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A HUMILDADE DO UNIVERSAL: HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS* ADRIAN GURZA LAVALLE “Uma nova teoria procedimental e juridica como a que aqui apresentamos € ao mesmo tempo mais e menos modesta do que a teoria de Rawls". Com a explicagao dessa idéia Habermas dava por concluido, da sua parte, o seu inédito debate de 1995 com John Rawls- possivelmente 0 maior te6rico neokantiano deste século, famoso por sua ja cléssica teoria da justiga como eqilidade. No didlogo critico entre ambos os pensadores, levado a cabo gragas & iniciativa de Michael Kelly, editor do Journal of Philosophy, } no deixa de parecer estranha a afirmagao escolhida por Ha- bermas para encerrar sua complexa exegese do sistema da filosofia politica de Rawls. Estranha porque, paradoxal e ironicamente, a maior modéstia de Habermas ~ a referida "teoria procedimental moral e jurfdica” -consistiria em desenvolver uma sofisticada proposta mais universal do que a do préprio Rawls. Pois, ao focalizar exclusivamente aspectos pro- cedimentais, sua teoria fugiria de se posicionar a respeito de quest6es irre- mediavelmente problematicas - tais como os principios de justiga consu- *Agradeco profundamente ao amigo Joaci Pereira Furtado a diligente comregao de estilo, que fez com que 0 escrito em portugués ficasse efetivamente em portugués, ¢ a Karin pela pa- ciente resignagao ante o seqestro das noites e fins de semana, 10 debate compée-se de um texto de Habermas-"Rawls" Political Liberalism”, no qual se faz. uma exegese do pensamento de Rawls, ¢ da resposta deste tltimo “Reply to Habermas”. hum texto consideravelmente mais extenso, que contém tanto uma revisio do sistema rawlsia- no perante aquela exegese, quanto algumas criticas a Habermas. Nas notas as referéncias ao debate serdo feitas conforme os capitulos (em algarismos romanos) ¢ segdes (em algarismos ardbicos) que organizam os textos de cada autor. 1146 LUA NOVA N° 40/41 — 97 bstanciais & obra de Rawls?. Em sentido inverso, a menor modéstia do fildsofo alem&o decorreria da recusa a evitar as questdes mais controverti- das da filosofia, articulando no seu sistema respostas afirmativas endo me- HtatiSicas sobre problemas como os da verdade (consensual) e a racionali- dade (comunicativa). Embora Rawls tente, segundo Habermas, fugir destas: questdes langando mao de uma espécie de “método de esquiva”’, que Ihe permite enfrenté-las mediante 0 seu conceito do “razodvel”, 0 pressuposto de uma possfvel construgaio de um consenso sobreposto (over- lapping consensus) levado ao terreno da Filosofia o mantém numa disputa dos contetidos substantivos da verdade e da racionalidade, ocultos sob a ambigilidade da referida idéia do razoavel. Novamente, Rawls estaria atre- lado a argumentacdes vazadas por um viés substantive que reduziria as possibilidades de universalizagdo da teoria de justi¢a como eqiiidade. Isto <&, tanto pela maior quanto pela menor modéstia - palavra de aparéncia inécua que aqui vem a simbolizar com fina agudeza irdnica as pretensdes € 0 sentido global da obra de ambos os pensadores ~ a teoria discursiva procedimental habermasiana seria superior & teoria rawlsiana devido a suas maiores condigdes de universalizagao.5 Sem diivida Rawls teve muito a dizer e muito disse a este respeito, porém nao € nosso propésito, neste momento, dar a palavra ao fildsofo anglo-saxdo nem, mais adiante, entrar fundo e diretamente no de- bate—mas aproveité-lo como étimo espelho para refletir 0 complexo pensa- umento habermasiano. De fato, 0 confronto com a obra de Rawls e seu pen- samento sistematico, no sentido mais forte da tradigdo da filosofia como sistema, foi um verdadeiro teste para a teoria de Habermas, construfda em mais de trés décadas e meia de uma longa trajet6ria nao linear de formu- Hlagdes e reformulacdes — obviamente nfo sem acidentes de percurso®. Nao 2Jurgen Habermas, “Rawls’ Political Liberalism”, Op. cit. 1.3 € UI 3"Method of avoidance”, traduzido por Octaeilio Nunes (na revista Educagdo e Sociedade no 57, 1996, da UNICAMP) como “método de evitagio”. Entretanto, esta escolha parece-me estilisticamente infeliz se comparada com uma alternativa como “método de esquiva’, jé em. uso na tradugio do texto de Rawls “Justiga como eqilidade: uma concepgao politica, no me- (afisica’ realizada por Régis de Castro Andrade para Lua Nova (niimero 25, 1992), ‘4S8ieger Habermas, Op. cit. 11.2 ¢ Ill SStConcluo minhas observagdes com uma tese sobre o auto-entendimento da filosofia politica: em condigdes de pensamento pés-metafisico, este deveria ser modesto, mas nio do modo errado.” Ibid. Final da introdugio. E obvio que nesta légica a posicio de Habermas € modesta do modo certo, isto &, atinge um patamar maior de universalidade. SUma dbra como a de Habermas, que nao foi desenvolvida como sistema e que atinge maior sabrangéncia a partir da incorporacio de desenvolvimentos durante décadas, normalmente tem. ‘ que-cortigir ou esquecer muitos dos seus passos anteriores. Podem ser lembradas, por exem- plo; suas coregdes com respeito ao Estado de bem-estar ou A sua prépria idéia da “situaga0 videal:de fala” HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 147 € s6 a peculiar alusdo de Habermas aquelas diferengas de modéstia acima citadas que autoriza a interpretar este encontro de idéias como um teste para © conjunto central de desenvolvimentos no pensamento deste fildsofo e, particularmente, para suas possibilidades de universalizagdo. O proprio Ha- bermas participou no debate convicto de que esse desafio flutuava no ar. Al- guns anos antes, avaliando que o princfpio de universalizagao contido de for- ma rudimentar nas pretensdes de validez do ato de fala era convincente, mas nao levava de forma necessaria a justificar a escolha da sua teoria entre ou- tras semelhantes, Habermas referiu-se exclusivamente & teoria de Rawls e formutou sua relacdo com ela nos seguintes termos: “. . . tenho tentado justi- ficar um certo princfpio de universalizago como um principio moral. . . Es- ses pressupostos pragméticos necessérios & argumentacao, desempenham para a ética discursiva 0 mesmo papel que o da construgao da ‘posigao ori- gindria’ na teoria da justig¢a de Rawls. O debate entre estes enfoques teéricos tera de demonstrar qual destas versdes da ética kantianaéa_—melhor’*”, ‘A demonstragaio das maiores qualidades de um enfoque sobre o outro é encargo para um trabalho titanico e até possivelmente ocioso (se visto sob a ética dos escassos efeitos concorrenciais no trabalho teérico- filos6fico) cujo grau de dificuldade, a despeito de Habermas, nao é menor depois que antes do debate. Entretanto, podemos estar certos tanto de que esse debate e as réplicas nele formuladas ajudam a aprimorar o entendi- mento das suas prdprias posicées, quanto de que o debate em si seré me- lhor compreendido & luz dos complexos tedricos de ambos os autores. Destarte, nosso proceder ser reconstrutivo e, jé foi dito, preocupado com © programa de pesquisa habermasiano. Partimos da premissa de que os problemas que dao corpo a esse programa e as solugdes que ao longo de décadas de reflexdo veio a desenvolver encontram sua origem, nitida- mente, no primeiro grande trabalho de 1962 sobre as transformagées estru- turais da esfera pablica®. Nesta visdo, a influente teoria da ago comunica- tiva € seus miltiplos desdobramentos, que fizeram de Habermas um dos tedricos mais importantes da segunda metade deste século, seria a0 mesmo tempo um desdobramento daquele niicleo de problemas originais e ndo constituiria, como se acredita com freqiiéncia, um bom inicio para se “dis- ‘7Hirgen Habermas, “Moralidad, sociedad y ética”. Entrevista concedida a Torben Hviid Niel- sen (1990), em Marfa Herrera (coord,), Jiirgen Habermas, moralidad, ética y politica: pro- puestas y criticas, México, Alianza Editorial, 1993, p. 97. 8A primeira obra publicada de Habermas, Estudantes e politica, de 1961, & um trabalho es- quecido pelo préprio autor e sem repercussées de importancia, ainda que seja possivel encon- (rar nela algumas preocupagdes que teriam continuidade ganhando peso e relevancia no pen- samento do fil6sofo - € 0 caso principalmente da necesséria separagio entre a sociedade e 0 Estado. 148 LUA NOVAN* 4041 —97 cutir com Habermas”. A vantagem desta premissa inicial esta em reco- nhecer com clareza um conjunto de determinagées fundamentais no pensa- mento de Habermas, que, com seu progressivo afastamento da Sociologia e seu deslocamento para o terreno da Filosofia, viriam a ficar ocultas na sofisticagdo de um complexo corpo te6rico, Todavia, uma leitura critica do programa de pesquisa habermasiano é mais prudente, sem se levar em con- ta o conhecimento minucioso de uma obra vastfssima e diversificada, a partir de uma critica ao niicleo de problemas constitutivo desse programa. O esforgo duplo de andlise e critica do Habermas de hé trinta anos permite construir uma ponte, sob a pretensdo de uma viséo de conjunto, com os “pontos” principais do desenvolvimento de seu programa de pesquisa, cujo ultimo grande avango, por enquanto, so as contribuigdes de 1992 para uma teoria discursiva da lei e da democracia®. A primeira, segunda e terceira partes deste ensaio esto voltadas, precisamente, para a andlise, critica e reconstrugdo do programa habermasiano, sob a légica até aqui ex- posta. J4 a quarta parte volverd ao sistema filos6fico de Rawls perante a critica habermasiana, na tentativa de por em jogo uma leitura menos inte- ressada no debate em si do que nos pressupostos te6ricos que organizaram sua légica e que permitem entender qual 0 vinculo concorrencial entre duas obras em aparéncia distantes. UM ACHADO DE CONSEQUENCIAS DURADOURAS A tradugao literal do titulo do maravilhoso trabalho de 1962 de- veria ser “A mudanca estrutural da publicidade: pesquisas sobre uma cate- goria da sociedade burguesa”. Porém, o grau de especificidade da lingua alema faz com que as mais robustas intengdes dos tradutores empalidegam 0 significado original dos conceitos e acabem por optar pelos termos que apre- sentam menos contaminagdes de sentido nos seus préprios idiomas.' No portugués, a utilizagdo da idéia de esfera piblica na tradugao da categoria Offentlichkeit ~ “publicidade” — se presta a possfveis enganos, pois aquela é uma conseqiiéncia do processo histérico de construgao da “publicidade bur- Stiirgen Habermas, Berween Facts and Norms- Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. (1992) Cambridge, Massachussets/London, The MIT Press, 1996. 1OA obra apareceu na versio brasileira sob o nome Mudanca esirutural da esfera piiblica : Investigagdes quanto a uma categoria da sociedade burguesa, Rio de Janeiro, Tempo Brasi- Ieiro, 1984. As tradugdes para o castelhano e para o francés também nao contam com titulos muito afortunados: Historia y erttica de la opinién publica: La transformacién estructural de la vida publica e L’espace public: Archéologie de la publicité comme dimension constitu- tive de la société bourgeoise. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 149 guesa”, sendo esta tiltima a que fornece a explicagao da esfera ptiblica. Con- tudo, esse problema, mais préprio das discussdes conceituais da categoria “pablico”, ndo ocupa nossa atengao neste trabalho, pelo que é suficiente deixar assinalada a questo apenas para justificar, por motivos de economia, o.uso do termo “esfera piblica”™!. A pesquisa sobre as transformagées estru- turais da esfera publica 6 um notavel esforgo dirigido a atingir fundamental mente trés propésitos: a) uma andlise dos processos hist6ricos que tornaram possfvel o surgimento de uma nova configuragdo tipicamente burguesa da esfera publica, isto 6, moderna perante & formagao de uma “publicidade re- presentativa” carateristica da ordem feudal; b) um inventério analftico para dar conta tanto das instituigdes burguesas, através das quais constituiu-se cfetivamente a esfera publica moderna, quanto das fungdes desempenhadas por essa dimensdo moderna no seio do Estado ~ nova forma da universali- zacdo politica da sociedade no mundo modemo; e c) uma critica profunda dos processos de transformagao da esfera ptiblica que viriam a solapar se- veramente seu potencial de emancipagao social e de racionalizagéo do po- der. E possivel dizer desde ja que, apesar da irreversivel desarticulacao — di- agnosticada por Habermas ~ das condigdes que deram origem 2 esfera publica moderna, ele mantém uma orientagdo reconstitutiva dessa di- mensio, segundo a qual nela estariam contidos princfpios transcendentais de universalizagdo cujo resgate seria condigdo sine qua non para avangar na democratizagio das sociedades contemporaneas. Nao se precisa muito para intuir repercussdes dessa escolha no seu programa de pesquisa, mas se pre- cisa, sim, ir mais fundo para avaliar o sentido e peso que elas imporiam aos futuros desenvolvimentos da teoria habermasiana. Diferentemente da ordem feudal, que depende, para sua sobrevi- véncia, da imposigéo de controles politicos e ideolégicos & auto- reproducdo econdmica da vida social, a era do capital, na sua nascente fase mercantil, definiu as condigdes para que fosse possivel o dominio privado sobre a auto-reproducdo social. A privatizagao desta auto-reprodugio, quer dizer, da economia, inaugura o reinado da vida privada moderna e com isto, como era de se esperar, comega a vida da nova esfera ptiblica', Duas 11A esfera piblica refere-se & institucionalidade através da qual se realizou a opinitio pablica dda sociedade civil burguesa, enquanto a “publicidade”-Offentlichkeit-remete a0 proceso histérico que explica o surgimento da sociedade civil burguesa e com ela 0 estatuto moderno do que é piblico. Em muitos easos € possfvel manter a idéia de esfera pibtica no lugar do conceito de “publicidade” sem altos custos para a interpretagdo; porém, nao € conveniente este uso quando se trata de algumas outras formas de “publicidade” como a plebéia- “esfera piblica plebéia” -, que nunca contaram com uma esfera de institucionalizagao prépria, Isto acarretaria despropésitos analiticos que € conveniente evitar. 