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JUSTICA E DEMOCRACIA John Rawls Sega prt lio CATHERINE AUDARD Martins Fontes So Paulo 2000 ecw Indice Preficia de John Rawls (1992) Inirodugdo: John Ravils eo conceito do politica, por Catherine fda. 1. Acestrutu bisiea como objeto (1978) 2.0 construtivismo kantiano na teria moral (1980), |. Autonomia racional eautonomia completa, I Representago da liberdade c da jgualdade I. Consrugio objetividade... 3. As iberdadeshisiase sua priaridade (1982) 4. A toora da justiga como equidade: uma teoria politic a, eno metafsica 5. Alda de um consenso por justapesgao (1987). 6. Aproridade do justo a eoncepgdes do Bem (1988) 7. Ocampo do politico € 0 consenso por jutaposigao (1989), Giossirio. Bibliograia Indice onomistico Indice tomatico remisivo vit Xu 8 45 ” m ul 199 m3 21 33 373 35 393, 37 Osartigs condos neste volume (todos hascados, em pa te ou no todo, em conferéncias que pronuniei) foram eset- tos durante um periodo em que eu reformulava a intenpreta- ‘elo do conceto de justi, a que chamei de teoria da justica ‘como eqiidade* e que apresentei no meu livro Uma teoria dda justiga'. A questio principal esta em saber se cabe com preendé-Ia como parte de wma doutrina abrangent*,rligio- Sa, filos6fiea ou moral, que poderiamos chamar de doutrina do justo como eatidade, ou se cumpre ver nela uma con ‘epso politics da justice, valida para uma sociedade de- mocratica. Somente o texto mais antigo deste volume, “A «strutura sia como objeto” (1978), no tata dessa ques- ‘to, mas sim do significado e das impicagBes do fato de to- ‘mar aestrutura bisica da sociedade como objeto da justi. “Todos 0s outtos textos, comegando pela série de conferén- cas que fiz na Universidade de Colimbia em 1980 que inttulei (desajeitadamente) "O constrtvismo kantano na teoria mora”, tatam mais especificamente desse problema, Eles visam mostrar em que sentido a teoria da justiga como ceqiidade deve ser compreendia como uma eoncepeio po- litica da justiga € como uma forma daguilo que fui levado a 1.4 Theory of ce, Cambridge. Mas, Hara University Pres 197 {Ta a Uma rd SP Mar Fe 107 Ea ‘pala come 7a og Sa * erhalten), vu usmigs eoewocescia chamar de liberalismo politico*, expresso que aparece pela primeira ver em “A iia de um conseaso por justaposi- 80" (1987), Em primeiro lugar, gostaria de lembra, como pano de fund desss textos, o que disse no Preficio de TJ, ou sea, {que meu objetivo era generalizare levara um grau mais ato de abstragio a doutrina tradicional do coatrato socal. Que- ria mostrar que essa doutrina no era vulnerdvel as objegbes mais freqentes que Ihe sio fetas e que, freqientemente, pensamos Ihe serem ftas. Esperava elaborar com mais cle rTeza os principaistragos estruturis dessa concepgio e de- senvolvé-la como uma andlisesistemaitica da justga que re- presentasse uma solugdo melhor do que a do utilitarismo* Pensava que, dene as concepyies moras abrangentes tra- dicionais, ela representava a melhor apeoximagao das nos- sas conviegbes bem ponderadas® em matéria de justia, € vianateora da justia como eqlidade a base mais apropria- ‘da para asintituigdes de uma soriedade democrtica, Entetanto, o propdsito dos textos aqui reunidos &dife- rente. No enunciado do proposito de TY indicado acima, a teadigo do contrato social 8 considerada como parte da filosofia moral, e nenhuma dstingdo ¢ feite entre afilosofia ‘moral ea filosofia politica. Nao estabelei ali dferenga al- guma entre uma doutrina moral da justga, cua extenséo & brangente,e uma coneepeio estritamente politica. Nenhu- ‘ma andlise, ali, destaca 0 contrast entre doutrinas moraise filosbticas abfangentes © concepgdes limitadas ao campo 4o politic. Nestes textos, a0 contro, essasdistingdes sio fundamen. Pode parecer, enti, que o objetivo e 0 conteido dos ex tos que consituem este volume representam uma mudanga. maior em relagio a TJ. E certo, como ja indiquel, ue exis tem diferenga importantes, Mas, para compreender corr ‘tamente