do sistema,
conforme explicado em “Estrutura e Funções”.

Algumas queixas levam à instalação de um painel, no qual um grupo de especialistas


“julga” o caso. Em última instância, se uma das partes discordar da decisão do painel,
a palavra final cabe a um órgão de apelação. Um caso famoso que levou a abertura
de painéis envolveu empresas fabricantes de aviões do Brasil e do Canadá.

Mais recentemente, o Brasil demonstrou sucesso ao apresentar casos relacionados


a produtos agrícolas (algodão e açúcar, entre outros) em que indicava o
descumprimento de regras por parte de dos EUA e da União Européia. As
reclamações brasileiras foram julgadas procedentes até pelo órgão de apelação, e
países poderosos foram condenados.

Mas qual o efeito das medidas? Alguns países têm mais poder inclusive na hora em
que decidem ignorar as regras. Quem pode forçá-los a cumprir o acordo? Até o
momento, isso não foi possível. Por esse motivo, as “vitórias” têm servido mais como
instrumento de negociação do que como “dentes” reais, que pudessem “morder” os
que descumpriram as regras.

Além disso, os processos do “tribunal” da OMC são caros e só puderam ser


enfrentados pelo Brasil porque o governo contou com amplo apoio, financeiro e
jurídico, da iniciativa privada – diretamente interessada nos possíveis ganhos
resultantes. E como ficam os países menores e mais pobres? Ou mesmo países como
o Brasil, em um caso em que o governo não possa contar com nenhum interessado
em “pagar a conta” para defender os interesses da população?

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 17


18 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?
A retórica do desenvolvimento

O ciclo de negociações atual é denomina- água. Cada vez mais se percebe que esse
do “rodada do desenvolvimento”. Há tipo de crescimento tem limites, e que
algum tempo, os países são classificados desrespeitá-los ameaça a própria espécie
em três categorias: “desenvolvidos” (EUA, humana.
União Européia e Japão podem ser conside-
rados os principais), “em desenvolvimento” Quanto à classificação de “país em de-
(Brasil, Índia e Colômbia, entre outros) e senvolvimento”, ela transmite a idéia de
“menos desenvolvidos” (Angola, Birmânia que algum dia chegarão onde estão os
e Haiti, para citar três). Muitas das posi- “desenvolvidos”. É antiga a concepção
ções são similares entre aqueles que de que todas as nações passam pelos
pertencem aos mesmos blocos. Mas, afi- mesmos estágios – estaríamos, portanto,
nal, o que “desenvolvimento” quer dizer? um passo atrás na linha do tempo. Mas
isso não parece ser verificável na prática.
No contexto da OMC, é de desenvolvi- O padrão de consumo dos países “de-
mento econômico que se está falando. senvolvidos” requer tantos recursos
Ou de “progresso técnico”, por vezes naturais que não seria possível estendê-
confundido com desenvolvimento. De lo a todos sem comprometer o planeta.
acordo com a teoria econômica que ba- E há de se perguntar se todos os povos
seia a concepção da OMC, isso significa querem esse mesmo padrão de desenvol-
geração de riquezas, de preferência em vimento dos chamados países ricos.
ritmo constante. Ou seja, maior produ-
ção e maior consumo. Mesmo no sentido estritamente econô-
mico, o discurso do desenvolvimento
Já falamos, em outro item, sobre as con- não parece passar de retórica. A declara-
tradições entre consumir mais e viver ção de Doha reconhece, por exemplo, a
melhor do ponto de vista dos consumido- importância da segurança alimentar e da
res. Há, ainda, a questão dos recursos assistência à saúde. Mas questões como
naturais que se tornam escassos com o essa são negligenciadas dentro do atual
aumento da produção, como é o caso da jogo de forças.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 19


Por que importar pneus usados?
Pneus usados são um resíduo problemático para o meio ambiente.
E descartar os pneus brasileiros de maneira apropriada já é difícil.
No entanto, a União Européia contesta na OMC o controle que o
Brasil quer impor à importação desse material. Dependendo da
decisão final, o governo pode ser obrigado a aceitar a entrada dos
pneus usados europeus, mesmo contra sua vontade.

