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MUSICA BRASILEIRA: PATRIMONIO CULTURAL. A DEFENDER Por mais lastimével que seja, 0 povo bra- sileiro nao tem muita idéia de que seu pais oh! freqiientemente engrandecido no estrangeiro por alguns compatriotas de cuja existéncia ele mal se dé conta. Eo que ocorre, por exemplo, com as realizagéesda cultura nacionalnocam- podaarte musical néo-popular que, impropria e inadequadamente, ora é chamada de “mdsi- ca cléssica”, ora de “miisica erudita”. Além de Villa Lobos, cujo nome ja al- cangou universalidade de consagragdo e res- peito como um dos grandes compositores do século XX, sao bastante conhecidos e esti- mados os de Francisco Mignone, José Siquei- ra, Cliudio Santoro, Guerra Peixe, Camargo Guarnieri, Marlos Nobre, Radamés Gnattali, Almeida Prado —para citar apenasalguns dos muitos cuja obra j4 atrayessou fronteiras e, para vergonha nossa, seja até ouvida com mais freqiiéncia lé fora do que aqui, : Costuma-se imputar ao baixo nivel cul- tural brasileiro esse suposto desapreco pelo que seja mais “refinado”, “erudito” ou “inte- lectualizado” em matéria de misica. No en- tanto, a realidade bem demonstra que tal distanciamento € antes fruto de caréncia de divulgagao e oferta do que de assumida pos- ‘ura, Com rarissimas excecdes, as autoridades Ptiblicas —federais, estaduais e municipais — parecem considerarcomo de ultimissima prio- nidade todas as manifestacoes de criatividade “ithtica musical que ndo se dirijam expres- samente as massas, Todas, asvezes, porém, que élguma delas marche contra a co i ; ¢ nte € faci- lite a0 povo Ocontato direto a ae Histéria da Misica no Brasil ea VASCO MARIZ Histoéria da Musica no Brasil 4° edicao revista e ampliada Prémio José Verissimo da ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (1983) BAI COG PRO: : Copyright © 1981, 1994 by Vasco MARIZ. aoe ELIPE TABORDA Composicao: ART LINE [UNIVERSIDADE FEDERAL A ae i NTO PATRIMONIA\ TOMEAUED iS oar ” N# Pola Qelchdaen Osta bukit tt CIP-Brasil. Catalogacao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Mariz, Vasco, 1921- M296c Historia da masica no Brasil / Vasco Mariz, — 4ed. —_ Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1994, 1, Misica — Brasil — Historia e critica, 2. Mie sicos — Brasil. I. Titulo. CDD - 780.981 94-0420 CDU - 78 (81) (09) 1994 Tes 0s direitos reservados, Nenhuma parte lio Poderd ser reproduzida, seja de que mode f i | EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA ee av Rio Branco, 99 20° andar ; | 20080-004 — Rio de Janeiro’ RY %l: (021) 263-2082 — telex (21) 3708. Fas! (021) 263-6112 Tnpresso no Brasil Printed in Brazil Sumario Obras Publicadas pelo Autor . Dados Biograficos........... Prefacio de Luiz Heitor Corréa de Azevedo Nota do Autor (1? Edicao) Nota do Autor (£% Edicao) Introducio Misién ni0/Tempo da Coledin Masica na Corte de D. Joao VI e D. Pedro José Mauricio . A Misica no Tempo do Impéri Renee Maruel Carlos Gomes ‘Tees Comipositores’ de Pernice Bucopein bengoiad Miguéz, Glauco Velasquez e Henrique Oswald................ 7. Precursores do Nacionalismo Musical: Brasilio Itiberé da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno, Ernesto Na- zaré, Francisco Braga, Barroso Neto, Luciano Gallet e Luiz Levy Primeira Geragao Nacionalista: Heitor Villa-Lobos Segunda Geracao Nacionalista: Lorenzo Fernandez, Frutuo- so Viana, Brasilio Itiberé, Jaime Ovale, Hekel Tavares, Ernani Braga, Furio Franceschini, Souza Lima, Osvaldo Cabral, Ar- mando Albuquerque, Walter Burle-Marx e Osvaldo de Souza Be Padre De om 23 27 31 37 53. 67 ae 101 Hs 187 199° : Hnagia BOL ats) any pee i edo Nacionalista: José Siqueira, Luis Cos- “me, Radamés Gnattali, Waldemar Henrique, Vieira Brandéo e Alencar Pinto .. Be 12. Camargo Guarnieri - sete 1B Entreato Dodecafonico: O Grupo Misica Viva ¢ H. J. a Koellreatter eee 14. Primeira Geragio Pés-Nacionalista: Guerra-Peixe, Osval- do Lacerda, Mario Tavares, Alceu Bocchino, Ernest Mahle, Brenno Blauth e Nilson Lombardi ........... 303 15. Primeira Geragao Independente: Claudio Santoro . 333 16. Outros Valores: Eunice Katunda, Edino Krieger, Ernst Wid- mer, Walter Smetak, Bruno Kiefer, Esther Scliar, Emilio Ter- raza e José Penalva Bare B47 17, Segunda Geracao Independente: Marlos Nobre ¢ José An- tonio de Almeida Prado . 867 18. Outros Valores: Jorge Antunes, Lindembergue Cardoso, Ser- gio de Vasconcellos Corréa, Aylton Escobar, Mario Ficarelli, Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira, Ricardo Tacu- chian, Luis Carlos Vinholes, Raul do Valle, Maria Helena Rosas-Femandes, Henrique de Curitiba, Nelson de Macedo, Jocy de Oliveira, Femando Cerqueira, Jamary Oliveira e Gui- lherme Bauer .. 19. Jovens Promessas: Ronaldo Miran la, Ernani Aguiar, Nes- tor de Hollanda Cavalcanti, Agnaldo Ribeiro, David Koren- chendler, José Carlos de Amaral Vieira, Roberto Victério, Joao Guilherme Rippe, Femando Aviani e outros . . 20. indice Onomastico #1. Academia Brasileira de Ma AAS, Obras Publicadas pelo Autor Figuras da Misica Brasileira Contemporanea, Porto, Portugal, 1948, Imprensa Portuguesa. A Cancaéo de Camara no Brasil, Porto, Portugal, 1948, Livraria Pro- gredior. Dicionario Biobibliogratico Musical, Rio de Janeiro, 1949, Livraria Kos- mos. Heitor Villa-Lobos, Compositor Brasileiro, Rio de Janeiro, 1949, edi- cao do Ministério das RelagGes Exteriores. Vida Musical (1* série), Porto, Portugal, Livraria Lello Editora, 1950. Musica Brasileira Contemporanea (em espanhol), Rosario, Argentina, Editorial Apis, 1952. Em colaboracao com outros musicélogos. Alberto Ginastera (em espanhol), Rosario, Argentina, edigao do Cen- tro de Estudos Brasileiros, 1954. A Cancao Brasileira (2° edicao ampliada de A Cangao de Camara no Brasil), Rio de Janeiro, 1959, edig&o do Ministério da Educagao e Cultura, Hector Villa-Lobos (em inglés), Gainesville, edicéio da Universidade da Florida, 1968. Hector Villa-Lobos (em francés), Paris, Franga, Editions Seghers, 1965, Hector Villa-Lobos, Brazilian Composer (em inglés), Washington, edi- cao do Brazilian-American Institure, 1970. igo do Ministério Vidu Musical (2! série), Rio de Janeiro, 1970, edi¢ao do Min Cultura, : a . Se beaieie Contemporanea (2° edicdo), Brasilia, nn edigdo da Universidade de Brasilia, Publicagio muito am- pees if 5* edicdo), Rio de Janei- Villa-Lobos, Compositor Brasileiro (5: a es 197, edigao do Museu Villa-Lobos/MEC/DAC. Publicacdo uito ampliada. std : he A ca Brasileira (3! edigio), Rio de Janeiro, 1977, Editora Civili- zacao Brasileira. ae Villa-Lobos (7? edicao), Leningrado, URSS (em russo), Editora Musyka 197, : A Cangao Brasileira (4* edicao), Rio de Janeiro, 1980, Editora Cate- dra. A Historia da Musica no Brasil (1° edicao), Rio de Janeiro, 1981, Edi- tora Civilizacdo Brasileira. Heitor Villa-Lobos, Compositor Brasileiro (6° edicao), Zahar Edito- res, Rio de Janeiro, 1982. Trés Musicdlogos (Mario de Andrade, Renato Almeida e Luiz Heitor), Editora Civilizagao Brasileira, RJ, 1983. Historia da Misica no Brasil (2° edic&o), Editora Civilizacdo Brasi- leira, RJ, 1983 (Prémio José Verissimo da Academia Brasileira de Letras, 1983). Dicionario Biogréfico Musical (2° edicfo), Editora Philo-Biblion, RJ, 1985. A Cancao Brasileira (5% edicao), Editora Nova Fronteira, RJ, 1985. Historia de la Musica en el Brasil (3° edicdo), em espanhol, Centro : de Estudios Brasileios, Lima, Peru, 1985. Hettor Villa-Lobos, Compositor Brasileiro (8* edicao), Museu Villa- a Lobos, RJ, 1986. lector Villa-Lobos: el Nacionalismo Musical Brasileno (em es; : x is if isilei espanhol), S Editorial Siglo XXI, México — Bogota, 1987, (9% edicdo), ‘ator Villa-Lobos (em italiano), Editora Azzali, Parma, Itélia, 1989 0? eticao), a Heitor Villa- * edi itori ke Lobos (11* edicéo), Editoria Itatidia, Belo Horizonte, Dicionadrio Biogratico Musical (3° Bee an edicdo), Editora Vila Rica, Belo NO PRELO Vida Musical (3* série), Editora Vila Rica, Belo Horizonte. Claudio Santoro - Editora Civilizacdo Brasileira/IBAC, RJ. EDICOES ORGANIZADAS POR VASCO MARIZ Musica Brasilena Contemporanea (em espanhol), Editorial Apis, Ro- sério de Santa Fé, Argentina, 1952. Quem é Quem nas Artes e nas Letras do Brasil - edicio da Divisio. Cultural do Ministério das Relagdes Exteriores, RJ, 1966, Ribeiro Couto (em espanhol), Centro de Estudios Brasiletios, Lima, Peru, 1985. Antologia de poemas em portugués e espanhol, com longa introdugao de Vasco Mariz. Ribeiro Couto, uma Saudade. Editora da Universidade de Santa Ceci- lia dos Bandeirantes, Santos. Coordenador Vasco Mariz. Estu- dos e artigos de especialistas e personalidades diversas sobre o homem e a obra, Santos, 1994. Camargo Guarnieri: a Vida e a Obra - IBAC/Editora da Universidade de Sao Paulo, SP, 1994. Obra coordenada por Vasco Mariz com a colaboracdo de diversos especialistas. Francisco Mignone. A ser editado pelo IBAC (Instituto Brasileiro de Acao Cultural, do Ministério da Cultura) proximamente, Obra coordenada por Vasco Mariz com a colaboragao de diversos es- pecialistas. Dados Biograficos 1921 — (22 de janeiro) — Nasceu no Rio de Janeiro. 1943 — Bacharel em Direito pela Universidade do Brasil. 1945 — Nomeado para a carreira diplomatica apés concurso de provas no DASP. 1947 — Curso de aperfeicoamento em histéria diplomatica. Asses- sor na Conferéncia Interamericana para Manutencao da Paz e Seguranca do Continente, Petrépolis. 1948 — Vice-Cénsul no Porto, Portugal. 1949/51 — Secretério da Legacao do Brasil em Belgrado, Iugoslavia. Seis vezes Encarregado de Negécios ai. 1950 — Membro correspondente do Instituto de Coimbra. 1951/54 — Consul do Brasil em Rosario, Argentina. 1953 — Tournée de conferéncias em universidades norte-americanas. Membro do jtri do Festival Internacional de Masica Contem- poranea, Pittsburgh, EUA. Membro correspondente do Ins- tituto Interamericano de Musicologia, Montevidéu. 1954 — Secretario da VII Conferéncia Internacional de Folclore, Sao Paulo, Secretario-Geral da Comissao Nacional de Musica da UNESCO. 1955 — Chefe da Secdo de Publicagées do Itamarati. Secretario da Comissao de ae se do Brasil. Chefe do Servigo de Informacoes do Ttamaraui. poles, Itélia. See oH a eet Brasil em Washington, EUA, sey ee da Delegagao do Brasil as XV, XVI ¢ XVII a ‘Assembléias Gerais das Nacoes Unidas, Nova York. ae 4963 — Chefe da Divisdo de Politica Comercial do Itamarati. Seeretério-Geral da Delegacdio do Brasil a II Conferéncia Pre- paratoria da UNCTAD, Genebra. Delegado-suplente do Bra- sil A sesséo no Conselho do GATT, Genebra. Chefe da Divi- sio de Organismos Internacionais. Secretério Executivo da Comissao Nacional da FAO. Delegado-Suplente a XII Con- feréncia Geral da FAO, Roma. 1964 — Sccretério-Geral-Adjunto, substituto, para Organismos Inter- nacionais. Delegado-suplente a 87’ Sessao da Comissdo de Produtos de Base da FAO, Roma. Chefe da Divisao de Difu- so Cultural 1965 — Chefe da Delegacao do Brasil ao XIX Festival Internacional de Cinema, em Cannes. Chefe, substituto, do Departamen- to Cultural e de Informagées do Itamarati, 1966 — Delegado do Brasil na reuniao da Comissfo Mista Brasil- Beélgica, Bruxelas. Chefe da Divisio da Europa Ocidental. Secretario-Geral da Conferéncia de Embaixadores do Brasil na Europa Ocidental, Roma, Secretario-Geral-Adjunto, subs- tituto, para os assuntos da Europa Ocidental, Africa e Oriente Médio. Curso sobre assuntos de energia nuclear organizado pelo Itamarati. 1967 — Promovido a Ministro por merecimento. Delegado-suplente Areuniao da Comissao Mista Brasil-Franga, Paris. Ministro Conselheiro junto & Delegacao do Brasil na OEA, Washing- ho Interamericano de Misica, ‘To- suplente a II Reuniao Extraordina- Thteramericano Cultural, Washington. 4 XII Reuniao de Consulta dos Ministros ton. Presidente do Conselh tonto, Canadé, Delegado- tia do Conselho Delegado-suplente das Relagdes Extes igton. Presidente do IV Festival Interameri- Cano de Musica do CIDEM, Washington, 1969 — Delegado do Brasil 4 VI Reuniao do Conselho Interamerica- no Cultural, Port of Spain. Delegado-suplente do Brasil & XIII Reunido de Consulta dos Chanceleres das Américas, Was- hington. Chefe do Departamento Cultural do Itamarati. Con- selheiro da CAPES. 1970 — Comissério do Brasil na XXXV Bienal de Veneza. Chefe da Delegacao do Brasil a reuniao da Comissao Mista Brasil- Bélgica, Bruxelas. Delegado do Brasil aI Reunido do CIECC, Viria del Mar, Chile. Delegado do Brasil 4 Conferéncia Geral da UNESCO, em Paris, Franga. Representou os Ministros da Educagao e Cultura e das Relagées Exteriores na cerimonia da pedra fundamental da Casa do Brasil na Universidade de Tel Aviv, Israel. 1971 — Embaixador do Brasil no Equador. Acompanhou o Chance- ler do Equador na visita oficial ao Brasil em junho de 1971. 1972 — Delegado do Brasil 4 Assembléia Geral da Organizagao dos Estados Americanos, em Washington, abril. Homenageado pela Petrobras como membro fundador da Braspetro. 1974 — Termina sua missao no Equador. Assessor Especial do Chan- celer para Relagoes com o Congresso, Brasilia. 1975 — Posto a disposicao do Presidente da Romeénia por ocasido de sua visita oficial ao Brasil. Promovido a Ministro de 1° classe por merecimento. 1976 — Posto a disposigao do Presidente do Paraguai por ocasiao de sta visita oficial ao Brasil. Secretario de Assuntos Legislativos. 1977/1982 — Embaixador do Brasil em Israel. 1981 — Eleito membro titular da Academia Brasileira de Miisica (ca- deira n° 40 — Mario de Andrade). 1982 — Membro do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro. Em- baixador do Brasil no Peru. 1983 — Premio José Verissimo (ensaio historio) da Academia Brasi- leira de Letras com sua Histdria da Masica no Brasil. 1984 — Embaixador do Brasil na Repiblica Democratica da Alema- nha, Berlim. Colaborador regular do suplemento Cultura de O Estado de Sao Paulo. 1985 — Conselheiro da Sociedade Brasileira de Musicologia. 1987 — Aposentado na carreira diplomatica apos 42 anos de servi- co. Nomeado membro do Conselho Federal de Cultura. Coor- denador da FUNARTE. ‘do Pen Club do Brasil. Palestras em varias Iuais e membro do juri de varios concursos. ‘ ae ne Historico e Geogréfico de Sao Paulo. 4989 — Aula Magna na Escola de Miisica da UFRJ. Membro da Aca- demia Brasileira de Artes. Vice-Presidente do Instituto Pervano-Brasileiro de Cultura. 1991 — Eleito presidente da Academia Brasileira de Musica, Mem- bro do Conselho Técnico da Confederacao Nacional do Co- mércio. Colaborador regular de O Jornal do Brasil. Secretério- Geral do SicoM (Sociedade de Intérpretes, Compositores ¢ Musicélogos). 1992 — Membro da Comissao Cultural do Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU). 1993 — Membro da comissao julgadora do Prémio Robert Stevenson (EA, Washington). Eleito Secretario-Geral da Academia Bra- sileira de Musica. Homenageado pela Inter-American Music Review, volume XIII, n° 2, spring-summer, Los Angeles, 1993, com um “Tribute to Vasco Mariz”. 1988 — Membro titular Vasco Mariz possui diversas condecoracées brasileiras, dentre as quais as Ordens do Mérito Militar, Mérito Naval, Medalha Santos ‘ Dumont, Mérito Brasilia e a Ordem do Rio Branco, Condecorado pe- is a de Portugal, Espanha, Alemanha, Bélgica, Itélia, Ordem le Malta, France (Légion d’Honneur), Panamé, E Chile, Peru e Roménia, : os A memoria de minha mae, ANNA DA CUNHA VASCO MARIZ, pintora laureada e pianista. Prefacio Mil novecentos ¢ quarenta e sete, a bordo de um transatlantico portugués, atravessando 0 oceano. Entre outras paginas que deixei para escrever nesses dias de forgada inércia, o “Prefacio” para o livro de um jovem diplomata que freqiientava a nossa casa do Cosme Velho ese tornara um amigo: Vasco Mariz. Tratava-se da primeira edigdo do seu Villa-Lobos, que teve outras ¢ foi traduzido em inglés e em francés’. Mil novecentos e quarenta e sete era o fim de uma das etapas de minha vida. Dessa viagem ao Velho Mundo eu nunca mais devia voltar para residir no Brasil de meu berco, de minha infancia, de minha mo- cidade e dos melhores anos de minha vida adulta, Hoje, no fim do ci- clo, com 0 sol forte de minha terra aquecendo as iltimas energias de que ainda disponho, é-me particularmente grato tragar estas linhas de abertura e apresentagao da obra que sera, sem duvida, a mais im- portante de toda a producdo misico-literéria do autor: esta sua his- téria da mtisica no Brasil. ERR O jovem diplomata tornou-se Embaixador de seu pas; 0 autor do primeiro livro sobre Villa-Lobos escreveu outros que so justamente: considerados bésicos e classicos em nossa literatura musical, como Figuras da Masica Brasileira Contempordnea®, A Cancao de Camart aetna PREFACIO I, Dicionario Biobibliografico Musical’, Vida Musical*, Mu- ie ae fe lena contemporanea® & 0 estudo pioneiro sobre Alberto es compositor que na época ainda nao havia alcangado a no- ional de que hoje desfruta. Mase soube concise coma sua carreira, que ¢ brilhante, amor exigente pela misica, Seja como cantor, seja como autor de obras literérias especializadas, seja como homem de agao, pondo seu dinamismo e sua capacidade de realizacdo a servico dessa arte e dos que a ilustram, no Brasil ¢ fora do Brasil, sua figura se destaca no panorama musical destes tltimos trinta anos. Convém nao esquecer que ele foi, com sucesso, Secretério do primeiro Comité Brasileiro do Conselho Internacional de Musica da UNESCO e Presidente do Con- gclho Interamericano de Miisica da Organizacéo dos Estados Ameri- canos (OEA); esteve ligado a fundagao do famoso Festival de Ouro Preto; apareceu em concertos e em programas de radiodifusao, como cantor, criando obras de nossos compositores e gravando discos, por vezes acompanhado, ao piano, pelos proprios autores. E soube apro- yeitar, melhor do que nenhum outro, as facilidades que a vocagao cul- tural de certos 6rgéos encarregados da politica externa do Brasil Ihe Pproporcionaram, utilizando-as em beneficio do pais, para mais inten- 8a irradiagdo de sua misica culta ou popular. Sua ambigdo, quando tiver de deixar a carreira diplomatica, é dedicar-se as letras musicais, que j tanto © téo bem ilustrou®. A geracdo a que pertencem Guerra-Peixe, Claudio Santoro, Edi- no Krieger ¢ outros muito lhe € devedora, pois foi o primeiro a estu- dar detidamente a obra desses compositores e assinalar sua impor- — eee a mace pie da epoca, Essa sua dedica- an ic a . ae a nao é desmentida pela pre- Beek a a mei em nosso pais, dos seus akoctas auede rates a) lostes de renovadores de todas as Ea nos tltimos ¢ substanciais capitulos do - Sempre teve por eles um carinho especial e o demonstrou quando chef i \ fe da Divisdo de Difus i Ristério, favorecendo-os ¢ dando-lhes possi oe PREFACIO 21 sa na vida musical de seus paises, ou do mundo. Ora, 0 que hoje se passa na vida musical do Brasil, como na de todo o Continente ame- ricano, em geral, € da maior importancia, ¢ dificilmente as proporgoes a atribuir aos contemporaneos, ¢ seus predecessores imediatos, po- deriam ser muito diferentes. Mas a l6gica das coisas, Vasco Mariz junta © seu pendor, quase diria o seu “fraco”, pelos mestres da sua geracao, que foram jovens com ele, com quem ele colaborou e que contribuiu a revelar, Nao foi a toa que 0 seu primeiro livro publicado se intitulava Figuras da Misica Brasileira Contemporanea. Essas figuras reapare- cem, agora, no dltimo, iluminadas por uma luz nova, que sobre elas projeta a posicao que conquistaram no panorama musical deste sécu- lo € 0 recuo com que se pode estudar a sua producdo. Vasco Mariz se classifica de “diplomata que também escreve so- bre musica”. Nao sei se € verdade, Os nomes de Guimaraes Rosa ¢ de Jodo Cabral de Melo Neto afloram ao meu espirito ¢ me fazem re- fletir. Sera que, como eles, Vasco Mariz nao ¢, antes de tudo, na area que lhe compete, um grande estudioso, defensor ¢ divulgador da mu- sica de seu pais que, por forca das circunstancias, tornou-se, também, diplomata? LUIZ HEITOR CORREA DE AZEVEDO Fazenda Monte Verde, Parana 20 de dezembro de 1980 1 Vasco Mariz, Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro. Rio de Janeiro, Ministério das Relagdes Exteriores, 1949, Gainesville, University of Florida, 1963, Paris, Seghers, 1965; Was- hington, Brazilian American Institute, 1970; Rio de Janeiro, Musen Villa-Lobos, 1977. ® Porto, Imprensa Portuguesa, 1948; segunda edicao, ampliada, Universidade de Brasilia, 1970. 