sua natureza e extensdo,€ preciso vé-as como re sultantes de um esforgo para resolver uma dficuldade inter- ‘na da teora da justiga como equidade, a saber, fato de que previcio 1x sua analse da estabildade* de uma sociedade demoeritic, na terceira parte, no esti de acordo com a teoria tomada ‘como um todo. £ 0 que expico na segdo VII de “Le domaine «du politique” [0 eampo do politico] (1989). Creio que todas as diferengas, exceto as que esto presentes na formulagao e imerpretagdo dos principio de jstiga, assim como nos ar zumentos em seu favor, decorrem do esforgo para suprimie esa incoerfncia fundamental. Afora isso, esses artigos a rmitem como aceitosaestutura eo conteido de 7 Gostaria de falar um pouco mais longamente de uma dificuldade que tenho em mente ¢ que se refere ao carter irrealista da idgia de sociedade bem ordenada® tal como cla aparece em TJ. Um tragoessencial dessa idgia & que todos 198 cidadios de uma sociedade bem ordenada pela teria da justiga como equidade subscrevem essa concepeao com base rho que agora eu chamaria de doutina filosfica abrangente les aceitam seus dois prncipios de justiga por pertencerem 1 essa doutina, Da mesma form, na sociedade bem ord nada pelo utilitarismo, os cidadios em seu conjunto aderer a essa concepeio enguanto doutina filoséfica abrangente, © € com base isso que aceitam o principio de utilidade Apesar dea distingo entre uma concep¢o politica da just- (te uma doutrina flosbfieaabrangente nda ser menciona da em TJ, quando a questio se apresenta, fica caro, ereio eu, que o liv trata a teoria da justiga como eqlidade € 0 utiltarismo como doutrinas mais ou menos abrangentes. Ora, ai & que esti o problema. Uma sociedade demo- critica moderna se carateriza por uma pluralidade de dou- teins abrangentes, religiosas, filoséfieas e moras. Nenhu- ma dessas doutrinas &adotada pelos cidadios em seu con- junto. E no se deve esperar que isso acontega ui futuro previsivel. 0 liberalismo politico pressupde que, or razies Politicas, uma pluralidade de dourinas abrangentesincom- pativeis entre si € 0 resuliado normal do exerccio pelos adios de sua rao no seo das instituigdes livres de um re gime democritco consttucional. Ee pressupde igualmente x Jusmiga EDEMOCRAC aque exist pelo menos uma doutrina abrangente razoivel ‘que no rejeta os elementos essencais de um regime demo- Critico,E claro que uma sociedade pode também comportar ma de seu ivr ,sobretudo, ds artigo que a ele se segue ho 0s principio que, aunsa democracia, guiam a legislagio ‘a esferajuridica, assim como a forma como os cidadios 05. percebem ea eles aderem. Por qué? Como? Qual pode sera base moral das democracia se ela j no deriva de uma ideologia comum porque irposta? Ainda haveré elas uma base moral? A ida central de Rawls & que esses principios derivam necessariamente das convicgies express pelos ‘membros da comunidade num dado momento. Eles devem jusificar de mancirasatsfatéri, quer dizer, publicamente reconhecida e aceitivel, 0 que reconhecemos todos num dado ryomento. como senda injusto ~ por exemplo, nossa tejeigdo da escravatra, da perseguigio por motivos politi 0s, religiosos ou sexuais, das desigualdades de direitos resultantes da arbitrariedade natural ou social ete. Trata-se de intuigBes moras bisicas, partlhadas por quase todos 05 ‘membros de uma sociedade demoeritica num dado momen- to som que estjam, no entanto, necessaiamente em rigoro- Jon rawts £0 coxcetro bo poLtrICo xxv 0 acordo com outras convieges moras, porém “privadas” ‘endo mais politics, no momento em que se quer dar uma. {usificativa mais precisa dels, o consenso desmorona. A at- bitragem entre as diferentes conviegbes deve portanto ser {ita sem exercer pressio sobre as consciéncias ou mesmo sobre as opinides minortirias, 0 que parece uma tarefaim= possivel de Jevara terme, ‘Assim, o problema do politico transformou-se nas de~ _mocracas liberais e se tomou 0 da unificagio pela persu so de uma sociedade pluralist, do consenso entre