Ironicamente, a UE também aplica, em seu território, uma rigorosa


legislação que procura proibir a disposição inadequada do resíduo.
Essa restrição é um dos motivos que levam os europeus a quererem
tanto exportar pneus usados. O problema é complexo, mas também
ilustra como os acordos comerciais têm criado dificuldades para a
implementação de políticas públicas em diversas áreas, nem
sempre ligadas diretamente aos assuntos em negociação. Por
exemplo, nesse caso, no campo da preservação ambiental.

20 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Falta democracia, falta controle social

Os processos de globalização estão levan- mo ano: as chamadas “FIPS” (Cinco Partes


do a resolução de um número cada vez Interessadas, na sigla em inglês). Fazem
maior de questões para longe dos poderes parte os EUA, a União Européia, a Índia, a
locais, e até mesmo de vias nacionais de Austrália, e o Brasil. Mesmo contendo pa-
decisão. Essas questões acabam em instân- íses chamados “em desenvolvimento”, o
cias internacionais, como a OMC, em que formato é considerado inadequado por
poucos cidadãos, e até mesmo poucos re- vários outros países e por organizações da
presentantes de governos, podem sociedade civil de todo o mundo. Nas
participar. reuniões formais da OMC, por mais
dificuldades que se tenha, certos docu-
É fato que a OMC não “manda” nos paí- mentos costumam circular. Em encontros
ses. Os compromissos são negociados, e o informais, a possibilidade de manter con-
poder da Organização depende da adesão trole sobre as negociações é ainda menor.
dos membros. Isso não significa, porém,
que ela seja democrática, que as decisões Os protestos nas ruas de Seattle e de
sejam negociadas entre todos, muito me- Cancun contribuíram para que uma outra
nos que elas sejam transparentes. Desde o forma de abordagem pouco democrática
início do GATT, os países mais influentes fosse adotada: a chamada “reunião mini-
reuniam-se na chamada Green Room (Sala ministerial”. Também nesse caso, apenas
Verde, em uma tradução literal) para “ace- alguns países são convidados para partici-
lerar” as negociações. O que era decidido par, e os consensos alcançados são
por esse grupo dificilmente podia ser con- levados aos demais. A diferença é que es-
testado pelos demais. Por muitos anos, um ses encontros reúnem autoridades mais
grupo ainda mais restrito, conhecido importantes, e na maioria dos casos ocor-
como Quad (por reunir os quatro mem- rem longe de Genebra. Sob a justificativa
bros mais ricos: EUA, Canadá, Japão e de acelerar o processo, dificultam o acom-
União Européia) também exerceu panhamento e os protestos de ONGs e
inquestionável influência nos rumos dos movimentos sociais, que não podem des-
acordos. locar-se com a mesma facilidade dos
representantes dos governos. A mesma crí-
O Quad continua forte, mas um outro tica fazem os países de menor influência,
“clube” restrito ganhou destaque no últi- que nem chegam a ser convidados.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 21


Um exemplo de falta de transparência vem podem ser tomadas por maioria de votos.
de Cancun: havia declarada oposição de Ao invés de tornar as negociações mais
boa parte dos países ao documento sobre democráticas, a “regra do consenso” ajuda
agricultura apresentado pelo relator, consi- a dissolver a necessidade de ouvir os
derado demasiadamente favorável às anseios de cada membro. Não se pode ig-
nações mais ricas. As queixas, no entanto, norar que, enquanto alguns poucos países
não foram ouvidas, e foi submetida à apro- contam com um amplo suporte de especi-
vação uma declaração final que ignorava alistas, capazes de negociar ao mesmo
os pedidos de revisão feitos por parte da tempo em várias frentes e a trabalhar dados
sociedade civil e pelos países mais pobres. técnicos, muitas nações não conseguem
Independentemente do resultado final, a sequer manter um diplomata permanente
situação deixa claro que as diferenças de junto à Organização.
poder são decisivas nos momentos mais
delicados da negociação. A própria diplomacia brasileira – uma das
mais envolvidas nas negociações – questi-
Diferentemente do que ocorre na Assem- onou a transparência da Organização,
bléia Geral da Organização das Nações após recente disputa pelo cargo de Diretor-
Unidas (ONU), as decisões na OMC não Geral. O candidato brasileiro foi derrotado

