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Capitulo 5 CULTURA MATERIAL ATRAVES DE IMAGENS “Jamais consigo fazer com que vocé perceba a importancia das mangas... ou das grandes questdes que podem depender de um ca- dargo de bota.” ‘HOLMES PARA WATSON EM UM CASO DE IDENTIDADE DE ARTHUR CONAN DOYLE Os dois tltimos capitulos concentraram-se no que as imagens revelam ou implicam a respeito de idéias, atitudes e mentalidades em diferentes perio- dos. Aqui, em contraste, a énfase recairé na evidéncia num sentido’ mais lite- ral do termo, em outras palavras, no uso de imagens no processo da recons- trugao da cultura material do passado, tanto em museus quanto em livros de historia. Imagens sao especialmente valiosas na reconstrugao da cultura coti- diana de pessoas comuns, suas formas de habitagao, por exemplo, algumas ve- zes construidas com materiais que nao eram destinados a durar. Para esse pro- pésito, o quadro de John White retratando uma aldeia indigena na Virginia na década de 1850 (fig. 3), por exemplo, é indispensavel. © valor de imagens como evideéncia para a historia do vestuario € in- questionavel. Alguns itens da vestimenta sobreviveram por milénios. No en- tanto, para mudarmos 0 foco do item isolado para 0 conjunto, para saber o que se usava com 0 que, é necessdrio recorrer a pinturas e gravuras, assim como a alguns manequins de moda remanescentes, principalmente do século 18 ou de um pouco mais tarde. Assim, o historiador francés Fernand Braudel (1902- 1985) baseau-se em pinturas como evidéncia para a disseminacao da moda es- 99 Capitulo 5 panhola e francesa na Inglaterra, Itlia ¢ Polénia nos séculos 17 ¢ 18. Outro his- toriador francés, Daniel Roche, utilizou nao apenas inventarios, mas também pinturas, como a famosa A refeigio dos camponeses (fig. 61), de 1642, para are- constituicdo da historia da vestimenta na Franga. A rica série do que restou dos ex-votos de Provenga, discutida no capitulo 3, que representa cenas do cotidia- no, permite ao historiador estudar a continuidade e a mudanga nas roupas de diferentes grupos sociais naquela regido. Um de Hyéres em 1853, por exemplo, mostra como 0s acouguciros vestiam-se para 0 trabalho (fig. 16).! Do mesmo modo, a historia da tecnologia ficaria muito empobrecida se'0s historiadores fossem obrigados a se basear apenas em textos. Por exem- plo, as carruagens usadas milhares de anos antes de Cristo na China, no Egito @ na Grécia podem ser reconstruidas através de modelos que subsistiram ¢ pinturas em tumulos. O aparelho para ver estrelas construido para o astréno- mo dinamarqués Tycho Brahe (1546-1601) em seu observatério de Uraniborg foi colhido numa gravura que foi reproduzida varias vezes em historias da cigncia precisamente pela falta de outras fontes. O aparelho usado para espre- mer suco da cana-de acticar nas plantagdes do’ Brasil, pelo mesmo principio utilizado pelas calandras que sé encontravam nas copas das cozinhas, est cla- ramente ilustrado numa dgua-tinta do artista francés Jean-Baptiste Debret, no qual dois homens sentados alimentam a maquina enquanto dois outros for- necem a energia que mantém a maquina em movimento (fig. 33). Historiadores da agricultura, da tecelagem, da impressio de papéis, da guerra, da mineracio, da navegagao € das outras atividades praticas, a lista € virtualmente infinita, tém-se baseado intensamente no testemunho de ima- gens para reconstruir as maneiras pelas quais arados, teares, maquinas im- pressoras, arcos, armas de fogo, € assim por diante, eram utilizados, bem como para mapear as mudangas stibitas ou-graduais por que passaram as con- cepgdes desses instrumentos. Assim, um pequeno detalhe na pintura de A Ba- talha de San Romano, de Paolo Uccello (1397-1475), € um entre outros teste- muinhos da forma como um soldado segurava sua “besta” enquanto recoloca- va muni¢ao nela. Pinturas japonesas em forma de rolo, datadas do século 18, nao apenas fornecem as medidas precisas de diferentes tipos de juncos chine- 1 BRAUDEL, Fernand. The Structures of Everyday Life (1979). London: Collins, 1981. p. 318. (raducio inglesa); ROCHE, Daniel. The Culture of Clothes (1989). Cambridge: Cambridge University Press, 1996, (Tradugio inglesa); COUSIN, Bernard. Le Miracle et le Quoti ‘ex-voto provencaux images d'une société. Aicen-Provence: Sociétés, mentalités, cultures, 1983. p. 17-18. 100 (Cultura material através de imagens 433. Jean-Baptiste Debret, “Pequeno moinho de acticar portitil” (maquina para extrair suco de cana-de-acticar), 4gua-tinta de Viagem pitoresca e histérica ao Brasil (Pais 1836-1839). ses, nas também permitem aos historiadores observar o equipamento em de~ talhe, das ancoras‘ao canhao e das lanternas aos fog6es de cozinha.* Quando a ‘Associagao Nacional de Registro Fotogréfico foi fundada na Inglaterra em 1897, para fazer fotografias e colecioné-las no Museu Britinico, os fundado- res da entidade pensavam especialmente em registros de prédios ¢ outras for- mas tradicionais da cultura material.” ‘Uma vantagem particular do testemunho de imagens é a.de que elas co- municam rapida e claramente os detalhes de um proceso complexo, como 0 da impressao, por exemplo, 0 que um texto leva muito mais tempo para descrever de forma mais vaga. Daf os varios volumes de gravuras na famosa Encyclopédie francesa (1751-1765), um livro de referéncia que deliberadamente colocava 0 conhecimento de artesdids no mesmo nivel que 0 de estudiosos. Uma dessas gra- 2 PARET, Peter. Imagined Battles: Reflections of War in Europen Art . Chapel Hill: University of North Cérolina Press, 1997. p. 24 OBA, Osamu. Scroll Paintings of Chinese Junks. Mariners Mirror LX, p. 351-362, 1974. 