crengas indviduais divergent principios politicos, O que interes- ‘saa Rass, ou igualmente a alguém como Dworkin’ sio as crengas embasadas, os “julgamentos bem ponderados” de ‘cada um, como os evoeados mais acima, sua formagio, tan tono nivel dos simples cidadios como no dos juritas¢ dos legisladores, sua coerénca e suas convergéncias, sua estabi- lidade e a justificagio que delas podemos dar. Nio que se neguem o$ riscos de manipulacio e de condieionamento. Voltaremos a esse ponto mais adiante. Mas no hi sé isso fem nossas conviegdes, hé também justaposigdes, donde {iemula “eonsenso por justaposigio” emprepada no texto de 1987, “A idéia de um consenso por justaposigao” (Ca- pitulo 5 deste volume) eno de 1989, “O campo do politicoe ‘9 cansenso por justaposigdo” (Capitulo 7 deste volume). Rawls, aids, compara a demonstagdo do “senso da justi a0 trabalho do lingtista que, a maneina de Chomsky, procura cexplicitaro “senso de correo gramatical” que cada locutor tem em relagdo sua propria lingua (7, p. $0). E ai que se cencontra, para ele, lugar do politico, no qual a filosofia tem. ‘um papel a desempenhar ‘Com efeito, traduze a opinido publica ndo quer absolu- tamente dizer nio eritieéla. Muito pelo contri, A opi- TH Road Dm Tinh SerotyCambie, 197 2Xvl JusTicaFpewoceacts nio piblica tornou-se, na democracia norte-americana em particular, cada vez mais trinia e contraditéria. Muitas ve 2s ela representa aspecto mais eorrompido e desprezivel tas democracias liberis. As erises do final dos anos 60 (Guerra do Vietni, movimentos pelos direitos civis), assim ‘como as que se seguiram, mostraram as fraquezas do sise- sma ea necessidade de reformularelaramente 0s principos ¢ ‘os valores que consituem, apesar de todas as suas imperfe- Bes, a esncia da democracia, Tal é a responsabilidadeas- sumida por TJ. Encontra-se em Tuma critica moral da trania da opi nif pica majortiria eda assimilagdo discutvel da soci dade a0 mercado ideal. A “tori econémica” da democracia ‘sua concepeo da opinidoe da decisdo pablicas so severa- mente eriticadas nessa obra (TJ, pp. 399-400). Chegou-se, diz Ravls, a privilegiae « opiio publica no momento de tomar uma deciso coma se privilegiara a opnido do consi- midor. “A natureza da decsio fomada pelo legislador ideal no é, portant, substancialmente diferente da de um em- preendedor que decide como maximizar seus lucros por meio da produgdo desta ou daquela mercadoria, ou da de um con- sumidor que decide como maximizar sua Stisfagdo median- tea compra deste ou daquele conjunto de bens” (TJ p. 29). (Os legisladores, assim como os magistrados,j& no sos nosso fins, seam ces quis forem. (2) Astases soca do respi por si mesmo* so cons tiuidas pelos aspectos das instuigdes biscas que so, em eral, ssencins pa os indviduos a fim de que eles adqui- ram uma nogloverdaeia dese prpco valor enquanto ps sous moras para que Sejm capazes de coeretizar os Seus interesses de ordem mais elevada ede fazer pogreizem os ‘seus prpris fins com entusiasmoe autoconfianc, Se essas observagdes esto corretas, a preferéncia de- ‘monstrada pelos parceitos por esses bens priméiios € racio- nal. (Supore, neste contexto, que a nossa nogao inuitiva de racionalidade ¢ suficiente aqui e no a examinarei antes da pnoxima sego.) Hi numerosos pontosreferentes aos bens primiros que requereriam exame. Aqui, aler-me-e idéiadiretora, a si- ber, que os bens primiios sio definidos quando se indaga qual o género de condiges sociais e de meios polivalentes {que permtiriam aos sores humanos concetizareexercer suas faculdades morais, bm como busca Seu fins iltimos (que se supae no excederem certs limites). Precisamos porta: ‘to considerar aqui as necessdades sociais € as circunstan- cias da existéncia humana numa sociedade democritica. Ora importa observar que a eoncepedo que define as pessoas ‘morais como tendo certos interesses superiores bem prei- 0s condiciona a definigio dos bens primérios no quadro das concepgdes-modelos. Desse mode, esses