8 Porto, Livraria Progredior, 1948; segunda edigéo, ampliada, Rio de Janeim, Ministério da Educacdo Satide, 1959; terceira edigao, Rio de Janeiro, Editora Civilizagao Brasileira, 197; quarta edigdo, Rio de Janeiro, Edivora Catedra, 1980, 4 Rio de Janeiro, Livmaria Kosmos, 1949, 5 Primeira série, Porto, Livraria Lello Editora, 1950; Segunda série, Rio de Janeiro, Minis- tGrio da Educagio e Satide, 1970, © Rosario, Editora Apis, 1952. 7 Rosario, Centro de Estudos Brasileiros, 1954. 84 talvez quando me aposente torne-me musicografo cem por cento. © fato de ter vivido ‘quase toda ¢ minha vida no exterior da-me melhor perspectiva para aprectar nossa mGsica, sem participar de grupinhos nem wfanismos” (carta de 5 de dezembro de 1980). . © Carta ja citada de 5 de dezembro de 1980. Nota do Autor (1? Edigao) Quando estive no Brasil em setembro de 1979, fui visitar meu amigo Enio Silveira, diretor-presidente da Editora Civilizagao Brasi- Jeira, que j4 me havia dado a honra de publicar a 8° edicéo de A Can- cao Brasileira. Encomendou-me entéo uma Historia da Miisica no Bra- sil, que nao 6 fosse leitura agradavel e informativa para o grande pti- plico, mas também servisse de texto de estudo. A motivagao era preen- cher 0 vazio criado pela auséncia de uma obra global, ja que o notavel livro de Renato Almeida, publicado em 1942, esta esgotado ha muito endo foi reeditado. O desafio era imenso e tinha também um aspecto. sentimental, pois Renato Almeida era meu amigo e padrinho. Havia porém o inconyeniente de encontrar-me. residindo no exterior, tao longe do Brasil, em Israel, onde tenho @ privilégio de representar nosso pafs. Parte de minha biblioteca esté em Brasilia ¢ teria dificuldade de comunicar-me com os compositores e fazer pesquisas. No entanto, ainsisténcia do editor convenceu-me, pois acrescentou a seus argu- mentos dois outros: o fato de que nao pertenco a nenhum “grupo” dava- Ihe a garantia de isengao e imparcialidade, e ademais parecia-lhe que o fato de haver residido longos anos no exterior, na Europa, nos Bsta- dos Unidos e na América Latina, dava-me um recuo de perspectiva para melhor apreciar o panorama de nossa musica erudita, sem uta nismos nem patriotadas. SESS ee 24 NOTA DO AUTOR (1 EDICAO) Aceitei apreensivo pela responsabilidade e, ean de sair do Ha ema de informages por correspondéncia com ami- SE ee ue de Janeiro ¢ $40 Paulo. Ao passar por Paris, ee aes Sate meu velho mestre e amigo Luiz Heitor Cor- Bees, ° mais {lustre dos music6logos brasileiros. Intercam- biamos idéias e combinamos que lhe faria consultas telefénicas e por cartas, Em dezembro de 1979 passei quinze dias em Pais conversan- do com Luiz Heitor, consultando sua espléndida biblioteca e tirando c6pias de infimeros documentos, artigos € até de geld nove Do Brasil chegavam-me os primeiros subsidios que havia solicitado. AB nal no inicio de 1980 comecei a escrever. Nesse mesmo ano voltaria a Paris, duas vezes ainda, para consultas e pesquisas. im virtude do formato limitado desta obra, decidi nao aprofun- dar demasiado a andlise musical, Nao s6 aumentaria consideravelmente esta edicao, como sobretudo tornaria fastidioso para a maioria dos leitores nao especializados o comentério pormenorizado dos procedi- mentos técnicos dos compositores, Assim decidiram alias Renato Al- meida e Luiz Heitor em seus prestigiosos livros. O musicofilo que ti- ver sua atengdo despertada por alguma informagao minha devera pro- curar um arquivo de miisica, uma biblioteca especializada ou 0 pré- prio compositor para examinar a obra ¢ estudé-la em pormenor. Nao me parece possivel proceder de outra maneira. No presente trabalho procurei transmitir minha opinido pessoal e também a de musicélo- 80s € criticos musicais de renome, a fim de melhor apresentar a re- percusséo da obra do compositor em estudo. Evitei sobrecarregar 0 livro com notas ao pé da pagina e o leitor encontrara no final de cada Capitulo uma pequena bibliografia sobre o compositor examinado, Pen- sei em colocer também uma listra de discos, mas as edices de dis- cos sao tao fugazes que, depois de um ano da publicacéo da presente obra, as gravacées mencionadas JA estariam esgotadas. Destarte, os 2 Procurardo nos catélogos de companhias de discos e nas ee alias Pablicas as gravacbes disponiveis no momento. Uma ou oo pees especial fez jus a mencao no préprio texto, o que ser- le indicacao para o interessado, Sempre dificil e ingrato jul; a Oe es : Juigar contemporaneos, Consultei inti- a tas e amadores, slusive por telefone intemacional), ‘iden - Ousete verses diferentes, ce: “vera contentar a muitos. Entre le viva voz (in- © ocritério que afinal adotei, apés vlamente nao safisfard a todos, mas 0S compositores antigos julguei me- NOTA DO AUTOR (1+ EDIGAO) 25 thor eliminar muitos nomes menores para néo sobrecarregar 0 leitor médio. Acho que a hist6ria da nossa misica nao deve ser uma relagao de “todos” os brasileiros que fizeram musica e sim apenas de aqueles que realmente deixaram sua marca permanente, por uma razo ou ou- tra, Entre os contemporaneos fui mais benevolente e aqui sao cita- dos ¢ analisados um na@mero de compositores talvez demasiado ele- vado. Entretanto, trata-se de miisicos que, de uma ou outra maneira, chamaram a atengéo para seu trabalho e devemos, portanto, dar-lhes um crédito de confianca, Outra eventual edicdo desta Histéria corri- giré falhas ¢ defeitos, suprimiré nomes ¢ acrescentara outros. Aco- Therei com a melhor boa vontade cartas ¢ criticas ao presente traba- tho. Alias, quem puder fazer melhor que o faga, ¢ podem aproveitar livremente o meu esforco. Desejo-lhes sorte, para o bem da miisica brasileira. Um agradecimento final a Enio Silveira, que me estimulou a es- crever este livro e 0 publicou, a todos os numerosos amigos ¢ colegas que tanto me ajudaram (seria fastidioso nomea-los a todos), aos pro- prios compositores que me escreveram fornecendo dados, 4 minha mu- Ther pelo seu constante auxilio ¢ encorajamento. VASCO MARIZ Herzlia, Israel, 1981 Nota do Autor (4° edicao) Ja se passaram mais de treze anos desde que Enio Silveira me con- vidou e insistiu comigo para que preparasse uma Histéria da Musica no Brasil, e cerca de doze anos que a 1° edicao deste livro foi publi- cada, alias com excelente acolhida da critica especializada. Na verda- de, esta obra veio preencher um vazio, pois desde o aparecimento de 150 Anos de Misica no Brasil, de Luiz Heitor Corréa de Azevedo, em 1956, nenhum livro abrangente foi publicado no Brasil sobre a cria- ¢40 musical em nosso pais. Bruno Kiefer pretendia publicar uma His- t6ria em varios volumes e acabou ficando no primeiro. Na contraca- pa, o leitor poderé ver alguns comentarios generosos sobre o meu tra~ balho, que alias foi recompensado com 0 Prémio José Verissimo (en- saio historico) da Academia Brasileira de Letras, em 1983. Este foi © finico livro de musicologia publicado no Brasil a merecer tal distin- cao daquela ilustre entidade cultural. O livro teve uma 2* edigao em 1983 e, em 1985, apareceu uma 3* edicao, em lingua espanhola, pu- blicada pelo Centro de Estudios Brasilefios, de Lima, Pern, ligeiramente condensada, Um livro de histéria, como este, tem forgosamente curta dura~ cao nos seus capitulos finais, em continua evolugao, sobretudo em uma €poca como a atual, na qual 0 ritmo dos acontecimentos politi- | 28 NOTA DO AUTOR (2 EDICAO) ‘ otavelmente. Para a atualizagdo desta obra, edicdo revista, comuniquei-me por escrito ou conversei com quase todos 0s miisicos contemporaneos citados nas outras edicdes e também com novos compositores, que ora mere- cem inclusio, utilizando uma lista recente preparada para a 9* Bie~ 4 nel, Nem todos porém me responderam, 0 que me obrigou a colher informacées de terceiras pessoas & de publicagoes diversas. Creio que o texto final € satisfatorio, na medida do possivel. Se- Jecionar e analisar dezenas de compositores de orientacao tao distin- ta nao foi tarefa facil e agradeco a José Maria Neves, Ricardo Tacu- chian e Edino Krieger pelas valiosas sugestoes recebidas. Tenho a es- peranca de que 0 livro continuard a ser de utilidade para os estudio- sos da misica brasileira, especialmente para os alunos dos conserva- torios e dos departamentos de miisica de universidades. Utilizei a frase de Romain Rolland para tentar inocentar-me de eventuais erros. A in- tencfo foi a melhor e estarei pronto a corrigir-me em posterior edi- Ao, caso me seja provado algum equivoco ou defeituosa redacdo. Fi- nalmente, os meus agradecimentos a Enio Silveira e A Editora Civili- zacio Brasileira, que tantos de meus livros j4 publicaram. cos ¢ socials se acelerou m depois de dez anos da2* Miguel Pereira, RJ, dezembro de 1993. “Seuls ceux qui ne font rien, ne se trompent jamais”. i Romain Rolland i } | | | 1. Introdugao O povo brasileiro sempre foi musical. Os seus elementos forma- dores o foram em grande escala, Desde o século XVI, vém os missio- narios explorando o pendor do indio pela musica, chegando mesmo a desprezar o cantochdo e a sobrepor textos cristaos as melodias in- digenas, com o propésito de melhor ministrar-the a fé. ‘Trés racas concorreram para a eclosao do tipo brasileiro: a bran- ca, a negra e a vermelha. Nao exageramos ao afirmar que o elemento amerindio teve, relativamente, pouca interferéncia na concretizagao, da misica nacional brasileira. Influéncia poderosa foi a negra. A par- tir do tiltimo quartel do século XVI comegara o trifico de escravos negros, vindos da Africa, a fim de substituir a mao-de-obra vermelha, que se revelara inadequada em virtude da indoléncia e do pronuncia- do anseio de liberdade dos indigenas. Esses milhoes de pretos, que entraram no Brasil até 1850, tiveram papel de destaque na formagio da alma e sentimento brasileiros. Na musica, a maior contribuigdo dos africanos foi ritmica; imprimiram acentuada lascivia @ nossa danga ¢ nela introduziram um carater dramatico ou fetichista, i A influéncia branca, ou seja portuguesa, espanhola, francesa ¢ ita- liana, foi a mais relevante. Disse Mario de Andrade: “Os portugueses fixaram 0 nosso tonalismo harmOnico, nos deram a quadratura estro- fica; provavelmente a sincopa, que nos encarregamos de desenvolver INTRODUGAO ice ritmica do epee ae ee a i eus. Dignas de mencéo séo Aes cana e Mee cebo dos boleros, fandangos, se- SE boc ¢ zarmuelas; latino-americana, através do pericon eas, do ierigo) italiana, extremamente importante aa oséculo XVIII, em virtude da popularidade da 6pera no Brasil; francesa, exercida pelos cantos infantis e pelas operetas com textos em verniculo; austriaca, através da valsa; escocesa € polonesa, res- pectivamente, pelo x6tis ea polca, finalmente, da musica de jazz norte- americana. Este chover sucessivo de liras populares estrangeiras sobre 0 povo brasileiro veio alimentar-lhe, ainda mais, o pendor pela masica, Todo esse copioso € variadissimo material amalgamou-se e, no filtimo quartel do século passado, produziu os primeiros espécimes eruditos da mt- sica brasileira. Malgrado a natureza esmagadora, cheia de contrastes e de exu- berancias, o nacionalismo musical no Brasil s6 se afirmou em linhas vigorosas com Heitor Villa-Lobos, isto €, quase um século apés as primeiras afirmagdes do movimento: Glinka e Chopin. O Weltschmerz, a saudade da terra natal, o prazer de relembrar as tradicoes regiona- listas, a idéia de retorno a vida simples dentro dos costumes do povo, a glorificacao do selvagem no seu estado de pureza nasceram com 0 romantismo e o Brasil dele participou, especialmente na literatura, em- bora com o atraso imposto pelos milhares de quilometros que 0 sepa- ram da Europa. ao contato da pererequ : Produto do romantismo e um de seus aspectos mais representa- tivos, o nacionalismo musical é, ainda hoje, um dos movimentos inte- Jectuais mais importantes da arte dos Sons, Escrever mtsica pura, abs- trata, deve Ser o anelo supremo do artista. Nada desmerece. porém, 9 misico que se dedica ao estudo do folclore de seu pats, a fim de age ao mundo erudito as joias de seus cantares, de suas dancas. waste algo mais atraente para um compositor do que tomar uma cé- lula melédica do folclore, de He lesenvolveé-la. i ee tors pele: aaa de acordo com 0 estilo em que Frokofley, Stare oN, Borodin, Smetana, Dvorak, Pedell, Sibelius 8 ane lenity ear Villa-Lobos e tan- INTRODUGAO 33 Alias, em alguns paises, como no Brasil, o nacionalismo musical tomaria um aspecto patridtico. Eis o que nos dizia Mario de Andrade: “O eritério atual da masica brasileira deve ser de combate... Se um artista brasileiro sente em si a forca do génio que nem Beethoven € Dante sentiram, est4 claro que deve fazer mtisica nacional. Porque co- mo génio saberd fatalmente encontrar os elementos essenciais da na- cionalidade. TerA, pois, um valor social enorme. Sem perder em nada o valor artistico, porque nao tem génio por mais nacional que nao se- ja do patriménio universal. E se 0 artista faz parte dos 99 por cento dos artistas e reconhece que no é um génio, entao é que deve mesmo fazer arte nacional. Porque incorporando-se a escola italiana ou fran- cesa sera apenas mais um na fornada, ao passo que na escola inician- te sera benemérito e necessério. Cesar Cui seria ignorado se nao fos- se o papel dele na formacao da escola russa. Turina € de importancia universal mirim. Na escola espanhola 0 nome dele é imprescindivel. Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira € um ser eficiente como valor humano, O que fizer arte internacional ou es- trangeira, se nao for génio, é um indtil, um nulo.” No século passado, falar em musica erudita brasileira era motivo de riso. Dominava, entao, a mtsica operistica italiana, apesar das ti- midas incursdes dos mestres alemaes ¢ franceses. Os rapazes talen- tosos do Brasil iam estudar ou aperfecoar-se na Europa e olhavam com profundo desprezo tudo o que thes lembrasse os folguedos dos ne- gros escravos ou as melopéias dos indios. A 5 de marco de 1887, da- ta de nascimento de Heitor Villa-Lobos, na cidade do Rio de Janeiro, o ptblico musical seleto ¢ numeroso ainda rendia homenagem 4 fan- tasia para piano da 6pera Sondmbula, delirava com a Traviata, ou su- portava Bach snob ¢ estoicamente, embora ja se comegasse a ouvir a mtisica dos grandes mesires em audicgdes esporddicas. Esse ptiblico respeitavel, composto na maioria de gente viajada, ignorava a Sertaneja, de Brasilio Itiberé da Cunha, e o Samba, de Ale- xandre Levi. Nem de longe previa 0 interesse que aquela musica obte- tia em Paris, quarenta anos mais tarde. Nao lhe pressentia 0 vigor in- telectual; sorriria incrédulo a quem assegurasse que aquele movimento reniovador deixaria entrever, pela primeira vez, ao mundo perplexo, a pujanca da natureza e da alma brasileira, Mas o nacionalismo musical no Brasil produziria uma série de mal- ee © mais importante deles — 0 exotismo. Na ansia de pro- ir algo de tipicamente brasileiro, alguns autores nacionalistas INTRODUCAO Be sviaram-se i ‘le dos mil- tivo maior focalizando este ou aque 4 a sue em vez de exteriorizar uma nocao de con- fol ‘i < SE oe sil sonoro. Mas ser isso possivel? jao, uma fini atmostera do Bs cido na segunda década Do nacionalismo Been ae eptantetioo dé aa a conte do que sucedeu na Rassia ou na Boémia, ae a certo exclusivismo, desculpavel aps pow ricos em a clore. Nao é raro depararmos com uma obra amerindia ou negra exibi- da como masica brasileira representativa Renato Almeida j4 apontou o aspecto exterior € superficial da nossa misica. Ela evens expres- sar a realidade brasileira, um sentimento psicologico tinico e nao ape- nas manifestacées externas, tais como bailados, cantos, dancas, pre- goes etc... JA disse Coeuroy, em seu Panorama da Miisica Contempo- rdnea, que: “se para criar musica nacional apenas bastasse reprodu- vir cantos populares, a curiosidade do etndlogo ficaria satisfeita, mas aarte ganharia pouco e € 0 que se tem muitas vezes verificado,” A ar- te dos sons deveria representar mais do que a diversao momentanea, precisa despertar uma emocao estética elevada e nao apenas interes- sar por este ou aquele aspecto tipico, ou exético. Pode-se responder, e com muita razio, que, em paises de grande extensfo territorial e de considerével riqueza folclérica, ha mais de um idioma nacional na miisica. Na Riissia, nao é dificil distinguir Mus- sorgsky, 0 mujique, de Tchaikowsky. o russo de fraque e cartola, uni- versalista, Assim como diferengamos facilmente o russo rural do rus- So urbano, identificamos 0 americano nova-iorquino da Rhapsody in Blue, de Gershwin, do americano das planicies do interior, na suite Grand Canyon, de Ferde Grofé. No Brasil, as distingdes também s&0 muitas. As mensagens transmitidas sAo das mais contraditorias, bem oumal apresentadas, mas quase sempre atracates. Conseguird o com- BERD: brasileiro reunir um dia todas essas vozes ¢ fazé-las cantar em unissono? . ri ie eet ee hacionalismo poucos compositores Oe pas lo, No pees; comecgamos a fazer incur- Me laaadhe Giche aon Pee iel expresso da nacionalidade. ‘podera-se de uma célula e adorna-a de manei- ta singela. Alguns veste: ¢ -na de roupagens sunt Pouguissimos se aventura ao sae e.multeores: im pelo que poderiamos cl i lismo puro, espontaneo, que pr aos chamar de naciona- Hi “itor Villa-Lobos foi o desbravador, aquele que aplainou 0 ca- INTRODUCAO 35 minho espinhoso da brasilidade para as novas geracOes, Sua obra atra- vessou, do modo mais brilhante, os dois primeiros estagios do movi- mento e penetrou no mare tenebrosum do nacionalismo depurado, ex- teriorizando de quando em vez, sem recorrer diretamente ao folclore, uma brasilidade espontanea e imaculada. No Noneto, em alguns dos Choros, na sua miisica de camara do periodo final, numa ou outra Ba- chiana, conseguiu a expressdo musical do Brasil. Villa-Lobos consolidou a musica nacionalista no Brasil, desper- tou o entusiasmo de sua geracdo para o opulento folclore patrio, tra- cou, com linhas vigorosas, a brasilidade sonora. A obra de Villa-Lobos representa o alicerce sobre o qual os compositores brasileiros mais jovens estao construindo um edificio sdlido. A musica nacionalista, repetimos; teve antes de tudo um meérito: revelou 0 Brasil ao brasileiro, Mas quantos anos de luta! O melhor da obra de Alberto Nepomuceno nao era compreendido, em virtude de sua brasilidade. Masicos’de valor eram forcados a esconder as obras tipicas sob denominagées alienigenas. Villa-Lobos foi vaiado pelo pu- blico e pela critica. : Ainda em 1933, o critico Oscar Guanabarino escrevia nestes ter- mos sobre a mtisica baseada no folclore: “Essa coisa de folclore € muito interessante. Quando éramos menihos, ouviamos um provérbio mui- to filoséfico que dizia assim: o casamento € uma fortaleza sitiada: os que estao dentro querem sair; os que estao fora querem entrar. Pois bem. Vai 0 folclorista ao interior de Sao Paulo e ouve o caipira dizer: Casamento é chiqueiro. qué entra. Porco ta dentro, ta fossando; qué safé. Quanta poesia! Quanta filosofia nestes caipiras! Divirtam-se.” Nao fosse a Semana de Arte Moderna, realizada em Sao Paulo, em fevereiro de 1922, o brasileiro continuaria ignorando a sua terra por muito tempo ainda. Fez-se tabua rasa dos yelhos preconceitos, impos-se a realidade. E nesse movimento renovador da inteligéncia nacional, a musica tomou parte saliente: De como cresceu, impds-se e cruzou fronteiras aqui se lera, o mais objetivamente possivel. Mas 0 debate sobre o chamado “nacionalismo musical” esta lon- ge de haver terminado, embora os adeptos do “universalismo” tenham decidido ignorar o ressurgimento da musica com identificagéo nacio- nal, Compositores ¢ musicdlogos vém discutindo ha décadas com vee- INTRODUGAO 36 encia ¢ néo parecem prestes a se porem de acordo, Gilbert Chase ane que oS norte-americanos pensam em “europeismo” quando fa- Jam em universalismo. Outros mtisicos sao mais precisos ainda e acu- sam o “universalismo” de ser apenas a expressao musical dos com- positores austriacos do inicio do século XX, com seu atonalismo ou dodecafonismo, € 0 serialismo. A questdo tomou, depois da Segunda Guerra Mundial, um matiz ideol6gico, j4 que 08 paises do leste europeu combateram vigorosa- mente o universalismo como “purgués decadente”. Nos anos 50 fazer musica nacionalista implicava obediéncia as diretrizes de Praga e Mos- cou, mas atualmente parece indubit4vel a despolitizacao do movimento nacionalista. Embora o problema continue preocupando composito- res de todas as geragées, Luiz Heitor julgava que as solugdes podem yariar de acordo com as idiossincrasias pessoais. No meu entender, muitos compositores brasileiros esto procu- rando fazer miisica nacional sem nacionalismo. B uma segunda ou ter- ceira etapa da misica nacionalista no Brasil, conforme 0 enfoque do comentarista, e que continua a valorizar o folclore brasileiro, ainda tao pouco conhecido. Por outro lado, nfo podemos esquecer Régis Du- prat: “consideramos nacionalismo uma posicao politica estratégico- tatica, nunca uma ideologia.” Como em outros paises musicalmente avancados, no Brasil ha suficiente espaco para todos os ismos. O que afinal importa € que se faca boa misica, pois néo faltarfio aplausos © adeptos para as duas correntes. 