3 GOWER, H-D, JAST, L. Stanley; TOPLEY, W. W. The Camera as Historian. London: S. Low, Marston, 1916. seas 101 Capteulo 5 34, Gravura da sala de composicao de uma grifica (Imprimerie), de “Recueil des planches” (Antologia de Pranchas) (1762) da Encyclopédie (Paris, 1751-1765). vuras mostrava aos leitores como os livros eram impressos, retratando a oficina de uma grafica durante quatro diferentes estagios do processo (fig. 34). E seguramente perigoso tratar ilustracdes desse tipo como uma iefle- xo nao problemiatica do estado da tecnologia num determinado lugar e snuma determinada época sem empreender uma critica das fontes, identifican- do os artistas (no caso L.-J.Goussier) ¢, ainda mais importante, as fontes.nas quais 08 artistas se basearam, Nesse caso, acorre que varias gravuras contidas na Encyclopédie nao foram baseadas em observasées diretas. Elas sio versdes revisadas de ilustracées anteriores, da Cyclopedia de Chamber, por exemplo, ou da obra ilustrada Descrigo das Artes, publicada pela Academia Francesa de Ciéncias.* Como sempre, é necessaria a critica das fontes, mas a justaposigio comparacao de gravuras de gréficas entre 1500 e 1800 fornecem ao especta- dor a impressao nitida da mudanga tecnoldgica. Dois tipos de imagem ilustrarao esses pontos mais detalhadamente; vistas externas de cidades e vistas de interiores. 4. PROUST, Jacques (Ed.). L’Encyclopédie, Paris: [s.n.}, 1985. p. 16. 102 . ee ee ee ee Te ey, et Pe Cultura material através de imagers “PAISAGENS” DE CIDADES* Historiadores urbanos hé muito tempo se dedicam ao que eles chamam de “a cidade como artefato”® A evidéncia visual é particularmente importante para esse enfoque de hist6ria urbana. Por exemplo, existem pistas valiosas sobre a aparéncia de Veneza no século 15 como pano de findo de pinturas ao “estilo testemunha ocular” (ver Introdugdo), como em Milagre em Rialto, de Carpaccio (fig. 35), que mostra ndo apenas a ponte de madeira que antecedeu a atual de pe- dra (construida no final do século 16) mas também detalhes tais como um tipo raro de chaminé em forma de funil, que desapareceu até mesmo de palacios re- manescentes da época e que em certo tempo dominaram o horizonte veneziano. 35. Vittore Carpaccio, Milagre no Rialto, c,1496, 6leo sobre tela. Ga- leria dell’ Accademia, Veneza. Em meados século 17, “paisagens” de cidades, como as paisagens pro- priamente ditas, tornaram-se um género pictérico independente, que surgiu na Holanda com vistas de Amsterda, Delft e Haarlem e disseminou-se ampla- * © autor empregou no original townseapes, rocadilho intraduzivel. Recorremos entio 90 termo paisagens colocando as aspas, (IN.T:) 5 HANDLIN, Oscar; BURCHARDT, John. (Ed.). The Historian and the City. Cambridge, MA: MIT Press, 1963. p. 165-215; DE SETA, Cesare (Bd.). Citta d’Europa: Iconografia e vedutismo al xv al xvii secolo. {Naples}: Electa Napoli, 1996. 103 ‘Capisuto 5 mente no século 18.‘ Giovanni Antonio Canaletto (1697-1768), um dos mais conhecidos expoentes do género, conhecido na Itélia como “vistas” (vedute), trabalhou em Veneza e por alguns anos em Londres. Seu sobrinho Bernardo Bellotto (1721-1780) trabalhou em Veneza, Dresde, Viena e Varsévia. Impres- sos da vida citadina também eram populares na época, bem como gravuras ou gua-tintas de determinados prédios ou tipos de prédios, como as vistas das faculdades de Oxford e Cambridge publicadas pelo artista David Loggan em 1675 ¢ 1690 e por Rudolph Ackerman (como Loggan, um imigrante da Europa Central), em 1816. O ascenso desses géneros nessa época em particu- lar por si s6 j4 nos revela algo sobre atitudes urbanas, por exemplo, o orgu- Iho civico. : O fato de que os artistas da reptiblica holandesa estivessem entre os primeiros a pintar vistas externas de cidades e interiores domésticos, para no mefcionar natureza morta, € uma valiosa pista para a natureza da cultu- ra holandesa no perfodo. Nessa cultura, dominada por cidades e mercadores, a observagio do detalhe “microscépico” era altamente valorizada. Com efeito, foi um holandés, Cornelis Drebbel (c. 1572-1633), quem inventou o microscépio € um outro holandés, Jan Swammerdam (1637-1633), quem primeiro utilizou um microscépio para descobrir e descrever um novo mun- do de insetos. Como sugeriu a historiadora da arte americana Svetlana Al- pers, a cultura holandesa do século 17 era uma cultura que encorajava uma “arte de descrever”? No caso de vistas externas de cidades, os detalhes de determinadas ima- gens algumas vezes possuem especial valor como evidéncia. A velha cidade de Vars6via, literalmente arrasada em 1944, foi reconstrufda apés a Segunda Guerra Mimndial com base no testemunho de materiais impressos ¢ também de pinturas de Bernardo Bellotto. Historiadores da arquitetura fazem uso re- gular de imagens a fim de reconstruir a aparéncia de prédios antes de sua de- molicéo, ampliagdo ou restauracao: a velha catedral de So Paulo em Londres (antes de 1665), a antiga prefeitura em Amsterda (antes de 1648), etc. Por sua vez, historiadores urbanos freqiientemente utilizam pinturas, impressos e fotografias para imaginar e possibilitar que seus leitores imagi- nem a antiga aparéncia das cidades — nao apenas os prédios, mas também os 6 LAWRENCE, Cynthia. Gerrit Berckheyde. Doornspijk, The Netherlands: Davaco, 1991. 