bens nio de- vem ser entendidos como meios geraisessencias & conse- cusdo de quaisquer fins dltimos, que um estudo empitico permitria atribuir de maneica habitual ou normal as pes- Soas, sejam quais forem as condigBessociis. Ha poucos fins esse tipo, se & que existem. Quanto aos que existem, eles ot sustiga & BEMOCRACIA sem divida no podem servir para construir uma concepsio da justca razodvel para nds. A lista dos bens primérios nio se apdia portanto em fats gerais desse tipo ainda que de- penda efetivamente de fatos sociais geras, uma vez foxados ' concepsio da pessoa ¢ seus intereses superires. (Devo assinalar aqui que, ao basear a andlise dos bens primérios nu= ‘ma concepgio da pessoa, fago uma revisio das sugestdes de TJ, ji que nesse texto poderia parecer qué a lista dos bens primirios era 0 resultado de um levantamento puramente psicoldgico, estatistico ou histrico') Qual & 3 pertinéncia dessas observagbes a respeito dos ‘bens priméris pura a nossa questo inicial, que tinha como objeto a autonomia racional? Observamos que essa autono- ‘mia depende certamente, em parte, dos interesses que mo- bilizam os pareeirose ndo apenas pelo fato de eles estarem ligados por algum prinepio de justca autOnomo e anterior, ‘Se os parceicos fossem movidos somente por impulsos Je ‘ordem inferior, como, por exemplo, a alimentagdo e a bebi- da, ou por ceras vinculagdes a esse ou aquele prupo de pes soas, associagdo ou comunidad, nés 0s considerariames ‘come heterbnomes, endo como autnomos, Contudo, na base do desejo pelos bens primirios encontramse interessessu- periores da prsonalidade moral ea necessidade de garantir nossa prépria concepcio do bem (sea ela qual for). Desse ‘modo os parciros no fazem mais do que assegurar¢ eet var as candigdes necessrias para o exerecio das faculdades. {que 0s caracterizam enquanto pessoas mors. E certo que uma motivaglo assim no & nem heterOnoma nem egocén- ‘rica, Esperamos ¢ até queremos que as pessoas se preoet {Ye poem 77,9 15,9. 97-4 de oe mii ta nos pleco be exer: etme 14,789, pen Aescamnr a gra aesersea mise dsb aos ca ‘hn onal os pds eae de un cep pr ‘Soup aJoa Cotes Raiowa, TAC Seon Mic ‘einer susan etarem care depen priate OCONSTRUTITISUO KANTIANO NA TEORIA MORAL 6s em com as suas liberdades e oportunidades a fim de efet- var essas foculdades e pensames que, a0 renunciar a isso, clas carecem de respeito por si mesmas e demonstram far ‘queza de carter. & por isso que a hipdtese segundo a qual (0s parcsiros sio mutuamente desinteressados™e, portato, se preocupam com a protego de seus interesses superiores (ou dos que eles representam) nio deve ser confundida com ‘oegoismo, Em conclusio, por conseguine, os pareiros, enquanto agentes racionais de um processo de construgdo, so desc tos na posigio original como seresauténomos sob dois pon- tos de vista, £m primeiro lugar, nas suas deliberagoes eles ro previsam aplicar nem seguir pincipios de justia que se- riam prévios e anteriores, E 0 que se expressa pelo uso da justga processualistica pura, Em segundo lugar, eles sto deseritos como nao sendo mobilizados por seus interesses superiores, aqueles que tém por abjeto suas faculdades mo- ‘ais, ¢ por sun preocupagdo em efetivar seus fin iltimos, determinads, ainda que desconhecidos. A andlise dos bens primrios e si definigao exprimem esse aspecto da auto- ‘noma, Dada aexistincia do véu de ignordnca, os pareiros ‘86 podem ser movidos por eses interesses superiores, que, ‘por sua vez, eles devem coneretizar por meio de sua prefe- rnc pelos bens primérios. v ‘Assim se conclui a anlise da nogio de autonomia ra- ional aplicada aos parceiros considerados como agentes de ‘um processo de construgio.Tratarei agora de outra noglo, a «da aulonomia completa. Anda que ela s6 se efetive com os. cidadios de uma sociedade ber ordenada no curso de sua Vida cotdiana, seus tragos essenciais devem, no obstante, 6 JTC EDEWOCRACIA Figurar de manera apropriada na posi original. De fato, aprovando os prinepios