12 Jurgen Habermas, Mudanga estrutural da esfera publica, Op. cit. , pp. 27-41. Doravante MEP. 150 LUA NOVA N° 40/41 — 97 tendéncias de longo prazo coagulam-se na institucionalizagao desta esfera publica moderna, constituindo-a de forma contraditéria e complexa. De um lado, o proceso de diferenciagdo decorrente da dinamizagao endégena do social sob a dindmica mercantil produziu, em sentido contrério, a ne- cessidade de uma instincia de unificag&o ou integragéo social, nao mais garantida pela totalidade espontanea e natural caracterfstica das ordens pre-modernas, A fungdo integradora da esfera piblica continua a ser sa- lientada até nossos dias, a comegar por Habermas, mas também por todos aqueles engajados na defesa da importancia do espaco puiblico, como pos- sibilidade de uma convivéncia social civilizada, No entanto, essa qual dade € apenas uma parte do processo histérico que explica a configuracao moderna desta dimensao social, sem ser a que mais diz respeito @ sua con- traditéria especificidade burguesa. De outro lado, a independéncia da eco- nomia com respeito as antigas ataduras feudais expandiu-se de tal maneira que muito répido deixou de ser compreensfvel como um processo social meramente privado, a ser entregue apenas ao livre arbftrio dos interesses econdmicos particulares no seu atuar espontaneo libertado de qualquer regulagao pelo poder. A transformagao completa da sociedade por trés da realizado do tréfego mercantil tornou evidente sua importancia social e conquistou para ele um estatuto publico, investindo a economia do carter de matéria piblica — de uma questo de interesse geral, Destarte, se constr6i na sociedade moderna uma tensao reciprocamente constituinte en- tte a esfera piblica e a esfera privada, mediadas politicamente pela inter- vengao do social auténomo ou sociedade civil frente ao poder: “. . . (esta) esfera privada da sociedade que se tornou publicamente relevante . . . ca- rateriza, em contraposigo a sociedade antiga, a relagéo moderna entre es- fera piiblica e esfera privada mediante a formagao do ‘social’. ”!3 A esfera ptiblica burguesa corresponde uma base social que Ihe da sustentagdo e a produz no processo simultaneo através do qual essa base constitui-se numa classe com identidade prépria. Trata-se da socie- dade civil burguesa independente frente ao poder, constituida por in- dividuos livres e proprietérios, donos das suas condigdes de vida, que ter- minaram por projetar ao entorno social a capacidade individual do juizo auténomo e fundamentado, constituindo um piblico raciocinante, de relagdes horizontais e sem mediagiio do poder. Esse publico encontra-se 13 [bid. p. 33. Seja dito de passagem, o cardter necessariamente pablico € ao mesmo tempo constitutivamente privado da economia coloca uma chave de leitura complexa para entender a ambigtlidade das coisas piblicas contempordneas € joga para a lixeira das argumentagdes vulgarmente rudimentares a discussdo corrente nestes dias sobre a ampliago do mercado ¢ a redugao do Estado nos termos de uma equagao matemitica de soma zero. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 151 no auge das casas de ch4, dos cfrculos de leitores, dos pubs (public how ses), dos jornais de critica e culturais, que juntamente constitufram a inti piente institucionalidade de uma configuragdo burguesa da esfera publica de cardter nao politico e privado, chamada por Habermas de esfera publica literdria— "publicidade literdéria"™. Essa esfera publica literdria amadurece- ria até adquirir uma configuracdo propriamente politica, através do deslo- camento da critica literdrio-artistica para o mundo das decisdes do poder e dos interesses sociais privados por elas atingidos. A nova critica social ao poder viria a se coagular na categoria moderna da opinido pablica, que con: centra de tal forma o sentido da esfera publica burguesa “cléssica” que, até hoje, se mantém como quesito da legitimidade politica a compatibilizagao das agdes do poder com o mandato piblico expressado, precisamente, na forma da opiniao publica. A opinido pilblica é assim produto e constutora# da independéncia de um ambito social com efetividade de mediagao para se enfrentar com a autoridade politica e para fazer valer os interesses do universo de privados-proprietérios—ou sociedade civil perante 0 Estado. Isto caracteriza, precisamente, a definigdo habermasiana da esfera publica burguesa original. “a esfera publica com atuacdo politica passa a ter status normativo de um 6rgdo de automediagao da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda as suas necessidades!5, "Em conseqiiéncid'é¢ possivel afirmar que “A tarefa politica da esfera publica burguesa € a regu’ lamentagao da sociedade civil (por oposigao a res ptiblica). "5. A di mensio piblica moderna resulta uma construciio emanada do amadureci- mento da sociedade civil burguesa, dirigida por ela para o Estado como mediagao racionalizadora do poder, através do exercicio contundente da critica-formulacdo esta que permite compreender a funcionalidade da es- fera piiblica na harmonizagao de tensdes entre a sociedade e o Estado, sem: por tal motivo deixar de ser um produto de um Ambito privado robusto qué faz contrapeso ao poder e nele consegue se representar. Para entender os desdobramentos que este achado hist6rico-modelado sociologicamente por Habermas na sua estilizaco de uma esfera ptiblica raciocinante e ra- cionalizadora do poder-traria para o programa de pesquisa do proprio fildsofo alemao, 6 preciso manter presente que nesta dtica a dimensio 4"inda antes que a natureza pablica do poder piblico tenha sido contestada pelo raciocinio politico das pessoas privadas para, afinal, ser-lhe totalmente subtraida, forma-se sob a sua protegdio uma esfera pablica sem configuracdo politica-o esbogo literério de uma esfera paiblica a funcionar politicamente. " “No setor privado também estd abrangida a esfera piblica propriamente dita, pois ela é uma esfera publica de pessoas privadas. "Ibid. pp. 44 e 45-46, ‘Sibid. p. 93. V61bid. p. 69. 152 LUA NOVA N® 40/4) — 97 publica moderna se produz no lado da sociedade e mais especificamente no seio da sociedade civil (burguesa). !7 O modelo habermasiano exposto até aqui sinteticamente nao fi- caria completo, sobretudo no que diz respeito ao nosso interesse nas suas repercussdes, se no fossem contemplados os processos de transformagdo estrutural que tiveram lugar nas derradeiras décadas do século XIX ¢, prin- cipalmente, no transcurso do século XX. E desde a critica do autor as ten- déncias destrutoras da esfera publica que € possfvel atingir uma idéia glo- bal do seu modelo e dos problemas que este Ihe deixou para seus futuros desenvolvimentos teéricos. Séo cinco os fendmenos identificados critica- mente por Habermas, que interatuaram para inibir a autonomia desse “piiblico de privados” e para desativar a esfera piblica como instancia de mediagao critica e encontro com o poder- sempre controlada na sua génese a partir do social. a) A irrupgdio das massas no terreno da politica ou a massificacdo da politica: diferentemente do didlogo racional entre pares a ascender & esfera politica na justa concorréncia dialégica, as massas vie- ram a compensar suas desvantagens sociais oferecendo em troca, pela in- tervengao favordvel do Estado, uma acritica legitimidade quantitativa de um piiblico ndo mais raciocinante, mas aclamatsério e plebiscitdrio.'8 b) A concentragéio de capital: 0 ptiblico de privados iludido na igualdade sob 0 prinefpio de livre propriedade, que fez com que existisse uma distribuigio relativamente igualitéria do direito & interlocugao, foi banido da capaci- dade de se auto-representar pelo processo de concentragio de capital. c) O crescente intervencionismo do Estado com dupla face: por um lado, uma vez que 0 capital deixou para trésa esfera de uma sociedade civil de livres proprietérios, o Estado comegou a atuar como favorecedor do capital su- bordinando os interesses da outrora sociedade civil relativamente igua- litéria de individuos raciocinantes; de outro lado, o Estado, levado pelos efeitos da legitimidade quantitativa, tornou-se Estado social e comegou a desenvolver um papel de gerador politico do ambito ptiblico, abolindo, as- sim, a diferenga entre as ordens da dominagio politica e do social, que dera lugar & esfera puiblica burguesa. Nas palavras de Habermas, “somente esta dialética de uma socializacZo do Estado que se impée, simultanea- mente com a estatizagio progressiva da sociedade, é que pouco a pouco 17No prélogo & edigdo alema de 1990 de MEP, editado ¢ traduzido na reedicao da versio em castelhano de 1994 (México, Gustavo Gili, 1994), Habermas explicita com toda clareza que aquilo que foi discutido por ele como uma esfera piblica politica~“publicidade politica ‘em 1962, hoje é debatido®... sob o titulo do ‘tedescobrimento da sociedade civil”. ( p. 32) ASMEP, pp. 173-174. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 153 destréi a base da esfera puiblica burguesa: a separaciio entre Estado e socie- dade.!9"d) A institucionalizagao corporativa de interesses: a cada vez mais reduzida influéncia de um pblico composto por vinculos quase organicos entre privados esparsos, impulsionou uma dinamica de reagrupacdo corpo- rativa de interesses, uma espécie de refeudalizagao da vida piblica?®, que de novo substituiu 0 ptblico raciocinante por um piiblico coletivo, acla- matério © de direitos delegados. e) A alienaciio da opiniao publica: uiltimo fenémeno a ser adicionado a lista das devastadoras transformagoes estruturais da esfera piblica relaciona-se com a expansio incontida dos meios massivos de comunicagao, sob a Iégica capitalista, que veio a que- brar os pressupostos comunicativos do modelo-habermasiano da esfera ptiblica “classica” ¢ a substituir de maneira monopolista os processos hori- zontais de construgdo da auténtica opinido publica pela manipulaco de processos pré-formados de uma opinidio ndo ptiblica2! Embora a persisténcia dos fenémenos identificados por Haber- mas numa critica dilacerada continuem a estar presentes de tal forma que impegam pensar, por enquanto, no surgimento de um horizonte histérico de renascimento de uma robusta esfera ptiblica - segundo seus cénones classicos -, isto nao leva o autor a encerrar sua posi¢do num pessimismo que julga impossfvel ultrapassar a negatividade do seu diagnéstico. A safda por ele escolhida frente a este dilema é uma aposta pela incerta pos- sibilidade de uma revitalizagao da esfera piblica, langando mao de uma ambigilidade que ainda subsiste nesta dimensdo nas sociedades contem- pordnneas: se de um lado ela perdeu e continua a perder todo teor critico frente ao poder, tornando-se instrumento deste tiltimo para o dominio da sociedade, de outro os quesitos da legitimidade politica ainda se validam no marco simbélico da Revolugao Francesa e o mandato de um piiblico que fornece sustento & autoridade sobrevive como um pressuposto irrenun- 19 ibid, .p. 170.". .. com o que surge uma nova esfera, com concentrago do capital ¢ inter- vencionismo, a partir do processo correlato de uma socializagao do Estado ¢ de uma estati- zagao da sociedade. Esta esfera nao pode ser entendida completamente nem como sendo pu- ramente privada nem como sendo genuinamente piblica. Ibid. . p. 180. 20°Naturalmente, através disso nao se restabelece a esfera pablica representativa [publicidade representativa] a0 velho estilo, mas cla empresta, contudo, certos tragos de uma esfera publica refeudalizada. ... Ibid. .p. 234-235, também CF. pp. 229 e 263 2i“Originariamente, a publicidade garantia a comelagdo do pensamento puiblico tanto com a fundamentagdo legislativa da dominagdo como também com supervisto eriticasobre 0 seu exereicio, Entrementes, ela possibilita a peculiar ambivaténcia de uma dominagio sobre a do- minagao de uma opinido ndo-pablica: serve & manipulagio do pilblico na mesma medida que a legitimagio ante ele. O jomalismo [“publicidade™!} critico(a) € suprimido(a) pelota) mani- pulativota).” Ibid. , p. 210. 154 LUA NOVA N° 40181 — 97 cidvel das democracias® A exigéncia da esfera publica e da opiniao publica como pegas fundamentais da institucionalidade politica mantém 0 caminho aberto para as expresses autenticamente ptiblicas recuperarem espago frente aos processos de pré-formagdo dirigida da opiniao publica. Isto € possivel devido a uma qualidade inerente a esfera publica moderna, que coloca dificuldades para a expropriagao total da participagao politica da sociedade. Trata-se do seu cardter aberto e dial6gico, isto é, de uma se- mente que contém em si a possibilidade de uma universalizagao sob 0 ape- lo ao principio de reconhecimento argumentativo entre individuos racioci- nantes: “O interesse de classe € a base da opiniao publica. Durante aquela fase ela precisa, no entanto, ter também coincidido objetivamente como 0 interesse geral, ao menos ao ponto dessa opinido, como opinido pdblica in- termediada pelo tirocfnio do piiblico, ter podido ser por isso considerada racional. .. . A base da continua hegemonia de uma classe sobre as outras, esta classe desenvolveu, contudo, instituigdes politicas que como seu sen- tido objetivo implicavam de modo crivel a idéia da sua prépria superagao: veritas non auctoritas facit legem, a idéia da dissolugao da dominagao na- quela leve coagdo que, tanto mais, se impée na visio vinculante de uma opiniao publica." “S6 a proporgao do avango de tal racionalizagao é que, por sua vez, ... . surge e se forma uma esfera publica politica. . "24, A safda construfda por Habermas mantém no terreno da teoria e da pratica uma tensao terrivelmente forte entre trés momentos ou “nticleos de problemas” construfdos com minticia no seu modelo: um de- senho do que foi e, em conseqtiéncia, deve ser uma auténtica esfera piblica, uma critica devastadora das tendéncias que desestruturaram a funcionalidade dessa esfera publica ao desvencilhar seus pressupostos in- ternos de constituigao e, por ultimo, o imperativo de manter um desejo de revigorizagao dessa esfera baseado nos princfpios légicos de univer- salizagdo nela contidos~ além de incerta realizagao hist6rica. E de se no- tar que, sendo herdeiro da escola de Frankfurt, Habermas dela se diferen- cia de modo interessante ao se afastar do pessimismo da critica & razio 22, importincia simbélico-politica da Revolugéio Francesa, na possibilidade de manter © ho- rizonte aberto para a revigorizagao da esfera piblica, seria trabalhada com muito maior clare- za vinte € sete anos depois, num texto de 1989. Cf. Jirgen Habermas, “La soberanta popular ‘como procedimiento. Un concepto normativo de to piiblico”, em Marfa Herrera (coord. }, Op. cit, pp. 27-58. 