7 ALPERS, Svetlana. The Art of Describing: Dutch Art in the Seventeenth Century, Chicago! University of Chicago Press, 1983. 104 Cultura material através de imagens Porcos, cies e cavalos que vagueavam pelas ruas ou as arvores que se enfilei- ravam num lado de um dos maiores canais de Amsterda no século 17 (fig, 36), © Herengracht, como no desenho de Gerrit Berckheyde (1638-1698). Fotogra- fias antigas so especialmente valiosas para a reconstrugao histérica de cor- ticos que foram destrufdos, revelando a importancia da vida de ruelas e becos em cidades como Washington e detalhes especificos tais como a localizacio das cozinhas."” 36. Gerrit Adriaensz Berkheyde, Uma curva no Herengracht, Amsterda, antes de 1685(?), aquarela e tinta nanquim, Gemeentearchief, Amsterda. Como se poderia esperar, o emprego de imagens como evidéncia dessa forma nio deixa de ter seus perigos. Pintores e tipégrafos nao trabalhavam tendo em mente futuros historiadores e 0 que os interessava, e a seus clientes, Podia nao ser a exata representagao da rua de uma cidade. Artistas como Ca. naletto algumas vezes pintavam fantasias arquiteténicas ou capricci, constru- $e esplendorosas que nunca foram além do esboco; ou eles se permitiam rearranjar uma determinada cidade na imaginacao, como no caso de varias composigdes de imagens que combinavam as principais vistas de Veneza. 8 DE SETA, Cesare (Ed.). Citta d'Europa: Iconografia ¢ vedutismo dal xv al xviit'secolo. Naples]: Electa. Napoli, 1996; BORCHERT, James. Alley Life in Washington: Family, Community, Religion and Folklife in an American City. Urbana: University of Il Press, 1980); Id., Historical Photo-analysis: A research method. Historical Methods 31, p. 35-44, 1982. 105 Capitulo 5 37. Claude-Joseph Vernet, The Port of La Rochelle (O porto de La Rochelle), 1763, éleo sobre tela. Museu do Louvre, Paris. Mesmo que os prédios fossem apresentados com aparente realismo, como nos trabalhos de Berckheyde, as cidades podem ter sido limpas pelos ar- tistas, o equivalente aos pintores de retratos que tentavam mosttar seus mo- delos da melhor forma possivel. Esses problemas de interpretacao da evidén- cia estendem-se a fotografia. As primeiras fotografias de cidades mostram com freqiiéncia ruas implausivelmente desertas, para evitar os borrdes nas imagens causados pelo movimento r4pido, ou representam pessoas em poses estereotipadas, como se os fotdgrafos tivessem sido inspirados por pintores antigos (Capitulo 1). De acordo com suas atitudes politicas, os fotografos es- colhiam representar as casas mais deterioradas, a fim de apoiar a campanha pela extin¢ao dos corticos, ou as de melhor aparéncia, para se oporem a isto. Para um exemplo nitido da importncia de recolocar as imagens nos contextos originais para que nao se faga, uma interpretacdo erténea das suas mensagens, podemos considerar a pintura do porto de La Rochelle (fig. 37), de Claude-Joseph Vernet (1714-1789), parte de uma série de quinze trabalhos dedicados aos portos da Franca, uma série que atraiu consideravel interesse, como testemunhado pela 6tima venda das reproducées em gravura. A cena 106 Cultura material através de imagens portudria com a floresta de mastros ao longo do rio e os homens trabalhando em primeiro plano tem alguma coisa do imédiatismo de um instantaneo. En- tretanto, o artista mostrou o porto bastante movimentado numa época (mea- dos do século 18) em que, segundo outras fontes sugerem, 0 comércio no por- to de La Rochelle estava de fato em declinio, Qual seria a azo? A questao pode ser respondida inserindo-se a pintura no seu contexto politico, Como outros trabalhos da série, ele foi pintado por Vernet por encomenda do marqués de Marigny em nome do rei Luis XV. Até 0 itinerério do pintor foi oficialmente planejado. Marigny escreveu a Vernet criticando uma das vistas, do porto de Cette, pelo fato de a beleza haver sido alcangada & custa da “verossimilhanga” (ressemblance) lembrando ao pintor que a inten- s40 do rei era “ver os portos do reiné representados de manéira realista” (au naturel). Por outro lado, Vernet nao podia se dar ao luxo de ser excessivamen- te realista. Suas pinturas deveriam ser exibidas como uma forma de propagan- da do poder maritimo francés.’ Se as cartas e outros documentos que esclaré- cem a situacao nio tivessem sido conservados, historiadores econdmicos bem poderiam ter usadoessa pintura como base para conclusdes superotimistas a respeito das condigdes do comércio francés. INTERIORES E SUAS MOBILIAS- No caso de imagens de interiores de casas, 0 “efeito realidade” é ainda mais forte do que nas de vistas. Recordo-me nitidamente da minha prépria reacdo, ainda menino visitanto a National Gallery em Londres, em relagao as pinturas de Pieter de Hooch (1629-1694), que se especializou em interiores e patios de casas holandesas, repletos de maes, criados, criancas, homens beben- do ¢ fumando cachimbos, baldes, barris, arcas de roupa de cama, ete. (fig. 38). Na presenga de tais pinturas, os trés séculos separando 0 espectador do pintor parecem evaporar por um momento, ¢ o passado quase pode ser sentido e to- cado, bem como visualizado. 