2. Musica no Tempo da Colénia Os conhecimentos de que dispomos ainda hoje sobre as ativida- des musicais no Brasil colonial séo muito incompletos. Prevalecem vazios enormes de varias décadas que dio margem a especulacdes por vezes bastante mirabolantes. Jé se pode concluir aproximadamente, porém, quais as atividades mais freqtientes ¢ os atores principais. A qualidade dessa misica era bastante modesta. Muito inferior ao que ocorria em varias capitais da América Espanhola. Em Lima, na cida- de do México ¢ mesmo em Sucre, Bolivia, fazia-se mtisica de melhor qualidade. A musica, naquele tempo, dependia das organizag6es ecle- siasticas, que no Brasil foram menos eficientes ¢ mais pobres do que - no Peru ou no México, Ademais, a mtsica era uma arma poderosa pa- ra a catequese. A conversao de indigenas provenientes de civilizagoes sofisticadas como os incas, aztecas e maias exigi dos espanhdis es- forcos muito superiores aos que foram suficientes para os portugue- ses desenvolverem junto aos nossos insipientes silvicolas. Nos dois primeiros séculos de colonizacao portuguesa, a musica que se fez no Brasil estava diretamente vinculada a Igreja e a cateque- se, Os franciscanos e sobretudo os jesuitas desempenharam papel im- portante, a partir de meados do século XVI. Em 1559, Francisco de Vaccas era o responsdvel pela mtisica na catedral da Bahia ¢ 0 cargo de mestre-de-capela no Brasil se estendia também as matrizes vizi- 38 MtsicA NO TEMPO DA COLONIA res, dirigiam 0 coro, escreviam mi- natin ace ee varios Gee Os mestres- Fi funcionevatl também como empresérios de atividades mu- sicais, organizavam 0S programas, escolhiam os interpretes e manti- ham virtual monopdlio musical em sua respectiva jurisdicao. Mas os jesuitas utilizaram a musica sobretudo como instrumen- to de conversao dos gentios. Escreviam “autos” em portugués ¢ em lingua local, ensinavam as criancas indigenas a cantar, a dangar, a to- car flanta, gaitas, tambores, viola e até cravo, Esses pequenos epis6- dios dramaticos incorporavam varios tipos de musica disponivel, de origem ibérica e medieval. Consta ate que existiam, nas aldeias ja ci- vilizadas, pequenas escolas de masica para os filhos dos indios, cuja musicalidade era louvada pelos cronistas da época. Na Bahia, em 1578, os sacerdotes j4 formavam os primeiros “mestres-de-artes” instrui- dos a tocar instrumentos e em canto coral. Seu repertério era circuns- crito ao cantochao e ao género de mfisica renascentista, sobretudo portuguesa, Essa habil politica dos jesuitas facilitava sobremaneira a catequese, e obviamente uma civilizacao de nivel tao baixo como a de nosso indigena teria de sogobrar ante uma influéncia tao poderosa quanto a européia. Ocorreu entao o que ja se chamou, apropriadamente, de “deculturagao” da misica indigena brasileira. Entretanto, esse aporte amerindio a musica brasileira foi muito modesto, em comparacdo com a vultosa contribuicao africana, As le- peer ce de escravos negros que vieram da Africa iriam desem- aa Gee ee na historia da misica colonial no dijo tu oe saaeetaa le ie que a simbiose do folclore musical Braue us aladora bagagem cultural européia foi muito len- Oaie eee Ae tees a ae de colonizacao. Tudo dos mulatos na sociedade puisteia e ‘ sc RAEN Gee do populirioafricano, Pelo contrdrin, m nada beneficiou a aceitacao Oo mulato no Brasil Grameen, il timbrava por GO que O pudesse vincular ao conti i gem. Alias verifiquei pessoalmente fenémeno Senehite Ga oe Sendo ali levas de novos escravos, © 68 cea nttlarmente pelas suicessivas que 86 terminaram em 1850. MUSICA NO TEMPO DA COLONIA 39 Dizia que o papel do negro e sobretudo do mulato era importante porque cedo os indigenas se tornaram esquivos € se retiraram para regides remotas do Brasil, O escravo seus descendentes cada ver mais claros se tornaram em breve os personagens mais significativos no terreno da musica, uma vez que ainda naquele tempo © misico era nivelado aos criados ou empregados. Ademais, a musicalidade inata do africano o destinava a ser 0 intérprete ideal ©, oportunamente, tam- pém o criador da musica que se fazia entéo no Brasil. Os padres e 0s ricos importavam musica escrita ¢ instrumentos de Portugal da. Europa. O francés Laval, que visitou a Bahia em 1610, conta de um ricaco que “possuia uma banda de musica de trinta figuras, todos ne- gros escravos, cujo regente era um francés provengal”. Os conjuntos: de “charameleiros” de Pernambuco estado registrados em nossas cro- nicas do século XVIII, com muitos louvores a habilidade interpretati- va dos negros misicos, que alias eram, por vezes, luxuosamente ves- tidos por seus amos como prova de sua abastanca. Até no Para havia orquestra de doze miisicos. A mfsica no periodo colonial, portanto, permaneceu essencial- mente européia apesar de quase exclusivamente interpretada por mu- latos ou negros. As atividades musicais foram de maior vulto na Ba- hia e em Olinda, embora nao se deva menosprezar o que ocorria no Rio de Janciro, Sao Paulo, Parana, Maranhao e Para. Novas pesquisas recém-publicadas demonstram a vitalidade da misica naquelas capi- tanias, embora — frisemos sempre — dentro da natural modéstia im- posta pelas condicées de vida na Coldnia. No séeulo XVII, porém, comecam a surgir as irmandades de musica, sendo a mais importante a de Santa Cecilia, cuja sede estava em Lisboa, e que fiuncionava co- mo uma espécie de sindicato de masicos. Algumas delas eram inte- gradas exclusiyamente por pretos € as vemos funcionar na Bahia, Per- nambuco e em Minas Gerais. Somente 05 s6cios da irmandade po- diam fazer musica e ja se disse até que 0S improvisadores eram passi- veis da pena de prisao. Pequenas orquestras € corais foram organiza- dos e desenvolviam intensa atividade em festas de todo 0 género, in- clusive militares. Pesquisas recentes fixam em 250 0 numero de mu- sicos em atividade em Ouro Preto, no periodo aureo da mineracao (em Diamantina teriam sido 150), e mais de mil foram relacionados no s¢- culo XVII na Capitania. Falta pesquisar melhor na Bahia. Como nao poderia deixar de ser, as igrejas € residéncias de rica- cos urbanos ou de fazendeiros se fizeram pequenas para tanta ativi- eee MUSICA NO TEMPO DA COLONIA dade musical ¢ foram construidas salas de concerto, a5 pune foi da- pe de “casas-de-opera”. O repertorio deixava de ter influéncia medieval e adotava modelos napolitanos da “pera buffa’, tio em woga na Lisboa setecentista. Alias o termo “Opera” abrangia tanto comédias quanto dramas e até verdadeiras Operas, com variada quantidade de misica entremeada, Surge entdo Antonio José da Silva (1705-1739), cognominado “o Jude", que alcancou grande sucesso em Lisboa. Adaptava trechos de 6peras, minuetos, fandangos, con- tradancas, modinhas ¢ até lundus. Suas comédias de costumes con- tinham cenas faladas, declamadas ou recitadas, as quais se seguiam Arias, duetos, coros ¢ dancas. Luiz Heitor as compara & Beggar’s Opera, alias contemporanea, Os temas eram por vezes: mitolégicos. Foi so- bretudo poeta e libretista, bom arranjador. Antonio José nascera no Rio de Janeiro e obteve enorme éxito em Portugal com seu teatro mordaz, o que lhe valeu as iras da Inqui- sicdo. Foi degolado e queimado como punigao. Mas sua popularidade continuou e chegou até os primeiros anos do Império, Ha provas de oy no Rio e na Bahia, suas pecas eram encenadas com freqiiéncia. 2 : es ee oe Vida do Grande Dom Quixote de la Mancha Nu Gh fay anne cc) aoe Hee a | Labirinto de Creta (1736), Guerras Eee lanjerona (1737)), As Variedades de Proteu (1737) e Precipicio de Faetonte (1738). : Ue ae ae 1729 o Teatro da Camara Municipal ee eee Ps ra, ie raia (1760). Sabemos que nesse ano €s Operas; Alessandro nelle Indie, Art se e Di- aie Ab aching Mindavnp petodn colonic fori cack dace Oc, ie ae 4 iodo col onial foram construidos mais Sot Adina cS Opera, o Teatro Guadalupe e o Teatro aes a tcoea Ge até 1928 quando se incendiou. ne Rio deJjanclo, S40 Paulo, Recife, Bulan ceo et 19 teato.carioca data de 1767. O teatro de Manly eine tro Rézio foi louvado pelo viahunte francés Boon Gene es ea Meetshelle Suerte csoucodepce ito eee Perto do palacio dos Vice-Rels (hoje Pace Ie ny ese 0 Carmo, cenadas 6peras de Cimaro ‘Je Paco Imperial), onde foram en- Ss taal ware sa, entre outros, Em 1770 ca oh la Gpera de Caldara e, em 1790, cantava-se em 4 Opera Ezio in Roma, com os eee em Corumba, encenou- Papéis femininos representados por MOSICA NO TEMPO DA COLONIA ra) homens, o que alias era tradicdéo na época. S6 mui raramente as mu- lheres (neste caso mulatas) subiam em cena. O primeiro manuscrito importante de autoria de brasileiro, hoje na biblioteca central da Universidade de Sao Paulo, € 0 Recitativo e Aria atribuido ao mestre-de-capela de Salvador, Caetano de Mello Je- sus, e datado de 2 de julho de 1759. Curt Lange considera o Padre Caetano como “o maior teérico das Américas”. Escrito para soprano, dois violinos e baixo continuo, em estilo italiano da époea, apresenta razoavel equilibrio entre a solista ¢ o acompanhamento de cordas. A descoberta foi de Régis Duprat, mas parece Obvio que o interesse da obra é sobretudo historico. Em Pernambuco, salientamos as pesqui- sas feitas pelo padre Jaime Diniz, em 1967, que revelou a existéncia de um mestre-de-capela em Olinda, em 1564. Destaca ele trés com- positores cujos nomes valeria reter: Inacio Ribeiro Noia (Recife, 1688-1773), Luis Alvares Pinto (Recife, 1719-1789) e Joaquim Ber- nardo Mendonca Ribeiro Pinto (Ceara, meados do século XVIII — Re- cife, 1834). Do primeiro deles nada restou, mas era considerado “ex- celente misico e tangedor de todo género de instrumentos”. Alvares Pinto, talvez o mais significativo, estudou em Lisboa, e escreveu um tratado intitulado Arte de Solfejar, cujo manuscrito esta na Bibliote- ca Nacional de Lisboa. Foi mestre-de-capela da igreja de Sao Pedro dos Clérigos, no Recife (1782), e fundador da Irmandade de Santa Ce- cilia dos Musicos (1787), que tinha 37 membros. Restam dele um Te Deum ¢ um Salve Regina, o primeiro para quatro vozes mistas e baixo continuo ¢ o segundo para trés vozes mistas, dois violinos e baixo. Fra mulato e foi militar, poeta e autor de uma comédia encenada com sucesso na Casa-de-Opera do Recife. Joaquim Bernardo teve intensa atuacéio como mestre-de-capela, compositor e empresario de uma com- panhia lirica no Recife. Nada resta, porém, de sua lavra. As atividades musicais no Rio de Janeiro eram modestas, antes de se tornar a capital do Vice-Reinado, embora ja tivesse dois teatros e a atuacao das irmandades. A chegada de D. Joao VI ao Brasil, em 1808, deu um impulso extraordinario a cidade, mas disso falaremos em outro capitulo, Em Sao Paulo, a vinda do lisboeta André da Silva Gomes (1752-1844) estimulou a vida musical, Em 1790 ja se dizia que na Sé de Sao Paulo se fazia masica pouco inferior 4 dos maiores templos de Lisboa, Ali se tocou a Missa (Kyrie e Gloria, apenas) a cito vozes ¢ instrumentos, de Silva Gomes. Parece claro, no entanto, que naquela época ainda faltava a Sao Paulo a abundancia de miisicos 4 MUSICA NO TEMPO DA COLONIA e cantores que pululavam em Vila Be do Tejuco, Sao Joao del Rei, Mariana, oe a des jositor € pianista Amaral Vieira, Por descoberta recente do comp: . : s i de Contraponto e Composicao, de André da foi encontrado o Tratado de eras : Gilva Gomes, 0 qual se achava em poder da sta, Ana Mar cone prinha neta do compositor paulista Elias Alvares Lobo. O manuscrito tem data de 1830 ¢ possui 149 paginas, discorrendo oO autor em for- ma didética e clara sobre assuntos contrapontisticos. Regis Duprat considera precioso elemento para melhor avaliar 0 estilo polifonico de Silva Gomes. Elias Alvares Lobo teria recebido 0 Tratado das maos de Jerénimo Pinto Aradjo, mestre de capela de Iti, cidade natal de Elias. Chegamos entio a Minas Gerais, que constitui o ponto mais alto da masica da época colonial no Brasil. Obviamente, o fator econdmico foi preponderante: sem a enorme riqueza proveniente da mineracao do ouro e diamante nao seria possivel reunir a pléiade de musicos, arqui- tetos, escultores e escritores que vieram para Minas Gerais, nem ha- ver criado condicées propicias para o desabrochar de artistas do porte do Aleijadinho. Isso nos obriga de imediato a sublinhar mui claramen- te que, apesar do notavel surtomusical na regido mineira, ainda nao foi i possivel encontrar provade existéncia de nenhum compositor do mes- mo excepcional nivel artistico do Aleijadinho, Muito se tem falado e de- batido sobre os compositores erroneamente ditos “barrocos”, mas se eles certamente sao dignos de toda aatencao, estudo, divulgacao e res- peito, nem por isso se deve agigantar sua significagao. A pesquisa ea Ne dada a esses misicos mineiros tem sido obra entusiasta cro tari Pancco Crt Lange, cua tenacidade a Ln numerosos originais, sempre incompletos, o ntrar em suas repetidas pesquisas. Nao sou estranho ao éxito dessas Pesquisas, a ao Ministro Clovis Salgado que 0 go- OO vat aseLmige rideser posscgus ene ee arquivos de Minas Gerais, iniciadas em 19444 ao eee es AS partituras ou partes usicologo alemao e por ele restauradas pois foi, em parte, Surgiu aps sua divulgagao, nos Sota ‘ » HOS anos 50 e 60, sem Eee aloe do duiuce te eae MUSICA NO TEMPO DA COLONIA 43 das obras encontradas e restauradas. O respeitayel critico musical An- drade Muricy ¢ outros musicégrafos entabularam viva polémica com o musicélogo aleméo, colocando em davida a autenticidade das obras encontradas. O leitor ¢ o ouvinte leigo podem ouvi-las em diversas gravacoes nacionais ¢ estrangeiras € € dificil nao admirar as qualida- des intrinsecas e€ belo efeito de varias obras daquele periodo. Minha conclusao € que, mesmo aceitando considerar exagerada a restaura- cao feita ou presidida por Curt Lange, essas pecas possuem alto va- lor historico e bastante mérito estético, sobretudo leyando em conta o tremendo isolamento do resto do mundo musical europeu, em que viviam os compositores e os mtisicos de Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII. O brasileiro deve orgulhar-se dos mtsicos minciros, sem entretanto querer compara-los a seus contemporaneos europeus que lhes serviam de modelo: Haydn, Mozart, Boccherini, Ple- yel ou Domenico Scarlatti (que aliés viveu algum tempo em Lisboa). Mas creio que devemos escrutinizar um pouco mais a questao da autenticidade das partituras ditas “barrocas” mineiras. Para comecar, nao havia partituras, ou melhor, nenhuma partitura foi encontrada por Curt Lange. Conta ele, na Revista Musical Chilena, que na €poca havia o costume de escrever diretamente as partes para vozes e instrumen- tos, de acordo com a antiga tradigdo, sem partitura. Por isso omusic6- logo alemao julgou indispensavel confeccionar partituras com o mate- rial existente, tanto mais que as cépias encontradas nem sempre coin- cidiam, em virtude dos erros dos copistas da época. Raros soos origi- nais ou cOpias contemporaneas dos autores. Ademais c6pias posteriores contém omissdes ou supressdes expressas, feitas propositalmente & medida que mudava a moda musical na regiao, no decorrer do século XIX, Houve também acréscimo de novos instrumentos que passaram a estar disponiveis, o que deua algumas dessas obras um carater mui- to diferente do que se buscava nas igrejas do século XVIII. Lange esclarece que seu trabalho nao foi de revisao de uma parti- tura segundo o original existente, mas sim uma verdadeira reconstitui- Ao ou recuperacao das partes para vozes ou instrumentos, de acordo com o seu passado longinquo. Procurou sempre respeitar os tempi, marcando-os com as indicagdes metronOmicas que cada movimento exi- ge. Salienta ainda a tendéncia nessas cépias para acelerar os tempi € ohébito de manter a sonoridade apenas em dois planos, forte e piano. Seja como for, a responsabilidade que Lange tomou foi enorme ¢ sem- pre haver opiniao divergente sobre seu notavel, mas arriscado traba- 4A MUSICA NO TEMPO DA COLONIA ji Itavam, Je que jamais restaurou obra em que fal icone al ou do primeiro violino. Reescre- tantes, tais como a vor: 2 oe Ges das trompas, da viola ou do baixo e, quando faltava o bai- xoinstrumental, 860 fez quando no material achado tinha-se > ae sfio de que podia ter sido escrito pelo autor. Julga ele que em Vila a era suprimidoo continuo quando nao se contava poe 6rgao, ou quando oautor considerava desnecessériaa presenca do instrumento. Com es- ses comentarios e pré-avisos em mente podemos entéo avizinharmo- nos daquele mundo admiravel que foio meio musical em Minas Gerais, sobretudo na segunda metade do século XVII. A principio nao havia musicos autéctones ¢ se acredita com bas- tante seguranca que eles vieram em grande parte do Nordeste, isto €, da Bahia e de Pernambuco, uma vez que o Rio de Janeiro e Sao Paulo eram aindacidades muito pequenas e modestas. (uase todos eram mu- laios ¢ os padres-miisicos foram poucos, uma vez que a construcao de conventos estava proibida pela coroa portuguesa, a fim de evitar 0 con- trabando de ouro ¢ de diamantes. Porém os “seculares” atendiam as igrejas que eram construidas. Estavam organizados emirmandades, das