23MEP, p. 108. “A verdade, nfo a autoridade, é que faz a lei" ; frase em latim que remete introdugio da razdo como fonte de legitimidade na esfera piblica moderna, contrariamente 0 velho dominio piblico feudal onde a legitimidade da lei provinha da autoridade que a dita- va. Cf. também pp. 102-103. 24lbid. , p. 245. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS: 155 moderna e & modernidade, 0 que faz com que seu diagnéstico seja— para ele mesmo — passfvel de superagao. A saida de Habermas distingue-se— e a partir daqui continuaria a se distinguir, devemos dizer -por recusar 0 conformismo, sendo ao mesmo tempo critica e conservadora, num es- forgo de deniincia e de preservagdo. Esta dtica decorrente do posiciona- mento do autor perante os problemas concretos do futuro da esfera publica, levantados e construidos sociologicamente no trabalho de 1962, moldaria sua obra e a diferencaria nos tempos vindouros da maré de pen- sadores pés-modernos e seu ceticismo perante a modernidade e suas tituigdes politicas. Eis aqui o germe do que mais de duas décadas depois ficaria explicitado na tese habermasiana da modernidade como projeto in- concluso.?5 Mas antes de refletirmos diretamente nas repercussées do que aqui foi chamado de miicleo de problemas originais do programa de pes- quisa de Habermas, é preciso anvangar na critica destes problemas. 1s UMA HIPOSTASE PERSEVERANTE Conforme foi visto, Habermas arrisca uma aposta pelo resgate da esfera piiblica como uma luta pelo restabelecimento das condigdes de dialogicidade préprias ao surgimento desta dimensdo social moderna, isto 6, como restauragio de uma opiniaio publica — diferente daquela que hoje impera - revigorada no seu potencial para racionalizar 0 poder ao consti- tuir uma formagdo discursiva da vontade social. Este esforgo pode ser avaliado em termos gerais desde duas éticas abrangentes, que, embora néo se excluam, colocam a ténica da andlise em pontos distintos. A primeira Stica diz respeito as conseqiiéncias que o modelo habermasiano leva para uma teoria sistemética da categoria “public”, o que é importante devido & enorme influéncia que neste terreno conquistou 0 estudo sobre as mu- dangas estruturais da esfera publica. J4 a segunda ética est voltada para 0 interior da teoria de Habermas e se preocupa com a pertinéncia de manter e universalizar este modelo de construgdo altamente estilizada, como 0 proprio Habermas gosta de dizer frente as criticas histéricas que Ihe foram formuladas. E a segunda destas linhas de leitura que nos interessa neste momento. E cabe reiterar desde jé que a critica ao modelo nao é e nem po- deria pretender ser uma critica a0 conjunto do pensamento de Habermas, 25 Cf, as ligdes XI e XH da sua conhecida obra, publicada em 1985, The Philosophical Dis- course of Modernity-Twelve Lectures, Cambridge, Massachusetts/London, The MIT Press, 1995, pp. 294-326 ¢ 336-367. (Existe tradugdo ao portugués: Discurso filoséfico da moderni- dade. Lisboa, Dom Quixote, 1990). 156 LUA NOVA N° 40/41 — 97 tanto porque nao contempla sistematicamente seus desenvolvimentos pos- teriores quanto porque, nestes desenvolvimentos, Habermas teve que corri- gir algumas das implicagées do modelo; mas é, sim, uma avaliaggo do conjunto de problemas originais que organizaram 0 programa de pesquisa do filésofo alemo e, portanto, fornece uma chave de leitura critica para se acercar da sua obra como um todo. O percurso da critica segue uma argumentagdo que pode ser re- sumida num plano muito simples. Sobre 0 achado histérico da fungao de- mocratizadora da esfera ptiblica burguesa e dos seus princfpio constituti- vos, sistematizados numa bela estilizago sociolégica, construiu-se um modelo universal da interago social e de sua relagdo com o poder, isto é, uma hipéstase da sociedade civil burguesa do século XIX como sociedade em geral. Ancorar o modelo na pratica politica e nos pressupostos de fun- cionamento dessa sociedade civil produz pelo menos trés conseqiiéncias indesejaveis, a comegar por algo que, sem muito rigor analitico, poderia ser chamado de “romantismo ilustrado” com respeito 4s massas ou & ago coletiva popular, seguindo por uma sofisticada visdo da politica paradoxal- mente despolitizada e concluindo com os custos que este modelo impos como recorte da realidade que exclui fendmenos particularmente rele- vantes da relaco politica entre a sociedade e o poder. Em resumo, trata-se de uma hipéstase como um pressuposto que é problemitico e que acarreta como conseqiiéncias indesejéveis um “romantismo ilustrado”, uma espécie de despolitizagdo da politica e uma excluséio de fendmenos relevantes. Nos tempos seguintes, isto é, depois de 1962, os criticos de Habermas e especialmente de suaago comunicativa como uma pragmética universal, tém direcionado suas armas para colocar em questo os pontos deste per- curso critico ou alguns elementos a eles vinculados. Porém, nem sempre identificam com clareza a origem destes problemas no programa de pes- quisa habermasiano.2¢ O modelo da esfera piiblica habermasiana se constr6i sobre o re- ferente hist6rico do processo pelo qual a interagdo dialégica de uma socie- dade civil autonomizada— no econ6mico primeiro, depois no cultural e por ltimo no politico -termina projetando para a esfera politica 0 acordo ra- cional dos seus interesses, exigindo seu cumprimento ao poder através de uma opiniao publica ativa e movente. Contudo, essa sociedade civil nunca foi igual a0 conjunto de particulares do todo social. Mais precisamente, es- 26 Cf. , ex. , Jigen Habermas, “Moralidad, Sociedad. . ., Op. cit. ¢ Jurgen Habermas, “Uma conversa sobre questdes da teoria politica’, entrevista concedida a Mikael Carlehedeme © René Gabriels, (1995) em Novos Estudes 47, margo, 1997. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 157 tava composta de determinadas camadas bem aquinhoadas da populagdo, naturalmente homens adultos e proprietérios, sempre promotores espon- taneos do mercado através da sua propria forma de vida. O ptiblico de li- vres proprietérios- “ptiblico de privados” nos termos de Habermas -, de livres-pensadores e de individuos auténomos politicamente, sem diivida trazia um prinefpio universalizador atrés de seu apelo a raz%io, mas tam- bém portava uma determinada forma particular-além do mais historica- mente datada ~de entender e praticar tanto a politica quanto as interagdes sociais horizontais. O modelo de Habermas tende a coagular e a universa- lizar as condigées concretas de efetividade que fizeram possivel, na génese da esfera ptiblica moderna, remeter ao recurso do acordo racional as dife- rengas de interesses proprias das camadas dessa sociedade civil. A hipéstase de Habermas € dupla: de um lado universaliza uma relago con- creta e particular entre uma parte da sociedade e 0 poder como a relagao entre sociedade e poder em geral e, de outro lado, projeta esta universali- zagao pata o presente e mantém a exigéncia de adequagdo— também nor- mativa, por suposto-do modelo sobre uma realidade, tao radicalmente mu- dada nos tiltimos dois séculos, que nao preserva nada de significativo com respeito as condigdes de produgdo e funcionamento politico da sociedade civil burguesa do século XIX.”) Jé foi dito acima que a dura tensdo entre 0 modelo altamente estilizado, 0 diagndstico critico ¢ o imperativo de revi- gorizacio da esfera publica era o saldo de 1962. Agora é possivel afirmar que, para manter a forga interpretativa do modelo, 0 que quer dizer suas possibilidades de universalizacéio- primeira parte da hipéstase -, Haber- mas teve de encontrar uma solugdo vidvel para transitar das exig€ncias do modelo para uma realidade radicalmente mudada-segunda parte da hipéstase. No se precisa uma intuigdo muito desenvolvida para postular que a resposta a este problema foi elaborada de maneira notavel, precisa- mente, através da teoria da agfio comunicativa. Mas por enquanto convém permanecermos em 1962, para findar a andlise dessa hispéstase e das suas conseqiiéncias. O préprio Habermas percebeu agudamente que as sofisticadas exigéncias colocadas pelo modelo a realidade representavam o risco de ficar sem nada, isto é, de condenar de forma definitiva a esfera piiblica & extingdo e de dar por encerradas as suas 27£stas transformagées tém sido objeto de miltiplas andlises no campo da ciéncia politica pe- los impactos delas decorrentes para as instituigdes demoeraticas e mesmo para a democracia, C£. . por ex. , Robert A. Dahl, Democracy and ist critics, New Haven/ London, Yale Univer- sity Press, pp. 213-224. Também a Sociologia tem abordado esta questao desde a stica da ruptura das visdes unitérias do mundo, ef. a cléssicaobra de Karl Manheim, /deologia y utopia, México, FCE, 1987. pp. 5-12 158 LUA NOVA N° 40/41 —97 possibilidades de existéncia segundo os cAnones contidos no modelo. Des- larte e a contrapelo da sua pr6pria critica & refeudalizacao da vida publica, que acaba com 0 ptiblico de privados e concentra de forma perversa—mas efetiva-uma defeituosa e limitada representagio social de interesses nas mios de instituiges corporativistas, Habermas teve de reconhecer a im- porténcia de um piblico de pessoas privadas organizadas. Com efeito, no que poderia ser considerado como a conclusao do trabalho sobre as mu- dangas estruturais da esfera piblica, Habermas abre mio da sua prépria critica para dar lugar a um puiblico de organizagées, coletivo, corporativo, de suserania delegada, enfim, um pablico paradoxalmente no moderno no sentido do modelo habermasiano da esfera ptiblica”®, Ainda com as possibi- lidades abertas pela aceitagdo dos potenciais democratizadores de um publico nao mais de privados mas de corporages e organizagées privadas, as tenses do modelo habermasiano continuam a vigorar, o que faz. com que © desenvolvimento de seu programa de pesquisa esteja nao s6 vazado quan- to impulsionado por elas. A grande incdgnita que permanece no ar € se os contetidos democratizadores e universdlizadores dessa esfera ptiblica mode- lada, e mesmo a esfera ptiblica, so ainda passfveis de realizagdo nas nossas sociedades. Em 1989, mais de cinco lustros depois de conclufdos os traba- lhos do seu modelo de esfera ptiblica ¢ apés ter desenvolvido os estudos mais influentes e reconhecidos do seu programa de pesquisa, Habermas de- clarou essa incégnita como nao resolvida: “Nao se sabe de verdade, se esta ‘sociedade cultural’ s6 reflete a ‘forga do belo’ profanada com fins comer- cias e de estratégia eleitoral, ¢ com isto uma cultura de massas privatista € semanticamente rarefeita; ou se a mesma poderia constituir uma caixa de ressonancia para uma esfera publica revitalizada, na qual a semente das idéi- as de 1789 apenas estivessem por nascer”®, B para “cercar” e desvencilhar este né hist6rico, achado e reconstrufdo teoricamente em 1962, que o pensa- mento de Habermas continua a trabalhar até hoje. © mandato da opinido pablica é agora expandido, além dos érgios estatais, para todas as organizagdes que atuam em relagio a0 Estado. A seguir-se realizando essa transformagao substituindo um piiblico-néo mais intato-de pessoas privadas individualmente insertas no trdfico social, surgiria um piblico de pessoas privadas organizadas. "Por suposto, Habermas reconhece os riscos da refeudalizagio ¢ introduz de novo a exigéncia do mandato da opinido publica, agregando apés, imediatamente: "Nas atuais circunstdncias, apenas elas (as pessoas privadas organizadas] poderiam participar de um proceso de comunicagdo piblica, fazendo uso dos canais da opinidi pablica interna dos partidos ¢ associagGes, e sobre a base da noto- riedade publica que viria se impor & relagio das organizagdes com o Estado ¢ também entre elas. O estabelecimento de compromissos politicos teria que se legitimar ante este processo de comunicagio politica. * MEP, tradugdo da versdo em castelhano, p. 257. 29 Jargen Habermas, “La soberania popular. ..". Op. cit. ,p. 36. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 159 A hipéstase do modelo habermasiano, todavia, produz con- seqiiéncias problematicas, algumas das quais receberiam respostas através de profundas reformulagGes e desenvolvimentos no seu programa de pes- quisa. Comegaremos pelo que aqui foi chamado de “romantismo ilustrado” frente As massas e A ago coletiva popular. O modelo de uma esfera ptiblica dialdgica leva inevitavelmente a uma concepgao dialégica da politica, que acentua nfo a institucionalizagio para a supressdo ou a homogeneizacio autoritaria de imteresses, mas seu exercicio como uma pratica valiosa em si para processar civilizadamente as diferengas de interesses prdprias da or- dem social. Uma concepcao da politica assim é possivel porque, dentro da esfera publica burguesa, existia um vinculo genético entre 0 surgimento do individuo livre e a criagdo e postulagao da cidadania como categoria politica moderna, que fundamentava a arquitetura da novissima institucio- nalidade republicana; de fato, sao esses cidadaos no exercfcio de seus direi- tos para preservar seus interesses 0 que na obra de Habermas recebe o nome de esfera publica. Entretanto, a coagulacdo do cidadao como o sujeito politico moderno por exceléncia, com sua prética politica como um acordo dialégico e civilizado de diferengas, produziu-se simultaneamente como deslocamento da categoria politica “povo”. O povo, multido de massas sem apelo ao principio da diferenca, abstinente de todo raciocinio literdtio e dado 8 ago coletiva nao individualizada frente ao poder, dificilmente se encaixa num modelo dialégico da politica. Isto explica porque a expansio desmesurada da opiniao publica, sob invasdio das massas na politica, pro- duz. em Habermas uma melancolia pelo piblico formado nos supostos cul- turais de uma publicidade literéria,*° pelo publico leitor e raciocinante que projetou a experiéncia da vida privada burguesa para um espaco de socia- bilidade que terminaria configurando a esfera publica moderna. Nao parece necessirio desenvolver a idéia de que uma concepgao da politica que privi- legia supostos letrados e dialégicostem um viés de romantismo ilustrado, que impée exigéncias dificilmente universalizaveis sem se produzir uma visdo discriminatéria de outras formas de se interatuar socialmente e de se fazer politica—tipicamente aquelas da ago coletiva popular.3) 30 “As formas de sociabilidade burguesas tem encontrado substituto ao longo de nosso séeu- lo, a tendéncia é a mesma em todas partes, independentemente da diversidade regional e na- ional: a abstinéncia de todo raciocinio literdrio e politico. A discussao social dos individuos recua perante &s mais ou menos obrigat6rias atividades de grupo . .. Em tomo &s group activ- ities nao se constitui piblico nenhum . .. A ocupagdo do écio do publico consumidor de cul- ‘ura, em correspondéncia, tem lugar dentro do clima social e nao precisa de coagular em dis- cuss6es . ..", MEP, traducdo da versio em castelhano, p. 192. 31 As altas exigéncias da concepcio habermasiana da politica foram reformuladas ao longo do tempo nos termos da ago comunicativa ¢ da uma teoria filosofica pés-metafisica, mas 160 LUA NOVA N° 40/41 — 97 A anterior conseqiiéncia das exigéncias ilustradas cor- responde 0 paradoxo de uma visio da politica que, num certo sentido, a despolitiza. Convém nos explicarmos a este respeito: a esfera ptiblica no modelo habermasiano € um produto histérico que opera como medigao sécio-politica no interior da sociedade e entre esta e o poder, portanto, ndo é concebida como uma criatura neutra da moderidade, nem se poderia atribuir a ela um estatuto apolitico; porém, na medida em que o cardter politico desta esfera ptiblica € resolvido por completo pela via da argumentacdo e das boas razes, se produz uma com- preensio da politica racionalizada em excesso que, neste sentido, a des- politiza. Esta concep¢ao, que privilegia 0 componente da argumentacao racional na politica, despolitiza porque exclui outros contetidos eminen- temente politicos, tais como os interesses sociais conflitantes de cardter estrutural, impedidos de atingir o patamar da troca dialégica pela sim- ples razio de nao haver acordos possfveis apenas através do didlogo. Uma politica despolitizada e concentrada s6 nos seus componentes de- liberativos piiblicos precisa do suposto duplo de conflitos sempre passiveis de acordo e de sujeitos raciocinantes sinceros sempre dispos- tos a reconhecer a verdade dos argumentos contrdrios: “A manutencao de um antagonismo estrutural entre os interesses, a impossibilidade de superé-lo, ergueria barreiras muito estritas & publicidade . . . a neutrali- zagdo do poder social e a racionalizagio do dominio politico no am- biente constituido pela discuss piiblica pressupde, agora e sempre, a possibilidade um um consenso; pressupSe a possibilidade de uma coin- cidéncia baseada em critérios gerais e obrigatérios”™*, A presenga de conflitos irreconcilidveis, se projetados no Ambito politico por fora de uma esfera ptiblica em que nao tem cabimento sua resolugéo pela via da argumentagao, faria explodir os pressupostos dialégicos como tinico expediente para constituir interesses ptiblicos reconhecidos pelo poder ¢ ruiria a posicao de privilégio que favoreceu a sociedade civil burguesa na sua interlocugdo com a esfera da politica, Parece claro que o pres- suposto duplo, de conflitos passfveis de solugdo através de argumen- tagdo honesta e de individuos propensos ao acordo, encontra fundamen- to na esfera pliblica e, particularmente, na existéncia de uma sociedade no diminuiram 0 6nus imposto aos sujeitos da participagio politica: “Uma esfera piblica liberal necessita naturalmente de uma vida associativa livre, de um poder da midia sefreado € da cultura politica de uma populagio habituada a liberdade; necessita do concurso de um mundo da vida mais ou menos racionalizado. A isto comespondem, do lado das estruturas de personalidade, identidades de eu pés-convencionais. " (1995) Jrgen Habermas, “Uma con- versa sobre. ...”, p. 93. 32 Jlirgen Habermas, Mudanga estrutural, ..., Op. cit. p. 259. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 161 civil burguesa com caracterfsticas e interesses homogéneos 0 suficiente para confié-los a um didlogo entre iguais. Novamente, a univers zagdo disto através de um modelo que supde uma natureza dialégica da politica apresenta problemas, como o de corter 0 risco de despoliti- zar a propria politica. O iltimo desdobramento problemdtico da hipéstase acima analisada € 0 recorte ou exclusdo de fenémenos relevantes da relagéo politica entre a sociedade eo poder. Diz respeito aos custos do escopo escolhido por Habermas, centrado exclusivamente na sociedade civil burguesa como nica produtora da esfera piiblica ou, com maior pre- cisdo, da dimensdo moderna do publico. Como esse escopo magnifica ‘a sociedade civil burguesa e os processos a ela vinculados, conside- rando-a 0 tinico fator relevante na produgdo da dimensao do piiblico moderna, produzem-se duas grandes e durdveis auséncias no modelo habermasiano: as formas de acdo politica plebéia e sua obtusa persis- tncia - chamadas por Habermas precisamente de “publicidade plebéia” ~ e 0 Estado de bem-estar e seu papel amplificador dos interesses po- pulares revestidos de estatuto ptiblico. Sem diivida, uma complexa e demorada dinamica de longa duragdo, atrelada ao protagonismo silen- cioso da fala em ptiblico da sociedade civil burguesa, faz desta Ultima © grande ator na construgéio da esfera publica moderna, pelo menos no que diz respeito a suas caracteristicas mais duradouras e a seus principios de universalizago. Contudo, isto nao pode significar que o acesso a esta dimensGo social modema e a determinagio dos interesses nela reconhecidos foi uma prerrogativa absolutamente privativa da so edade civil burguesa. Como pensar a estabilidade de uma ordem social se nela se prescinde do reconhecimento de cotas de interesses, ainda que reduzidas, das camadas dominadas ou pior aquinhoadas da popu- lagao, e como reconhecer estes interesses se ndo coagulando-os através de sua institucionalizagao publica? O que ocorre & que o recorte do modelo habermasiano desconsidera outras formas de incidéncia na con: figuracéio pUblica de interesses que ndo as praticas civilizadas e dialégicas da sociedade civil burguesa, excluindo de vez por sua ple- beidade numerosos fendmenos sécio-politicos: rebelides, revoltas ou protestos de multiddes. A exclusiio € mais surpreendente quando se considera que os sé- culos que vio de 1600 a 1800, precisamente aqueles em que assistimos ao nascimento da sociedade civil burguesa e da esfera publica, so ricos em levantes plebeus de todo tipo. Basta lembrar que 0 antecedente politico mais importante para a universalizagdo de um sistema de pesos ¢ medidas ptiblico — hoje conhecido como sistema métrico decimal ~encontra-se, pre- 162 LUA NOVA N° 40/41 — 9? Gisamente, nas rebelides plebéias urbanas desses séculos pelo acesso ao consumo de p4o.>3 Expresses politicas e da politica de cardter plebeu como as assinaladas, que incidiram na configuracdio da esfera publica, so ‘mmenosprézadas na estilizagiio do modelo habermasiano por considerd-las historicamente subordinadas a uma manifestagdo mais ilustrada e civiliza- da-da, politica: 0 acordo raciocinante de interesses. Vinte e oito anos de- pois ‘de encerrados os trabalhos das mudangas estruturais da esfera publica, no prefacio & edigéo alema de 1990, Habermas adverte em dois pequenos pardgrafos que nfo tinha dado tratamento a“. . . outras publici- dades subculturais ou especificas de classe. . . ”.34 as quais se referiu na obra original, sem nenhum desenvolvimento, como formas de “publici- dade plebéia"35. A excluso causada pelo escopo habermasiano coloca em questiio as possibilidades de universalizagiio do modelo e aponta de novo ‘para'as dificuldades que o desenvolvimento de seu programa de pesquisa ‘teria de’enfrentar. + Por tiltimo, é a vez de considerar a segunda grande exclusio do escopo analitico de Habermas. Nao é dificil reconhecer o importante papel que 0 Estado de bem-estar desempenhou neste século garantindo e expan- dindo interesses sociais de amplos setores da populacdo e, ainda mais, “poder-se-ia afirmar que até hoje néo se conhece, nas sociedades ociden- tais, uma experiéncia mais abrangente no que diz respeito & integraco so- cial e ao nivelamento de interesses antag6nicos. Porém, a valoracao do Es- tado de bem-estar se torna um problema amb{guo para Habermas, pois se € pouco pertinente contemplar com desdém- tedrico e politico ~a “influén- cia democrética” deste Estado na ordem econémica, sua valoragéo entra ‘em choque com a dcida critica desenvolvida pelo autor para colocar em questo os efeitos nocivos do seu papel de produtor politico do ambito publico. A expansio das fungdes do Estado seria uma das mudangas estru- turais que, ao abolir a diferenga entre este e a sociedade, teriam ferido com risco de vida a existéncia de uma esfera ptiblica auténtica. A autenticidade da esfera publica em Habermas nao remete tanto ao problema dos interes- ses nela reconhecidos quanto a sua produgdo desde a vida da sociedade ci- vil, isto €, a sua autonomia, controle e espontaneidade sociais. Destarte, no modelo habermasiano se coagula, desde seu origem, uma arquitetura dual das sociedades, que as cinde entre o mundo do poder (Estado) e 0 mundo 33Cr, Witold Kula, Las medidas y los hombres, México, Siglo XX1, 1980. 34Este prefacio esta disponivel na edigdo em castelhano de MEP de 1994, p. 6. 35Jtirgen Habermas, Mudanca esirutral. ..., Op. cit. p. 10. A‘tradugdo para o portugues, fala de “esfera publica plebéia”, o que resulta uma verdadeita conttadigio dentro do modelo hhabermasiano. Neste caso € impossivel manter a tradugio de Offentlchkeit por “esfera piiblica” sem produzir uma grande confusdo. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 163 social (sociedade civil), restando do lado da sociedade a produgao da esfe- ta publica. Perante o dilema da avaliagdo e eventual incorporagao teérica do Estado de bem-estar, ¢ tendo desenvolvido um modelo dual da arquite- tura social, Habermas fica, obviamente, com o pélo do mundo social. Isto se deve ao fato de que no conjunto do trabalho de 1962 apenas existam duas referencias positivas e marginais sobre o papel do Estado de bem- estar na extensao de direitos sociais. 36 A dualidade do modelo habermasiano, herdada do nticleo de pro- blemas elaborados teoricamente nesse trabalho, continuaria a vigorar como. uma constante do seu programa de pesquisa e nela se baseariam, em princfpio, sua idéia de sociedade em dois niveis e a critica ao direito, ao Esta- do e 4 economia como colonizadores do mundo da vida —concepgdes desen- volvidas dentro de sua teoria da aco comunicativa. Porém, os problemas de universalizagao de um modelo que desconsidera o Estado, instancia univer- salizadora por exceléncia das sociedades modernas, fariam com que décadas depois seu programa de pesquisa tomasse rumos inexplicaveis para muitos dos seus leitores, surpresos com a retomada positiva do direito nos escritos de finais dos oitenta e comegos dos noventa.*7 Uma vez mais, através da critica ao nticleo de problemas originais do programa de pesquisa do filésofo alemao, chegamos aos limites colocados pela universalizagéo de um modelo construfdo a partir do achado histérico de uma forma de sociabilidade e de agir politico propria da sociedade civil burguesa ¢ sua esfera publica. O pro- grama de pesquisa de Habermas pode ser compreendido, reconstrutivamente, como um titanico esforgo que leva este achado até as tiltimas conseqiiéncias teéricas, defrontando-se com o desafio de desenvolver um enorme e sofisti do corpo de mediagées para superar os contetidos particularistas do modelo e avangar numa progressiva universalizagdo rumo a umateoria geral. 36A férmula ‘previsio da existéncia coletiva’ cobre uma multid’o de fungdes novas que vem desenvolvendo o Estado social e cobre também um grande leque de interesses privados, organizados coletivamente ¢ expandidos gracas ao préprio crescimento do Estado. O Estado intervém fundo, mediante leis e diversos expedientes, na esfera do trafego mercantil e do tra- balho social, porque os interesses em atrito das distintas forgas se destocam para a dindmica politica e, mediados pelo intervencionismo estatal, retroagem sobre a prépria esfera privada. Por isto, vistas as coisas globalmente, no pode se negar a ‘influencia democrética’ sobre ordem econdmica: a massa de desposuidos tem conseguido, mediante intervengées piblicas ‘no Ambito privado . .. que sua participagao na renda ndo diminua no longo prazo .. .” (ime- diatamente depois Habermas continua com a critica a0 acoplamento das esferas publica e pri- vada) A segunda mengao diz: “A mudanca de funcao dos direitos fundamentais que ocorre no Estado social, a transformagdo do Estado liberal de direito em Estado social, em general, ameniza a tendéncia efetiva do enfraquecimento da publicidade como principio...” MEP, tradugdo da versio em castelhano, pp. 178 ¢ 257 31CE, por ex. , Jrgen Habermas, “Uma conversa sobre...” Op. cit.. pp. 99-100. 