primris que seriam adotados em tal situagdo e reeonhecendo publicamente o procedimento que permite chegar a um acordo, tanto quanto agindo com ‘base nesses princpios e em conformidade com os imperat- vos de seu senso da justiga que 08 cidadios aleangam sua ‘completa autonomia E por isso que nos devemos perguntar ‘como a posigdo original integra os elementos necessirios para essa autonomia completa ‘Ora, esses elementos nio esto presentes na descrigd0 das deliberagdes e das motivagdes dos patceiros. Estes iti ‘mos nilo passam de agentes artificiais e So apresentados ‘como sendo apenas racionalmente autonomos, ¢ no con pletamente auténomos. Para explicar essa idsia, notemos dois elementos presents em qualquer concepeio da coope- rao social. O primeira & 0 dos termos egiitaivos da coo- peragdo. Trata-se de termos que se pode esperar ver razoa~ velmente aceits por cada partiipante com a condicdo de que 0s demais também os aceitem. A nogdo inelui portanto uma idéia de reciprocidade e de mutualidade, Todos os que ‘ooperam devem ser beneficiios ou compari dos encar- 208 comuns de um modo relatvamente satisftério, avalia- do por um critério adequado de comparagio. Chamarei de Razodvel ese elemento presente na cooperacdo socal, Oo tro elemento corresponde a0 Racional. Ele exprime a con- ‘cepgdo que cada paricipante tem de sua vantagem racional {que ele tenta, enquanto individuo, concretizar. Como vi _mos, a interpretago do Racional na posisio orginal cores- ponde ao desejo que tm as pessoas de efetivar e exercer as suas faculdades moras ¢ garanir 0 avango da sua concep- ‘¢80 do bem. Com a condigao de precisar quais sho 0s ite- resses superiors dos parceitos, dt-se- que eles sB0 rac: ais em suas deliberagdes na medida em que os principios judiciosos de escolha racial guiarem as suas decisBes. Eis. OCONSTRUTISUO KANTLANO NA TEORIA MORAL o alguns exemplos bem conhecides desses princpios: a ado- (glo de meios eficazes para atingie fins; aescotha entre dife- ‘entes fins timo em Fungo da sua importincia para on0s- ‘0 projeto de vida em seu conjunto, da sua compatiilidade «eda sua complementaridade relativa; Finalmente, fto de atrbuir mais pesos conseqléncias mais provavels et. Ain ‘da que nio pareca exstr uma melhor interpetagdo possivel do que sej a racionaidade, no € ai que residem as dificu- ddadesprincipais do construtvismo kantiano. Ignorarei por- tanto essas questdes e me concentrarei na nogio mais pro- blemitica do Razodvel e em sua representagio na posigdo original Essa representagdo se express por meio de cerceamen tos que delimitam o quadeo das dliberagBes dos parceiros¢ efinem a sua situagio uns em relagSo aos outros. O Re- zoive fica incorporada is disposigBes da posigho original ‘que enquadram os debates dos pareiros eos stwam de ma- reir simétrea. Mais precisamente além das diversas e bem ceonhecidas condigdes formais* que pesam sobre es pri. pios primeiros, tas como a generalidade ea universalidade, a relagdo de ordem e a irevocabilidade, os parceisos tém a ‘obrigacio de adotar uma concepeio plbica da justia ede ‘vem avaliar seus prneipis primeiros tendo em mente essa ccondiglo. (Na conferéncia seguintefalarei mais sobre o te- ‘ma da condigto de publiidade.) (0 véu de ignorincia implica que as pessoas sejam re presentadas unicamente como pessoas morais,€ nlo como ‘pessoas benefciadas ou prejudicadas pelas contingéncias ‘de sua posigdo social, pela distribuigdo das aptides natu rais ou pelo acaso e pelos acidentes da Histria durante 0 desenrolar de sua vida. Resulta daf que elas ficam situadas «de maneira igual, sendo todas pessoas morais, e, portanto, de ‘manera eqitative, Refio-me aqui &ideia segundo a qual a Unica caracteristica pertinente para o estabelecimento dos Cy jusmiceeDewocRAClA terms bisicos da cooperago social a posse de faculdades ‘moras minimas ¢ apropriadas que consituem a personali- dade moral (as faculdades com que somos equipados a fim {8 podermos ser normalmente membros cooperadores da