22 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


dentro de um sistema de “consultas”, Isso não quer dizer que acordos comerciais
cujos resultados não vieram a público. A fora da OMC (como a Área de Livre Comér-
nota emitida pelo Itamaraty ressaltou que cio das Américas, a Alca, e o Acordo União
a OMC não tem uma imagem de “institui- Européia – Mercosul) possam ser considera-
ção transparente”, e que o processo dos soluções vantajosas, do ponto de vista
causou dúvidas ao governo. da sociedade civil. Pelo contrário. Como não
são negociados em uma organização for-
Mesmo se, no papel, os países têm a pala- mal, fica ainda mais difícil monitorá-los.
vra final, há amplo e conhecido espaço de Também não faz sentido, para os países ri-
pressões por parte de grandes grupos em- cos, tratar nesses outros espaços mudanças
presariais. Tanto aqueles com interesses consideradas “sistêmicas” (alterações que, se
protecionistas quanto os favoráveis à adotadas por um país, atingiriam de forma
liberalização procuram influenciar as deci- equivalente a todos os outros), que poderiam
sões. Mas parlamentares, representantes dar mais “justiça” ao comércio internacional.
de ministérios, governos estaduais e muni- Da forma como estão propostos esses acor-
cipais participam pouco. Em geral, ignoram dos costumam criar uma desigualdade ainda
a importância e o potencial impacto do maior entre os países do mundo, e restringir
que é discutido. Para piorar, os acordos fir- as possibilidades de que os países pobres
mados na OMC são virtualmente negociem em conjunto para contrapor-se às
irreversíveis. É muito difícil voltar atrás. pressões dos mais ricos.

Um precedente perigoso para os transgênicos


Os EUA contestam, a partir do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, as
restrições européias a alimentos que contenham transgênicos. Uma decisão final
é aguardada antes do final de 2005. A questão envolve o meio ambiente e o
interesse dos consumidores mas deve ser avaliada quase que exclusivamente à
luz de normas estritamente comerciais. Caso os EUA saiam vitoriosos da disputa,
os governantes europeus terão que retirar suas restrições à entrada de certos
transgênicos, por mais que tenham apoio popular para mantê-las. O caso
também pode servir de exemplo para futuras contestações a outros países que
desejem proteger-se das inseguranças envolvidas no consumo desses alimentos.

Admitindo parte das críticas sobre a falta de transparência em um caso tão


polêmico e importante, o Órgão de Solução de Controvérsias decidiu instalar,
pela primeira vez, um mecanismo de “consultas”. Seu alcance, no entanto, é
irrisório: organizações e grupos empresariais presentes em Genebra podem ir
até a sede da Organização e assistir por uma TV, em uma sala isolada, algumas
das reuniões entre os envolvidos. Parece suficiente?

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 23


24 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?
O interesse do Brasil é o
interesse dos brasileiros?