quais as mais importantes foram sobretudo a de Santa Cecilia, e as do Santissimo Sacramento, das Ordens Terceiras do Carmo e de Sao Fran- cisco, ea de Sao José dos Homens Pardos. O Aleijadinho fez parte des- ta tltima. A Ordem do Carmo era a mais aristocrética. Convém lem- brar que existiam irmandades de pretos, mulatos e brancos. Forneciam miisica mediante contratos com as igrejas ou prefeituras e tinham tam- aa la ricos. Eram miisicos independentes aeboashie die eh le misica para os concertos ¢ depois dos diretores de conjuntos m Re ee (eau ce S mMusicais, ou compositores, tinh poe _ pia casa, onde formavamosmeninos, Eram yerdadeiros ios, onde viviam os alunos, se alimentavam e recebiam au- Alguns jam €sco- MUSICA NO TEMPO DA COLONIA 45 colonial 0 amor pelos instrumentos de sopro, preferéncia que ainda se encontra hoje nos povoados mais remotos do pais. De Portugal che- gavam tratados de cantochao, 6rgao, cravo, violino e contraponto, além de miisica de todo 0 tipo proveniente de varios paises da Europa. As encomendas levavam ano ¢ meio para serem recebidas. Curioso € que a musica napolitana, de tanta yoga em Lisboa, parece nao haver im- pressionado no Brasil, pois em Minas Gerais o repertorio encontrado €virtualmente todo no estilo pré-classico homofonico, apesar do am- biente arquitctonico estar sendo construido com inspiragao barroca. Lange aponta fendmeno curioso: nao teria havido influéncias diretas deste ou daquele compositor europeu, mas uma assimilagao tao com- pleta do material recebido que tudo parece espontaneo. Embora os miisicos mineiros interpretassem musica de camara européia, os com- positores se dedicavam quase exclusivamente 4 mtisica sacra ou li- turgica. Os tipos mais comuns eram de coros mistos a quatro yozes, com acompanhamento orquestral de dois violinos, viola, baixo, trom- pas e madeiras. O uso do baixo continuo néo era obrigatorio, como ja observei, e os coros duplos aparecem com menos freqtiéncia, como contraponto delineado em favor da homofonia. Chegou a dizer-se que, nas tiltimas décadas do século XVIII, ha- via mais musicos em Minas Gerais do que em Portugal, onde alias se fazia miisica abundante, sobretudo de estilo napolitano. Mesmo que isso constitua um exagero, era notavel a participagao da mtisica na vida cotidiana mineira de entdo, nao s6 nas igrejas como em outros tipos de festas sociais e militares. Fazia-se misica em casa, nao raro integrada por pessoas da familia, completadas por um ou mais escra- vos, ou mulatos, que sabiam tocar instrumentos, Havia trios, quarte- tos, quintetos, etc. que ilustravam os saraus elegantes, ou saiam os musicos pelas ruas, em uoites enluaradas, a fazer serenatas romanti- cas, habito a que ainda assisti nos anos 50 em Ouro Preto. Os con- certos ou audicoes eram feitos mediante contratos. E os composito- res de entaéo conheciam perfeitamente a musica de camara européia, embora as encomendas que recebiam fossem sobretudo de musica li- tirgica. Garante Curt Lange que eles estavam muito familiarizados com as Cantatas, sonatas e rond6s. Escreviam com muita facilidade mel6- dica e faziam modulaces surpreendentes com contraponto fluido. De- monstravam também bom conhecimento do latim e da liturgia. Os pro- fessores da Arte da Musica se apresentavam em concerto muito hem trajados e com perucas. : MUSICA NO TEMPO DA COLONIA Pensar que todoesse fendmeno extraordinario ocorreu em menos de um século, nao deixa de causar espanto € admiragao. Ao contraério da Bahia e de Pernambuco, que eram essencialmente rurais, Minas Ge- rais adquiriu logo um aspecto urbano, estreitamente vinculado os acam- pamentos originais dos mineradores de ouro e de diamantes. ‘$80 teria sido determinante para a criacdo de uma espécie de burguesia, cujoiso- lamento forcou uma auto-suficiéncia razoavel em muitos setores da vi- dacotidiana. A separacdo de Sao Paulo s6 se deu efetivamente em 1720 ¢ entéo foi formada a Capitania Geral das Minas Gerais, com capital em Vila Rica, s6 elevada a categoria de vila dez anos antes. Podemos situar trés centros regionais significativos: Vila Rica, com os povoados vizinhos de Mariana ¢ Sabara, depois tao importan- te também musicalmente. Outro grupo era constituido por Sao José del Rei (hoje Tiradentes), Sao Joao del Rei e mais longe Congonhas do Campo, a meio caminho ja de Vila Rica. Finalmente, o Arraial do Tejuco, nossa Diamantina, centro importantissimo do chamado Dis- trito dos Diamantes, de onde ninguém podia sair sem severa fiscali- zagao da Coroa. Estavamos em 1728 e as casas de adobe ou pau-a- pique transformavam-se rapidamente em espacosas moradias; as ca- pelinhas toscas se derrubavam para se erguerem imponentes igrejas. ricamente decoradas, onde se fazia masica organizada pelas irmanda- des tao eficientes. Em Vila Rica chegou a construir-se vistosa casa- de-6pera, que ainda hoje existe em estado razofvel. Em 1956, no 1° Festival de Arte de Ouro Preto, fizemos 14 encenar a Medéia, de Euri- pides. Na Casa dos Contos, Cecilia Meireles leu-nos trechos do seu Cancioneiro da Inconfidéncia. Uma emocao, Mas voltemos ao isolamento do Arraial do Tejuco, a seis meses de viagem do Rio de Janeiro. La perto nasceu José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, o maior mtisico mineiro do século XVIII, De ori- gem humilde, mulato, ficaria depois conhecido por Emerico, nome es- tranho na regido, uma possivel corruptela de “Emerich”, do alemao, - oe eee oe alemaes que estiveram em Minas deetintidens one = tigueses: Curt Lange The atribui sangue ju- bechelin a. _ > ae Ultimos sobrenomes, mas a especulagao ee cies @ de Concreto, Seguindo esse critério, milhoes ctistéos novos... Geraldo Dutra de Moraes in- MUSICA NO TEMPO DA COLONIA. AT da matriz de N. S. da Conceicao do Serro, Durante vinte anos exercen a profissao de miisico no arraial do Tejuco, como organista da matriz de Santo Antonio, regente da orquestra na igreja do Carmo, atuando eventualmente na Capela das Mercés dos Pretos, de cuja confraria fa- zia parte. Foi alferes do Tergo de Cavalaria dos Pardos, além de pro- fessor de mtsica e contraponto. Transferiu-se para Vila Rica, em com- panhia de sua insepardvel escrava Tereza Ferreira”. Teria nascido a 12 de outubro de 1746, na Vila do Principe do Serro do Frio. Pouco se sabe de sua vida, além de que viveu no Tejuco até 1798, quando teria passado dois anos em Vila Rica ede la se transladado pa- rao Rio de Janeiro, Faleceu em 1805 na capital do Vice-Reinado. O que nos interessa porém € 0 periodo de Diamantina, o mais fecundo e im- portante. Curt Lange julga que escreveu mais de trezentas obras, das quais sobreviveram apenas quarenta, entre as mutiladas ¢ completas. Organista eximio, a maioria de sua obra ndo sobreviveu porque, com adecadéncia do 6rgéo em Minas Gerais no século XIX, nao havia inte- resse em se copiar e reproduzir pecas que nado podiam ser tocadas. Alias, quando se fala em rgao, deve-se esclarecer que o instrumento servia apenas para acompanhar, e nado era usado como solista para interlidios. Impressiona muito a relacdo de “regentes” em atividade somen- te no Arraial do Tejuco, no titimo quartel do século XVIII: nada me- nos de dez, o que representaria um minimo de 120 misicos em ativi- dade permanente. Além deles, Lange cita ainda trés padres organis- tas e muitos cantores. Emerico foi o grande organista da Ordem Ter- ceira do Carmo e 14 foi substituido por uma mulher, cega alias, Ana Maria dos Santos Martires. Mas Emerico desenvolvia consideravel ati- vidade: tocava também na matriz de Santo Antdnio e tudo indica que tinha uma escola de misica na propria casa. O periodo de apogeu artistico em Minas Gerais parece haver sido entre 1787 € 1790, Depois comegou a decadéncia em conseqiiéncia do paulatino esgotamento das riquezas minerais ¢ dos problemas politi- cos que sao do conhecimento de todos. Era 0 comego do fim do profis- sionalismo musical. Os masicos comegavam a emigrar do Tejuco para Vila Rica, de Vila Rica para o Rio ou Sao Paulo. Foi essa crise financei- ra que deye ter impelido Emerico para o mar, Em Vila Rica ele tocon namesmaigreja onde trabalharam os outros dois melhores mtisicos de sua geracdo: Gomes da Rocha e Souza Lobo. No Rio de Janeiro, deve ter-se surpreendido com a modéstia da vida musical, que s6 se anima- ria depois da chegada de D. Joao VI, em 1808. Por bem pouco Emeri- MOSICA NO TEMPO DA COLONIA co teria participado do fausto da Corte portuguesa. E provavel que ele tenha conhecido José Mauricio pessoalmente, nos poucos anos que pas- sou no Rio de Janeiro, Foi no Rio organista da Ordem do Carmo. ‘Antes de comentar mais diretamente as obras desses composi- tores mineiros, urge especular, uma vez mais, sobre o tipo de miisica que faziam. Por que no inseriam eles em sua obra, ja tao sofisticada, alguns caracteres da terra brasileira, daquela palletcses piers qieoe cercava, do populério regional, das tradigdes indigenas ou africanas, sobretudo negras, que corriam no seu sangue em proporcao nada pe- quena? Nao posso deixar de recordar os grandes pintores e€ esculto- res da escola quitenha, no Equador, também no século XVIII. Indios puros, artistas extraordinarios, que trabalhavam como artesdos de Sa- jamanca ou de Avila! Os paramos dos Andes, a civilizacao inca, as tra- dig6es indigenas nada representavam para eles, criados artificialmen- te pelos padres espanhdis e italianos como artistas europeus. O in- dio Caspicara, escultor insigne, representa fendmeno de aculturagao semelhante ao de Emerico e seus colegas, e rivaliza com o Aleijadi- nho. Rejeitaram inconscientemente o seu sangue, s6 pelo fato de que nao eram brancos. A arte era para eles uma escada para sua ascensao na sociedade local. José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, no entender de Curt Lange, possuia uma técnica expressiva e avancada para sua época, bem como notavel versatilidade de temperamento artistico, Seu estilo os- cila entre Pergolesi e Mozart, embora evidencie influéncia instrumen- tal vinda da Itélia, Suas obras manifestam uma invenc¢do melédica muito rica, senso de forma, completa identificacao coma mensagem do texto littirgico e grande habilidade na arte da modulacao. Saliento entre seus: trabalhos a Antifona de Nossa Senhora (Salve Regina), de 1787, uma Jadainha in honorem Beatae Marie Virginis, Missa em mi-bemol (ou ese bak (1783) Missa em fa, Ofertorio de Nossa Se- iis a 788) oe est), Te Deum n? 1,4 Tractus para Sa- 2a com freqiéncia a. ae . Toe 5 nee Beene mt les com funcoes freqtientes de téni- mein co ae Salve Regina ¢ a Missa em mi-bemol Goubee ne 1s ie musica concertante homofonica. S40 Gites poe ‘4 capo. Tudo indica que ele escrevia as ’ cada masico, embora tenha sido uma partitura dele. No entende: de Cleof ee até “sentido de mineiridade” ATUNARIE oe ee : editou o Tercis. MUSICA NO TEMPO DA COLONIA AQ ‘Trés outros compositores da regiéo merecem uma citacdéo mais pormenorizada. O primeiro deles é Marcos Coelho Neto, nascido em Vila Rica em 1740, onde faleceu em 1806, portanto perfeitamente con- temporaneo de Emerico. Foi compositor, regente e trompista e teve um filho, também trompista, com quem as vezes surgem confusdes. Pouco se sabe a seu respeito, mas de sua obra restou um hino Maria Mater Gratiae para coro a quatro vozes, trés missas ¢ trés ladainhas, Olivier Toni restaurou uma delas para trompas. Francisco Gomes da Rocha foi membro da Irmandade de Sio José dos Homens Pardos em 1768 ¢ teria sido amigo de Emerico, a quem sucedeu como regente na Ordem Terceira do Carmo, em 1800. Era tam- bém timbaleiro no regimento de dragoes. Teria escrito mais de duzen- tas obras, segundo Curt Lange, que 0 considera “portentoso”. As res- tantes saoa Novena de Nossa Senhora do Pilar, a quatro vozes (1789), Spiritus Domini para dois coros mistos ¢ orquestra (1785), Popule Meus a quatro vozes e Cum Descendentibus in Lacum para Sexta-feira da Pai- xao, Gérard Béhague louva Gomes da Rocha como o autor que assimi- loucom maior pureza o estilo cléssico, tanto no tratamento coral quanto no acompanhamento instrumental. Morreu em 1808 em Vila Rica. Referéncia a Ignacio Parreiras Neves, nascido em Vila Rica circa 1786 ¢ la falecido entre 1790 e 1793. Era compositor e cantor, ha- yendo atuado nas irmandades de Nossa Senhora da Mercé ¢ dos Ho- mens Pardos. Somente duas obras suas chegaram a nossas méos: um Credo para coro misto e orquestra (1780-85) e um importante Orato- rio ao Menino Deus para a Noite de Natal (1789), que seu descobri- dor, Gérard Béhague, considera a tinica obra coral secular de Minas Gerais. Outras pesquisas e restauragdes estao em curso € € provavel que 0s pr6ximos anos tragam mais luz e tornem talvez menos roman- tico 0 formoso quadro da musica na Capitania Geral das Minas Gerais. Finalmente, especial meng&o ao compositor mineiro Manuel Dias @ Oliveira (1745-1813), nascido em Tiradentes ¢ que Olivier Toni con- sidera do mesmo nivel artistico de Emerico, Desde 1977, Toni ¢ seus colaboradores da USP vém realizando valioso trabalho de pesquisa ¢ restauracao na cidadezinha de Prados, perto de Sao Joao del Rei. Dentre as obras e trechos de Manuel Dias la encontrados, ressalto um Oficio de Defuntos para coro e 6rgao, um Magnificat ¢ um Sabado Santo de Manha, de considerayel interesse musicologico. Manuel Dias d’Oliveira escrevia habitualmente pecas para dois coros e teria elaborado parti- turas, Curt Lange considera que nem todas as suas obras descober- MUSICA NO TEMPO DA COLONIA 50 tas so de autoria comprovada, Entretanto, devemos aguardar os re- esqitisas em curso, pois o que tem sido encontrado séo ae ou apenas obras a ele atribuidas, Fazendo um pa- ralelo com Emerico, Cléofe P. de Mattos julga que Manuel Dias € mais impetuoso ¢ escrevia com freqiiéncia musica sobre textos em portn- gués. Emerico foi talvez mais cuidadoso, mais mineiro, com acabamento mais aprimorado. Para terminar, volto a Caetano de Mello Jesus, ja mencionado no inicio deste capitulo, no qual tentei relatar a fascinante historia da misica ¢ dos miisicos coloniais brasileiros. José Maria Neves, que esta ultimando wm livro a seu respeito, considera o padre Caetano como a figura dominante na misica baiana do século XVIII. Alias, ele € um dos raros brasileiros citados no dicionério biografico de José Mazza, que 0 apresenta como autor de muitas obras. As poucas informagdes que temos sobre o padre Caetano sao dadas por ele mesmo, na capa ena introducao ao Tratado de Escola de Canto de Orgao (1759-60): nasceu em Salvador, foi padre secular e mestre-de-capela da Sé da Bahia por cerca de 25 anos (1734-60). Robert Stevenson atribuiu a ele o Recitativo e Aria. José Maria Neves considera o citado Tratado como o melhor produzido em portugués, com informacées preciosas sobre as técnicas composicionais ¢ as bases estéticas da musica moderna de entao. BIBLIOGRAFIA Luiz Heitor Corréa de Azevedo — 150 Anos da Musica no Brasil (1800-1959), Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1956. Renato Almeida — Histéria da Misica Brasileira, 22 ed. 1942, F. 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Chegavam de Vila Rica, do Tejuco, de outras vilas mineiras, 08 masicos mais talentosos, como Emerico Lobo de Mesquita, em busca do fausto declinante na Terra do Ouro. Entretan- to, um acontecimento excepcional estava por ocorrer, independente da vontade de reindis ¢ nativos, com aquela fatalidade inevitavel dos grandes momentos da Historia. Portugal sempre manteve estreito relacionamento com a Ingla- terra, Sua economia dependia, e ainda depende em parte, das aquisi- Ges inglesas, ¢ a posicao geografica de Portugal por sua vez obrigava 08 estadistas briténicos a cultivarem as boas gracgas dos monarcas por- tugueses. A corte lusitana mantinha em relagao ao Brasil uma menta- lidade pragmaticamente extrativa e a exigitidade dos recursos da mae- patria ndo permitia que aqui se fizessem vultuosos reinyestimentos. Como reconhecia o Padre Antonio Vieira, a tromba d’agua chupaya no 5A ‘MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO I: Brasil e fazia chover em Portugal, No inicio do século XIX a situagdo nao havia mudado muito, embora Ja nessa altura houvéssemos adqui- rido o pomposo titulo. de Vice-Reino. pes 4 Napoleao ¢ suas aventuras expansionistas perturbaram e oe reram a provavel evolucio da colénia, que de outra maneira teria de- morado muito mais a alcancar a independéncia. A medida que 6s exércitos napoleénicos avancavam pela Espa- mha ¢ se preparava a invaséo de Portugal, a corte lusitana se agitava. O transplante de toda a paraferndlia da monarquia era uma alternati- va atraente, pois se tinha esperanga de que a ocupagao de Portugal niio se prolongasse demasiado, Os conselheiros ingleses eram dessa opiniao e foi assim que a vida cotidiana no pacato Brasil se viu subi- tamente transformada, A humilde cidade do Rio de Janeiro em pou- cas semanas passou a ser a sede de uma corte suntuosa,évida de di- versdes ¢ prazeres. Sendo o Principe Regente um entusiasta da misi- ca, era natural que se animassem extraordinariamente as atividades musicais na capital, Mas atengéo: esse surto espetacular durou mui- to pouco — treze anos apenas, isto é, periodo em que Dom Joao VI permaneceu no Rio de Janeiro. Embora Dom Pedro I fosse também um melomaco © até compositor, a escassez de recursos financeiros aps a Independencia afogou quase por completo a verdadeira orgia musical que prevaleceu no periodo em que o Rei de Portugal viveu no Brasil. Em janciro de 1808 chegava ao pais a corte portuguesa e Dom Joao V1 fo um benemérito para o Brasil, gracas as importantes insti- tuigdes que criou, logo ao desembarcar, e a abertura dos portos aos Havios estrangeiros, decisao que alias trouxe vantagens substanciais ascus aliados ingleses. Sublinhe-se que, até entdo, o comércio mari- fimo com o Brasil era monopdlio absoluto de navios portugueses. Mas a eon a ced de Dom Joao ao Rio de Janeiro foram efe- Ede ism gi a ln, Flor pe a ouededue ce ae 2 8a foi Se ee da Capela Real, en) BU, dei tiputed & mdsica DIOGHA DORE dete ee s Sica profana no Rio de Janeiro. Mas antes a ‘4 i : MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D, PEDRO I: 55 José Mauricio é uma personalidade que ja se delineia com bas- tante clareza, gragas a pesquisas recentes, sobretudo de Cleofe Per- son de Mattos. Antes circulavam muitas versdes romanceadas sobre a sua vida, exaltavam-se talvez em demasia seus méritos e sua influén- cia na época, em parte como conseqiiéncia dos escritos de seu pré- prio filho e dos do Visconde de Taunay, prestigioso entusiasta. Por outro lado, essas pesquisas revelaram com certeza que 0 sacerdote nao era apenas mais um miisico mulato, da série que tanto frutificou no periodo colonial. Embora ainda permanecam alguns aspectos obs- curos na sua formacéo cultural, j4 se pode afirmar sem hesitagdo que o Padre-Mestre foi mesmo um homem culto, com educagdo humanis- ta desusada para pessoa de sua modesta origem, orador apreciado, além de grande compositor ¢ notavel intérprete também. Entretanto, cabe aqui salientar, conforme ja apontou Luiz Heitor, que a qualidade de sua musica, em vez de beneficiar-se com a chegada da cérte portu- guesa, sofreu a influéncia negativa do estilo pomposo ¢ adornado da miisica napolitana, tao na moda em Lisboa. Na ansia de agradar o Rei que tanto admirava, José Mauricio sobrecarregou sua musica singela e espontanea e adornou a pureza de sua inspiracao, Mas esse € ape- nas um pormenor, ndo diminui o mestre, embora tal fato se observe com bastante clareza