so- ciedade durante toda a nossa vida). Essa hipotese,acrescen- tada ao preceito segundo 0 qual os sees iguas sob todos os pontos de vista devem ser representados de maneira igual, assegura aeqidade da posi original ( ikimo cerceamento que mencionarei aqui é 0 se _Buint. Ao estipular que o objeto primeira da justia € a es truturabisica da sociedade sto é,o conjunto das suas prin- cipais institugdes e a mancira pela qual elas se organizam para formar um sistema nico, jutiico 0 fato de situar 0s parceiros de maneira igual e de limitar sua informagao pelo ‘véu da ignorincia, De fato, essa estipulagdo exige que os parceiros avaliem as conepgdes propostas & sua escolha ‘considerando que elas devem fornecerprinepios primeiros de justga para o que vamos denominar de justiga do contex- to socal (background justice). Somente quando a esrutura bisicasatsfaz ds exigéncias da justca do contexto social & {que uma sociedade rata os seus membros como pessoas mo- ras igutis, Do contririo, a disposigesfundamentais que a ‘Bovernam nko esto conformes 20s prncipios que os seus ‘membros adotariam se estivessem representados de mancira ‘eqlitativa e nicamente enquanto pessoas moras. ‘Vamos resumiressas observagdes do segunte modo. O Razosvel pressupae e condiciona 0 Racional. Ele define 0s termos eitativos da cooperapo que seriam aceitos por to- 4os os membros de um grupo qualquer, constituido por pes- soas identificveis separadamente, cada um deles possuin- do e exereendo as duas faculdades morais que indicamos. ‘Todos tém uma concepeio do seu bem, que permite definit onde estéa sua vantagem racional,¢ cada um tem, de forma geral, um senso efetivo da justica isto &, a eapacidade de O-CONSTRUTIVISNO KANTHANO A TEORLA MORAL 6 respeitar os termos eaitatvos da coopera pressupie o Racional porque, sem as concepgdes do bem que mobilizam os membros do grupo, a coopere¢do socal ‘io teria sentido algum, como tampouco o teriam as nogées de justo e de justiga, ainda que uma cooperagdo desse tipo cconcretize valores que vio muito além do que podem pro- por concepges do bem tomadas isoladamente. O Razosvel ‘condiciona o Racional porque os seus prinpios imitam e até mesmo, omado num sentido kantiano imitam de modo absolut os fins iltimos que podem ser visados. essa maneia, na posigdo original, consideramos que 0 Razoivelé expresso pelo conjunto dos cereeamentos 20s quais estio submetdas as deiberagies dos parceros (en quanto agents racioais de um processo de construcio). Os representantes desses cerceamentes sio a condigio de pu blicidade, o véu de ignordnci e a simetia da situacao dos parceiros uns em relagdo aos outros, bem como a estipul ‘lade que aestrutura basi sea 0 objeto primeiro da jus 652. Os prineipios de justia habituais sio exemplos de prin- Cipios razoaveis, eos prinoiios correntes da escotha racio- nal constituem exerupls de princpios racionais. A maneira de representar o Razodvel na posi¢ao original conduz 20s ‘dois prncipios de justia. Esses principios so construidos, na teoria da justga como eqiidade, como sendo 0 conteido aque teria 0 Razodvel para aestruturabisica de uma socieds- de bem ordenad vw ‘Com isso se encerra a minha anise da distingdo entre ‘8 autonomia racional e a autonomia completa e se explica ‘como essas nogies sio expresses na posigo original. Mas, Visto de outros Angulos, 0 contraste entre o Racional © 6 % _wusriga EDEWOCRACIA Razodvel, tal como 0 apresentei nos dois tims pargra- os, € por demais promunciado e pode conduzir a uma inter pretagio errnea da maneira pela qual se deve entender es- ‘1s duas nogdes. Para maior clareza examinarei uma obje ‘980 que se poderia fazer-me e que & paralela& critica que Schopenhauer fez da doutrna Kantiana do imperativoeate- rico’. Schopenhauer sustentava que, a0 analisarasrazdes {que justifieam o dever de assisténcia a outrem em easo de infortinio (é 0 quaro exemplo de dever nes Fondements de a métaphysique des mocurs, Paris, Delagrave, 1964, p. 141), ‘Kant fazia itervir