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OESTADO O PODER O SOCIALISMO NICOS POULANTZAS bg coum ert Cree erat Merl eae) desdobramento de um estatismo cada voz eeu arctic at do ocidental. Nos paises dilos de “socials. ace nae ae eee acc) eee C ter ements eum eeun ia PacMan To Dea au eer cen Cie eae) ere ECE ect ers ee ee ee ey Re cen eee tre (eae e cere eect Cee eet ae ea eta rr} Pentre mee ene ets er mem te nec aman cut © 9 desemalvinento da coniribuicae do eee ee ene Coe en ei eters mento pela aprociacao critica de analises EO en tec me rer Sota aac aera eeea gt Sea eae ereet Crna aU acetal SS eee eae See tne Punsalan eaten eget Ios eer ten ereeee ett mee Mesh ree Guest een een mrs oe eee ete Neue eer Cae eae et) errr ees Nani Ente livro de Nicos Poulantzas.pro- poe-s0 enfrentar sigumas das mals dificels questoes politics de nosso Sem divide, algumas delas jé trabalhoe anterlo- no que diz Mas, justamente em rolagho & mals densas de titiglo tedrico e con oltual, este trabalho testemunha. im portante revisita do escritor a sua obra, ‘submetendo-a ao crivo dos seus crit 608 @ de suns proprias auto-criticas. preocupacbes acabam por assu- qul uma dimensto finalista: tra de por no centro dos debates 0 problema da democracia © do soc ‘mo, Ov, mals. precisamente, o probie- ‘na do ‘soclalismo democrético, capaz do superar néo apenas os conhecidos mites da democracia representative ‘mas igualmente apto o levar a ume pratte"vibilizadora do. um soclaliamo dofinitivamente comprometide com 0 desenvolvimento das liberdades @ com o, real poder « mutonomla ds bases po- tien, © Intento” penetra fundo nos tempos modernoe, No mundo seldertal, 0 Ee tado #0 agigant complexifica em tals. proporoées, que parece irremediar volmente assinalar o declinio das de- mocracias politicas, No ambito dos Palsos chamados de “socialismo real”, fom lugar do definhamento do Estado, como provisto por Marx @ Engels, eonstata-se eeu revigoramento cons. tra ‘contemportineos? Quals as matrizes do ‘autoritarismo como prética e discurso? ‘Quals o» Instrumentos que a socledade NICOS POULANTZAS 0 ESTADO, 0 PODER, 0 SOCIALISMO. Traduzido por RITA LIMA Revisto SEVERINO BEZERRA ras Fundador: MAX DA COSTA SANTOS Ficha Catalogratica CIP-Brasil. Catalogacdo-na-t Sindicato Nacional dos Editores aa tee: RJ. Poulantzas, Nicos. 7 18 Estado, o poder, 0 socialismo / Nicos Poulantzas, — lo de Janeiro: Bdicbes (Biblioteca de Ciéncias sociais; v. n. 19) char Tatueto de: L’état, le pouvoir, Ie so- 1. Socialismo T. Titulo II. Série CDD — 335 80-0769 DU — 330,342.15 INDICE Adverténcia INTRODUGAO . |. Sobre a Teoria do Estado . Il, Os Aparethos Ideolégicos: 0 Estado, represséo + Ideologia . Ill, O Estado, os poderes e as lutas . PRIMEIRA PARTE A MATERIALIDADE INSTITUCIONAL DO ESTADO 1, 0 trabalho intelectual ¢ 0 trabalho manual, © saber e 0 poder . ll. A individualizagao 1 —A ossatura do Estado e as técnicas do poder 2—As M.A Lei 1 — Lei e Terror IV, A Nagao. ...., f 1 — A matriz espacial: 0 Territério 2 — A matria temporal ea. histaricidad a tradig&o, 3 — A Nacdo e as Classes . 1 13 13 33 40 55 60 70 70 78 85 85 105 113 123 A32 SEGUNDA PARTE AS LUTAS POLITICAS: O ESTADO, GONDENSAGAO DE UMA RELACAO DE FORGAS . 141 |. 0 Estado e as classes dominantes ....... 145 Nl. Estado e as lutas populares .7......... 161 ll, Para uma teoria relacional do poder . 167 IV. O pessoal do Estado ........, 177 TERCEIRA PARTE © ESTADO E A ECONOMIA HOJE . 187 |. Sobre as fung6es econdmicas do Estado . 190 Ml. Economia e Politica «2... 60... .......00.. 207 Il. Os limites do Estado-Moloch . 220 I. Conclusées provisérias ............. 226 QUARTA PARTE © DECLINIO DA DEMOCRACIA: O Parise AU: TORITARIO. ..... 233 |. Estotismo autoritério © totalitariemo oar, 299 I. A Irresistivel ascenséo da ae ease de Estado ..... 250 WL Partido ‘dominante:'de’ mages 269 IV. © enfraquecimento do Estado . 279 PARA UM SOCIALISMO DEMOCRATICO ......... 