em suas obras, sobretudo depois que chegou ao Rio 0 espetaculoso Marcos Portugal. Se a mtisica rococé foi do gosto da corte, era natural que o compositor brasileiro se ajustasse a realidade, para competir com seus rivais portugueses. Alias, 0 me- lhor conhecimento da obra de Haydn the foi atil. José Mauricio nasceu a 22 de setembro de 1767 ¢ era o primeiro dos grandes misicos brasileiros nascidos em ano sete (Villa-Lobos — 1887, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone — 1897, Camargo Guarnieri e José Siqueira — 1907). Nascera na rua da Vala, hoje Uru- guaiana, no Rio de Janeiro. Seu pai era alfaiate ou “mestre-de-campo”, designacao vaga, mas 0 compositor o chamaya de “tenente”. A me, parda liberta, teve ascendentes “da Guiné”, isto €, escravos. José Mau- ricio teria sido mulato claro, com tracos fisionémicos comprovando sensivel contribuicao de sangue europen, € de cabelos finos ¢ soltos, na descricéo de seu proprio filho. Possuia estatura acima da média, a julgar por testemunhos fidedignos, e forte constituigao. Sua origem humilde e juventude modestissima, agravada pela perda do pai aos seis anos de idade apenas, s6 serviram de estimulo para sua inteligéncia viva e vontade férrea de vencer as barreiras da sociedade de entao, 56 MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO I: aumentadas ainda mais pela chegada da cérte portuguesa, Foi one do pela mae ¢ pela tia, e um negociante amigo da familia teria auxilia- do bastante seus estudos. Sempre foi um grande trabalhador e, no pe- riodo em que chefiou a Capela Real, snuliiplicouse até a exaustéo, com prejuizo para a sua produgao musical posterior. Sua vocacdo religiosa pode e deve ser questionada. A ordenagao a sacerdote, aos 25 anos de idade, foi uma escada para sua ascensdo social ¢ requisito indispensvel para atingir sua ambicdo méxima no momento — tornar-se mestre-de-capela. De sua educagao musical sé se sabe mesmo que foi aluno de um misico mulato, Salvador José, mestre de toda uma geragao no Rio, Cantava no coro, estudou solfe- jo, contudo nao existem provas de como conseguiu granjear a cultura que seus primeiros biografos insistem em atribuir-lhe. Nem mesmo os nomes dos mecenas que lhe teriam propiciado adquirir tais conhe- cimentos chegaram até nos. & indubitavel que a rapidez do processo eclesiastico de sua ordenagéo, em 1792, comprova seu preparo inte- lectual, ao ponto de serem dispensados intersticios ¢ “defeitos de cor”, Sabemos que, de 1802 a 1804, fez um curso de retorica com o Dr. Manoel Igndcio da Silva Alvarenga, experiéncia que lhe teria valido mais tarde o honroso titulo de “pregador régio” da Capela Real. Alias um bispo da época o considerava como um dos mais ilustrados sacerdo- tes da diocese, a quem sobejavam talentos fora da misica. Essa ima- gem de homem culto me parece 4itil sublinhar, porque ela representa uma nitida elevacdo intelectual de um misico e compositor mulato no Vice-Reinado. Entretanto, como veremos j8, a condigao de nativo e de mulato prejudicou muito a carreira musical de José Mauricio apés a chegada da cérte portuguesa, cheia de preconceitos. Além de suas funcées de mestre-de- capela, José Mauricio desem- penhou papel importante como professor e, dentro da velha tradicao mencionada no capitulo anterior, tinha em sua casa uma escola de mu- sica que manteve quase até o final de sua vida. O objetivo era prepa- Tan musicos © cantores para as ceriménias religiosas da Sé do Rio de Janeiro. Os alunos usavam um laco azul ¢ vermelho no chapéu, 0 ensi- No €ra gratuito e a participacdo nos conjuntos musicais resultava em isenc&o do servico militar. Dom Joao VI deu-lhe uma pensao que aju- dou a mantera escola, mas Dom Pedro I nao teve condicdes financei- fas de confirmé-la ¢ a sus lara 28 anos, findou em 1822 No ano ante: dio de masica e método | | j i } i i : i MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO I: 57 das em uma casa na rua das Marrecas, Essa casa da rua das Marrecas n® 14 the foi doada pelo negociante Thomaz Goncalves para formar um patrimonio requerido para a ordenac¢do de sacerdotes nao indica- dos pelo Rei. Dores de cabeca causou-lhe um empréstimo tomado com — penhora desta casa, afirma o padre Schubert. Francisco Manuel foi seu discipulo e o mestre nem sequer dispunha de um cravo ou piano, sendo a viola-de-arame o instrumento de ensino basico. Quando mencionamos que sua vocagao religiosa era duvidosa, tal- vez fosse o caso de especular também sobre a repercussao de sua vi- da amorosa na carreira musical, sobretudo aps a chegada de Marcos Portugal, rival, compositor, inimigo ¢, no final da vida, talyez amigo. Luiz Heitor julga que 0 “permissionismo” do século XVIII deveria re- levar as fraquezas de sua vida privada. José Mauricio teve seis filhos de uma mulher chamada Severiana. A mae destes filhos, Severiana Rosa de Castro, filha do portugués Joao de Castro Moreira e da “escura”’ Andreza Maria da Piedade, parece nunca ter convivido com José Mau- ricio, E mais tarde é de supor uma separacdo formal, pois ela se ca- sou com um rico portugués, Antonio Rodrigues Martins, Teve deste um filho que também se tornou médico, tratando do pianista Gotts- chalk, adoentado durante sua visita ao Rio de Janeiro (Padre Schu- bert). Viveu com ela e os filhos de maneira permanente? Provavelmente néo. Cedo se separaram para guardar as conveniéncias, mas as crian- cas continuaram a nascer. A 8 de abril de 1830, pouco antes de mor- rer, 0 compositor compareceu a um tabelido para legitimar 0 Dr. Nu- nes Garcia. Enquanto Dom Joao precisou de José Mauricio para a diregao da Capela Real, ele teria tolerado a situagao embaragosa, mas ao chegar Marcos Portugal de Lisboa, em 1811, € possivel que o relativo ostra~ cismo do compositor nao tenha sido motivado apenas pela campanha contra ele movida pelo misico portugués, mas também pelo fato de que o padre-mestre da Capela Real, além de brasileiro, era mulato € 44 tinha entao trés filhos. O rival pode ter utilizado esse argumento junto ao monarca tao religioso, na corte tao Iusofila, ¢ com os altos prelados. Entretanto, José Mauricio nunca perdeuo favor do Rei, nem chegou a ser dispensado de seu cargo, que conservou até a morte. ‘José Mauricio havia sido nomeado em 1798 mestre-de-capela da Catedral e Sé do Rio de Janeiro, mas desde sua ordenagao era padre- mestre da igreja da Irmandade de Sao Pedro dos Clérigos. Alias foi um dos fundadores da Irmandade de Santa Cecilia. Suas responsabi- NA CORTE DE D.JOAO VIE D. PEDRO I: erm muitas: compositor, regente ¢ intérprete (organista), além rganizador das cerimonias religiosas realizadas na Sé. Era consi- _ derado excelente organista e seus bidgrafos nos contam varios epis6- emocionantes, talvez fantasiosos. Improvisador habil, no juizo ‘do masico austriaco Sigismund Neukomm, atraiu a atencao do Prin- cipe Regente logo apés a sua chegada, quando José Mauricio estava na plenitude de sua capacidade musical, aos 41 anos de idade. Nos trés primeiros anos da estada de Dom Joao no Brasil, o padre-mestre : foi o lider das atividades musicais no Rio de Janeiro, apesar de sua timidez. Teria o principe mandado buscar Marcos Portugal, ou veio ele de Lisboa atraido pela corte? José Mauricio foi posto de lado sem muita cerimOnia e restam poucas referéncias a suas atividades musi. cais. Valeu-lhe porém a amizade de alguns dos ilustres membros da missdo cultural francesa que D. Joéo mandara buscar de Paris em 1815, ap6s a queda de Napoledo. Freqiientava ainda José Mauricio os sa- loes da €poca ¢ o Consul Geral da Rassia, Langsdorf, muito apreciava seu talento. Era porém abertamente hostilizado pelos artistas portu- gueses como um competidor temivel, que precisava ser afastado a to- do custo. Cabe aqui um pardgrafo dedicado a Marcos Portugal, cujo nome Ja foi mencionado mais de uma vez. Era entdo o mais importante mai- sico portugués, nascido em 1760. Menino prodigio em Lisboa, aperfeicoou-se em Napoles, onde fez amizade com Cimarosa. Suas Ope- tas ndo s6 dominaram a cena em Portugal, como também foram apre- sentadas com algum sucesso em varias capitais européias, inclusive em Sao Petersburgo. Sua musica nao era original, nem a inspiragéo de primeira égua, razéo pela qual nao sobreviveu ao autor. Chegou ao Rio de Janeiro “feito um lorde, com fumos mui subidos” e trouxe con- sigo mais masicos portugueses, fator importante talvez para o afas- tamento de José Mauricio, Como era de se prever, hostilizou de ime- disto © timido miisico mulato, Sao conhecidas algumas cenas de com- Peticéo entre os dois compositores ¢ se José Mauricio levou a melhor Ho momento, o invejoso € prepotente lusitano em breve conseguia com- pleto dominio do meio musical carioca. E nao subestimemos @gora essas atividades musicais, pois en- quanto Di MUSICA NA CORTE DE D, JOAO VIE D. PEDRO I; 59 dou buscar mGsicos em Lisboa e castrati italianos, Segundo Debret, gastava-se 300,000 francos ouro anuais com a Capela Real, da qual faziam parte cingiienta cantores ¢ uma centena de intérpretes, dirigi- dos por dois mestres-de-capela. Viajantes de passagem pelo Rio lou- varam a qualidade da execugao ¢ considerayam a orquestra como uma das melhores do mundo de entao. Se descontarmos 0 periodo em que } a Capela Real era somente dirigida por José Mauricio e ainda nao ha- via recebido a plenitude do plantel de musicos depois a sua disposi- t cdo, podemos estimar que esse apogeu musical durou dez anos ape- _ i nas. Quando Dom Joao VI deixou a cidade, forgado pelo Parlamento ) portugués a regressar a Lisboa, criou-se um vazio imenso, que a Inde- pendéncia nao péde preencher por falta de recursos. Mas voltemos ? a José Mauricio e demos um vistaco em sua meritéria obra de compo- sitor. eo 2 Se eatecie ten Possuia o miisico carioca uma boa biblioteca musical? Sua ori- gem no se situa bem. Deve tratar-se da colecdo de musica da Capela Real, de que era arquivista, Tinha em mdos algumas das obras mais representativas de Haydn, Mozart ¢ Beethoven e seus trabalhos ates- tam um conhecimento abalizado da miisica que se fazia na Europa. E verdade que, desde muito antes, 0s compositores e intérpretes de Minas Gerais importavam misica regularmente das capitais européias, trfego esse que passava por Lisboa c tinha coordenadores no Rio de Janeiro também. Correriam todas as despesas por conta da Igreja? Nao € vidével. Ou haveria um mecenas desconhecido que apoiou José Mau- ricio em mais de uma etapa de sua vida? Fala-se de um certo José Mau- ricio Goncalves, que o teria ajudado. E verdade que, nessa época, ga- nhava bastante dinheiro com as partituras encomendadas e as preben- das que acumulava. Examinando suas obras na biblioteca da Escola Nacional de Misica, do Rio de Janeiro, conclui-se que grande parte do que escreveu deve-se a encomendas para fungOes especificas, na Sé ou na Capela Real. Antes da chegada de Dom Joao, teve José Mauricio dificuldades em obter uma orquestra completa para interpretar suas obras, 0 que as limitou as disponibilidades das circunstancias. Por vezes 0 acom- panhamento se restringiu ao 6rgao, madeiras e trompas apenas. Gos- tava muito de escrever para quatro vezes mistas. Luiz Heitor identifi- ca muito bem o estilo de José Mauricio no seu periodo mais inspira- do, antes da chegada da cérte ao Rio. Escrevia ele “sobre as partes vocais, serenamente arquitetadas, (...) primorosas melodias de natu- MUSICA NA CORTE DE D. JOAO V1 E D. PEDRO I: 60 rere tipicamente instrumental. Esse desenho mel6dico oe te, as vezes de cativante beleza, sobrepondo-se contextura vocal, € tipico do compositor ¢ 0 encontramos em suas melhores paginas”, Paralelamente a reorganizacao e fortalecimento da Capela Real, Dom Joao mandou construir um teatro suntuoso em que se tentou jmitar 0 Sao Carlos, de Lisboa. Ficou pronto em 1818 e estava no lo- cal onde hoje se encontra o Teatro Joaio Caetano. Chamou-se logica- mente Real Teatro de Sao Joao ¢ 14 foram encenadas as 6peras dos compositores mais em voga na €poca, a comecar por Marcos Portu- gal. José Mauricio teria composto uma Opera para esse teatro, intitu- lada Le Due Gemelle, mas nunca chegou a ser encenada e a partitura se perdeu. Infelizmente o teatro nao durou muito e se incendiou em 1824. O compositor teria tentado, em 1803, a musica operistica e : até hoje se ouve em concertos sinfonicos a abertura Zemira, “para ser i executada com relampagos e raios nos bastidores...” Cléofe P. de Mattos nega essa tentativa. E sentencia Luiz Heitor: “A voga da misica em estilo teatral, pesadamente ornamentada nas partes vocais, contami- : na ainspiragao de José Mauricio depois da chegada de Marcos Portu- gal a0 Rio. Esse era o estilo do compositor portugués ¢ na competi- Gio que se estabelece entre os dois, acusado o padre de bisonho ou fora de moda pela assembléia galante, que se reunia envolta em sedas © carregada de j6ias, procurou ele defender-se, sacrificando sua legi- tima inspiracéo aos ditames do respeito humano. A suave singeleza da Missa em si-bemol jé nao se encontra na Missa de Réquiem, na Missa Mimosa, ou mesmo na grande Missa de Santa Cecflia de 1826, derradtira obra” Avcegenie ¢ musicologa Cléofe Person de Mattos elaborou utilis- simo catélogo tematico da obra de José Mauricio, apesar das falhas da cronplogia. Divide ela seus trabalhos em missas, oficios, obras pa- ta cerimOnias fiinebres, pecas para a Semana Santa, obras profanas, fa instrumentais, teoricas ¢ avulsas, além de orquestraces, A varieda- || Seon amecne eae centyos cae to adc, ri ake publica 2608 aind ae Ergo, Te Deum, matinas, vésperas, | Beeige ae ha 4 SO poucas € as gravacGes também, mas i ‘oje uma cutiosidade acentuada pela musica do / 1 i ] ; MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO I: 61 {uras pouco apropriadas para as vozes normais. Dentre as obras mais representativas do estilo de José Mauricio apontamos a Missa em si- bemol, a Missa de Réquiem, a Missa Pastoril para a Noite de Natal, a Sinfonia Fanebre e o Tantum Ergo. Julga Luiz Heitor que ao compo- sitor faltava experiéncia, talvez mesmo natural inclinagdo, para as es- capadas as regides da miisica profana. Tota Pulkchra est Maria passa por haver sido sua primeira composicéo, aos 16 anos de idade. Mario de Andrade, em artigo datado de 1980, sintetiza bem: “Ge- nio de grande suavidade, duma inveng&o melédica apropriada ¢ eleva- da, as vezes reponta em José Mauricio uma ou outra linha mais dra- mética. Mas como expressividade geral é quase sempre doce, humil- de, sem grandes arrancadas misticas, nem éxtases divinos. Um ser muito configurado as mesquinharias da vida. Nao teve coragem, nun- ca se arrebatou. Nem os arrebatamentos da humildade ou da pureza quis ter. Ficou muito dentro do seu tempo e dentro de si mesmo. Niti- dez melédica, boa sonoridade, comedimento equilibrado, escritura emi- nentemente acordal, sem individualismo. Foi o maior artista da nossa miisica religiosa, mas nao ultrapassou o que faziam no género os ita- lianos do tempo. E isso, universalmente, era pouco”. O compositor faleceu a 18 de abril de 1830, aos 62 anos de idade portanto. Os bidgrafos salientam sua pouca safide em varios momen- tos importantes de sua carreira ¢ € inegavel que Dom Joao VI exigiu muito da resisténcia fisica de José Mauricio, sobretudo no periodo 1808-11. Eevidente que seu progressivo afastamento da corte o depri- miu ¢ desestimulou, A partida do Rei para Portugal deve ter represen- tado o golpe final nas esperancas do compositor, tanto mais que Dom Pedro I, apesar de musico também, nem sequer pode manter a pensdo concedida pelo pai para a manutencao da escola de miisica. Depoimento do filho de José Mauricio parece revelar um envelhecimento prematu- 10, alguma doenca crénica que Ihe provocava dores fortes. Morreu po- bre na rua do Nancio n® 18 e foi enterrado no claustro da igreja da Ir- mandade de Sao Pedro, tal como desejava. Infelizmente, nao foi possi- vellocalizar até agora os restos do Padre-Mestre. Seu desaparecimen- to ndo causou emocao alguma na sede do Primeiro Império e 86 0 Dia- rio Fluminense (7 de maio) publicou um necrolégio redigido pelo cone- go Janudrio da Cunha Barbosa, velho amigo ¢ companheiro de Irman- dade. Curioso anotar que Marcos Portugal lhe antecedeu em trés me- ses apenas, havendo falecido em fevereiro do mesmo ano e enterrado no Convento de Santo Antonio “com vestes de cavaleiro”, 62 MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D, PEDRO I: i dedicado divulgador O filho do compositor carioca foi depois um i c da oo personalidade do pai. Também a familia Taunay contri- buiu bastante para a memoria de José Mauricio Nunes Garcia; 0 pin- tor Nicolas de Taunay, j4 em Paris, pedia noticias do “grand mulatre” ¢, no fim do século, o Visconde de Taunay escreven paginas entusias. tas em homenagem ao Padre-Mestre, cuja casa encontrou ainda em tado, oe foi apenas José Mauricio a tnica “vitima” do famigerado Marcos Portugal. Urge também recordar Sigismund Neukomm ¢€ so- bretudo Damiao Barboza (1788-1856), que representou na Bahia o que José Mauricio foi na corte de Dom Joao VI. Autor sacro de algum mé- tito, esteve no Rio quando jovem ¢ foi primeiro-violino da orquestra da Capela Real, Tanta perseguicao the teriam movido o musico portu- gués € seu grupo lusitano, impedindo a execucao dos seus trabalhos, » que Damiao Barbosa regressou a Salvador. Neukomm chegou ao Bra- sil na comitiva do Duque de Luxemburgo em 1816 e ficou no Rio até A821. Depois, em Viena, ocupou cargos importantes. * Outros compositores da época néo devem ser esquecidos, sobre- tudo Joao de Deus Castro Lobo (Vila Rica, 1794-1832), que foi con- temporaneo de José Mauricio. Ele exerceu sua relevante atividade mu- sical em Mariana, onde brilhou como organista da igreja da Ordem Ter- ceira da Peniténcia de Sao Francisco e depois mestre-de-capela da ca- tedral. Foram encontradas 48 obras Suas, uma delas nfo religiosa, Abertura em ré, para orquestra. Autor de duas missas, um Je Deum, Matinas de Natal, Responsérios Fiinebres e Matinas de Sao Vicente de Paulo. Pode ser considerado o filtimo dos grandes compositores mineiros do periodo colonial. F Tarry Crowl tem sido um estudioso da obra de Castro Lobo. Outros nomes menores foram José Joaquim de Paula Miranda (1780-1842), de Prados, perto de Sao Joao del Rey, cu- ja Missa em dé maior tem sido divulgada com sucesso por Ernani Aguiar; José Joaquim de Sousa Negréo (falecido em 1882), autor das cantatas A Estrela do Brasil e O Ut interpretadas com agrado pelo mesmo regente; ¢, finalmente, o cario- ca Gabriel Fernandes ‘Trindade, violinista ¢ cantor da Capela Impe- tial, autor de misica de camara (Trés Duos Concertantes), ‘imo Canto de David, que foram cos Pen Pedto I (Lisbos, 17081834) fol shino de Jose Mauricio, Mar- Ortugal e Sigismundo Neukomm. Seus dotes como compositor MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO I: 63 tém sido talvez exagerados ou romantizados, mas é indubitavel que dois trabalhos de importancia hist6rica sao de sua lavra: o Hino da Independéncia, no Brasil, e o Hino da Carta, que comemorou a revo- lugdo do Porto, quando retomou de seu irmao Miguel a coroa portu- guesa. Nao é aqui o momento de rememorar a personalidade incisiva € pitoresca de Dom Pedro I, do Brasil, ou D. Pedro IV, de Portugal, Entretanto, sua paixdo pela musica esta tao comproyada que me pa- rece indispensavel registré-la. ‘¢s Marcos Portugal ensinou-lhe nogdes técnicas da musica em ge- ral ¢ teria aprendido a tocar nada menos de seis instrumentos: fago- te, trombone, clarinete, violoncelo, flauta