9 LAGRANGE, Léon, Les Vernet et la peinture au 18e siécle. 2. ed. Paris: (8:n.}, 1864, p. 69-70, 85-87, 104, 115,'cf. HELD, Jutta. Monument und Volk: Vorrevolutionire’ Wahrnehmung in Bildern des ausgchenden Ancien Regime: Kéln: Bohlau 1990. 107 38. Pieter de Hooch, Patio de uma casa em Delft, 1658, dleo sobre tela, National Gallery, Londres. Gultura material através de imagens A porta de entrada, a fronteira entre as areas publica e privada, é 0 cen- tro de interesse de varias pinturas holandesas do século 17. Um artista, Jacob Ochtervelt (1634-1682), especializou-se nessas cenas: musicos de rua tocando. 4 porta ou pessoas vendendo cerejas, uvas, peixe ou aves (fig. 81). Olhando para pinturas como essas, torna-se mais uma vez dificil reprimir a impressao de se estar vendo um instantineo, ou mesmo de se estar entrando numa casa do sé- culo 17.” De forma semelhante, casas bem preservadas como Ham House em Surrey, ou os chalés preservados ¢ exibidos em museus ao ar livre, como Skan- sen, proximo a Estocolmo, repletos de mobilia da época em que foram cons- truidos, oferecem ao espectador uma impressao de contato direto com a vida no passado, Precisamos fazer um esforco para lembratmos que esse imediatismo é uma ilusdo. Nao podemos entrar numa casa do século 17. Aquilo que vemos quando visitamos um prédio assim, seja a cabana de um camponés ou 0 pa- lacio de Versalhes, é inevitavelmente uma reconstituigéo na qual uma equipe de musedlogos agiu como historiadores. Eles se baseiam na evidéncia de in- ventirios, pinturas e materiais impressos para descobrir que tipo de mobilia pode ter sido apropriada numa casa desse tipo e como ela teria sido arrumada. Quando o prédio é modificado em séculos posteriores, como no caso do pa- lacio de Versalhes, os restauradores tém de decidir se sacrificam detalhes do século 17 em favor do 18 ou vice-versa. Dé qualquer forma, o que vemos hoje € em grande parte uma reconstituigao. A diferenca entre um prédio “auténti- co” e um falso do'século 17 no qual uma parte substancial da madeira e pedra foi substituida por moderna carpintaria e tijolos é seguramente uma diferen- ga de grau, mais do que uma diferenca em nivel de tipo." Com relacao as pinturas de interiores domésticos, devem. ser. vistas como um género artistico com suas regras proprias em relagado ao que deve ou nao ser mostrado. Na Itilia do século 15, tais interiores aparecem como pano de fundo para cenas religiosas, como no caso das vistas externas das cidades. Assim, Anunciagao (1486), de Carlo Crivelli, que ainda pode ser visto na National Gallery de Londres, mostra a Virgem Maria lendo numa mesa de ma- 10 KURETSKY, Susan D. The Paintings of Jacob Ochtervelt. Oxford: Phaidon, 1979; SCHAMA, ‘Simon. Thie Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age. London: Harper Collins, 1987. esp. p. 570-596. 11 THORNTON, Peter. Seventeenth-Century Interior Decoration in England, France and Holland. New Haven: Yale UP, 1978. 109 “ Capitulo 5 39, Jan Steen, O lar em desordem, 1668, 6leo sobre tela. Apsley House (Museu Wellington), Londres. deira, com livros, casticais ¢ garrafas numa prateleira as suas costas, enquanto num plano superior vemos um tapete oriental pendurado num parapeito. Na Holanda no século 17, imagens dos interiores de casas tornaram-se um género distinto com suas proprias convencées. Freqiientemente considera- das simples celebragdes da vida cotidiana, varios desses interiores tém sido in- terpretados por um expoente historiador de arte holandés, Eddy de Jongh (Ca- pitulo 2), como alegorias morais nas quais o que estava sendo celebrado era a virtude da limpeza ou do trabalho arduo." O lar em desordem de Jan Steen 12. JARDINE, Lisa. Worldly Goods: A New History of the Renaissance. London: [s..], 1996. p. 6-8. 13 JONGH, Eddy de. Realism and Seeming Realism in Seventeenth-Century Dutch Painting (1971). In: FRANITS, Wayne, (Ed.). Looking at seventeenth-Century Dutch Art: Realism Reconsidered. Cambridge: Cambridge UP, 1997. p. 21-56. (Tradugao inglesa). SCHAMA. Simon. The Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age. London: Harper Collins, 1987. p. 373-397. 110 Cultura material através de imagens (1626-1679) (fig. 39), por exemplo, com cartas de baralho, conchas de ostras, pedagos de pao e até mesmo um chapéu engenhosamente jogado no chao, traz uma clara mensagem sobre as ligacdes entre ordem e virtude, desordem e pe- cado, A pintura também pode servir para advertir espectadores do século 21 que um artista nao é uma camera, mas um comunicador ou comunicadora com sua propria agenda. Mesmo na cultura da descri¢io, as pessoas, ou pelo menos algumas pessoas, continuavam a se preocupar com o que estava debai- xo da superficie, tanto da superficie das imagens quanto da do mundo mate- rial que as imagens representavam." Tendo em mente esses problemas, entretanto, muito ainda pode ser aprendido através do estudo cuidadoso de pequenos detalhes em imagens de interiores — casas, tavernas, cafés, salas de aula, lojas, igrejas, bibliotecas, tea~ tros, etc. O rapido esbogo dos espacos interiores do Teatro Swan em South- wark durante a apresentacao de uma pega, feito por um visitante estrangeiro em Londres por volta de 1596 (fig. 40), mostrando uma casa de dois andares situada ao fundo de um palco aberto e a platéia rodeando os atores, é um pre- “40, Johannes De Witt, Esbogo do’ interior do teatro Swan, Londres, ¢.1596, Biblioteca da Uni- versidade de Utrecht. 