É fato que as políticas dos países ricos que é preciso, novamente, considerar as brutais
permitem aos seus agricultores exportar a diferenças de poder político e econômico
um preço menor do que os custos de pro- existentes entre os países.
dução (os chamados subsídios às
exportações) causam distorções no comér- Há algum tempo o Brasil tem ocupado
cio mundial. Muitas organizações da uma posição de destaque na OMC, princi-
sociedade civil apóiam o esforço do gover- palmente devido aos interesses do setor
no brasileiro, à frente de muitos outros, agropecuário. As exportações brasileiras de
para diminuir essa desigualdade. No en- soja, carne bovina, suco de laranja e outros
tanto, a negociação vem exigindo produtos que demandam intensivamente
concessões por parte do Brasil, que preci- recursos naturais são bastante competitivas
sam ser avaliadas. internacionalmente, e têm ajudado a ga-
rantir saldos positivos na balança comercial
Em linhas gerais, o Brasil tem posições do país nos últimos anos. Por isso, é co-
ofensivas – interesse de abrir mercados – mum ouvirmos que uma maior abertura
em temas agrícolas, e posições defensivas dos mercados mundiais às exportações
– interesse de defender o mercado interno brasileiras seria positiva.
– em temas que envolvem serviços e indús-
tria. Há exceções a essa classificação, que Esse modelo econômico, no entanto, tem
costuma valer para uma série de países suas conseqüências. E os impactos sociais
“em desenvolvimento”. e ambientais das mudanças propostas no
regime comercial não têm sido considera-
O que se vê na OMC, portanto, é uma bar- dos adequadamente. Estudo recentes1
ganha: o país oferece abertura em setores indicam que a ampliação da área plantada
que interessam a outros, e procura conse- de soja e a demanda por pastagens para a
guir desses outros facilidades às suas pecuária pressionam o desmatamento da
exportações. Mas o jogo não é tão simples: Amazônia brasileira. A tendência é haver,

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 25


com a conclusão da Rodada Doha,
1
As pesquisas realizadas por iniciativa
do Grupo de Trabalho sobre Florestas do
um estímulo ainda maior para o culti-
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimen-
vo da soja e a criação de gado no
tos Sociais para o Meio Ambiente e
Brasil. E, como conseqüência, aumen- Desenvolvimento (FBOMS) podem ser
to no desmatamento. encontradas na página do Instituto
Sócioambiental: http://www.isa.org.br.
Em troca dessa questionável abertura,
principalmente dos Estados Unidos e 2
Informações sobre o estudo da Orga-
da União Européia, aos produtos de nização para Cooperação e Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE) a respeito do
exportação brasileiros, o país terá que
tema podem ser obtidas na reportagem
oferecer algo em troca. A pergunta
“OCDE alerta para riscos sociais e
que se coloca, então, é a seguinte: o ambientais no Brasil”, de Assis Moreira,
que o Brasil defende é o que interessa, do jornal Valor Econômico, publicada
de fato, aos brasileiros? em 1º de junho de 2005.

A quem interessa fugir


da rotulagem de transgênicos?
Em evidente retrocesso em relação às medidas internacionais de proteção
ambiental e saúde humana, o Brasil e a Nova Zelândia foram os únicos países
do mundo que, ao final da Segunda Reunião das Partes do Protocolo de
Cartagena sobre Biossegurança, opuseram-se à adoção de regras claras para a
identificação de organismos vivos geneticamente modificados. O Brasil alegou
que a medida poderia prejudicar o comércio e a economia do país.

Cabe perguntar: qual comércio? É este o comércio que queremos? Ao impedir


a identificação dos produtos, o Brasil atende aos interesses das empresas de
biotecnologia. Não por acaso, Brasil e Nova Zelândia fazem parte do “Grupo
de Cairns”, coalizão de países agro-exportadores formada dentro da OMC para
promover a abertura desse mercado.

As negociações do Protocolo de Cartagena não estão diretamente submetidas


à OMC. Contudo, se não observamos a posição atualmente defendida pelo
governo nas negociações comerciais, não entendemos as decisões que vêm
tomando na esfera ambiental.