e rabeca{ Neukomm, muisi- co austriaco que viveu no Rio de Janeiro durante a estada de Dom Joao VI, ensinou a Dom Pedro composicao, contraponto e harmonia, [Ti- nha boa voz e gostava de cantar modinhas, afirma Renato Almeida, Em 1821, a Princesa D. Leopoldina, também pianista, enviou expres- siva carta a seu pai, o Imperador Francisco I, da Austria, dizendo: “O meu marido €é compositor também, faz-vos presente de uma sinfonia ede um Te Deum compostos por ele. Na verdade sao um pouco tea- trais, o que é culpa do seu professor, mas 0 que vos posso assegurar é que ele préprio os compds sem auxilio de ninguém.” Organizava ele concertos na fazenda de Santa Cruz, nos arredores do Rio, ¢ muitas vezes tomou parte na orquestra como primeiro clarinete. Comentamos a figura de Dom Pedro neste capitulo porque sua formagao musical e grande parte de sua produgdéo como compositor data de antes da partida do Rei, seu pai, para Lisboa, em 1821. De- pois da Independéncia, nao lhe sobrou muito tempo para a mGsica € inclusive decepcionou a muitos colegas, como o Padre Jos¢ Mauricio, a quem nao confirmou a pensdo, presumivelmente por razoes de eco- nomia. Sabe-se com certeza que compos uma Sinfonia, um Te Deum, Variagoes sobre uma aria de danga popular (Miudinho), uma Missa que foi interpretada em 1829 na Capela Imperial, quando se casou pela Segunda vez; a abertura para uma Opera em portugués, executada em 1832 no Teatro Italiano, de Paris; 0 Hino da Independéncia, de que falaremos a seguir, e o Hino da Carta, que foi o hino nacional portu- Sues até a abolicéo da monarquia em Portugal, em 1910. O primeiro €, realmente, uma peca inspirada e esponténea, que agrada ainda ho- Je. Jé o Hino da Carta me parece mais artificial, com pouca originali- dade e evidentes resquicios de Mozart e das arias de operas italianas. Nao se deve subestimar seus conhecimentos musicais, embora tenha 64 2 MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO I. sido forcosamente, primeiro como Imperador e depois como Rei, ape- itor bissexto. : Fea ecb de D, Pedro I se multiplicam: em 1957, Re- né Brighenti descobriu o Credo que faz parte de uma missa identifi cadaem 1972 por Cléofe Person de Mattos. Em 1965, foi achado um Te Deum que s¢ encontrava nos arquivos da Curia Metropolitana. Cléofe diz que a missa ¢ “agitada, arrebatada, pomposa — tracos psicologt- _ cos do Imperador — cheia de arranques instrumentais, de allegros bri- Ihantes, de andamentos imperiosos. Pode nao ser uma obra-prima, mas_ é bastante boa para um Imperador, ou em plena preparacao para isso, 44 que a data da composicao ¢ incerta”. Em 1982, monsenhor Schu- bert descobriu no Rio uma antifona litargica, Sub Tium Presidium, que Pedro I compés ¢ escreveu do préprio punho, a julgar pela assina- tura, A obra esta no arquivo do Cabido, onde se encontram as pecas acima citadas e mais o Moteto a Sao Pedro de Alcantara, padroeiro da familia real. Luis Paulo Horta julga que Pedro I “pode reivindicar um lugar modesto, mas bem seu, na histéria da nossa musica”. Muita fantasia se tem escrito sobre a elaboracdo do Hino da In: dependéncia. A principio, pensava-se que Dom Pedro havia escrito tam- bém a letra, mas em 1833, Evaristo da Veiga, jornalista e politico da €poca, protestou contra tal versao, afirmando ser ele mesmo 0 autor _ das palavras. Nao haveria fundamento tampouco que o Principe te- nha composto a miisica na tarde de 7 de setembro de 1822: era vir- : tualmente impossivel compor, orquestrar e ensaiar o hino em tao cur- _ to espaco de tempo e no estado de espirito em que se encontrava. Segundo Evaristo da Veiga, naquela noite teria sido interpretado no teatro um hino de Marcos Portugal, ao qual se adaptou a letra de sua autoria, Outra versio conta que o proprio Principe entoou o seu hino, acompanhado por varias senhoras, findo 0 qual foi aclamado em deli: o “Rei do Brasil”. Um terceiro depoimento relata que n&o se cantou Dae ee teatro, havendo apen: > sido representado o drama O . do de Pedra, em atmosfera de intenso jtibilo. O mais provavel mesmo € que o Imperador, dias depois, tenha ajustado o seu hino a8 _ : es Evaristo da Veiga. Os originais da letra ¢ da misica estéo © Hist6rico e Geografico, no Rio de Janeiro. t 0 a acne Porn aera MUSICA NA CORTE DE D. JOAO VIE D. PEDRO L 65 BIBLIOGRAFIA Aratijo Porto Alegre — Apontamentos sobre a Vida e Obras do Padre José Mauricio Nunes Garcia, in Revista do Instituto Historico ¢ Geogrfico do Brasil, tomo XIX, Rio de Janeiro, 1856, pag. 365. Visconde de Taunay — Uma Grande Gloria Brasileira, José Mauricio Nunes Garcia, Sao Paulo, Cia. Melhoramentos, — Dois Artistas Maximos: José Mauricio e Carlos Gomes, Sao Paulo, Cia. Melhoramentos, Rossini Tavares de Lima — Vida e Epoca de José Mauricio, Sao Paulo 1941, Mario de Andrade — Mrisica, Doce Masica, Livraria Martins Editora, Sao Paulo, 1963, Cléofe Person de Mattos — Catalogo Tematico de José Mauricio Nu- nes Garcia, Conselho Federal de Cultural, MEC, Rio de Janeiro, 1970. Padre Schubert — O Brasil de Ontem na Vida do Padre José Mauri- cio. (Revista do Instituto Historico e Geogralico Brasileiro, Rio, 1982. ). Jean Paul Sarraute — Marcos Portugal, Fundacao Gulbenkian, Lisboa, 1979. Joao C. Caldeira Filho — Notas a Margem do Hino da Independencia, in O Estado de Sao Paulo, 21-10-1941. Luis Norton — A Corte de Portugal no Brasil, Sao Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938. Oliveira Lima — Dom Joao VI no Brasil, 2° edicdo, Livraria José Olym- pio Editora, Rio de Janeiro, 1945. Octavio-Tarquinio de Sousa — A Vida de D. Pedro I, Rio de Janeiro, 1972, 3 vol., José Olympio Editora. Renato Almeida — Historia da Masica Brasileira, Rio de Janeiro, 2° edicdo, 1942. Iniz Heitor Corréa de Azevedo — 150 Anos de Mrisica no Brasil, Li- vraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1956. Cle6fe Person de Matos, a maior especialista em José Mauricio, esta ultimando importante novo livro sobre o Padre-Mestre. Soe 4. A Masica no Tempo do Império: Francisco Manuel Conforme dissemos no capitulo anterior, o regresso a Lisboa do- Rei Dom Joao VI foi um desastre para a misica no Brasil. O nivel das atividades musicais na Capela Real, e depois Imperial, baixou brus- camente. A miisica profana também sofreu muito, com a agravante de que o Teatro de Sao Joao, no Rio de Janeiro, incendiou-se em 1824. Apesar do entusiasmo de Dom Pedro I pela musica, como composi- tor intérprete, a situacao financeira criada pela Independencia nao podia deixar de se refletir sensivelmente em tudo que nao fosse in- dispensavel. Os ingleses ajudaram, mas fizeram-nos progressivamen- te pagar um alto preco pelo modesto auxilio que prestaram. Entretanto, visitantes de passagem pelo Rio de Janeiro nos pri- meiros anos do Império ainda davam depoimentos elogiosos. O ho- landés Jacobus van Boelen relatava, em 1826; “A 6pera imperial ¢ es- plendidamente construida e preparada, e é igual em tamanho ao Stads Schouwburg de Amsterda. As operas e os bailados, para cuja suntuo- sidade e beleza nada poupam, s4o executados por artistas italianos € merecem 0s maiores elogios”, £ oportuno recordar que naquele ano © teatro havia sido restaurado e reinaugurado como nome de Sao Pe- dro de Alcantara. Alguns artistas estrangeiros tinham optado por fi- car no Brasil, inclusive Marcos Portugal, j4 idoso. Mas o declinio era 68 A MCSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL inexordvel, agravado pelas perturbacdes politicas que culminaram com: a abdicacao forcada de Dom Pedro I, a 7 de abril de 1831. Nas residéncias dos ricacos continuava-se a fazer musica e apor- taram ao Brasil outros artistas e professores. Em Sao Paulo existia na €poca uma Sociedade Harmonia Paulista. Ha noticias, em 1829, de concertos no Recife com trechos de Operas italianas. A auséncia de escolas de masica ou conservatorios foi suprida, em parte, por pro- fessores privados, mas € evidente o cardter elitista do ensino, ; A abdicacao de Dom Pedro I acarretou a dissolugao da orquestra da Capela Imperial. 0 namero de misicos baixou de cem para vinte e sete em total, a saber: dois mestres-de-capela, dois organistas, vin: te cantores e trés instrumentistas. Como disse Renato Almeida: “De- pois do tempo de Dom Joao VI, projetou-se uma larga sombra sobre a miisica brasileira até o aparecimento de Carlos Gomes. Nesse pe- riodo s6 uma figura velava pela conservacéo do nosso patrimonio mu- sical, Francisco Manuel”. Entretanto, a misica profana lutava afano- samente por sobreviver e afinal conseguiu. O momento politico da Re- géncia nao ajudava em nada com os repetidos tumultos. $6 mesmo depois da maioridade de Dom Pedro II, em 1840, normalizou-se a vi- da nacional e houve melhores condigdes para um renascimento das _ atividades artisticas regulares. A 6pera italiana serviu para manter o interesse pela masica. O Teatro Sao Pedro de Alcéntara era o centro dessas atividades ¢ Rossi- ni teve o privilégio de manter bem acesa a chama musical no Rio de Janeiro: suas éperas IT Barbiere di Siviglia, La Cenerentola, L'Italiana in Algeri, La Gazza Ladra gozaram de uma popularidade enorme. O: artistas cram italianos na maioria, mas também brasileiros tiveram grande voga, como 0 baixo Joao dos Reis ¢ 0 tegente Pedro Teixeira de Seixas. O prestigio da Opera era téo grande que se introduziu na linha melédica da nossa modinha e entrou até na Igreja, tao mediocre oe ee de masica Sacra nesse periodo, Trechos de 6pera eram_ eae . ee nas igrejas com freqiiéncia. Alids, esse ha- eos gate a ‘a feita com sucesso por Frei Pedro Sinzig » dO presente século, Recordo-me ainda, quando jo- vem, haver ouvido 0 Vissi darte, vissi damore, da Tosca de Puccini, cantado nas igrejas como Ave Maria, gratia plena. : © periodo mais dificil i revive S ara a soby ni ie mo disse, entre 1831 . éncia da boa miisica foi, co Brasil a sorte de contar com 0 esforco de Francisco Manuel da Silva, que conhiecera de perto a épo- A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL 69 ca aurea (1815-1821), como integrante da orquestra da Capela Real, ainda muito jovem. Nascera no Rio de Janeiro a 21 de fevereiro de 1795 e desde cedo estudou misica com o Padre José Mauricio, cuja traje- t6ria final acompanhou como aluno e amigo fiel, Foi também discipu- lo do notével mtisico austriaco Sigismund Neukomm, que lhe ensi- nou Contraponto e composic¢fo. Teria sido habil executante do violi- no, violoncelo, 6rgao e piano. Muito jovem, escreveu um Te Deum que dedicou ao entao principe Dom Pedro, o qual entretanto nao péde cum- prir sua promessa de mandé-lo aperfeicoar-se na Italia. Nomeou-o, po- rém, para a orquestra da Capela Real, onde sofreu o facil ciame de Marcos Portugal. Tinha 85 anos quando faleceu José Mauricio, em 1830. No ano seguinte, sem o saber, escreveria a obra que o imortali- zou: 0 hino que em breve seria adotado como nacional. Mas vamos seguir a carreira de Francisco Manuel antes de comentar 0 nosso belo hino nacional O notével impulso inspirador dessas paginas musicais parece se haver esgotado naquele grande momento de criag&o. Francisco Ma- nuel foi um compositor pouco original. Pelo menos € 6 que tém reve- lado as poucas partituras de sua lavra que nos chegaram as maos. Gran- de parte de sua obra foi para ser interpretada na Capela Imperial e, tal como ocorreu na fase final de José Mauricio, deixou-se influenciar pelo gosto da época. E preciso reconhecer que a personalidade domi- nante de Marcos Portugal e a extraordinaria voga da opera italiana se infiltraram na producao de todos os miisicos daquele periodo. Luiz Hei- tor julga sua obra “teatral, grandilogiiente, sem vestigios de ungao re- ligiosa”. : Mas além do hino nacional, Francisco Manuel merece nossa gra- tidao hist6rica pela extraordinéria atividade que desenvolveu nesse pe- riodo de estagnacéo criativa. Em 1838 fundava a Sociedade Benefi- cente Musical, que teve atuacdo significativa e durou até 1890. A So- ciedade Filarmonica, nascida em 1834, também obteve entusidstico apoio de Francisco Manuel e depois, sob o nome de Sociedade Musi- cal Campesina, desempenhou importante papel na vida musical ca- rioca até 1880. O jovem Imperador teve muita simpatia por Francisco Manuele logo apés a Maioridade nomeou-o mestre-compositor da Im- perial Camara (1841) e no ano seguinte suceden a Simao Portugal co- mo mestre-de-capela. Em 1846, Dom Pedro II condecorou Francisco Manuel pelos servicos prestados a misica brasileira, no grau de cava- leiro da Ordem da Rosa (promovido a oficial, em 1857). Dentre a obra 70 A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL do compositor, saliento a Missa Ferial ¢ a Missa em mi bemol, que se ouvem com muito agrado e cujas partituras se encontram no arqui- vo da Orquestra Ribeiro Bastos, em Sao Jodo del Rey. O grande feito de Francisco Manuel, como professor e organi; : dor do ensino da misica no Brasil, foi a criagéo do Conservatério do Rio de Janeiro. Através da Sociedade Beneficente Musical, solicitoi a Assembléia Legislativa do Império uma subvengéo especial para criagéo de uma importante escola de musica, para o que consegui o apoio de Dom Pedro Il. O projeto foi aprovado em 1841, mas tardou a ser posto em pratica por falta de fundos. Foram feitas duas loterias €s6 em 1848 € que foi possivel 0 inicio das aulas, com seis profess res. Em 1855, foi estabelecido o regime de concurso para a escolha de mestres ¢ instituido o prémio de viagem aos alunos mais destaca- dos. Francisco Manuel continuava a frente da instituicao e, em agra- | decimento ao Imperador, escrevera um compéndio de mtisica a ele de- dicado. O compositor, aliés, continuava muito ativo também como regente no Teatro Litico Fluminense, na atual praca da Reptiblica, e depoisna | chamada Opera Nacional, quando dirigiu a primeira andicao de A Noit do Castelo, de Carlos Gomes. Neste interim, frutificava o Conserva- torio, ¢ a Capela Imperial absorvia seus melhores graduados, Ansia. va, porém, Francisco Manuel por fazer construir um prédio especial para o Conseryat6rio, o qual pudesse abrigar também um bom salao__ de concertos, apropriado para grandes conjuntos orquestrais. Nao che-— gou a ver concretizado o seu sonho, mas cerimOnia da pedra fundamental do novo ed 1872. O Conservatério fazia, entao, parte las Artes, mas depois ficou aut6nomo, pas to e, hoje, Escola de Masica, subordinado tal do Rio de Janeiro. 0 compositor cari dezembro de 1865, cercado de admiraga to setenta anos de idade. Perdia o Bras sistente organizador de ativi pelo menos participou da lificio, afinal imaugurado em da Escola Nacional de Be- ‘sando a chamar-se Institu- agora a Universidade Fede- loca faleceu no Rio a 18 de A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL a monarca. A bilbioteca da antiga Escola Nacional de Masica possui um manuscrito do compositor com a letra alusiva ao 7 de abril, de Ovidio Saraiva de Carvalho e Silva, sobreposto a mitisica. Persistem dividas, porém, se 0 hino de Francisco Manuel foi composto na ocasiao ou se a letra foi adaptada posteriormente. Luiz Heitor julga que “a impro- priedade da miisica para o metro e o tipo de estrofes usadas pelo poe- ta parece decidir a favor de uma adaptacdo”. As palavras mal ajusta- das a miisica teriam j4 sido cantadas em ptiblico a 14 de abril de 1831 e continuaram a ser utilizadas mais adiante, sendo porém alteradas as referéncias a abdicacdo forcada, ap6s a ascensao ao trono do Dom Pedro II. Nao ha registros de como nem quando o hino passou a ser oficia- lizado no decorrer do Segundo Impédio. A Reptblica, porém, 0 aco- Theu e 0 consagrou formalmente pelo Decreto n® 171, de 20 de janei- ro de 1890. A letra que todos cantamos hoje, entretanto, s6 foi ela- borada em 1909 e oficializada em 1922 (Decreto n° 15.671, de 6 de setembro). O poeta era Osério Duque Estrada, vate menor que en- trou assim na Histéria de bragos dados com Francisco Manuel, que nunca teria sonhado, em 1831, estar escrevendo o Hino Nacional do Brasil. Por influéncia de Villa-Lobos, o governo Gettilio Vargas ten- tou disciplinar a interpretagao do hino, que se vinha abastardando so- bremaneira. O Decreto-lei n? 4.545, de 31 de julho de 1942, provo- cou vivo debate, em que os inimigos de Villa-Lobos chegaram até a dizer que pretendia substituir a obra-prima de Francisco Manuel por uma composicao dele... f curioso frisar que um estudo prévio detec- tou 59 erros na execuco costumeira do Hino Nacional: 27 de ritmo e 32 de entoacao. Entretanto, os compositores da época de Francisco Manuel con- tinuavam a escrever musica sacra de terceira categoria, imitavam arias da Operas italianas, faziam adaptagdes e compunham modinhas. Va- rias companhias liricas visitaram o Brasil, sempre com grande suces- so nas maiores cidades. Nos saraus dos ricos fazia-se sempre muita miisica, as mocas estudavam piano e havia secdes de miisica até em revistas de moda feminina. A criacéo musical, porém, estava estagna- da: de José Mauricio até Carlos Gomes nada de importante ocorreu na mtisica brasileira, como criacdo. Se o bel canto gozava de enorme popularidade, 0 Brasil ignorava quase por completo os grandes compositores romanticos. A primeira das sinfonias de Beethoven a ser interpretada por completo em con- ‘A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL certo teria sido a Pastoral, em 1848, As prima-donas despertavam aixonado da juventude musical desde o tempo da Can- aoe e er autow.a primeira audicéo da Norma de Bellini, no Brasil, a a0. Ea Opera italiana conseguiu até pep teat oficial, o que per. mitiu a vinda a nosso pais de alguns dos maiores contoree da época, Rosina Stolz ¢ Tamberlick aqui estiveram nos anos cingiienta enéo | foram s6 temporadas de Opera italiana, mas também conjuntos fran- ceses revelaram as platéias brasileiras as Operas de Meyerbeer, Hé- rold, Auber, Boieldieu, Adam ¢ outros. E isso nao s6 no Rio, come em Sao Paulo, Bahia e Recife, onde reinaya o mesmo furor pela Opera, Os compositores italianos mais populares foram Rossini, Donizetti, Bellini, Verdi e Paccini, que alias dedicou a 6pera Niccolo dei Lapi a Imperador, estreada no Rio de Janeiro em 1855. ous O leitor da autobiografia de Richard Wagner se surpreenderé com a noticia de que Pedro II, através do consul brasileiro em Leipzig, en comendara ao grande misico alem4o uma 6pera de cunho romantico latino, de execucéo nao muito dificil, para ser encenada no Rio de Ja- neiro. Wagner aceitou a incumbéncia, e enviou partituras ricamente encadernadas a D. Pedro II, que alias nunca lhe respondeu. A verdad € que onosso Imperador jamais ofereceu dinheiro a Wagner para com- por uma Gpera, que a ele seria dedicada, Tudo n&o passou de iniciati- va propria de um brasileiro, falso consul do Brasil em Leipzig, ond alids jamais existiu um consulado brasileiro. Seja como for, Wagner entusiasmou-se pelo projeto, escolheu o tema de Tristao e Isolda comegou a escreyer a 6pera pensando no Rio de Janeiro, Ha varies teferéncias ao assunto em cartas de Wagner. Entretanto, a medida qui ele compunha a partitura, a obra se tornou tao complexa que decidi “screver ao suposto consul brasileiro duvidando da possibilidade di um teatro sul-americano poder encena-la. Muito mais tarde, D. Pedr I, que era admirador de Wagner, conforme se 1é em sua Correspon- déncia, conheceu pessoalmente o compositor em Berlim. A seu con- vite, nosso Imperador compareceu a inauguracdo do teatro wagneria- no de Bayreuth, para cuja construcdo teria até contribuido com pe- guena doacao em dinheiro, Fechado esse paréntese curioso, nhar 0 esforgo feito, em