164 LUA NOVA N° 40/41 — 91 UM PROGRAMA DE PESQUISA OBSTINADO Una leitura reconstrutiva do programa de pesquisa de Haber- mas apresenta algumas dificuldades sobre as quais € bom refletirmos para evitar mal-entendidos. Até aqui foi delimitado 0 niicleo de problemas ori- ginais que se encontram na base desse programa e foram identificadas as criticas que apontam os limites para extrair conseqtiéncias universais des- ses problemas, tal como foram elaborados teoricamente no modelo haber- masiano de esfera piblica. Porém, uma leitura reconstrutiva como a aqui proposta poderia ser suspeita de tentar encaixar o extraordinariamente prolifico ¢ diversificado pensamento do filésofo alemao dentro do estreito quadro de um modelo que, se comparado com outros trabalhos posteriores, poderia ser julgado de escassa relevancia tedrica - além de desconsiderado pelos especialistas e mesmo pelo autor, que gostam de se centrar na teoria da ago comunicativa. Além do mais, talvez fosse de maior pertinéncia re- nunciar & pretensdo de uma leitura excessivamente abrangente e se limitar a uma idéia menos ambiciosa (e também menos produtiva) de leitura da obra de Habermas, concebendo-a como um eixo tesrico central-a teoria da ago comunicativa-, acompanhado de um enorme conjunto de desenvolvi- mentos com respeito a temas e autores diversos, sem conexdo sistemética com esse eixo, Neste caso, a falta de conexao sistematica nao pressuporia contradigdes de importancia no pensamento do autor, mas simplesmente o fato de que muitos dos trabalhos no teriam sido desenvolvidos para ocu- par um lugar na teoria da ago comunicativa ou nos seus desdobramentos, © que obviamente apresentaria a vantagem de diminuir o niimero de obras a serem consideradas para uma compreenso aprofundada do pensamento habermasiano.>* Todavia, se esta iltima objegao estivesse correta, seria preciso admitir que a idéia de um programa de pesquisa nao € mais do que uma artificio para se referir imprecisamente ao que o proprio Habermas batizou de teoria da ago comunicativa, como uma proposta depragmética universal. As objeges e ressalvas acima expostas parecem razodveis ¢ ambas encontram sustento na longa trajetéria de mais de trinta livros que compdem a obra de Habermas, embora se refiram a questdes diferentes: os 38Uma perspectiva assim privilegiaria, por exemplo, um percurso de leitura com o seguinte: Teoria da agao comunicativa 1 € II (1981); Consciéncia moral e ago comunicativa (1983), Teoria da ago comunicativa-Complementos e estudos prévios (1984); Escritos sobre morali- dade ¢ eticidade (1986); Berwveen Facts and Norms- Contribution to a Discourse Theory of Jaw and deniocracy (1992). Neste percurso, seja dito de passagem, nao se levam em conta ‘mais de uma dezena de obras publicadas nas décadas dos sessenta e setenta. HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS 165 tiscos de reduzir 0 pensamento do autor a um modelo de duvidosa re- levncia tedrica no conjunto da sua obra, no primeiro caso, e a maior perti- néncia de resolver o programa de pesquisa habermasiano simplesmente através da teoria da aco comunicativa e seus desdobramentos, no segun- do. O problema 6, entdo, saber quais as chaves mais pertinentes para uma leitura com sentido de unidade- sem redugdo — de uma obra que, com 0 passar das décadas, tem aumentado vertiginosamente: seis livros publica- dos nos anos sessenta>?, cinco nos setenta,*° pelo menos treze nos oitenta e#! mais quatro até 1992*? - isto sem contar artigos, conferéncias, entrevis- tas e outros escritos que ainda nao foram compilados e publicados exclu- sivamente sob 0 nome do autor. Ademais, seja dito de passagem, deve-se ter presente que, embora muitos dos livros da trajet6ria intelectual de Ha- bermas sejam- como era de se esperar —coletineas de textos elaborados por separado, este nem sempre seria um critério satisfatério de hierarqui- Zago com respeito aos trabalhos concebidos sob uma argumentago unitaria, se considerada a densidade te6rica e a importancia do ensaio na tradigdo da Escola de Frankfurt. A ética segundo a qual foi apresentado este ensaio como uma leitura reconstrutiva do programa de pesquisa de Habermas, baseada no resgate e critica do nticleo de problemas de 1962, contémna sua prépria premissa inicial uma resposta para as ressalvas ana- lisadas. A proposta de salientar este nticleo de problemas elaborados teo- ricamente no modelo da esfera publica habermasiana faz com que a obra do fildsofo alemao seja interpretada - ou apropriada -ndo como um corpo monolftico amarrado por uma teoria ou por um reduzido nimero de teses 3°Esiudents and politics (1961), Mudanca estrutural da esfera piiblica (1962), Teoria e praxe (1963), Conhecinento e interesse (1968), Técnica e ciéncia como ideologia (1968) e Protest- bewegung und Hochschulreform (1969). 4014 ldgica de las ciencias sociales (1970), Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie- Was leister die Systemforschung (1971), Perfles fleséfico-polttices (1971), A crise de legiti- magdo no capitalismo tardio (1973) ¢ Para a reconstragiio do materialismo histérico (1976). 41 Stichworte zur ‘Geistigen Situation der Zeit’ (1980), Teoria de la Accion comunicativa 1 ¢ 11 (1981), Ensayes politicos I-IV (1981), Sobre Nietzsche y otros ensayos (1982), Consciéncia moral e agir comunicativo (1983), Adorno-Konferenz (1983), Teoria de la accién comunica- tiva: complementos y estudios previos (1984), Discurso filosifico da modernidade (1985), A nova intransparéncia (1985), Ensayos politicos V (1985), Escritos sobre moralidad y etici- dad (1986), Identidades nacionales y posnacionales (1987), Pensamento pés-metafisico (1988), 2Textes € contextes (1991), Passado como futuro (1991), Between Facts and Norms - Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy (1992) e Justification and Apli- cation-Remarks on Discourse Ethics (1993). 43£ possivel lembrar, por exemplo, as considerdveis repercussdes causadas pela coletinea de ensaios Para a reconstrucdo do materialismo histérico, cujo segundo texto, apresentado na Associagdo Internacional Hegel no ano anterior & publicagZo, deu nome ao livro. 166 LUA NOVA N° 40/41 — 97 fundamentais, mas como um programa constituido por problemas interli- gados, cuja determinagdo e possivel resolugio tedrica se foi realizando através de sucessivos avangos de pesquisa em mais de um terreno e nunca de forma linear. Nesta leitura, a importancia da teoria da ago comunicati- va é contextualizada no interior do programa, o que, sem negar seu lugar privilegiado, todavia oferece respostas satisfatorias a questées no levadas suficientemente em conta por uma visdo centrada apenas na referida teo- ria. Como entender, por exemplo, sem o referente de um programa de pes- quisa, a presenga de uma teoria da competéncia comunicativa em obras publicadas oito anos antes da influente teoria da aco comunicativa (1981)? Ou como se relacionar com a produgao das décadas dos sessenta e setenta ou com a retomada otimista do direito e do Estado que vem mar- cando os trabalhos do autor desde finais dos oitenta? Contudo, 0 fato de a premissa inicial conter respostas plausiveis perante as ressalvas, que supdem outras formas possiveis de leitura, no iria além de uma argumen- taco que volta a seu ponto inicial se nos considerdssemos eximidos do 6nus da prova, isto é, de mostrar na leitura da obra de Habermas que uma apropriag&io como a aqui proposta é ao mesmo tempo realizdvel e perti- nente. Resta, entio, avancar nessa diregdo. No programa de pesquisa de Habermas é possfvel distinguir quatro linhas de trabalho, que no apenas mantém uma clara continuidade com os achados elaborados no modelo de 1962, mas extraem con- seqiiéncias pass{veis de universalizagdo, traduzindo estes achados em ver- dadeiras problematicas tedricas. Em primeiro lugar, a relacdo entre a so- ciedade e o poder mediada pela critica de uma esfera publica auténoma e coagulada no mandato da opiniao publica como quesito das democracias coloca como pano de fundo o problema da legitimidade como limite a agéo do Estado. Diferentemente das visdes tradicionais da legitimidade como componente indispensdvel da dominagao politica, trata-se de uma nova forma de enxergé-la como o processo por exceléncia de racionali- zagao e transformagdo do poder nas sociedades modernas. Porém, uma avaliagaio séria das conseqiiéncias desta forma de legitimidade precisaria avangar para uma tcoria da legitimagao como racionalizagdo comunicativa do poder. Em segundo lugar, a modelagdo te6rica da relagdio da sociedade civil burguesa com o poder, simbolizada em uma arquitetura dual das soci- edades cindidas entre o mundo social e 0 Estado, abre a possibilidade de refletir as tensdes conflitantes e estruturalmente constituintes da socie- dades modernas fora do quadro analitico préprio das teorias sobre a luta de 448. Sirgen Habermas, A crise de legitimagao no capitalismo tardio (1973). Rio de Janeiro, ‘Tempo Brasileiro, 1980, pp. 20-29 ¢ 111-118 167 classes. Também neste caso seria necessdrio desenvolver avancos tedricos para explorar as conseqléncias desta forma de se organizarem os conflitos de interesses nas sociedades democraticas modernas. Em terceiro lugar, a existéncia de uma esfera publica sustentada na sociabilidade raciocinante. do mundo da sociedade civil-burguesa destaca o papel da comunicagao como vinculo de unificagaio e reconhecimento das diferengas no seio da vida social, 0 que faz com que em tltima instancia seja possivel distingair a interagdo da vida social a partir da produgao comunicativa de sentidos. O fundamento de uma pragmdtica comunicativa precisaria de uma teoria da aco social, cujo desenvolvimento estivesse voltado para construc de um s6lido arcabougo conceitual sobre a racionalidade légico-universal subjacente aos atos de fala. Por tiltimo, a quarta linha de reflexao esta des tinada a prestar conta da subjacéncia de um pressuposto originado no efei- to racionalizador da esfera piiblica, cuja permanéncia é indispensavel para as trés primeiras linhas de trabalho. Trata-se de uma concep¢do compro- metida com o resgate positivo da raz4o como meio de transformagao do» mundo e necessitada, ao mesmo tempo, de uma “reedificagdo comunicati- va” da prpria razdo frente a defesa que dela se faz desde o essencialismo contra os embates criticos do ceticismo, o decisionismo e o relativismo. Uma constante maior engloba essas quatro linhas interligadas de trabalho que bosquejam o programa de pesquisa de Habermas: é a que diz respeito ao progressivo abandono do terreno do conhecimento factual sociolégico para se instalar no domfnio normativo da filosofia. Esta constante resume a tendéncia & universalizagdo do esforgo intelectual de Habermas, mas também simboliza de forma estupenda a impossibilidade de resolver no reino da histéria um modelo de esfera ptiblica ancorado em pressupostos constitutivos hoje inexistentes.*5 Seja como for, no pior dos casos deveria aceitar-se que a conjugagao de {mpeto universalista e impoténcia hist6rica, produziu, na exploragdo interrelacionada dessas linhas de trabalho, um dos programas de pesquisa mais reputados e influentes da segunda metade do século, j4 cristalizado como referente obrigatorio para se pensar global- mente nossas sociedades. A pulverizacao da esfera ptiblica racionalizadora do poder obli- teraria as possibilidades de universalizar a legitimacio como vinculo emancipatério entre a sociedade e 0 Estado, a nao ser que fosse vidvel'a: 45Esta idéia também tem sido assinalada por John Keane em La vida piiblica y el capitatismo tardio (México, Alianza, 1992, pp. 214 € 228-234) e por Antoni Domenech, tradutor da edigdo espanhola de 1981 do trabalho sobre as mudangas estruturais da esfera piblica: “E: Uipico da posterior evolugdo de Jurgen Habermas carregar as tintas na ‘boa intengio nornsaté va" em detrimento da exploragao de seu possivel encaminhamento material." (p. 26) 168 LUA NOVA N° 40/41 — 97 demonstragao da vitalidade de novos fundamentos histéricos a preservar 0 imperativo de uma auténtica legitimidade como sustento da autoridade politica. E na caraterizagao sistémica do capitalismo tardio e da especifici- dade de suas crises que Habermas viria a encontrar os fundamentos para resgatar a legitimidade ¢, com ela, a peculiar forma de relagao entre a soci- edade civil e o Estado distintiva da esfera piblica burguesa. Por oposi¢do ao Estado liberal do século dezenove, o Estado no capitalismo tardio nao assegura apenas as condiges de condugao do processo de reprodugao so- cial, mas intervém decididamente quanto & promogao e realizagdo de inte- resses sociais. Isto faz com que se dilua no ar sua aparénciade ente politico neutro frente ao livre jogo das leis econémicas, precisando, “. . . portanto, como o estado pré-capitalista, ser legitimado, embora nao mais possa de- pender dos resf{duos de tradig&io que foram minados e esgotados durante 0 desenvolvimento do capitalismo.”4 Sem sustento metafisico ou tradi nal e suspeito de parcialidade no agir, o Estado enfrenta, como limite tiltimo & sua auto-regeneragao sistémica infinddvel, 0 obstaculo da legiti- magao perante ao mundo da vida social cuja dinamica socializadora basea- da na comunicagao é, por prinefpio, alheia a todo imperativo sistémico.7 Estado fica constrangido & procura de uma legitimidade somente dis- ponfvel através do apelo a raz6es pass{veis de justificagdo e, portanto, de reconhecimento dentro da légica dos agentes do mundo social; embora sempre seja possivel supor o cardter falso e manipulador de quaisquer raz6es apresentadas pelo Estado para se justificar, desde que 0 tinico requi- sito para a produg&o de legitimidade € que a sociedade acredite em tais ar- gumentos. Eis aqui a verdadeira “inversio habermasiana” no campo das teorias da legitimidade, que Ihe permitiria resgatar o “. . . direito formal burgués, para a universalidade da politica moral.”