14 HONIG, Elizabeth A. The Space of Gender in Seventeenth-Century Dutch Painting, In: FRANITS, Wayne, (Ed.). Looking at seventeenth-Century Dutch Art: Realism Reconsidered. Cambridge: Cambridge UP, 1997. p. 187-201. ll Capitulo 5 41.1. P, Hofmann, Gravura mostrando 0 laboratério de quimica de fistus von Liebig em Giessen, da obra Das Chemiche Laboratorium der Ludwigs-Universittt zu Giessen (Heidel- berg, 1842), cioso elemento de evidéncia na qual historiadores do teatro na época de Sha- kespeare tém freqiientemente se apoiado. Eles esto certos ao fazer assim, uma vez que um conhecimento da planta do teatro é essencial para a reconstitui- ao das antigas representagdes, 0 que por sua vez € necessdrio para a com- preensdo do texto. Visualizar a organizacao de objetos, cientistas e assistentes num laboratério (fig. 41) é aprender algo a respeito da organizacao da cién- _ tia, assunto sobre o qual os textos sao silenciosos. Representar cavalheiros usando cartolas no laboratério desafia a ace de uma atitude de “mio- na-massa” em relagaio & pesquisa. No mesmo sentido, a Tapegaria Bayeux tem sido descrita como “uma espléndida fonte para compreensao da cultura material do século 11”. A cama com dossel mostrada na cena da morte do rei Eduardo, 0 Confessor oferece um testemunho que nao pode ser igualado por nenhum outro documento da época."* Mesmo no caso do século 19 melhor documentado, imagens captu- ram aspectos da cultura material que seriam muito dificeis de serem reconsti- tuidos de outra forma. Os montes de palha e as camas de relva onde dormiam alguns dos habitantes de cabanas irlandesas, nessa época ha muito ja desa- 15. WILSON, David M. The Bayeux Tapestry. London: Thames & Hudson, 1985.p. 218. 112 42. Vittore Carpaccio, Santo Agostinho em seu escritério, 1502-1508, dleo e tempera sobre tela. Scuola di S. Giorgio degli Schiavoni, Veneza. parecidos, mas ainda podem ser visualizados gracas as aquarelas pintadas por artistas da época, principalmente visitantes estrangeiros que ficavam impres- sionados — negativamente na maior parte — pelas sondigats que artistas locais provavelmente consideravam normais," Pinturas renascentistas, esbogos e gravacdes em madeira de estudiosos em seus escritérios, especialmente os santos estudiosos, Jeronimo e¢ Agostinho, tém sido utilizados como evidéncia para 0 equipamento dos escritérios dos humanistas, suas mesas de trabalho, prateleiras de livros e es- tantes. No caso da obra Santo Agostinho em seu escrit6rio, de Carpaccio (fig. 42), por exemplo, a chamada “cadeira giratéria” tem atraido especial aten¢ao, embora meregam ser observados a presenga de estatuetas, uma concha; um astrolébio e um sino (para chamar os criados), bem como livros ¢ material para escrita. Outras representacdes italianas de escritérios, do Sao Jerénimo de Antonello da Messina ao esbo¢o de um jovem cardeal feito por Lorenzo Lot- 16 KINMONTH, Claudia. Irish Vernacular Furniture: Inventories and Illustrations in Interdisciplinary Methodology. Regional Furniture x, p. 1-26, 1996. 113 Capitulo 5 to, confirmam a precisio de alguns dos detalhes de Carpaccio, bem como acrescentam outros.” ‘Também poderia ser“elucidativo comparar 0 Agostinlio de Carpaccio com imagens de escritérios em outras culturas ou periodos. Para uma com- paragao distanciada e contrastante, poderiamos nos voltar para os escritérios de estudiosos chineses, por exemplo, que sao freqtientemente representados em pinturas e gravagées em madeira numa forma padronizada que presumi- velmente representa 0 ideal cultural. O escritério tipico fica voltado para um jardim. A mobilia incluia um sofa, prateleiras de livros, uma mesa na qual fi- cavam os “quatro amigos” do estudioso (pincel para escrita, suporte para 0 pincel, recipiente de tinta e conta-gotas para a Agua) e talvez alguns bronzes antigos ou também exemplos de bela caligrafia. O escritorio era mais um sim- bolo de status na China do que na Europa, uma vez que era das fileiras da cha- mada “elite rural letrada” que os governantes do pais eram recrutados. Para uma compara¢ao mais proxima, poderiamos justapor a imagem de Carpaccio a igualmente famosa gravacio em madeira de Siio Jerénimo em seu escritorio (1514), de Albrecht Diirer (fig. 43), para saber se o que aparece é a di- ferenga entre pintores individuais ou um contraste mais geral entre escritérios na Itélia ena Alemanha. Diirer mostra uma sala que pode nos parecer um pou- co vazia, mas que era em alguns aspectos luxuosa para o periodo, com almofa- das macias na cadeira e nos bancos, a despeito do bem conhecido ascetismo de Jerénimo. Por outro lado, como apontou Panofsky, a mesa est vazia, e “sobre ela nada se encontra, a nao ser um tinteiro ¢ um crucifix”, além da tébua in- clinada na qual 0 santo est escrevendo."* A presenca de livros € pequena, e, no caso de um bem conhecido estudioso, essa auséncia é certamente expressiva. Pode-se cogitar se um pintor, que viveu numa época em que a imprensa era uma invengdo nova e excitante, nao estaria destacando um aspecto histérico sobre a pobreza da cultura do manuscrito na época de Jeronimo. Por contras- te, uma gravagaio em madeira de Erasmo e seu secretario Gilbert Cousin traba- Ihando juntos, mostra uma estante repleta de livros atras do secretario. 