motivos que agentes racionas, isto &, seresfinitos com necessidades especificas, poderiam im- por sem contradiglo como lei universal. Dada a nossa ne ‘essidade de amor e simpatia, nlo podemos, pelo menos em certs ocasides, querer um mundo socal no qual os ou- tos ficassem sempre indiferentes & nossa sorte em tais situagies. A partir dal, Schopenhauer sustentava que a con- ‘epedo de Kant era no fundo egoista e que, por conseqién- cia, ela no er, afinal, mais do que uma forme disfareada de heteronomis, ‘Aqui cu no gostaria tanto de defender Kant mas ape~ ras mostrar que a objecio paralela drigida 8 teoria da justi- «a como eqiidade nio tem fundamento. Para isso se obser- vari que a objegio de Schopenhauer € motivada, a primeira vista, por das coisas. Primeiramente, ele acha que Kant nos ‘pede que ponhamos & prova as maximas& luz de suas con- seqitncias gerais para as nossasinclinagdes e necessidades 7. ey Sep, er nde mre AD, 2 pare 7 tu HE) Apne na Ces por me her pra ge mit (nae cn ity ih ap enone ep ‘Spat orp 19) Gags ale eer que mba epost fet corona fhe vn ss a espana, Aa ‘Gane Spee Deval por non vr“ Defer ot he Kaan thon EP he Ucn ohn Pe 8602 i 107%, O-CONSTRUTIVISMO KANITANO WA TEORIA MORAL n naturals quando essas maiximas se tornam leis universais,¢ essa inclinagdes e necessdades so encaradas como egois- tas. Em segundo lygar, as tegras que definem esse procedi- mento de por & prova as miximas sio interpretadas por ‘Schopenhauer como cerceamento extriores, impostos, por assim dizer, do exterior pels limitagdes da nossa situagdo e aque nes gostaiamos de poder superar, e ilo como cercea- ‘ments derivados das caractersticasessenciis do nosso ser enguanto pessoa moral. Essas duas consideragbes levaram Schopenhauer a dizer que © imperativo categérico & um ‘rincipio de reciprocidade que o epofsmo tem a inteligéncia, ‘de acetar como uma acomodasio; nessa condigio, ele pode ser aceitivel para uma confederagao de Estados-nago, mas ‘no como um principio moral, Examinemos agora a objeyo paraeladirigida teoria, da justiga como eqhidade e haseada nesses dois argumen- tos, No que diz respeito ao primeiro, ainda que sea efetiva- ‘mente certo que o$ parceiros, na posiglo original, so rm tuamente desinteressadose aaliam os principio de justiga ‘em termos de ben primaios, so levados de forma prioriti- ‘ia, por seus interesss superiores a desenvolver ea exercer suas faculdades morais. A lista dos bens primirios, bem ‘como o seu indice, io explicados, na medida do possivel, ‘em referénciaa esses mesmosinteresses. Como se pode con- siderar que estes limos determinam as necessidades dos parceiros enquanto pessoas moras, suas metas no Sao ego tas, mas totalmente corretas e honestas. Da concepgio que as democracias formam da liberdade da pessoa decorre que (0s cidadios procuram assegurar as condigBes que permite 4 efetivagdo € 0 exercicio de suas faculdades mors, bem ‘como as bases os meios Socais do seu auto-respeit. Isso ‘se opie & suposigdo de Schopenhauer segundo a qual, na doutrina de Kant, as mximas slo julgadas em fungdo das suas conseqiéncias para a concretizagdo das necessidades e das inclinagbes natura do agente n Jusmiga e Dewocescie ‘Quanto a0 segundo ponto, o que eu chamei de “os cer- ‘ceamentos impostos aos parceiros na posigio original” sto cfetivamente 0s ceceamentos exteiotes aos pureires en- ‘quanto agentes racionais num processo de construgdo. No ‘obstante, esses cerceamentos exprimem 0 Razodvel e, por ‘conseguinte, as condigdes formais que esto impicitas nas. faculdades dos membros de uma sociedade bem ordenada representados pels parceiros. Isso se opde segunda supo- siglo de Schopenhauer, segundo a qual os cerceamentos do mperatvo categérico decorrem das limitagdes da nossa na- tureza finita que, impelidos por nossa inlinagBes natura, _gostariamos de superar Na eoria da justica como eqiidade, ‘© Razoivel enquadra o Racional e deriva de uma concepsio

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