*8 © avango de Haber- mas consiste em destronar a “crenga” como fundamento da legitimidade e em construir um vinculo imanente entre esta e a verdade, deixando para trds o reducionismo sociolégico ou psicoldgico que acostumavam analisé- la como o problema das razdes pelas quais a sociedade acredita nos argu- mentos do poder‘? Em tltima instancia, as razdes ¢ motivagdes pelas quais se acredita estar frente a um agit ou decidir legitimos pressupdem a 48}argen Habermas, A crise de legitimagdo. .. Op. cit. ,p. 51. 47 “A proposigao de que os valores-metas dos sistemas sociais variam historicamente, precisa ser acrescentada a proposigao de que a variacdo em valores metas € limitada por uma légica do desenvolvimento das estruturas das visdes do mundo, uma l6gica que ndo estd a dispo- sigdo dos imperativos de argumentagao do poder. ” ibid. , pp. 25, também cf. pp. 59-61 (Gri- fo do autor), 48 Mid... p. 113. 49 Ibid... pp. 121-140. 169 existéncia de pretensdes de validade que, caso seja necessirio, podem ser demonstradas até as tltimas conseqiléncias e & luz das evidéncias dis- pontveis- por defini¢do sempre limitadas. Se a legitimidade mantém uma relacdio imanente com a verdade e, ao mesmo tempo, a sociedade é a tinica fonte auténtica de sua produgdo, entdo Habermas consegue restaurar tanto 0 papel racionalizador da esfera piiblica sobre o poder e o potencial eman- cipatorio da prépria legitimidade quanto as possibilidades para universali- Zar sua concep¢do deliberativa da politica e da democracia, pressupostas no seu modelo de estera pablica.5 A “inversao” operada por Habermas para relacionar imanente- mente a legitimidade e a verdade confirmava o cardter dual da sua per- cepgdo da “arquitetura social”, cindida entre 0 mundo da sociedade e 0 poder. Além do mais, no é fortuito~ mesmo se nao deixa de ser surpreen- dente —que esse trabalho de 1973 apontava jé 0 rumo que adotaria seu pro- grama de pesquisa para elaborar um arcabougo teérico capaz de fornecer sustento & referida dualidade e de extrair suas conseqiiéncias: “Um concei- to de crise concebido social-cientificamente precisa apreender a conexdo entre integragdo-sistema e integragdo social. . . . Falamos de integragao so- cial em relagdo aos sistemas de instituigdes nos quais os sujeitos da pala- vra de agdo estdo socialmente relacionados. Os sistemas sociais so vistos aqui enquanto mundos vitais que estéo simbolicamente estruturados. Fala- mos de sistemas de integragao tendo em vista os desempenhos condutores especificos de um sistema auto-regulado.”5! Alguns anos depois, em 1981, ‘© mundo auténomo dessa sociedade civil em pleito raciocinante com 0 po- der, depositério da legitimidade e produtor de uma emancipag’o comuni: cativa, ganhou definitivamente 0 nome de “mundo da vida"- produzido simbolicamente através da acdo comunicativa.? A distancia entre a esfera piblica burguesa e o mundo da vida, por suposto, nao é apenas nominal. O bosquejo de uma teoria geral da sociedade’? identifica um longinquo proceso evolutivo que trouxe as sociedades primitivas de estégios inferi- ores, onde a forga nao argumental do poder e do sacro dominava sobre a produgao de sentidos,* para patamares sucessivos de diluicao lingiifstica SOCf, Jurgen Habermas, “Trés modelos normativos de democracia”, (1991) Lua Nova 36, 1995, particularmente pp. 45-48; e Jiirgen Habermas, “La soberania popular. . .”, Op. cit. particularmente pp. 50-58, irgen Habermas, A crise de legitimacdo. .. , Op. cit. , p. 15. (grifos do autor) 52Juirgen Habermas, The Theory of Communicative Action Hl -Lifeworld and System: a Cri- tique of Funcionalist Reason, Boston, Beacon Press, 1987, pp. 113-152. Doravante TAC IL SS1bid. , pp. 3-42. SAIbid. , pp. 43-76, 170 LUA NOVA N° 40/4] — 97 das formas tradicionais de subordinagdo social®> nos quais a interagdo co- municativa entre individuos tornou-se 0 processo por exceléncia para a construg&o e validagao de sentidos. © mundo da vida aparece, entiio, como um “, . . horizonte no interior do qual agdes comunicativas esto ‘sempre prontas’ e moventes. . . "56, isto 6, como um universo feito de interacées comunicativas entre agentes nao vinculados apenas por determinagdes he- terOnomas trazidas por sua cultura e sociedade, mas pelo muituo reconheci- mento implfcito tanto na produgao auténoma de sentidos mediada de for- ma comunicativa quanto na também auténoma e linglisticamente mediada reapropriagdo particular da cultura e da sociabilidade por eles herdadas. Até aqui o mundo da vida ganha suficiente densidade teérica quanto a0 seu estatuto funcional na ordem social como um todo, pois nele se reno- vam a reproducio cultural, a integraco social e a socializag4o, mas o sen- tido fundamental deste esforco tedrico, alids reconhecido por Habermas como o sentido que o levou a escrever sua teoria da aco comunicativa®”, fica ainda um passo adiante. A crescente complexidade da evolugao das sociedades levou & produgao de sistemas reguladores da reproduc social que terminariam por se tornar independentes do mundo da vida, detonando de forma definitiva ¢ irreversivel a unidade da ordem social, cindida de agora em diante entre os imperativos sistémicos- sistema administrativo e sistema econdmico - e a vontade social - mundo da vida. O sentido desta formulacdo se descobre integramente quando se constata a persisténcia de uma trajetéria de colonizagiio do mundo da vida pelos sistemas ¢ quando se percebe que esta colonizagdo é perversa pela légica interna de operagio dos imperativos sistémicos, pois enquanto o mundo da vida utiliza a lingua para a produgdo de sentidos e a coordenagdo de agées, os sistemas econdmico e administrativo fazem uso, para os mesmos propésitos, de me- dia que perderam toda estrutura lingiifstica, quer dizer, do dinheiro, no caso do sistema econémico, e do poder, no caso do sistema administrati- vo¥8, Aos potenciais da autonomia de uma vida privada solapados pelo sis- tema econdmico e seu medium dinheiro correspondem a forga da esfera publica amenizada pelo sistema administrativo. Neste complexo percurso te6rico de mediagdes que culmina na critica & colonizagao do mundo da vida e, como era de se esperar- com os trabalhos de 1962 -, numa aposta descolonizadora, Habermas consegue, a0 mesmo tempo, preservar no SStbid. , pp. 77-118. SSibid., p. 119. STQuando escrevi TAC a minha preocupago central era com o desenvolvimento de um in- strumento te6rico para caraterizar 0 fenémeno da ‘reificagdo’ (Lukas). ” Jigen Habermas, “Moralidad, sociedad. ..", Op. cit. .p. 106. SBTAC IL, pp. 153-197. 71 nivel de uma teoria geral da sociedade tensGes carateristicas da esfera publica burguesa na sua relacdo com o Estado- “arquitetura dual da socie- dade”-, e radicalizar conseqiiéncias universalizdveis dentro de um mode- Jo de muito maior elaboragdo te6rica ~de sociedade em dois niveis. A idéia da sociedade em dois nfveis € muito mais que uma pro- posta conceitual, como as vezes se acredita sem raziio. Na verdade, trata- se de uma formulagiio sintética da teoria geral da sociedade de Habermas, que pressupde, como toda teoria geral da sociedade, principios interpretati- vos universais da evolugao social e um diagnéstico do presente e das po: sibilidades de transformagao para o futuro. O panorama desenhado pela te- oria geral da sociedade de Habermas 6, no interior do seu programa de pesquisa, um grande avango feito de elementos novos ¢ velhos: a realidade sistémica, produto da complexidade da evolugao social, seria, além de fun- cionalmente necesséria, um fato incontestével e irteversfvel néo apenas das sociedades presentes, mas também de qualquer antecipagdo razodvel das sociedades vindouras; entretanto, o desempenho dos sistemas seria no- civo ao mundo da vida porque cego as suas necessidades e porque, armado com um automatismo pertinaz, sempre procura a satisfago dos imperati- vos sistémicos. Isto sem esquecer, é claro, que os sistemas desenvolvem fungdes de coordenagaio e regulago social através de media “des- linguistificados” e, portanto, alheios & légica de um controle comunicati- vo. Do lado do mundo da vida restariam a infind4vel produgao de sentidos ndo administrados, potencialidades racionalizadoras dos sistemas, 0 sus- tento da auténtica legitimidade e, é Gbvio, a vida social mesma na sua ri queza simbélica e associativa e na sua auto-criagdo autOnoma; entretanto, a tendéncia & reificago sistémica representaria um perigo destrutor da au- tonomia do mundo da vida. A teoria da sociedade em dois niveis, ao con- centrar toda interago social auténtica e valiosa no mundo da vida, precisa, todavia, de um complemento capaz de estruturar, precisamente, 0 conceito de ago proprio do mundo da vida. Com efeito, a teoria da agdo comunica- tiva contém primeiro uma teoria geral da ago social como agao comunica- tiva®® e depois uma teoria geral da sociedade como sociedade desacoplada em dois nfveis. A altissima valoragio do mundo da vida, caraterfstica de Habermas desde a origem de seu modelo de esfera piiblica, coloca a acto comunicativa como um conceito de ago ao mesmo tempo universal- lingiifstico de potenciais racionalizadores, ancorado na pratica dos agentes do mundo da vida. Qualquer ato de fala competente contém uma contra- digdo preformativa segundo a qual nao € possivel evitar pretensdes de vali 59}urgen Habermas, The Theory of Communicative action Reason and the Rationalization of Society, Boston, Beacon Press, 1984, pp. 273-337. Doravante TAC L 172 LUA NOVA N° 40/41 — 97 dade na propria fala, o que faz com que exista na estrutura da ago comu- nicativa um princfpio de justificagdo racional e um prinefpio critico de submetimento das razées & livre discusso. Em termos da sua estrutura ldgica a ago comunicativa é universal, mas ndo se esgota neste nivel de abstragdo estritamente lingilistico, comegando realmente dentro do mundo da vida af onde faz. possfvel a coordenagao auténoma de propésitos e a aco reflexiva dos agentes: “Para o modelo da agdo comunicativa, a lin- guagem € relevante apenas desde o ponto de vista pragmatico dos sujeitos de fala que, empregando frases orientadas para chegar a acordos, estabele- cem relagdes com 0 mundo, nao s6 diretamente, como nas ages tele- oldgicas, dramattirgicas ou normativamente reguladas, mas de uma forma reflexiva, "® Assim, a teoria da ago social como agdo comunicativa néo se preocupa estritamente com a agdo e sim com as condigdes de possibili- dade de toda ago, isto é, com a mediagao légica da estrutura lingilfstica para chegar ao entendimentoS!. Sem dtivida, nesta, como de outra forma na linha anterior do programa de pesquisa, Habermas consegue formular, no patamar de uma teoria geral, as conseqiiéncias universalizdveis do carater dialégicodo seu modelo de esfera ptiblica. Afirmar que 0 mundo da vida e a aco comunicativa coincidem € mais ou menos equivalente a dizer que a razio reside do lado da socie- dade, cuja natureza autnomo-comunicativa, que enfrenta a realidade sis- témica, ndo apenas encarna processos de resisténcia como também (e isto €0 fundamental) representa a possibilidade de racionalizar socialmente os sistemas. Parece desnecessédrio deter-se sobre a evidéncia de que no pro- grama de pesquisa habermasiano, particularmente no seu nexo sociedade- razao, transluz um compromisso com o resgate critico da razo como meio de transformagao do mundo. Mas, como resgatar para seu programa de pesquisa um dos conceitos mais suspeitos de levar dentro de si os destruti- vos “delirios” da modernidade? A resposta € simples, embora seu amadu- recimento € desenvolvimento seja, como nas outras linhas de trabalho, produto de décadas de maturagao. Trata-se de avancar através de uma “re- edificagdo comunicativa” e critica da razéio®. A modernidade, as pre- tensGes universalizantes da sua razdo ilustrada, tantas vezes tida como as- sassina da diferenga, apresenta o seu préprio principio de superagiio que é, O}bid, .p. 98. 61Para evitar os mal-entendidos, eu gostaria de repetir que o modelo da ago comunicativa no iguala agtio com comunicagao. ...a ago comunicativa designa um tipo de interagdo que € coor- denada através de atos de falae no coincide com eles.” Ibid. .p. 101. (grifos do autor) ©2yurgen Habermas, The philosophical... . Op. cit. p. 341. Habermas fala exatamente em rea~ bilitar 0 conceito de razio. 173 paradoxalmente, 0 que a une numa mesma tradig&io com seus criticos mais ferrenhos. O tnico principio de identidade irrefragdvel da raz0 moderna é precisamente a critica, o que acarreta a possibilidade nao apenas de aceitar alteragdes numa posigdo sempre que existam bons motivos trazidos a de- bate por uma outra posigo, mas de associar um principio de tolerancia~ operando epistemologicamente ~ com a razio. A reedificagao critica de Habermas constréi um conceit de razdo adequado as exigéncias da agéio comunicativa e do mundo da vida ou, mais exatamente, desenvolve 0 cor- respondente conceito de razfio comunicativa. A contrapelo das tradigdes filos6ficas que abordam a razio como subjetivamente centrada, a razio co- municativa fundamenta o cardter inter-subjetivo da prépria razdo, desde o nfvel individual psicolégico, onde o pensamento interno ocorre através de uma espécie de didlogo, até o nivel da macroagregagao social, onde um processo de formagao de consensos sem constrangimentos ocorre dentro de uma comunidade de comunicagao mantida dentro de restrig6es coope- rativas. Pela via da razdo comunicativa Habermas consegue aquilo que jé havia tentado através da psicandlise“, isto é, conciliar a raz&o com 0 ho- mem comum, situando no centro os agentes do mundo da vida e fazendo- 0s coincidir com a aco comunicativa e com a razio comunicativa. Toda- via, € possivel manter a relagdo entre verdade e razao, indispensdvel para a auténtica legitimidade e, portanto, para os potenciais racionalizadores do mundo da vida, devido ao fato de que a razio comunicativa torna possivel abandonar 0 conceito de verdade como correspondéncia a realidade e su- bstitus-lo por outro de verdade como justificagdo das pretensdes de val dade contidas numa idéia.