17 GIEDION, Siegfried. Mechanization Takes Command: A Contribution to Anonymous History. New York: Oxford UP, 1948. p. 288; THORNTON, Peter. The Italian Renaissance Interior, London: Weidenfeld and Nicolson, 1991; THORNTON, Dora, The Scholar in his Study . New Haven: Yale UP, 1998. 18 BRAY, Francesca. Technology and Gender: Fabrics of Power in Late Imperial China. Berkeley: University of California Press, 1997. p. 136-139; PANOFSKY, Erwin, Albrecht Diirer. Princeton, NJ: Princeton UP, 1948. p. 155: GIEDION, Siegfried. Mechanization Takes Command: A Contribution to Anonymous History. New York: Oxford UP, 1948. p. 303. 114 (Cultura matetial através de imagens 43. Albrecht Darer, Sao Jerdnimo em seu escritério, 1514, gravura. PUBLICIDADE As imagens usadas em publicidade podem auxiliar historiadores do futuro a reconstituir elementos perdidos de cultura material do século 20, de automéyeis a vidros de perfume, mas no presente, seja como for, elas sio mais titeis como fontes para 0 estudo de atitudes passadas em relagio a mercadorias. O Japao foi de modo bem pertinente um dos pioneiros nesse aspecto; prova esta nas referéncias a produtos de marca, como o saqué, em certos impressos de Utamaro (1753-1806). Na Europa, o final do século 18 testemunhou o aparecimento da publicidade através de imagens, tais como © novo tipo-espreguigadeira (chaise longue) ilustrado num periddico ale- mao especialmente dedicado a inovagées no mundo do consumo, 0 Journal des Luxus und des Moden (fig. 44). 1 Um segundo estagio na histéria da publicidade foi atingido no final do século 19 com o surgimento do péster, uma litografia colorida em tamanho 115 Capitulo § 44. G.M. Kraus (2), gravura de uma espreguigadeira (chaise-longue) com uma mesa de lei- tura acoplada, publicada no Journal des Luxus und des Moden (1799). grande, exposta nas ruas. Jules Chéret (1836-1932) e Alphonse Mucha (1860- 1939), ambos trabalhando em Paris durante a belle époque, produziram uma série de pésteres fazendo propaganda de pegas, sales de danga, bicicletas, sa- bao, perfume, creme dental, cerveja, cigarros, maquinas de costura Singer, champanhe Moit et Chandon, querosene “Saxoleine” para lampedes, etc, Lin- das mulheres eram mostradas junto a todos esses produtos como forma de persuadir os espectadores ao ato de comprar. Entretanto, foi no século 20 que os publicitarios-voltaram-se para a psi- cologia “profunda” a fim de apelar ao inconsciente dos consumidores, fazen- do uso das chamadas técnicas “subliminares” de persuasao por associagio. Na década de 1950, por exemplo, flashes de duracao de segundos de publicidade de'sorvete eram mostrados durante a apresentacao de filmes nos Estados Uni- dos. A platéia nao se dava conta de que havia visto essas imagens, mas, apesar disso, o consumo de sorvete aumentava. Pode ser interessante empregar 0 termo “subliminar” num sentido mais amplo para referir & maneira pela qual a imagem mental de um determi- nado produto é construida associando varios objetos com sua imagem visual. Este é um processo de’manipulagao consciente por parte das agéncias de pu- blicidade, seus fotografos ¢ seus “analistas motivacionais’, no entanto é larga- 116 (Culturd material através de imagens 45. Publicidade de um sabonete italiano da década de 1950. ‘Anche’ ehi riesce a conqulstare un tesoro ud essere conguistato dal fascino Ca mente inconsciente para os espectadores. Dessa maneira, 0 carro esporte, por exemplo, hé tempos tem sido associado com poder, agressividade e virilidade, qualidades simbolizadas por nomes como “Jaguar”. Propagandas de cigarro costumavam mostrar imagens de cowboys a fim de explorar uma gama seme- Ihante de associagGes masculinas. Essas imagens testemunham os valores que sao projetados em objetos inanimados na‘nossa cultura de consumo, 0 equi- valente, talvez, aos valores projetados em .paisagens nos séculos 182e719 >, (Capitulo 2). Consideremos 0 caso da publicidade de perfume das décadas de 1950 € 1970 respectivamente, décadas que estao agora suficientemente longe para se- rem vistas com certo grau de distanciamento. A propaganda do Camay (fig. 45) representa o interior de uma elegante sala de leilio (o nome “Sotheby's” esta visivel no catélogo) na qual um homem de boa aparéncia e bem vestido tem atencao desviada dos trabalhos de arte que ele est admirando pela visio, 117 Capisulo 5 ~ ou ser o perfume? — da moga que usa 0 produto (Capitulo 10). A garota Camay € bonita, porém anénima. Ao contrario, algumas publicidades do per- fume Chanel n° 5 justapunham o perfume a atriz Catherine Deneuve. Seu en- canto faz quase que desaparecer 0 produto, encorajando espectadoras do sexo feminino a identificar-se com ela e seguir 0 seu exemplo. Ou talvez, numa ela- boragdo mais ambiciosa, “O que 6 rosto de Catherine Deneuve significa para ns no mundo de revistas e filmes, o perfume Chanel n°’s tenta significar no mundo dos bens de consumo”. Como no caso de certas publicidades analisa- das por Roland Barthes, a interpretacao da imagem de Camay por Umberto Eco e da imagem de Chanel por Judith Williamson segue as linhas de um en- foque estruturalista ou semidtico (a ser discutido mais detalhadamente a se- guir, no Capitulo 10), em vez de um enfoque iconografico, concentrando-se na relagao entre diferentes elementos na imagem e considerando-a em termos de oposicées binarias.” PROBLEMAS