meados do Se sileira, cantada em Portugués. Em 18: mia de Masicae pera Naci, j Aaa ie p cional, cujo um exilado politico que vi parece-nos significativo subli- culo, para criar uma 6pera bra- 57 era crida a Imperial Acade- organizador foi o espanhol Jo: via no Rio de Janeiro desde 18. A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL 73 € animava os saloes da €poca como cantor de modinhas, acompanhan- do-se ele mesmo ao violao. Foi professor de miisica e era um entu- siasta das zarzuelas espanholas que procurou transplantar para o Brasil. O sucesso foi consideravel ¢ em breve 0 governo decidiu subvencio- nar. Em quartorze meses, José Amat encenou sessenta e dois espeta- culos de zarzuela, 6peras cémicas italianas e a Norma, de Bellini. Passou depois a Opera Nacional a apresentar obras de composi- tores brasileiros, tais como Elias Alvares Lobo, Carlos Gomes, Do- mingos José Ferreira e Henrique Alves Mesquita. Varias Operas do re- pert6rio normal foram traduzidas para o portugués, por completo ou parcialmente. A Norma e a Traviata foram encenadas em verndculo. Outra 6pera do brasileiro Henrique Eulélio Gurjao foi levada A cena no flamante Teatro da Paz, em Belém do Para, em 1881. Entretanto, nao podemos esquecer que 0s concertos sinfonicos tiveram papel muito importante no Brasil musical da segunda metade do século XIX. O entusiasmo pelo bel canto foi para muitos a intro- ducao para um repertério mais seleto de masica de cAmara ou sinfo- nica. A principio se fazia interpretar, antes das 6peras, alguma pega orquestral, uma abertura ou mesmo uma sinfonia, Em 1855 registra- se grande sucesso do pianista Sigismund Thalberg, o rival de Liszt. Em 1866 o famoso pianista portugués Artur Napoledo estabeleceu- se no Rio; em 1869, o norte-americano Louis Moreau Gottschalk en- tusiasmou 0 ptblico carioca com a Fantasia Triunfal sobre o Hino Na- cional brasileiro, estimulando bastante as atividades musicais. Orga- nizou ele um concerto espetacular com 650 miusicos, de orquestra e banda (com cem instrumentos de percussao), utilizando até uma peca de artilharia, Em 1870 esteve no Rio de Janeiro o famoso violinista Pablo Sa- rasate, que interpretou o concerto para violino de Mendelssohn, ao passo que o pianista Theodore Ritter executou 0 concerto em sol me- nor do mesmo autor. Artur Napoleao e¢ 0 violinista cubano José Whi- te fundaram a Sociedade de Concertos Classicos, que apresentava au- digdes de masica de camara, recitais, etc. Mencionemos também o Clube Mozart, fundado em 1867 e que tinha quinhentos sécios, em 1875. O Clube Beethoven, criado em 1882, foi porém o mais presti- gioso, havendo realizado 290 concertos, dos quais quatro sinfonicos. D. Pedro II costumava assistir aos concertos dos dois clubes musi- cais. Conta Luiz Heitor que 0 Clube Beethoven tinha sede propria e bonito salao de concertos, mantendo um quarteto de cordas perma- 7A : A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO: FRANCISCO MANUEL nente e uma academia de misica. “A principio, as audig6es eram re- servadas exclusivamente ao piblico masculino”, mas depois se admi- tiram senhoras nos concertos da rua da Gloria. O Clube Beethoyen encerrou suas atividades com o advento da Reptblica. Em Sao Paulo existia um Clube Haydn em 1888, dirigido pelo com- positor Alexandre Levy, de quem falaremos mais adiante. Durou qua- tro anos apenas, mas realizou 35 concertos. Houve também na capi- tal paulista, naquela época, um Clube Mendelssohn, que apresentou obras de autores alemaes. Alias, em Sao Paulo existiram duas revis- tas musicais; a Gazeta Musical (1893-5) ¢ Miisica, de 1896. No Rio apareceram as revistas Gazeta Musical (1891-8) e a Revista Musical e¢ de Belas Artes, dirigida por Artur Napoledo e Leopoldo Miguéz. Finalmente, surgiram os concertos populares a partir de 1887, cima mencionadas ofereciam audigées exclusi- 1s s6cios. Carlos de Mesquita inaugurou um ciclo de concertos sinfénicos publicos, no Rio de Janeiro, concertos popula- res que resultam mais tarde em uma sociedade para tal fim, inclusive } presidida por Alberto Nepomuceno, que divulgou abundantemente a miisica de Wagner e de autores franceses. BIBLIOGRAFIA 1 | { Vincenzo Cernicchiaro — Storia della Musica nel Brasile, Fratelli Ric- | cioni, Milao, 1926. ae Renato Almeida — Historia da Musica Brasileira, Editora Briguiet, i Rio, 1942, 2% edicao. i : dye oh : | Isa Queiroz Santos — Origem e Evolucao da Musica em Portugal e i sua Influéncia no Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942, “isco Curt Lange — Vida y Muerte de Louis Moreau Gottschalk, | in Revista de Estudos Musicales | Iniz Heitor — Musica e Masicos no Br i sil, Rio, 1950, | 150 Anos de Mii | 1956. Aires de Andrade — Francisco Manuel tora Cecilia Meireles, 1967, Rio n!? 45, Mendoza. . Casa do Estudante do Bra- ‘ica no Brasil, Editora José Olympio, Rio, € seu Tempo, 2 volumes, Edi- de Janeiro, A MUSICA NO TEMPO DO IMPERIO; FRANCISCO MANUEL José Maria Neves. A Orquestra Ribeiro Bastos e a Vida ‘Musteal er em Sao Joao del Rey, UNIRIO, 1987 (tese da catedra). Vasco Mariz — D, Pedro IT, Admirador de Wagner in Revista do neti tuto Historico e Geografico Brasileiro, n°* 358/61, paginas 345 a 353 Rio de Janeiro, 1988. 5. Carlos Gomes 1. Juventude Brasil pode vangloriar-se de haver produzido o maior composi- tor das Américas no século XIX, Carlos Gomes, e também, até este momento, o mais importante génio musical do continente, no século XX: Villa-Lobos, Dois génios sim, imperfeitos, desiguais na sua pro- dugéo musical, mas dotados daquela chama criadora extraordindria que atravessa fronteiras, empolga os criticos e as multidoes, supe- rando todos os preconceitos. O primeiro afirmou-se na Italia e 0 se- gundo, na Franga e nos Estados Unidos. O desconhecimento do lon- ginquo Brasil, unido ao temperamento rebelde e ousado dos dois com- positores, levaram amigos e jornalistas europeus a comparar ambos aos selvagens brasileiros. E cémico cotejar os artigos nos jornais ita- lianos e cartas de amigos de Carlos Gomes, com os escritos na im- prensa parisiense sobre Villa-Lobos. Com sessenta anos de interva- lo, os comentaristas europeus associaram 0. Jjeito irrequieto dos dois artistas 4 vaga nocdo que tinham dos indigenas do Brasil... O leitor nao devera espantar-se do espaco que dedicarei nesta obra aos dois maiores compositores brasileiros de todos os tempos. E importante conhecer de perto essas duas personalidades, pois compreendendo 0 homem, melhor entenderemos ou explicaremos a obra, ¢ eles estao entre as figuras mais ilustres que a terra brasileira j4 produziu. CARLOS GOMES Carlos Gomes nascera em Campinas, estado de Sao Paulo, a 1 de julho de 1836, filho de um musico do interior, Manuel José Go- mes, ¢ de Fabiana Maria Jaguary Cardoso. 0 av6 era espanhol ¢ a mae tinha sangue indigena nas veias. O espantoso era que Carlos Gomes teve nada menos de vinte ¢ cinco irmaos e irmas, dos quatro casa: mentos de seu pai. Uma vantagem: 0 pai educou os filhos na misica ¢, logo que pode, formou uma banda, ou orquestra, com a familia. Aten- cdo porém: somente os filhos homens participaram dessa banda. E 0 que os registros revelam. A tradi¢ao musical vinha de longe, pois o pai de Carlos Gomes tinha sido aluno de André da Silva Gomes, mestre-de-capela da Sé¢ paulistana, j4 mencionado neste livro. Aos dez anos de idade, Carlos iniciou os estudos musicais com o pai e apren- deu a tocar varios instrumentos. Mais tarde seria um bom pianista acompanhador e possufa uma voz agradével de tenor. Auxiliava 0 pai dando licdes de misica em Campinas, tanto que se encontram nos dJomais daquela cidade, em janeiro de 1858, antincios seus de ofereci- mento para ensinar nogées de musica, canto ¢ piano. Como era natural, comecou a compor bem cedo e, em 1854, aos 18 anos de idade, o conjunto familiar executava em uma igreja de Cam- Pinas a sua primeira Missa. A essa altura ja era um entusiasta da 6pe- ra italiana, © que nos parece perfeitamente normal, uma vez que a po- pularidade do genero era enorme no Brasil, Conhecia varias partitu- tas completas e se comovia até ao pranto com elas. Alias, esse tem- peramento superemotivo devera ac ‘ompanha-lo até o fim de sua exis- tencia ¢ agravar-lhe os problemas cotidianos. Iacom freqiiéncia a Sao Paulo, o que, na época, era uma verdadeira excursio: conheceu gente Culta, abriu os horizontes, deu concertos com 0 irmao Sant’Anna Go- a A se época, em que procurava escapar & provincia, a compo- si¢ao do Hino Académico, jébem Promissor. A famosa modinha Quem sabe? (Tao longe, de mi CARLOS GOMES 79 conservat6rio dirigido por Francisco Manuel. Nessa altura o pai de Car- los Gomes perdoara o arroubo do filho ¢ Ihe enviava pequena mesada. Por estimulo de seus mestres, escreveu duas cantatas que foram in- terpretadas logo a seguir com bastante sucesso e chamaram a aten- cao do meio musical carioca para o jovem compositor. Tinha 25 anos quando compés sua primeira 6pera, A Noite do Castelo, por iniciativa de Dom José Amat, que o havia contratado pa- ra regente e ensaiador da Opera Nacional. Carlos Gomes teria escrito a partitura de um sé folego e conyidou o yelho pai para assistir a pri- meira representacao, a 4 de setembro de 1861, no Teatro Lirico Provi- sério, encenada com muito éxito. Dois anos depois era cantada a se- gunda 6pera, Joana de Flandres, que Luiz Heitor considera “um pas- so a frente, no sentido de afirmar um estilo individual, quiga mesmo nacional, mais independente e caracterizado”, Em verdade, Carlos Go- mes espalhou varias modinhas pela partitura, na qual luta brayamen- te contra tencbroso libreto. Alias, seria o destino de Carlos Gomes sofrer empecilhos € prejuizos de todo o género, ao longo de sua car- reira, por causa dos maus, ou mesmo, péssimos libretos que se viu forgado a por em musica. Esta segunda opera, porém, lhe valeu a pen- sdo que o Imperador concedeu do seu proprio bolso. A ida para aperfeigoar-se na Europa era um passo inevitavel, mas 0 curioso € que Pedro II, na época ja entusiasta de Wagner, desejava enviar 0 jovem maestro brasileiro para a Alemanha. Entretanto, o im- petuoso campineiro, formado inteiramente na escola italiana, deve ter ficado apavorado ante a perspectiva aberta e, ao que parece, utilizou todos os intermedidrios possiveis para mudar a bolsa para a Itélia. A Imperatriz Tereza Cristina, filha do Rei de Napoles, foi responsével pela-mudanca de destino e caberia aqui especular o que teria conse- guido CarlosGomes se tivesse ido estudar com Wagner ou outro grande mestre germanico. As condicées da bolsa previam a elaboragdo de uma obra importante, 6pera ou nao, nos primeiros dois anos de permanén- cia na Italia, Partin no navio inglés Parana a 8 de dezembro de 1863 para Lisboa, levando carta do Imperador para o Rei Dom Femmando de Portugal. Carlos Gomes sempre conseryou carinho pela mae-patria, por onde passou outra vez e 1a foi operado pouco antes de morrer. De Lisboa levou recomendacoes ao maestro Lauro Rossi, diretor do Con- servatério de Milao, destino final do jovem campineiro, onde chegou a 9 de fevereiro de 1964. O transplante era violento e assustou 0 jo- vem brasileiro. De Campinas a Milao, em pouco mais de quatro anos, era muito, CARLOS GOMES 80 2. A conquista da Ttélia ‘A opera italiana estava no apogen ¢ 0 Teatro alla Scala de Milao — pontificava no mundo inteiro. Londres ¢ Paris, pon e Viena eram os maiores centros musicais, mas Mildo, rica cidade industrial, era a ca- pital da opera, com pitblico sofisticado ¢ grandes editores, A aceita- cio de umartista por aquela sociedade altamente exigente ea um pas- — saporte seguro para todos os teatros do mundo. A consagracao do Gua- rani, no Scala de Milao em 1870, repercutiu pela Europa inteira e foi encenada até em Sao Petersburgo, na longinqua Russia dos Tzares, E Milao atravessava a fase aguda romantica dos scapigliat ti, com melan- colia e morbidez wertherianas, enamorados da dor ¢ da morte. Carlos Gomes nao chegou a fazer parte do grupo ultra-romantico, mas teve amigos, como Ghislanzoni e Boito, que viviam naquela atmosfera in- telectual doentia, Sua influéncia estética sobre o maestrino brasileiro nao deve ser exagerada, pois o que cle queria era o sucesso artistico, tudo muito concreto. Embora jé tivesse o seu curso do Conservatério Carioca, era importante para o compositor brasileiro obter o diploma do Conservatério de Milao, titulo sem o qual nao poderia aspirar a na- da em matéria de 6pera italiana. Trabalhou de 1864.a 1866 sob a dire- Gao de Lauro Rossi ¢ afinal obteve o diploma a duras penas. Embora estivesse familiarizado com a mfisica italiana desde Cam- pinas, Carlos Gomes falava italiano muito mal ¢ seus amigos da épo- ca 0 descrevem percorrendo as ruas de Milao coi Ht 0 » m um pequeno dicio- nério no bolso. Aprendeu raj at f ipido, porém, e embora o Brasil sempre €s- tivesse presente na sua vid: a cotidiana, transformou-se em um verda- deiro italiano, como bem o de: see ) ‘monstra sua correspondéncia. Saliento Seis ne feito pelo compositor, em 1877, durante almoco em ue oy = iiss ‘A minha segunda patria, a patria dos meus » #nacdo que domina o mundo na arte musical, a Itélia!” Des- ¢ bigodes espes- uietos,” Ressentiu- cenne no inyerno e quen- poles, mas sua modesta ‘ancas © ademais se distanciaria do ambien- 10s vivos, inteligentes, irreq ssimo alias: frio ¢ amid i lo mudar-se Gt CARLOS GOMES 81 te milanés, essencial para a sua carreira de compositor de 6peras que aspirava seguir. O curioso € que Carlos Gomes se iniciou em Milao no terreno da miisica ligeira, popular mesmo, mas por estranha ironia seu éxito facil servi para chamar a atencdo do priblico sofisticado para sua masica. Ele mesmo reconheceu tal fato: “Aquela musiquinha de realejo me ajudow a abrir as portas do Scala.” Em 1866 escrevera a revista musical Se Sa Minga sobre texto de Antonio Scalvini ¢ sua estréia no dia 1° de janeiro de 1867, no Teatro Fossati, teve grande sucesso, O coro das mascaras ¢ a cancao Fucile ad Ago gozaram de stbita yoga nos realejos das ruas de Milao. Logo a seguir compos outra revista ligeira, intitulada Nella Luna, com 0 mes- mo libretista, estreada em 1868 no Teatro Carcano, com o mesmo €xito, ena qual se destaca o Coro dei Bambini Lattanti. Esses sucessos su- perficiais, embora marcantes no momento, abriram-lhe os saloes im- portantes da sociedade milanesa, tal como o da Condessa Maffei, muito vinculada a diregdo do Teatro alla Scala. Era o caminho certo. Em pouco mais de um ano subia a cena do Scala, na noite memoravel de 19 de marco de 1870, o Guarani. Mas voltemos um pouco atras. Uma versao meio folelorica dé a noticia de que Carlos Gomes en- contrara na Praca do Duomo, em Milao, um vendedor ambulante que anunciava aos gritos o romance II Guarany, Storia di Selvaggi del Bra- sile. Ele o teria comprado e entregue a Antonio Scalvini para escrever um libreto para épera. Carta de Carlos Gomes a Francisco Manuel, de 4 de setembro de 1864, relata 0 fato, mas sua idéia era bem mo- desta e planejava apenas encenar a nova 6pera no Rio de Janeiro, pela companhia de Dom José Amat, que depois veio a dissolver-se. Em 1867 Scalvini néo conseguira ainda terminar seu trabalho e, por sugestao do futuro editor Lucca, apelou para Carlo D’Ormeville para dar o re- mate final no libreto. Em meados de 1869, a diregao do Scala aceitou a obra, encenada com grande sucesso na data acima referida. O re- gente foi Terziani, Villani fez o Peri, Maria Sass a Cecilia, Storti viveu o Aventureiro e o grande Victor Maurel estreava no Cacique. No inter- valo entre 0 segundo e © terceiro ato, Carlos Gomes cometeu o pri- meiro de seus graves erros: vendeu todos os direitos sobre a 6pera ao editor Lucca. Arrepender-se-ia amargamente. Mas os aplausos fo- ram entusiastas e até Verdi julgou a musica de “squisita fattura” es- crita por um “vero genio musicale”. Era muitissimo para um jovem des- conhecido, que seis anos antes apenas havia aportado de um pais lon- ginquo, sem tradigéo musical reconhecida. A 20 de maio do mesmo CARLOS GOMES 82 1 proposta do Ministro da Instrucao Pablica, Car Gomes BA anos de idade. Mas afinal o que significou exatamente o Gui ? ‘Antes de tudo, com esta Opera nascia 0 Brasil para o mundo mu- sical. Assim como as condigdes politicas, sociais ou psicolégicas que cercaram a apresenttacao de algumas das outras Operas de Carlos Go- mes foram desfavordveis, tudo parecia concorrer para 0 €xito do Gua- rani. A temporada 1869/1870 no Scala decorria bem, mas nenhum sucesso espetacular obscurecia o aparecimento da 6pera do mtisico brasileiro, Haviam sido encenadas La Juive, de Halévy (23 récitas), Dinorah (1. récitas) e Les Huguenots (18 récitas), ambas de Meyer- beer. Havia um ambiente geral de simpatia pelo jovem brasileiro que se fizera conhecer por musica ligeira; a orquestra, os coros, Os solis- tas ¢ 0s cendrios estavam bem naquela noite e... portanto eis ai todos os ingredientes para 0 éxito do espetaculo. A imprensa de um modo geral foi positiva, se bem que fazendo restriges ao libreto. “O Guara- ni nao foi, em verdade, considerado uma obra-prima, mas uma noté- vel promessa’, afirma Gianpiero Tintori. “Seria o inicio de uma carrei- ra que o publico esperava ver desenvolver-se e agigantar-se com os anos, Se isto nao ocorreu, deve-se a muitos fatores.” O Guarani foi encenado no Scala, em 1870, doze vezes € no ano seguinte teve 15 récitas. ‘Tem-se exagerado bastante 0 alcance desse sucesso do Guarani, atribuindo-lhe ate significacdo historica dentro da evolugao da 6pera italiana. O momento era de certa hesitacao estética: as ondas wagne- Hanas abalavam os alicerces da nmisica italiana, embora s6 no mesmo ano de 1870 € que foi encenado, em Bolonha, o Lohengrin. Mas o de- Date estético ja vinha de bem antes. Verdi no tinha obtido sucesso em Roma com a Forca do Destino e Pprevalecia uma verdadeira inva- Sa0 na Itélia das operas francesas de Gounod, Meyerbeer, Halévy, etc. 4 nine Por uma Teaco que viria em 1871 com a Aida, de ee ep emai no Cairo pelo mesmo D’Ormeville, libretista do «© temas exOticos imperavam: Africana, Guarani, Aida... E © Jovem selvagem brasileiro chegav, endo misica italiana qui hegava i ‘ando ® Bava fazendc a ital q dar dela. A misica era b igaoe i ie Oa: N&O era aplaudi-la? Era até patridtico. B nao nos nme: obriaeeay Ye Seu nome mui Ne pa © esquecamos de que Verdi te- ie cae on Suing “m Seu pais, antes da independéncia da iain Gee Seah. ies erdi” era um brado de tevolta contra os aus- » Mgnilicava: “Viva Vittorio Emanuele Re d'Italia”. CARLOS GOMES 83 A2 de agosto de 1870, Carlos Gomes regressa a0 Brasil coberto de gloria, O Guarani comecava o primeiro circuito dos teatros italia- nos e se aprestava a ganhar 0s quatro cantos da Europa. No Brasil preparou a apresentacao de sta 6pera no Teatro Lirico, para o aniver- sério de Dom Pedro II, a 2 de dezembro, 0 qual o promoveu a oficial da Ordem da Rosa, distingdo maxima no Brasil de entao. As homena- gens se sucediam e, no interim, escreveu a opereta Telégrafo Elétrico ¢ iniciou outra Opera, a intitular-se Os Mosqueteiros do Rei, que nio completou, Luis Guimaraes Jr, publica a primeira biografia do maes- tro, Em maio de 1871, entretanto, sentia o chamado de seus interes- ses na Itélia ¢ tratou de voltar a Milao. Cabe aqui um esclarecimento: a 6pera de Carlos Gomes foi es- treada no Scala de Mildo precedida apenas de um prelidio. Nao exis- tia ainda a chamada Protofonia, que hoje pode ser considerada até como 0 segundo Hino Nacional brasileiro. Essa peca tao inspirada foi escrita para a récita do Scala que coincidiu com a abertura da exposi- cao industrial de Milao, a 2 de setembro de 1871. Outro aspecto es- tranho: a parte as 3.000 liras que o editor Lucca pagou pela 6pera, Gomes ganhou muito pouco com ela, limitando-se apenas a fazer apa- rigdes pagas por ocasido da estréia em outros teatros do pais € so- bretudo para ajudar a preparacdo dos artistas solistas. A esse respei- to reproduzo trecho do comentario da Gazzeta Musicale sobre a ati- tude do maestro nesses ensaios: “.. esta sempre descontente e os in- térpretes sempre desesperados, e mais ainda por que Carlos Gomes nao fala, nao corrige, ndo censura, nfo ensina, néo suplica como fa- zem tantos outros maestros, Quando a execugao nao lhe agrada, Go- mes salta da cadeira, poe as maos na basta cabeleira ¢ comega a Cor- rer pelo palco como um possesso, soltanto gritos selvagens que se assemelham ao alarido dos guaranis...” 