® Sob esta ética a verdade néo € objetiva, pois nao pertence & realidade e sim aos jufzos que sobre esta € poss{vel fazer. E claro, ent&o, que estes jufzos esto sujeitos a estrutura légica da ago co- 31bid, , pp. 294-326. ‘E surpreendente lembrar que, em 1973, Habermas introduziu uma analogia terapéutica na telago conhecimento-interesse, baseada precisamente na teoria psicanalitica freudiana. Na terapia da psicandlise os individuos conversam sobre 0 que eles so e ndo sobre coisas alheias, produzindo assim um saber emancipador que, enquanto tal, tem sentido apenas para aqueles que participaram na sua produgaio. Nessa altura do programa de pesquisa, Habermas propunha a psicandlise como um modelo de ciéneia, na verdade o tinico existente, que reivin- dicava metodologicamente 0 exercicio auto-reflexivo sem hierarquizagao de conteiidos desde a teoria ou desde qualquer outra exterioridade alheia aos sujeitos da fala, CF. Jurgen Haber- mas, Conhecimento e interesse, (1973) Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pp. 233-262. 65"... vou defender a tese de que a verdade pertence categorialmente a0 mundo dos ‘pensa- mentos’ . .. e nao ao das percepgdes”. Jirgen Habermas, Teoria de la accién comunicativa- Complementos y estudios previos, (1984) México, Rei, 1993, p. 133, para esta linha de traba- Tho podem ser consultadas na integra, com bom proveito, suas notas sobre as teorias da ver- dade, pp. 161-192. 174 LUA NOVA N° 40/41 —97 municativa. Seguindo em sua forma peculiar a trilha de Kant, Habermas consegue reabilitar 0 cardter transcendental da razio a partir da expulsao, precisamente, do que ele considerou suspeito de metafisica: os grandes su- jeitos da razo que ndo so os agentes comuns do mundo da vida, as abstragdes grandiosas que ndo passam pela experiéncia simples mas viva e vinculatéria destes agentes ¢ todos aqueles deveres magnificentes que nao foram produzidos por uma acdo e uma razo comunicativas. Poderia pa- recer dificil encontrar algo de transcendental numa razao assim esbelta. Contudo, a razdo comunicativa permite a Habermas afirmar que as questées morais admitem verdade, isto 6, somente podem ser processadas de forma satisfatéria através da ago comunicativa®. E a sua teoria, como era de se esperar, ganha através da reedificagdo comunicativa da razdo uma renovada forca universalizadora Antes de iniciar a ultima parte deste ensaio e na tentativa de ndo sobrecarregar mais a terceira parte, € preciso reparar em dois proble- mas dos quais ndo seré possivel nos ocupar aqui. Em primeiro lugar, a ter- ceira e quarta linhas de trabalho do programa de pesquisa de Habermas adentraram na reflexio do que o préprio autor tem chamado de “ética dis- cursiva’®?, Contudo, estas reflexdes continuam o percurso do pensamento habermasiano no seu esforgo de universalizagao. S6 que, neste caso, trata- se de elevar os saldos da razdo e agao comunicativas ao terreno da Filoso- fia. Destarte, na medida em que os desdobramentos para uma ética discur- siva j4 foram bosquejados no tratamento da raziio comunicativa, recente- mente conclufdo, a auséncia de tratamento maior desta matéria nao é uma falta grave, pois ela permanece contida dentro da Idgica das duas tiltimas linhas de trabalho acima expostas. Em segundo lugar, e diferentemente da ética discursiva, nao seria possfvel afirmar que a retomada positiva do Es- tado e da lei, carateristica dos escritos da tltima década, € simplesmente uma continuidade exceptiva de contradigGes dentro do programa de pes- quisa habermasiano. J4 foi observado na segunda parte que 0 assunto do 660 discurso pratico-moral representa a extensio de cada comunidade de comunicagio des- de a perspectiva interna. Neste foro, apenas podem chegar a acordo justificdvel aquelas pro- postas normativas que expressem o interesse comum de todos os afetados. Neste sentido, as, normas discursivamente justificadas concedem vatidade simultaneamente tanto 20 que é in- teresse de todos por igual, quanto a uma vontade geral que assumiu dentro de si, sem constrangimentos, a vontade de todos. Entendida desta forma, a vontade determinada por razdes morais nio permanece extema raz argumentativa; a vontade auténoma completa- mente interna & razdo. "Jurgen Habermas, Justification and Aplication-Remarks on Discourse Ethics. Cambridge, Massachusetts/ London, The MIT Press, pp. 12-13. (grifo do autor) 670 livro com o qual se costumamarcar este desdobramento do programa de pesquisa haber- ‘masiano foi publicado em 1983, dois anos ap6s a apariga0 da Teoria da agdo comunicativa O referido livro é Consciéncia moral e agir comunicativo. 175 Estado & peculiarmente polémico na evolugdo do autor. Cabe destacar, simplesmente, que o incansdvel esforco universalizante de Habermas 0 co- locou perante a necessidade de recuar sobre sua préptia critica a0 Estado, pois com Hegel sabemos que a universalidade sem efetividade nao € mais que um fantasma. Em outras palavras, 0 problema € como garantir a efe- tividade da aco comunicativa se o mundo da vida nao conta com o recur- so de uma coergao com a qualidade de obrigar universalmente.® A respos- ta € obvia: até hoje o Estado € a tinica instancia de universalizacio efetiva nas sociedades modernas. Contudo, bem vistas as coisas, € claro que o que sobressai neste dltimo estagio do programa de pesquisa € a continuidade de um esforco que se cortige para estender ainda mais as conseqiiéncias do seu prdprio pensamento. UM TESTE DE UNIVERSALIDADE Até agora a leitura do programa de pesquisa habermasiano tem sido reconstrutiva e, provavelmente por esta forma de proceder, nao per- mite ainda que se faca uma idéia mais ou menos fiel do verdadeiro “ma- cro-modelo” tedrico ¢ filoséfico que foi configurado no percurso. Enire- mentes, 0 entendimento do proprio Habermas e da sua relagéo com outros autores, particularmente com Rawls, precisa contar com uma re- presentagdo deste “macro-modelo”. Nele, 0 universo da sociedade como um todo est cindido em dois nfveis: no nivel superior encontra-se a rea- lidade sistémica e no seu interior tudo esté contido em dois sistemas, um administrative e 0 outro econémico, cuja auto-reprodugdo opera através de media~ 0 poder ¢ o dinheiro ~ que, por definigdo, nao precisam da lingua e, portanto, so alheios & razio comunicativa. No nivel inferior, caraterizado por uma produgio de sentidos comunicativamente mediada, tem lugar a realidade “societal” ou mundo da vida e, no seu interior, tan- to as questdes particulares (da praxe) quanto as universais (da morali- dade) so processadas lingilisticamente, ora como agdo comunicativa ora como ética discursiva. A disténcia que separa a l6gica de operagdo destes dois niveis € cada vez maior; porém, sua ruptura definitiva & impossivel devido a0 fato de que esta forma de “relago divorciada” mantém, entre 680 problema das condigées sob as quais as prescrigtes morais resultam razodveis € um motivo para a transigio da moral para o direito. ” Jirgen Habermas, Justification and... Op. cit.,p. 16. S9CE. os comentirios de Gabriel Cohn ao adendo editorial sobre a obra de 1992 (Berween Facts and Norms) introduzido em Jirgen' Habermas, “Trés modelos. ..”, Op. cit. , pp. 48-51 176 LUA NOVA N° 40/41 —97 © sistema administrativo e o mundo da vida, um vinculo constitutivo cu- jas exigéncias conhecemos sob 0 nome de legitimidade. A legitimidade faz, com que seja possivel um avango do mundo de vida sobre a realidade sist€mica, isto é, uma racionalizag&o que tem na norma juridica seu me- lhor vefculo e que se introduz via sistema administrativo para desenvol- ver controles nao apenas sobre este mas também sobre o sistema econémico. Contudo, a relagdo entre estes dois niveis é de sentido duplo € os avangos ou invasdes de um deles sobre outro costumeiramente pro- vém do lado dos sistemas, embora neste caso a invasio ou colonizagao acarrete patologias para 0 mundo da vida. Na sustentagdo da estrutura deste macro-modelo intervém uma teoria geral da sociedade, uma teoria geral da aco social, uma teoria da legitimidade e varias contribuigdes te- oréticas e filos6ficas de tipo discursivo sobre a moral- ética discursiva -. sobre a razdo — razao comunicativa -, sobre a democracia e a politica ~ democracia deliberativa -e sobre o direito. Em geral, poder-se-ia dizer que, como pano de fundo no desenho deste macro-modelo, Habermas constréi uma tensdo entre a conservago da razio, moderna e iluminista - © projeto filoséfico da modernidade -, e 0 progressivo esvaziamento da propria razo numa ontologia de cardter comunicativo. Porém, nfo parece evidente nem automaticamente necessdria a relagdo entre essa grande configuragdo, que esboga os resultados do programa de pesquisa habermasiano no seu estdgio atual, e o sistema fi- los6fico de Rawls, que fornece sustento a sua teoria da justiga como eqiiidade. Em outras palavras, por que decorreria do encontro entre eles um teste de universalidade, pelo menos para o programa de pesquisa ha- bermasiano, segundo o proprio Habermas, se aparentemente nao existe um vinculo concorrencial imediato entre os dois esforgos teérico- filos6ficos?” Embora 0 confronto de idéias entre ambos os pensadores tenha sido propiciado por um afortunado interesse editorial, como j4 foi salientado no comego deste ensaio, a pergunta pela preocupagio de Ha- bermas com debater o sistema rawlsiano é pertinente, ndo apenas porque em principio nao e claro o vinculo entre os dois corpos tesricos, mais porque enquanto Rawls, no exercfcio de sua s6lida tradigio fi- loséfica, dispensou qualquer referéncia ao programa de pesquisa haber- masiano para construir seu sistema filos6fico ~ e amparé-lo perante as 7Falamos de vinculo concorrencial para nos referir ao fato de que, normalmente, a im- portincia do debate entre concepgdes tedricas decomre delas oferecerem, como um todo ou como parte do seus desenvolvimentos, visbes alternativas— concorrentes ~ de compreensio € abordagem de um leque determinado de problemas. Sem este vinculo concorrencial seria ver- dadeiramente dificil entender 0 interesse de Habermas no sistema rawlsiano. 177 criticas -, Habermas, pelo contrério, vinha se (auto)posicionando com respeito A obra do primeiro anos antes de que ocorrera o debate.”! Para abordar esta questo € pertinente, primeiro, salientar do lado rawlsiano algumas das que parecem as diferengas de maior peso, que produzem opacidade na hora de procurar um vinculo concorrencial entre ambos os corpos tedrico-filoséficos. A obra de Rawls é, no sentido mais estrito da palavra, produto de um filésofo politico e, em conseqiiéncia, assume rigorosamente a configuragdo de um todo como sistema. Alids, dito seja de passagem, isto faz com que o Onus da consisténcia seja muito maior em Rawls do que em Habermas. Destarte, enquanto o programa de pes- quisa habermasiano define-se por uma constelagio de problemas, ao sis- tema rawlsiano subjaz um problema fundamental, ao mesmo tempo mais limitado e filosoficamente mais construfdo. Para Rawls, a tarefa da filosofia politica é se debrugar sobre as questées principais que, num periodo hist6rico, resultam politicamente polémicas e se apresentam como carentes de qualquer base compartilhada de acordo politico”. E claro que dentro das questdes politicas mais controversas Rawls esco- Iheu o problema de descobrir e demonstrar a existéncia de fundamentos, dentro da tradigao politica das democracias ocidentais, para uma con- cepgao de justiga universalizdvel, quer dizer, publicamente accitvel para todos os cidadaos de uma sociedade democratica’’, Do problema e do enfoque especificamente filos6ficos decorrem duas diferencias de im- portancia com respeito a Habermas. Uma é que o esforgo da filosofia politica rawlsiana € prético num sentido puramente normativo, enquanto no programa habermasiano ha linhas apontando criticamente na diregao de uma intervengao transformadora sobre o atual estado de coisas. A outra € que as elaboragdes filoséficas de Rawls sobre a sociedade ¢ so- bre as relagdes entre seus membros, particularmente sua concepgio da sociedade bem ordenada como um sistema eqilitativo de cooperagao en- tre pessoas livres e iguais.’* nao constituem nem pretendem constituir uma teoria geral da sociedade ou da ago social. Trata-se de desdobra- TICE, Sirgen Habermas, “Uma conversa sobre. .. ." (1995) Op. ct. ,p. 86; fundamentalmente, Jurgen Habermas, Benween Facis and... . (1992) Op. cit. . pp. 56-66; também, JUrgen Haber- mas, Moralidad, sociedad. ..(1990) Op. cit. ,pp. 86, 97-98 € 112-113. O debate é de 1995. 72 John Rawls, “Justica como eqUlidade: uma concepedo politica, néo metafisica”, em Lua Nova 25, 1992, pp. 28-28. 73 foid. , pp. 32, 38 € 50. 