26 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


As negociações de
serviços e os serviços
públicos

Nas discussões da OMC, há mais do que discutidos no âmbito do Acordo Geral so-
acesso a mercados. Há direitos em jogo. bre o Comércio de Serviços (GATS). O
Principalmente, direitos a serviços básicos, texto do GATS indica que ele pretende
como saúde, educação, água e saneamen- atingir níveis progressivamente mais altos
to básico, que estão envolvidos com de liberalização do comércio nessa área
mercadorias passíveis de negociação. Nes- por meio de rodadas sucessivas de nego-
ses casos, deixam de ser um direito, e ciações. Por mais que, em tese, o acordo
passam a ter o acesso regulado pela renda ressalve a necessidade da preservação da
– ou seja, pela capacidade de compra de autoridade pública, o conceito nem sem-
cada um. Além disso, muitos dos serviços pre é claro e pode ser exercido.
que as negociações envolvem também são
estratégicos para o desenvolvimento social O GATS está orientado para facilitar a
e econômico, como as telecomunicações. atuação do livre mercado nos serviços, e
não para identificar como, em contextos
A autoridade dos governos deriva dos cida- variados, a ação pública e privada pode-
dãos, e não do mercado ou dos negócios. ria ser coordenada para realizar direitos
A comunidade internacional deveria ter o e promover o bem-estar. Sua prioridade
poder de decidir em que medida o comér- é universalizar as regras liberalizantes,
cio e o investimento em serviços deveriam uniformizando-as em todos os países,
subordinar-se a uma plataforma de direi- para dar previsibilidade e garantias aos
tos, que expresse uma base democrática investidores. Mas as regras universais ig-
para regulação e disponibilização de servi- noram que há diferenças culturais, de
ços essenciais. desenvolvimento e de prioridades, deter-
minadas pelo processo político em
Dentro das negociações da OMC, a maio- diferentes nações, e mesmo entre regiões
ria dos temas relacionados aos serviços são do mesmo país.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 27


Há exemplos que indicam isso. Quando promoveram saídas em que a competição
fala sobre transparência, o acordo refere-se era introduzida mesmo em setores com
à informação necessária a potenciais inte- características naturais de monopólio.
ressados no mercado interno de um país.
Transparência, no GATS, não significa que Em um país grande e desigual como o Bra-
as empresas tenham que fornecer informa- sil, o custo do acesso varia muito, assim
ções para o público. As regras sobre como as possibilidades de pagar pelos ser-
monopólios e abusos, por sua vez, não são viços. O fornecedor público, que não se
escritas levando em conta possíveis abusos pauta exclusivamente pelo lucro, pode em
em relação aos consumidores. Preocupam- geral lidar melhor com a necessidade de
se apenas com a possibilidade de que um procurar diminuir, ao invés de ampliar, es-
país venha a “abusar” das empresas estran- sas desigualdades. Em diferentes setores, o
geiras, limitando sua participação em acesso universal pode não ser economica-
algum negócio. mente viável quando considerado apenas
em termos de geração de lucros.
Uma preocupação central com a aplicação
de acordos comerciais aos serviços é seu Experiências internacionais demonstram que
impacto na capacidade dos governos de a implementação da lógica da lucratividade
viabilizar os serviços públicos. Os governos no abastecimento de água, em detrimento
precisam de espaço de manobra para deter- da dignidade humana, tem elevado as tari-
minar políticas públicas e terem capacidade fas, gerando mais miséria e disseminação de
de estimular o desenvolvimento. Quando doenças. Se a água é cortada por falta de pa-
governos locais e nacionais tornam-se gamento, ou se é oferecida a um preço
amarrados por obrigações sob acordos in- muito alto, os consumidores acabam recor-
ternacionais, retiram possibilidade de que rendo a fontes clandestinas, muitas das quais
as pessoas que consomem os serviços te- contaminadas.
nham um papel nas definições sobre ele.
Esse fator, além de democrático, é importan- O Brasil nas negociações
te para o sucesso das iniciativas.
Como a OMC é um espaço de negociação,
Privatização e liberalização nem sempre re- para o governo conseguir compromissos
solvem os problemas encontrados nos dos países mais ricos – notadamente dos
serviços oferecidos pelo setor público, e EUA e da União Européia – nas áreas que
freqüentemente criam novas dificuldades. lhe interessam, precisa oferecer algo em
As deficiências com que a autoridade go- troca. Há muito tempo, esses países têm no
vernamental é exercida não devem retirar setor de serviços o principal motor de suas
sua legitimidade. Os formuladores das po- economias. E grandes interesses em expan-
líticas enfocaram mais as falhas dos dir seus negócios nessas áreas por países
governos que as falhas dos mercados, e como o Brasil.