E SOLUGOES ‘ Os exemplos discutidos nas duas segdes anteriores levantam proble- mas com os quais o leitor jé estaré familiarizado, como o problema da for- mula visual. As representag6es de mobilia na Tapecaria Bayeux, por exemplo, tém sido descritas como “formulaicas”. Mais uma vez, hé 0 problema das in- tengdes do artista, seja para representar o mundo visivel de forma fiel ou para idealiza-lo ou até mesmo fazer uma alegoria. Um terceiro problema é 0 da imagem que se refere a ou “cita” outra imagem, o equivalente visual da inter- textualidade. O casamento barato, de David Wilkie (1818), que é repleto de detalhes de cultura material, esta sem duvida baseado nas observagdes da sua cidade natal Fife, porém também se percebem empréstimos ou alusées a pin- turas ou materiais impressos holandeses do século 17. Assim, até que ponto e de que maneiras as pinturas podem ser usadas por historiadores sociais da Escécia do século 19? Ainda um outro problema refere-se a possivel distor- 40. Como observado anteriormente, artistas podem arrumar as salas e lim- 19 ECO, Umberto. La siruttura assente: Introduzione alla ricerca semiologica. Milano: Bompiani, 1968. p. 174-177. 20 WILLIAMSON, Judith. Decoding Advertisements: Ideology and Meaning in Advertising. London: Marion Boyars, 1978. p. 25; cf. GOFFMAN, Erving. Gender Advertisements. London: ‘Macmillan, 1976. 118 Cultura material através de imagens par as ruas nas suas pinturas. Outras imagens divergem ainda mais do coti- diano. Usando a evidéncia de publicidades, de pésteres a comerciais de TV, historiadores do ano 2500 podem ser tentados a assumir que 0 padrao de vida de pessoas comuns na Inglaterra no ano 2000 era consideravelmente mais elevado do que ocorria de fato. Para usar a evidencia com seguranga, eles precisariam se familiarizar com a convengao da televisdo vigente na épo- ca, de representar as pessoas em casas melhores e rodeadas de itens mais ca- ros do que aqueles que na pratica elas poderiam possuir. Em outras ocasides, a desordem e a miséria dos quartos podem ser exa- geradas pelos artistas, seja conscientemente, como Jan Steen, a fim de salientar uma determinada retérica ou aspecto moral, ou inconscientemente, porque eles estdo representando uma cultura cujas regras no conhecem por dentro. Interio- res de cabanas na Suécia no século 19, como na Irlanda, eram geralmente esbo- sados por pessoas de fora, que poderiam ser estrangeiras ou de qualquer manei: ra oriundas da classe média. Um desenho representando um sitio sueco no ini cio do dia, 5 horas da manha (fig. 46), ilustra notavelmente a falta de privacida- de dos fazendeiros, com cubiculos nas paredes em vez de quartos de dormir. Mais especificamente, 0 que se mostra € a falta de privacidade como era perce- bida pelos olhos da classe média, incluindo os do artista Fritz von Dardel.”" Temos entao o problema do capriccio, discutido anteriormente. Pinto- res de vistas algumas vezes gostavam de criar fantasias arquitetonicas, como 0 fez Carpaccio em suas famosas pinturas da vida de Santa Ursula. No caso do seu Agostinho em seu escritério, chamou atengao a “estranha cadeira com apoio para leitura e a nao menos curiosa mesa de escrever”, das quais nada de andlogo sobreviveu.” Teria sido esse um caso de mobilia criada na imagina- 40, ou podemos acreditar que esses objetos um dia existiram? Um exemplo mais complexo dos problemas envolvidos na leitura de imagens de interiores advém das séries de interiores de igrejas pintados por um artista holandés do século 17, Pieter Saenredam (1597-1665). Poder-se-ia ter pensado que nao_haveria problemas na representacao dessas igrejas, po- rém um exame cuidadoso suscita algumas questoes dificeis. Na época, essas igrejas estavam sendo usadas para o culto calvinista. Entretanto, algumas ima- gens catlicas sao visiveis nas pinturas e até mesmo, ocasionalmente, pessoas 21 FRYKMAN, Jonas; LOFGREN, Orvar. Culture Builders: A Historical Anthropology of Middle-Class Life (1979). New Brunswick: Rutgers UP, 1987. p. 127-129. (Traducao inglesa).. 22. THORNTON, Interior. fig. 317. 119 Capitulo $ coat Soadiee Babee 46. Fritz von Dardel, O despa da manha em Orsa, 1893, aquarela, Museu Nordiska, Estocolmo, engajadas no que parece ser ui ritual catélico, tal qual o batismo representa- do como tendo lugar na ala sul da igreja de Sio Bavo em Haarlem (fig. 47). Um exame dos pequenos detalhes mostra que o celebrante nao é um pastor protestante, mas um padre catdlico vestido numa sobrepeliz e estola. Sabe-se que Saenredam era amigo dos.catélicos em Haarlem (havia muitos catélicos na Republica Holandesa no século 17). Nas pinturas 0 artista “restaurou” as igrejas no seu antigo aspecto catdlico. As imagens de Saenredam oferecem me- lhor evidéncia ‘da persisténcia do catolicismo holandés do que a aparéncia contemporanea das igrejas holandesas. Elas no sio simples observagoes, mas “estdo carregadas de sugestdes histdricas e religiosas” ; Num Angulo positivo, imagens freqiientemente revelam detalhes da cul- tura material que as pessoas na época teriam considerado como dados e deixa- do de mencionar em textos. Os cies em igrejas ou bibliotecas holandesas ou 23. SCHWARTZ, Gary; BOK, Marten J. Pieter Saenredam, the Painter and his Time (1989). London: G. Schwartz/SDU, 1990. esp. p. 74-76. (Traducao inglesa). 