8. Maturidade A 16 de dezembro de 1871, com 35 anos, casava-se em Milao, na Igreja de Sao Carlos, no Corso Vittorio Emanuele, com Adelina Peri, bolonhesa, pianista e sua ex-companheira de conservatério, com 29 anos de idade. Foi talvez o seu segundo erro, como veremos mais adian- te. Tiveram cinco filhos em sete anos de uniao: Carlos André, Carlota Maria, Manuel José, Mério Antonio e [tala Maria, dos quais somente CARLOS GOMES BA ente aos pais, vindo a falecer no Rio de Janei- . eg poncianate e dela guardo suave recordagao: Pee cantar, ofereceu-me depois um original de seu pai, No- co para voz de baixo ¢ piano, delicada cang4o com linha melédica ‘encialmente italiana, Explicou-me que Carlos Gomes a escrevera ae um amigo e havia muitissimos anos ela nao a ouvia, Prometi Pde, mas poucos meses depois Itala falecia, Cumpri minha pro- messa 30 anos depois, ao gravar o Noturno para a EMI-Odeon. Apés 0 casamento, Carlos Gomes dedicou-se a compor uma no- va Opera, talvez sua obra-prima, a desventurada Fosca. Seu estilo se enriquecera bastante: o debate ptiblico do Guarani lhe abrira os olhos sobre varios aspectos estéticos e formais; deu mais atencdo a parte orquestral, que enriqueceu e ampliou. O libreto foi de Antonio Ghis- lanzoni e a acdo se passa na alta Idade Média, contando 0 rapto de jovens venezianas pelos piratas da Istria. O poeta era importante e estava também no auge da popularidade pelo recente sucesso de seu libreto da Aida. Faria, pouco depois da Fosca, 0s versos para uma épera de Ponchielli, o maior sucesso na Itélia daquele periodo. A associa- ho de Carlos Gomes com Ghislanzoni era, portanto, das mais pro- missoras, mas fatores imprevistos incidiram fortemente na m4 acei- tacdo da obra A luta entre os wagnerianos e seus adversarios italia- nS Se acirrara entre 1870 e 1873 e ocorria também grave rivalidade Comercial entre os editores Ricordi ¢ Lucca, que se refletia na imprensa local, Carlos Gomes continuava com o editor que adquirira 0 Guara- ti, 0 qual era responsabilizado pelos nacionalistas italianos como in- Ce ee francesa, sobretudo Meyerbeer, na Ita- he ? ie Carlos Gomes outro equivoco: introduziu alguns leit- =. ee a wagneriana, em sua nova Opera Fosca. Todos es- ae feats nao poderiam deixar de pesar na balanca, ntou outro muito importante: nunca foi possivel ‘ a ee ale uma intérprete ardente e passional a altura 3080 de Fosca, sem o que aobra i na Correspondéncia italiana do fusielhe tee ee 3 compositor, refere-se ele diretamente ini ele diretame! lecessidade de encontrar uma boa cantora que fosse uma espécie 2 26/9/86), Estavamos no inicio da época Punhais ¢ venenos, tais como a Gioconda, a amaré verista que tantas emocdes traria ® Sopranos-dramaticos, CARLOS GOMES 85 Ademais, se na apresentacéo do Guarani havia uma expectativa simpdtica, na realidade o pablico e a critica ndo esperavam muito de Carlos Gomes. Na estréia da Fosca o enfoque era inverso; o grande sucesso do Guarani exigia do misico brasileiro algo de espetacular que confirmasse todos os vaticinios otimistas. Ora, a Fosca era uma 6pera para os entendidos e ndo para o grande piblico, que a ouviu com respeito, mas com frieza. A platéia esperava demasiado e acabou fi- cando insensivel, sobretudo pela ma escolha da intérprete principal, cenérios infelizes e coros mal preparados. A imprensa acolheu bem, embora com discrigao, mas o que Carlos Gomes ansiava era outro su- cesso retumbante, o que obviamente nao ocorreu. Mesmo assim, a Fosca foi encenada sete vezes no Scala de Milao, em 1873. Nas récitas subsegtientes, o piiblico foi mais caloroso, mas nada de comparavel a acolhida dada ao Guarani. O autor sentiua estocada ¢ fez alteragoes na Opera, que voltou a cena no Scala a 18 de fevereiro de 1878 com o melhor tenor da época, Francesco Tamagno. O éxito foi bom, mas nao ainda suficiente para manter a Opera no repertério. O que a Fosca precisava era de uma Maria Callas da €poca, que galva- nizasse a platéia como fez a Pantaleoni na estréia da Gioconda. Alias, as duas Operas tém muita coisa em comum: o tema marinheiro, as du- plas heroinas, o cendrio veneziano. Foi lamentavel a falta de sorte de Carlos Gomes porque a Fosca representa uma etapa de decisivo enri- quecimento de sua linguagem musical e contém paginas que talvez sé tenha igualado mais tarde ao escrever O Escravo. E a Fosca consti- tuiu verdadeira obsessao para o autor, que continuou a fazer modifi- cages nela no decorrer dos anos. Dizia ele: “facam representar o Gua- rani para os brasileiros, o Salvador Rosa para 0s italianos e a Fosca para os entendidos.” Luiz Heitor a define bem: “O que a Fosca nao tem € o arrebatamento dramatico, a violéncia crua, mas eloqtiente e espontanea do Guarani.” Marcello Conati afirma que, com a Fosca, Carlos Gomes chegou, naquele momento exato da Opera italiana, a uma posicao de lideranga estética e formal. A falta de estrondoso sucesso, entretanto, fe-lo re- cuar em busca do aplauso facil do publico ¢, ao tomar tal decisao, ab- dicou do importante papel que poderia ter desempenhado no desen- volvimento da Opera italiana. Se recuperou o favor do publico com Sal- vador Rosa, se continuava obcecado pelas restrigdes que criticos ¢ editores Ihe poderiam fazer, renuncion talvez inconscientemente a vOos muito mais altos, Registre-se ainda que a Fosca foi dada no ‘Teatro CARLOS GOMES 86 os Aires a 7 de julho de 1877 ¢ a 15 do mesmo més et Oe aejaneir © sucesso teria sido consideravel, mas obviamente tas éxitos periféricos néo contam na carreira de um artista no plano «ino caso. Mas voltemos atras, ao ano de 1873, internacional, europe da estréia da Fosca. Carlos Gomes nao se conformou com a modesta recepcao da sua Opera € pOs-se ao trabalho com afinco sobre outro libreto de Ghislan- zoni, intitulado Salvador Rosa, que gira em torno da insurreicéo de Masaniello em Napoles, historia da primeira experiéncia do tipo co- munista na Europa, no século XVII, Os empresarios se disputaram © privilégio de apresenta-la em primeiro lugar ¢ coube a primazia ao Teatro Carlo Felice, de Genova. A 21 de marco de 1874 debutava Sal- vador Rosa, um ano apenas depois da estréia opaca da Fosca: grande éxito, 36 chamadas a cena, partitura adquirida pela Casa Ricordi, mas desta vez os direitos autorais enchiam os bolsos do compositor. Teve naquele ano 15 récitas no Scala de Milao. Embora Salvador Rosa tenha sido um sucesso retumbante no fim do século e até hoje na Italia ainda se cantem algumas arias dessa Opera, voltamos ao que Marcello Conati chamou de “estilo tipo mo- saico”. Se a colaboracao com o libretista foi excelente na Fosca, j4 em Salvador Rosa se observa mau diélogo com 0 poeta, ouintencio- nal objetivo de buscar cenas de efeito, sem maior preocupacéo com a seqiiéncia da 6pera. Para comecar, o papel titulo resulta em nao atrair atencao, atribuindo-se a Masaniello a acéo principal, embora impreci- sa. Em determinado momento, talvez pela beleza da miisica, 0 viléo a Ae pai ae Arcos, assume quase o papel feomene ee \ Di sposo... di padre, ., €um gran- fee as na Opera e alias figura até hoje no repert6rio $ grandes baixos. Outro bom momento que ficou céle- a sh enliansstaea | | CARLOS GOMES 4. Primeiros problemas Em setembro de 1874, Carlos Gomes comega a trabalhar no li- breto de Maria Tidor, que havia pedido a Emilio Praga e ao famoso Arrigo Boito (poeta e compositor do Mefistéfeles), sobre um drama de Victor Hugo. A concepgao dessa obra traz o autor de volta a gran- de 6pera, estilo que j4 comegava a envelhecer na época. Apesar da ha- bilidade do poeta e do auxilio que lhe teria dado Boito, o tema nao convence e deve ter sido um obstaculo para um compositor de melo- dia facil como Carlos Gomes. Alias, sua gestagao seria tormentosa ¢ 0 intervalo entre Salvador Rosa ¢ Maria Tudor foi de cinco anos. O libretista Praga faleceu ¢ foi preciso recorrer a Zanardini e Fontana para terminar 0 texto ¢ remodela-lo para atender as pretensdes do com- positor. Mas a torturada paixao amorosa da rainha, os contrastes psi- cologicos da protagonista perante a execucdo de seu favorito, foram dificeis de expor e musicar pelo poeta e pelo compositor, intérpretes pouco felizes desse drama nada convincente de Victor Hugo. Apesar dos defeitos, a 6pera foi subvalorizada na época e continua a sé-lo, mas contém paginas de feliz inspiracdéo musical e grande mestria téc- nica do compositor, segundo reconhece ainda hoje Marcello Conati. O preltidio da 6pera Maria Tador esta entre as melhores realizagoes orquestrais do mestre campineiro, Mas a Opera é bastante desequili- brada, malgrado seu dinamismo. Aliés, toma recursos wagnerianos com Varios leitmotiven de belo efeito, embora com freqiiéncia caia em for- mulas melodramaticas j& desgastadas, mesmo naquela €poca. Em 1876, Carlos Gomes havia correspondido a um telegrama de Dom Pedro I, que the pedia um Saluto del Brasile para os festejos do centenério da independéncia dos Estados Unidos da América. O Imperador compareceu ao concerto em Filadélfia, onde foi interpreta do o hino de Carlos Gomes com agrado do ptiblico e da critica, que a destacou como uma das melhores obras apresentadas. Um fator que certamente prejudicou muito a acolhida de Maria Tudor nao foi tanto a misica de Carlos Gomes, nem 0 estilo em que foi composta, mas sobretudo o tema do libreto, o assunto em si, cuja escolha foi um desastre. A culpa deve ser imputada muito mais a di- ee e600, ao editor, ao libretista do que ao compositor, afinal oe See oe eee politica regional ¢ que nada tinha oe mee las ranco-italianas da €época. O musicdlogo italia- reconhece que o juizo impetuoso do publico mila- CARLOS GOMES: 88 nes nao foi motivado por stibito mau humor ou intrigas artisticas, As tre a Franca e a Itélia, que em 1882 levaram este pais a ana Tiplice Alianca, estavam claramente espelhadas dentro do ipo libreto da 6pera. O favorito da pane Maria Tudor era um ita- liano, Fabiano Fabini, personagem do tipo viléo que, por ocasiao da estréia teatral do drama de Victor Hugo, havia provocado protestos violentos em toda a ItAlia, a tal ponto que o grande escritor francés: teve de defender-se e desculpar-se, ao ser considerado antiitaliano, Levar para o palco uma 6pera com tema tao controvertido era um ris- co desnecessério que os empresdrios de Carlos Gomes tinham a obri- gacdo de haver evitado, no seu proprio interesse. Os resultados foram lamentaveis, pois grupos politicos foram ao teatro com 0 tinico obje- tivo de vaiar ou prejudicar seu éxito. Carlos Gomes foi, portanto, viti- ma inocente desse lastimavel mal-entendido, Carlo D’Ormeville definiu bem o dilema de Carlos Gomes: “.. seu mal € a continua preocupagdo com o que se diré de seus trabalhos depois da apresentagdo. Quando ele escreve nao pensa somente no assunto, nos yersos, na miisica, pensa na reagao do pablico, no que dirao os criticos, ¢ se atormenta para nao desgostar os primeiros e agradar os segundos”, (...) “Com o Guarani partiu despreocupadamente aoassalto. 0 hom éxito colocon-o perante a responsabilidade do mt- Sico consagrado e se preocupou talvez, demasiado com os assinantes, 08 cronistas, os maestros e os diletantes.” Nao esquecamos porém que, mesmo naquela época, n&o era na- da facil ser compositor de Operas, tais os investimentos financeiros ea montagem de uma nova épers, para um teatro oficial ou, enh a ae ae O risco era enorme ¢, ao contrario 1 ipletamente voltado para si mesmo, “Carlos Go- mes demonstrou ter uma bersonalidade fragil, exposta a apreensoes externas de todo © género”, no entender de Giampiero Tintori. E cabe ae Aqui conceito justo de outro musicdlogo italiano, Marcello [ Speke oe seria a esséncia do sucesso de uma Opera: “O éxito ra €, no fundo, diretamente Proporcional ao grau em que | | CARLOS GOMES 89 o elenco de cantores ser de primeira ordem, entre os quais o tenor ‘Tamagno e o baixo Jean de Reszké, os melhores solistas da época. Ob- viamente, a manifestagao pré-organizada dirigia-se mais A direcdo do teatro, ao assunto que irritava os patriotas e s6 em pequena parte ao compositor. Na noite seguinte, a 6pera foi bem acolhida ¢ 0 autor foi chamado @ cena varias vezes. Mas a sua estrela j4 entrava em decli- nio, pois a hora ¢ a vez de Carlos Gomes haviam passado. Verdi res- surgia com Otello, Ponchielli estava no auge, despontava um novo as- tro — Puccini. 5. Crise matrimonial e financeira Adelina Peri, mulher de Carlos Gomes, nascera em Bolonha a 3 de fevereiro de 1842, filha de um tapeceiro. Estudou piano no Con- servatorio de Milao, onde se diplomou com as mais altas notas, em 1866. Foi colega do marido, vizinha dele na rua San Pietro dell’Orto € casou-se com 29 anos. Embora Adelina the tivesse dado cinco fi- lhos, trés deles mortos muito jovens, a vida de casado nao durou mais de sete anos. Tinha somente 42 anos quando foi forgado a separar-se da mulher, “por motivos que prefiro calar ¢ que me causa imensa dor 86 ao recordé-lo” (carta ao seu editor, de 11 de julho de 1879). Em outra missiva de setembro, refere-se a morte do filho de cinco anos, pouco “depois da injiria que recebi de pérfida esposa.” Teve entao pro- longado periodo de depressao nervosa, Ademais houve processo judi- Gial que lhe deu a guarda dos filhos, deixando a cacula [tala a mae. Entretanto, a ex-esposa faleceu cedo, de “peste branca’, em 1887, ¢ Por ocasiao de sua morte o pai recuperou a tutela da menina. A medalha apresenta, porém, uma outra face: Carlos Gomes teve um prolongado affaire com a bela cantora romena Hericlée Darclée e com ela viajou anos a fio, chegando até Sao Petersburgo. A prépria filha ftala conta; “Autor e intérprete glorificaram-se e admiraram-se mutuamente, talvez em um diapasao de entusiasmo que ultrapassou 9s limites da mais elementar prudéncia’, Mais adiante, afirma: “Mi- nha mae sempre considerou a senhora Hericlée Darclée como sendo @sua asa negra.” E possivel que Adelina tenha-se vingado do marido, ae aol 4 Separacdo e o processo judicial. De qualquer modo, . sco memes de acne ate oman le meu pai?” Quatro anos depois da mor- 90 CARLOS GOMES te de Adelina, a bela romena veio ao Rio de J eres jnterpretar® papel principal de Condor, 0 que faz supor que o “caso” prosseguia, Foi nesse ambiente tenso e sofredor que Carlos Gomes termi- nou Maria Tudor, ao meio de rusgas familiares ¢ inquietagao pelo du- vidoso futuro de sua carreira musical. Uma vez separado da mulher, regularizada a situacao e digerido o fracasso da dpera, resolveu revi- sar Maria Tudor. Estava nessa etapa quando the veio convite para en- cenar no Rio de Janeiro, Salvador e Recife trés Gperas: O Guarani, Sal- vator Rosa e Fosca. Aceitou encantado para escapar a penosa reali- dade na Italia. Foi recebido em Pernambuco “como um principe” e na Bahia “como um rei. & demais” — exclama o maestro em carta ao Vis- conde de Taunay. Esteve também no Rio e em Sao Paulo, passando ao todo nove meses no Brasil, em companhia do filho, Carlos André, De volta a Mildo no fim de 1880, reabastecidas as baterias pelo calor humano da patria, viajou bastante pela Itélia a fim de ajudar a preparacao de varias representacdes do Salvator Rosa e do Guarani, Cujo sucesso estava no auge. Trabalhou sobre varios libretos, sem terminé-los, e em 16 de majo de 1882 partia para o Brasil, pois a flti- ma viagem lhe havia trazido bons proventos. Sua popularidade na pa- tria atingira o maximo e foi recebido com salvas de artilharia e sere- natas. Um teatro novo em Santos receben o nome de Guarani ¢ um circulo cultural no Rio decidiu ter o nome do maestro por patrono. Continuava a cinzelar a Fosca, eterna obsessao, mas ja pensava em outra Opera com assunto nacional, desta vez aproveitando a campa- uha da abolicdo da escravatura, entao no apogeu. Taunay debuxou o enredo pouco antes de seu regre: a Itéli inicii Vise ein, ‘Bresso a Ttélia e em 1883 iniciava, na . ggianico, a 6pera Lo Schiavo, Mas em 1878 Carlos Gomes cometera outro grande erro: a cons- trugdo de luxuosa vila em Maggianico, perto de Lecco, denominada CARLOS GOMES 91 86 para ser vizinho de algumas sumidades intelectuais ¢ artisticas, moradores na regido de Lecco, area que freqiientava, em busca de sta- tus social, desde 1873, © caso da Vila Brasilia € importante ¢ merece mais algumas li- ahas, que vamos colher na correspondéncia de Carlos Gomes com ami- gos italianos. A propriedade de Maggianico se tomara famosa nos meios musicais milaneses ¢ isso obviamente incensava 0 ego de Car- los Gomes. La se realizavam concertos que eram até comentados na Gazetta Musicale, tal como vemos no seu n° 34, de 24/8/1884, que louva aquele “piccolo paradiso” e considera “feliz o artista que gas- tou dinheiro na construgdo desse esplendor de moradia de férias”. Uma cruel ironia, a julgar pelas cartas aflitas do Proprietario. Jé no ano se- guinte, 0 compositor escrevia desesperado, ao Imperador, o qual lhe telegrafa anunciando que a Princesa Isabel estava organizando um con- certo em seu beneficio. Nos registros imobiliérios de Lecco, o eseri- tor Gaspare Nello Vetro encontrou mencao de trés hipotecas de Car- los Gomes: uma a favor de Luigi Ghislanzoni e duas a favor do Banco Sub-Alpino e de Milao, todas alias resgastadas e num total de 60.000 liras, a primeira de 1882 e as outras duas de 1887. Dois anos antes porém, estava angustiado e, talvez por interferéncia da Casa Imperial brasileira, seus credores Ihe deram uma prorrogacao de sessenta dias. Afinal chegaram do Brasil 18.000 liras em marco de 1886 e 0 compo- sitor deu 10.000 liras ao Banco, ficando com o resto para cobrir ou- tras despesas prementes. Resistiu até setembro de 1887, quando entregou a Vila, inclusi- Ye os moveis, ¢ transferiu-se para Mildo. Passou a residir na Rua Ma- tino 8 e, em virtude dos apertos financeiros que continuavam (a ven- da da casa nao cobriu todos os seus débitos), teve de tirar o filho Carlos André do colégio de luxo que freqiientava e colocé-lo em escola puibli- ca, Em 1888, lemos na sua correspondéncia com 0 baritono De Anna (0 Iberé do Escravo) que ele nao encontrava “quem Ihe emprestasse quatro centavos para poder trabalhar tranqiiilo até agosto”. Na mes- ma carta refere-se ao fato de que “mesmo indiretamente, (ja bati nas Portas de diversos personagens da cérte brasileira, mas em véo, Hu- milhacoes e nada mais”. Mais adiante, no mesmo ano, queixa-se; ‘ nem Sequer pude pagar o aluguel de casa, devendo atender a paga- mentos mais prementes” Dias depois agradece aquele cantor “as dez libras esterlinas que generosamente me expediu ontem. Elas vem de um irméo e as outras que me prometes para a semana proxima, che-

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