28 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


De acordo com as regras de negociação Outro temor está relacionado à
do GATS, cada país escolhe o que quer irreversibilidade dos acordos: caso o país
oferecer e pede aos outros o que quer assuma compromissos e, no futuro, decida
que ofereçam. Por enquanto, os negoci- rever a regulação em algum desses setores,
adores brasileiros garantem que serviços poderá enfrentar sérios problemas.
essenciais não farão parte da barganha.
Apenas setores em que a abertura já exis- E essa revisão parece necessária em muitos
te, na prática, desde as privatizações, casos. Pode-se dizer que a pretensa abertu-
como, por exemplo, nos serviços relacio- ra realizada em vários serviços públicos
nados aos bancos. (telefonia, energia elétrica, bancos) ocorreu
no Brasil sem o cuidado necessário para
Há o temor, porém, de que compromissos garantir a concorrência, a qualidade, a am-
indiretos possam levar a amarras em seto- pliação do acesso e o controle social. Várias
res essenciais. É o caso da saúde: dentro vezes, os agentes reguladores acabaram re-
dos serviços financeiros, há um item vol- féns das empresas que deveriam regular.
tado aos seguros; e, dentro deste item, o Não é por outro motivo que alguns desses
Brasil oferece seguro-saúde. setores figuram como campeões de recla-
mação dos consumidores.

O governo engessado
A chamada “Medida Provisória do bem”, publicada pelo governo brasileiro
em 16 de junho de 2005, teve que ser revista e foi motivo de polêmica entre
especialistas em direito comercial porque algumas das estratégias adotadas
poderiam ser ilegais em relação a compromissos assumidos na OMC. A MP,
adotada pelo governo Lula no início da divulgação de suspeitas de
irregularidade, foi proposta pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria
e Comércio. Entre outras ações, procurava desonerar de tributos as compras
de bens de capital (máquinas e equipamentos utilizados para a produção
de outros bens) feitas por setores voltados à exportação. Seu objetivo:
estimular as exportações, e o crescimento econômico do país.

Sem discutirmos o mérito da proposta, o caso demonstra que são reais as


limitações que os acordos podem causar à capacidade do governo de
implementar políticas públicas. Por exemplo, na área industrial.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 29


O que fazer?

Diante de todo o exposto, podemos dizer e por outros motivos que dificilmente po-
que a maioria dos consumidores mal pode dem ser individualizados. O debate sobre
saber o que ocorre em negociações que a OMC reflete, no fundo, discussões so-
afetam, concretamente, suas vidas. Por um bre qual modelo de desenvolvimento
lado, isso reflete a falta de transparência do queremos.
processo, e o fato de que, desde os seus
princípios, a OMC não está voltada a ouvir Outros atores sociais podem privilegiar
essa voz. Por outro lado, há a enorme difi- abordagens diferentes em relação ao
culdade em acompanhar um debate que tema. Jornalistas e comunicadores, por
em geral é apresentado de uma maneira exemplo, devem levar em conta que não
técnica, distante de nosso cotidiano. Man- são apenas os empresários e os governos
ter-se a par do que se passa depende de um que precisam ser ouvidos em matérias re-
conhecimento prévio, e esperamos que lacionadas ao comércio internacional.
este material sirva como referência para o Consumidores, trabalhadores, organiza-
acompanhamento das informações. ções e movimentos sociais também tem o
que dizer.
Estar informado é importante, mas é só
uma parte da resposta. Além disso, o que Como cidadãos, podemos nos organizar
fazer? Não há uma estratégia única. O es- e planejar o envio de cartas, postais ou e-
forço envolve mobilizar, protestar e, ao mails aos negociadores. Podemos
mesmo tempo, tentar influenciar os nego- também programar e participar de protes-
ciadores por mudanças, lutar por tos, contatar os meios de comunicação de
transparência e pela possibilidade de parti- nossas cidades e procurar envolver mais
cipação. Dada a amplitude do tema, o Idec pessoas no debate.
procura atuar em redes, junto a outras or-
ganizações da sociedade civil. Essa parece Voltando ao nosso “lado” consumidor, há
uma estratégia recomendável para as orga- alguns direitos que devemos ter em men-
nizações, especialmente em um tema tão te quando lidamos com questões
amplo e complexo. Os acordos nos afetam relacionadas a acordos comerciais. A se-
também como trabalhadores, por exemplo, guir, apontamos alguns deles:

30 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Direitos dos consumidores relacionados aos
acordos comerciais:

1. À satisfação das necessidades básicas 3. À escolha


Acordos comerciais não devem dificultar o acesso O acesso à variedade de produtos e
das populações a bens e serviços essenciais à so- serviços de qualidade a preços compe-
brevivência, tais como alimentação, água, energia, titivos é a essência do comércio, e a
vestuário, saúde, educação e saneamento. Isso cos- razão de ser da OMC. Mas na perspec-
tuma ocorrer quando esses itens são considerados tiva do consumo responsável, o direito
apenas do ponto de vista mercadológico. à escolha deve ser entendido de ma-
neira ampla: como liberdade por optar
2. À proteção da vida e da saúde e à segurança por produtos e serviços que sabemos
Medidas para a proibição e a restrição de produ- não serem tão nocivos ao meio ambi-
tos perigosos e para o estabelecimento de padrões ente e às condições de trabalho, por
obrigatórios de informação e de segurança em exemplo. Ou o direito a optar por não
produtos, serviços e processos produtivos não de- consumir, o que envolve uma reflexão
vem ser deturpadas ou enfraquecidas por acordos sobre as necessidades, as desigualda-
comerciais. des e os limites do ato de consumo.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 31


4. À informação

Do direito à informação depende o direito à escolha. Por


isso, ele deve incluir a provisão de informações sobre os
métodos e processos de produção. Ele também está relaci-
onado à proteção em relação à publicidade e à rotulagem
enganosa ou imprecisa, e depende de outro direito, o da
educação para o consumo. A lógica dos acordos e algumas
regras internas a eles podem solapar o direito à informação,
em troca de maiores facilidades para a venda de mercado-
rias e serviços.

5. À representação

Envolve o direito a ser ouvido e a participar da definição


das políticas que afetam os consumidores. A OMC, bem
como outros acordos internacionais de livre comércio, ain-
da está distante de permitir a adequada participação, e
mesmo algum controle social sobre os processos decisórios.

6. A um ambiente saudável

Envolve a importância, no âmbito do consumo, da segu-


rança ambiental para gerações presentes e futuras. Acordos
de livre comércio definem opções por determinados mode-
los de desenvolvimento, diretamente relacionados à
questão da sustentabilidade de nossos modos de vida. É
preciso desenvolver compromissos cruzados entre normas
comerciais e acordos ambientais internacionais. Dentro das
regras da OMC, as cláusulas ambientais fazem parte das
“exceções”, que estão longe de serem suficientes.

32 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


Mais hormônio na
carne dos europeus
Medidas sanitárias estão diretamente relacionadas aos acordos
comerciais, e também à proteção da saúde dos consumidores.
Quando barreiras são estabelecidas somente por justificativas
comerciais, fogem de seu objetivo inicial: controlar os riscos à
saúde e ao ambiente. Quando precisam ser modificadas por conta
de pressões comerciais, é a saúde que se submete à lógica econômica,
deixando de lado o direito à proteção.