120 Cultura material através de imagens 47. Pieter Jansz Saenredam, Inte- rior da Igreja de Sao Bavo em Haarlem, 1648, 6leo sobre painel. Galeria Nacional da Esc6cia, Edimburgo. nas graficas Loggan das faculdades de Oxford e Cambridge dificilmente teriam sido representados se nao fossem comumente encontrados nesses locais, e, as- sim, foram: usados para apoiar a tese sobre a onipresenga de animais na vida cotidiana da época." O testemunho de imagens é ainda mais valioso porque elas revelam nao apenas artefatos do passado (que em alguns casos foram pre- servados e podem ser diretamente examinados) mas também sua organizacio; 0s livros nas prateleiras de bibliotecas e livrarias (fig. 48), por exemplo, ou os objetos exéticos arrumados em museus, ou “cabinetes de curiosidades” como eram descritos no século 17 (fig. 49), os animais empalhados ¢ peixes pendu- rados no teto, os vasos antigos no chao, uma estatueta num plinto, objetos me- nores organizados nas prateleiras e outros ainda menores em gayetas.* 24 THOMAS, Keith. Mam and the Natural World . London: Allen Lane, 1983. 25. POMIAN, Kraysztof. Collectors and Curiosities (1987). Cambridge, UK: Polity Press, 1990. p. 49°53, (Traducao inglesa); FINDLEN; Paula, Possessing Nature: Museums, Collecting and. Scientific Culture in Early Modern aly. Berkeley: University of California Press, 1994. £ 121 Capitulo § 48. Vista interior da Nova e espagosa livraria de John P, Jewett & Co., Rua Washington, n 117, Boston, gravuras de Gleason's Pictorial, 2 de dezembro 1854. Imagens também revelam como os objetos eram usados, a exemplo da besta em A batalha de San Romano, mencionada anteriormente, ou as langas re- presentadas na Tapecaria Bayeux (fig. 78). Neste tiltimo caso, as bordadeiras pode ter faltado a necessdria pericia militar, porém, elas presumivelmente rece- beram de homens a informago sobre como se seguravam essas armas. Um exemplo andlogo quase mil anos mais tarde advém de filmes da Primeira Guer- ra Mundial, que atraem a atengao do espectador para as limita¢oes técnicas dos primeiros tanques mostrando-os em movimento.” Para um estudo de caso sobre o emprego de imagens como testemunho para 0s usos de outros objetos, podemos considerara histéria do livro ou, como é agora conhecida, a histéria da leitura. Imagens romanas antigas nos re- velam como segurar um rolo de papel enquanto o lemos, uma arte que foi per- dida apés a’invengao dos volumes manuscritos. Gravuras francesas do século 17 mostram homens lendo em voz alta em frente a lareira ou para um grupo 26 ROADS, Christopher H. Film as Historical Evidence. Journal of the Society of Archivists I, p. 183-191, 187, 1965-1969. 122 Cultura material através de imagens 49. Giovanni Battista Bertoni, Gravagao em madeira do Museu de Francesco Calzori, de Benedetto Cerutti e Andrea Chioccd. Musaeum Francesci Calceolari Iunioris Veronensis (Verona, 1622). de homens e mulheres reunidos para o serao (veillée), transformando o traba- Iho noturno numa atividade social. Imagens dos séculos 18 ¢ 19 preferem mos- trar a leitura no circulo familiar e 0 leitor € ocasionalmente uma mulher. Um historiador alemao de literatura, Erich Schén, fez um uso conside- ravel de pinturas e impressos e até mesmo de silhuetas para apoiar e também ilustrar seu argumento sobre mudangas nos habitos de leitura na Alemanha por volta de 1800. Sua tese sobre uma “revolucao da leitura” no periodo, o sur- gimento de uma forma de leitura mais “sentimental” ou “empitica’, funda- menta-se no aparecimento de imagens de pessoas lendo ao ar livre ou em po- ses mais informais, reclinadas numa espreguicadeira (chaise longue), deitadas no chao ou, como no esboso de Goethe feito por Tischbein, equilibrando-se muma cadeira com um livro no colo e as pernas afastadas do chao (fig. 50). 123 Capitulo 5 50. J. H. W. Tischbein, Esboco de J. W. von Goethe lendo préximo a janela da sua residén- cia em Roma, na sua primeira viagem a Italia, c.1787. Goethe-Nationalmuscum, Weimar. Outra imagem famosa ¢ a da pintura de Sir Brooke Boothby, feita por Joseph Wright. Sir Boothby esta deitado numa floresta com um livro intitu- lado Rousseau, a antecessora de tantas outras imagens posteriores de leitores estirados no chao (fig. 51). Boothby” esta excessivamente bem vestido para o ambiente rural, 0 que sugere que a imagem (ao contrario de muitas das que se seguiram deve ser lida de forma mais simbélica do que literal. Ela é a 27. SCHON, Erich. Die Verlust der Sinnlichkeit oder die Verwandlungen des Lesers, Stuttgart: Klett- Cotta, 1987. esp. p. 63-72. i 124 (Cultura material através de imagens 51. Joseph Wright (‘de Derby’), Sir Brooke Boothby lendo Rousseau, 1781, dleo sobre tela, ‘Tate Britain, Londres. translacdo em termos visuais do ideal de Rousseau de integrar-se a nature- za. Observar pardgrafo no que se refere a histria da cultura material, 0 tes- temunho de imagens parece ser mais confidvel nos pequenos detalhes. Ele particularmente valioso como evidéncia da arrumacio dos objetos e de seus usos sociais, nao tanto a langa, ou garfo, ou livro em si, mas a maneira como ~ empunhé-los. Em outras palavras, imagens nos permitem reinserir velhos artefatos no contexto social original. Esse trabalho de reinsergao também exige que os historiadores estudem as pessoas representadas nessas imagens, © tema central do capitulo a seguir.

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