74 “Na justica como eqiiidade, o entendimento da unidade social parte de uma concepgo da sociedade comoum sistema de coopera entre pessoas livre e iguais. ” Ibid. , p. 56, ef. tam- bbém pp. 35, 39, 43 € 50. Cf. John Rawls, Teoria de la justicia. (1991) México, FCE, 1995, pp. 410-418 178 LUA NOVA N° 40/41 —97 mentos da concepedo da justiga como eqiiidade”5 no progressivo avango para sua estabilizacdo social.” “As diferencias acima expostas”” foram exprimidas com simpli- cidade e clateza por Rawls como a distancia entre duas doutrinas, uma en- quadrada rigorosamente na filosofia politica e de forma particular no dominio do politico, sem que nada além da categoria do politico seja do seu interesse filoséfico, e a outra estruturada como uma doutrina com- preensiva que articula e “, . . cobre muitas coisas muito além da filosofia politica”’’, Contudo e apesar destas diferencias explicarem a dispensabili- dade, para o sistema rawlsiano de qualquer referéncia ao programa de pes- quisa de Habermas, permanece no ar 0 problema do vinculo concorrencial que, na perspectiva do fildsofo alemo, organizou o debate e, no limite, Ihe conferiu o estatuto de um teste de universalidade. Quigé a relagio mais Sbvia entre ambos os pensadores, porém nao a mais significativa, é sua posigdo inconteste como os maiores exponentes da atualidade no ambito das teorias politicas normativa. Mais que sua merecida coagulagdo como referentes indispensdveis do pensamento polfticonormativo, é a peculiar forma do desenho e filiagdo filoséficas dos seus corpos te6ricos que se simpde. ao nosso interesse. O sistema filos6fico rawlsiano refunde a doutri- na do contrato social propondo o modelo de uma sociedade justa ou bem ordenada, onde prevalece a concepcao da justica como eqilidade cons- trufda mediante um dispositivo de representagao (a “posigao original”) que :permite a Rawls.reformular o imperativo categérico kantiano no sentido da.constituigdo intersubjetiva da sociedade e, € claro, da justiga.”? Ao -contrdrio do que poderia parecer, para um fildsofo politico nao é suficiente 75Se percorremos a teoria de Rawls até uma de suas extremidades encontramos o ideal de pessoas morais livres e iguais; se percorremos até outra de suas extremidades encontramos 0 ideal de sociedade bem ordenada. " Alvaro de Vita, “A tarefa prética da filosofia politica em John Rawls”, Lua Nova 25, 1992, p. 12. 76+Com.estas.observagbes como preficio, podemos agora ver como os principios da justica se-rélationam com.a sociabilidade humana. A idéia principal consiste, simplesmente, cm que ‘uma sociedade bem ordenada (correspondente 2 justiga como imparcialidade {eqlidade)) é, por si mestna, uma forma de unigo social. Na verdade, € uma unido social de unides sociais. John Rawls, Teoria de. .. Op. cit. , p. 476. O problema da estabilidade da teoria da justiga € abordado em extenso nas pp. 464-521. THExiste, Eclaro, um conjunto maior de diferencias como, por exemplo, os distintos debates € posigées tedricas dominantes perante as quais definiram sua prépria obra~ no caso de Rawls se trata fundamentalmente do utilitarismo. Contudo, estes outros aspectos niio sao peculiar mente relevantes para nossos propdsitos neste ensaio. 78John Rawls, “Reply to Habermas”, Op. cit. , 1. 1 1. 2. A citagdo provem do primeiro parégrafo de 2 CF. Jlrgen Habermas. “Rawls" Political. ..", Op. cit Op. cit. 1.3. +1. 3:e John Rawls, “Reply 10...” 179 inferir razoavelmente princfpios gerais de justiga e depois justificd-los por seu valor intrinseco ou pelo apoio que encontram nas tradigdes de uma de- terminada cultura politica. E preciso ir além disso e descobrir uma forma de universalizagao filosoficamente sélida e praticamente efetiva. Univer- salizacdo significaria, neste sentido, tanto a demonstragao légica da acei- taco universal dos principios postuladosquanto a justificagdo prética da sua efetiva realizacdo. E parece ébvio que as tradigées ou qualquer outro procedimento nao estritamente filos6fico seriam argumentos fracos ou in- suficientes para fornecer sustento a tais princfpios.*® Diferentemente do imperativo categérico kantiano, sempre suspeito de “naive normativism”’' e duramente criticado pela pressuposigao de individuos monolégicos abstratos sem nenhuma efetividade®, a posicao original de Rawls, a través do expediente do véu de ignorancia que apaga a especificidade das partes, faz surgir intersubjetivamente tanto os principios de justiga quanto a estru- turagdo da sociedade bem ordenada. Daf o interesse de Habermas no siste- ma rawlsiano, o vinculo concorrencial que traz a tona o império haberma- siano- também herdeiro filos6fico de Kant - sobre a problemética da constituicao comunicativamente intersubjetiva da ago social e da propria sociedade. O maravilhoso mérito de Rawls, dito seja antes de continuar com nossa analise, é o de ter desenvolvido um sistema filoséfico que con- segue resolver, a0 mesmo tempo, os quesitos de uma universalizagao rigo- rosa (i) sobre a postulagaio deontolégica de valores (ii) no contexto de soci- edades pluralistas ¢ democraticas (iii); isto é, na trilha de Kant, restaurar 08 principios axiolégicos sobre a justiga no controverso mundo da politica, investindo-os de um cardter vinculat6rio sem apelar a procedimentos de indole metafisica. No longo percurso do programa de pesquisa habermasiano, de- pois de décadas de desenvolvimentos rumo a novos patamares de progres- siva universalizagdo, a obra de Rawls representa para Habermas 0 grande sistema filos6fico alternativo que, compartilhando a tradigfo kantiana, conseguiu estruturar intersubjetivamente uma proposta universal quanto 80H4 quem conhece bem a obra de Rawls e opina em sentido exatamente inverso: “. . 04, ‘em outros termos, qual & 0 peso que a situagdo contratual tem na justificagao da teoria de Rawls? Se 0 que argumentei acima faz sentido, esse peso € diminuto, A justificagao dos principios de ‘justiga como eqiiidade” poderia, a rigor, dispensar o recurso a posigio original € a0 ‘véu de ignorincia’. * Alvaro de Vita, Justica Liberal- Argumentos liberais contra 0 neoliberatismo, Rio de Jaeiro, Paz e Terra, 1993, p. 55,em geral cf. pp. 39-71 8lJargen Habermas, Berween facts. .., Op. cit. , p. 9, cf. , também pp. 1-9; € 0 ensaio sobre ‘08 usos pragmiticos, éticos € morais da razdo prética, em Jtirgen Habermas, Justification and... Op. cit. 82Cf, Ana Marfa Rivadeo Fernéndez, Epistemologia y politica- Apriorismo y noumenicidad en Kant, México, UNAM/ ENEP Acatldn, 1988. 180 LUA NOVA N° 40/4] — 97 ao mundo moral da razo prética, sem nenhum apelo de importincia ao expediente estritamente procedimental da razio e ado comunicativas.* Dai, a rigor, o vinculo concorrencial que levou a Habermas tentativa de demonstrar, no debate e através da sua exegese do sistema de Rawls, que a teoria da justiga como eqilidade apresenta problemas mal resolvidos ou es- camoteados, para os quais existem respostas satisfatérias dentro do seu programa de pesquisa. Habermas tece em torno de sete eixos de argumen- tacéio, que podem ser concentrados, em termos gerais, em formulagdes criticas sobre a posig&o original, sobre 0 processo de justificagdo e acei- tagéio da justiga como eqilidade e sobre a construgdo do Estado constitu- cional impondo uma tendéncia a limitar a autonomia polftica das parte na posigdo original. Somente é de nosso interesse salientar 0 espirito destas criticas enquanto enquadradas na Iégica do que aqui tem sido chamado de teste de universalidade. Abordaremos brevemente dois delas. Em primeiro lugar, sempre seguindo a interpretagdo que Habermas faz de Rawls," 0 desenho da posi¢do original apresenta o problema das partes elegerem princfpios de institucionalizagao da vida social sob o risco de no levarem a conta 0 impacto de sua escolha para os cidadaos que representam; em conseqiléncia e fundamentalmente para garantir o resultado da escolha na posigdo original, se torna necessério as partes ficarem envoltas num véu de ignorncia, cujo sentido é a privagdo sistematica de informagao. A critica de Habermas a posic&io original e seu receio frente a esta operacao ofere- cem uma resposta contundente: “. . . penso que Rawls poderia evitar as dificuldades associadas com o projeto (design) de uma posicao original se ele operacionalizasse 0 ponto de vista moral de um modo diferente, a sa- ber, se mantivesse a concepgo procedimental da raz pratica livre de co- notagdes substantivas, desenvolvendo-a de uma maneira estritamente procedimental.”8 Em outras palavras, 0 que Habermas quer dizer, impli- citamente, € que Rawls poderia langar mao de um processo mais acurado 83 Essa afirmagio poderia parecer contraditéria com a exigéncia rawlsiana da “condiglo de publicidade” dos termos da cooperacao ¢ obrigagio sociais, porém, esta exigéncia responde ‘muito mais a peculiaridades da tradigao liberal, enquanto a importancia do individuo e da for- magao pessoal de critério, do que as conseqiiéncias procedimentais da teoria da ago comuni- cativa. Cf. Alvaro de Vita, Justiga liberal... Op. cit. . pp. 26-31; e Alvaro de Vita, “A Tarefa Prética. . +p. 84E preciso’ explicitar isto, pois algumas das criticas de Habermas decorrem de mal- entendidos da obra de Rawls; por exemplo, o entendimento de que existem alguns represen- tantes dos cidadios, que nao eles, julgando € decidindo na posigdo original. Na verdade, Rawls se refere a partes racionais “fideicomissérias dos cidadios, uma para cada cidadao”. John Rawls, “Reply to. .."Op. cit. 1.3, segundo pardgrafo. 85jurgen Habermas, “Rawls’ Political...”, Op.cit. 1. 1€1.3. 181 de universalizagdo se assumisse os desdobramentos procedimentais de uma ética do discurso.86 No que diz respeito a0 processo de justificaciio da teoria da justica como eqiilidade, a critica de Habermas, como era de se es- perar, se dirige novamente aos limites de sua universalizago, s6 que desta vez se trata do problema da aceitagdo da referida teoria. A consisténcia fi- los6fica da justiga como eqiiidade descansa num arcabouco conceptual de- vidamente justificado: a posigao original primeiro, e depois os princfpios de justiga, a pessoa moral, a sociedade como sistema eqilitativo de coope- ragdo, 0 véu de ignorancia. Contudo, Rawls pareceria interessado em deri- var filosoficamente nao apenas a justificagdo mas a aceitagio da sua teoria, introduzindo a idéia de um consenso sobreposto (overlapping consensus), cuja fungao seria a de simular com cidadaos ficticios uma discussdo no férum ptblico- longe dos cidadaos de carne e osso.8? Novamente, nesta como em outras criticas, Habermas sugere que Rawls enfrenta problemas, a0s quais s6i dar respostas pouco satisfatérias e deselegantes, devido & sua resisténcia a assumir uma concepgdo procedimentalista estrita como a con- tida no programa de pesquisa habermasiano.88 O teste de universalidade para o programa de pesquisa haberma- siano ou, 0 que é equivalente, a demonstragdo de “qual destas versdes da ética kantiana é a melhor” devido as suas maiores possibilidades de efetiva universalizacéio, nem comegou a ser resolvido, a despeito de Habermas ter dirigido suas erfticas especialmente aos limites do procedimento rawlsiano de construgao e justificagao da justica como eqilidade. Sem ditvida, 0 pro- grama de pesquisa habermasiano fez evidente de novo seu impeto univer- salizador. Entretanto, o debate deixa flutuando no ar outros efeitos, e um deles peculiarmente curioso para um olhar sociolégico: o estilo de debater de ambos os autores reflete nitidamente a pertenga deles a horizontes ide- oldgico-politicos diferentes. Rawls € uma encarnagdo idiossincrdsica do bom liberalismo, respeitoso da posigao do outro e interessado em precisar ¢ trocar idéias mais que em mudar as convicgées do interlocutor, enquanto Habermas representa bem a tradicdo da esquerda democritica, pleiteando e ansioso por convencer e vencer. Por suposto, nas trés décadas e meia de 86/bid. 87Jbid. , II. |. Insistimos em que se trata da interpretagaio de Habermas, 88V. gr.“ a0 moldar uma teoria universalista da justiga para questées de estab politica por meio de um consenso sobreposto, ele [Rawls] compromete o status epistémico dela. Ambas as estratégias s0 adotadas ao custo de um programa procedimentalista estrit. Em contraste com essa abordagem, Rawls poderia satisfazer de forma mais elegante os Gnus de prova em que ele incorre com seu forte e presumivelmente neutro conceito de pessoa mo- ral se desenvolvesse seus conceitos € pressupostos substantivos a partir do procedimento do uso piiblico da razio. "Ibid. I, 182 LUA NOVA N° 40/41 — 97 avangos e desenvolvimentos do seu programa de pesquisa, Habermas tem sido, a0 mesmo tempo, tanto um dos referentes mais destacados e afortu- nados do pensamento de esquerda quanto uma simbolizago da queda hist6rica do patamar das exigéncias de mudangas da esquerda. ADRIAN GURZA LAVALLE 6 docente da Universidad Iberoamericana do México e doutorando em Ciéncia Politica na USP 218 LUA NOVA N°42—9T A HUMILDADE DO UNIVERSAL: HABERMAS NO ESPELHO DE RAWLS: ADRIAN GURZA LAVALLE Pontos bésicos da trajet6ria intelectual de Habermas so recons- truidos & luz de seu confronto com Rawls. Assinalam-se os limites da pre- tensio habermasiana a uma universalidade superior a rawlsiana, Argumen- ta-se que o livro de 1962 sobre “mudangas estruturais da esfera publica” j4 encerra as questdes que encontrardo desdobramento mais tarde, inclusive na “teoria da agdo comunicativa” de 1981. O artigo vai no sentido de uma reconstrugdo critica de alguns problemas centrais do programa de pesquisa de Habermas. No final, retoma-se o confronto com Rawls. THE HUMBLENESS OF THE UNIVERSAL: HABERMAS IN THE MIRROR OF RAWLS: Basic points of Habermas’ intelectual trajectory are recon- structed from the standpoint of his debate with Rawls. The limits of Ha- bermas’ claims to a greater universality of his theory as compared with Rawls’ are pointed out. It is argued that already in his book of 1962 about the “structural transformations of the public sphere” may be found the questions to be further developed in his other works, including his “theory of communicative action” of 1981. The article aims at a critical reconstruction of some central problems of Habermas’ research program.

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