Durante anos, os EUA acusaram a União Européia (UE) de barrar


sem base científica a importação de carne bovina tratada com
hormônios, o que seria, na visão de Washington, uma justificativa
para proteger produtores locais. A UE, por sua vez, argumentava
que a medida visava a proteger os europeus do risco de câncer que
estaria associado ao consumo desse tipo de alimento. O caso foi
analisado por um painel do Órgão de Solução de Controvérsias da
OMC que, dentro dos critérios comerciais que lhe competem,
julgou ilegais as restrições européias. Com isso, os EUA foram
autorizados a aplicar restrições a produtos europeus para causar
prejuízos iguais aos que os pecuaristas dos Estados Unidos
estariam sofrendo.

A medida foi aplicada, e levou a UE a recuar em suas medidas. Se


as restrições eram uma precaução aos riscos que o consumo de
carne com hormônios pode causar, no final do caso o regime
comercial se sobrepôs à regulação sanitária (e à defesa da saúde
dos consumidores).

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 33


A atuação do Idec em relação
aos acordos comerciais

O Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do seminários de formação voltados à discus-


Consumidor – é uma associação de con- são do tema, procurando representar o
sumidores fundada em 1987. A missão consumidor.
do Idec é promover a educação, a
conscientização, a defesa dos direitos do O foco de atividade do Idec nessa área
consumidor e a ética nas relações de con- são os acordos que envolvem serviços pú-
sumo, com total independência política e blicos, saúde pública e acesso a
econômica. medicamentos. A atuação ganhou força a
partir de 2003, ano em que enviou repre-
O objetivo do trabalho do Idec dentro do sentantes para as reuniões ministeriais da
tema dos acordos internacionais de comér- OMC, em Cancun, e da Alca, em Miami.
cio é tornar possível a participação da
sociedade civil em geral – e dos consumi- O Idec integra a Rede Brasileira de
dores em particular – nos processos de Integração dos Povos (Rebrip), que reúne
decisão, que afetam tantas esferas da vida ONGs, sindicatos e movimentos sociais
do cidadão. O Idec procura monitorar as em torno de temas relacionados ao co-
negociações e os impactos dos acordos da mércio e aos acordos internacionais.
OMC e atuar, junto com organizações par- Atualmente, o Instituto participa dos gru-
ceiras, para mudar o quadro atual. Nesse pos de trabalho sobre Serviços e sobre
sentido, faz pesquisas, escreve e participa Propriedade Intelectual da Rede. No âm-
de posicionamentos públicos enviados aos bito internacional, a Rebrip faz parte da
órgãos oficiais, e produz materiais infor- Campanha “Nosso mundo não está à
mativos. Participa também de reuniões e venda” (Owinfs, na sigla em inglês).

34 OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ?


A coordenadora institucional do Idec,
Marilena Lazzarini, preside a Consumers
International, uma federação que congrega
mais de 250 associações de consumidores
em mais de 115 países. A federação também
conta com a participação do Idec em suas
atividades relacionadas aos acordos comer-
ciais. O Instituto ainda faz parte do Fórum
Nacional das Entidades Civis de Defesa do
Consumidor, criado para fortalecer o movi-
mento dos consumidores em todo o País. www.consumersinternational.org

O Idec não possui fins lucrativos. Não tem


qualquer vínculo com empresas, governos
ou partidos políticos. Os recursos financeiros
para o desenvolvimento de suas atividades
têm sua origem principal nas anuidades pa-
gas pelos seus associados. As agências
internacionais de financiamento que pres-
tam ajuda a entidades da sociedade civil são
outra fonte importante de recursos. A conta- www.rebrip.org.br
bilidade do Idec passa por auditoria
independente.

OMC : O QUE ISSO TEM A VER COM VOCÊ ? 35

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