287 ADVERTENCIA ‘A urgéncia deste trabalho em sua origem deve-se, inicialmente, a situacdo politica na Europa. Se a ques- téo de um socialismo democratico nao esti na ordem do dia em todo o mundo — longe disso —, apresenta-se todavia em varios paises europeus. Essa urgéncia deve- se igualmente & emergéncia do novo fenémeno — o estatismo autoritério —, que marca grandemente o conjunto dos pafses ditos desenvolvidos. Leva, enfim, & discussdo que tem lugar atualmente na Franca e fora dela em torno do Estado e do poder. Os trabalhos sobre esse assunto apresentam-se sob uma forma dita teérica ou, ao contrario, sob uma forma de intervengao politica direta numa conjuntura preci- sa. Kis ai um velho habito. Tentei livrar-me dele: os problemas atuais sdo suficientemente importantes e no- vos para merecerem um tratamento aprofundado, Por outro lado, hoje, mais que nunca, a teoria nao pode enclausurar-se em sua torre de marfim. Tentar, porém, escapar deste hébito confortavel apresenta inconvenientes que nem sempre pide ou sou- be evitar. Resumem-se na tendéncia a se fazer, num sentido ou noutro, ao mesmo tempo emi demasia ou insuficientemente. Em primeiro lugar, no campo te6ri- co, nao pude, evidentemente, tratar de todos os pro- blemas que se apresentam nesses dominios, assim como néo pude tratar em profundidade daqueles que abordo. Este trabalho no apresenta, portanto, ordenacdo siste- lL mética, Se suas partes se encadeiam e se relacionam umas as outras, pretendem ser esclarecimentos de tais ou tais aspectos das diferentes questdes. Em seguida, no campo politico, no pude tratar de uma conjuntura politica concreta, a da Franca espe- cialmente, em seus detalhes e particularidades. De qualquer forma, a concepeao deste trabalho ex- plica o lugar reduzido ocupado pelas referéncias biblio- gréficas. Sendo a literatura nestes campos imensa, e querendo deixar de lado a rigidez académica, decidi deli- beradamente reduzi-las ao estritamente necessdrio, espe- cificamente aos casos em que cito expressamente um autor e as pesquisas efetuadas na Franca, Isto é igualmente valido para o que se considera como obras cléssicas do marxismo, cujas referencias completas constam de meus livros anteriores, Mas, no tl- timo caso, ndo sao somente estas as razdes dessa decisio. H4 também uma outra: néo pode haver marxismo orto- doxo. Ninguém pode proceder como um guardiéo de dogmas e textos sagrados. Nao tentel me resguardar atras deles, 0 que explica também o emprego neste livro do pronome pessoal e a referéncia a meus proprios tex- tos. Nao que pretenda falar em nome de algum marxis- mo auténtico, mas razées exatamente inversas: assumo a responsabilidade do que escrevo e falo em meu proprio nome. 12 INTRODUCAO 1. Sobre a Teoria do Estado 1 “© — Quem escapa ao Estado e ao poder hoje, e, também, quem disso nao fala? A situacao politica atual, nao so- mente na Franca mas em toda a Europa, é certamente responsivel por alguma coisa. Embora no seja suficiente falar dela, é preciso ten- tar compreendé-la, conhecé-la e explicé-la, Para fazé-lo, néo se deve hesitar em tomar, sem rodeios, os problemas pela raiz, Convém, também, escolher os meios e nfo ce- der as facilidades de uma linguagem analégica e.meta- forica, por mais tentadora que seja e por mais sucesso que atualmente faca, Minhas primeiras consideracoes serdo sem divida bem dridas, porém nao tenho, infelia- mente, como Alphonse Allais, o prazer de renunciar a este capitulo para passar mais rapidamente aos capitu- los seguintes, tao interessantes. : < ‘Toda teoria politica deste séeulo sempre propée no fundo, abertamente ou nao, a mesma questéo: qual a relagdo entre o Estado, o poder e as classes sociais? Digo exatamente deste século porque néo foi sempre assim, 13 pelo menos sob esta forma. Foi preciso que o marxismo abrisse caminho. Toda teoria politica, desde Max We- ber, ou é dialogo com o marxismo ou prende-se a ele. Em si consciéncia, quem se preocuparia ainda em negar a relacdo entre o poder e as classes dominantes? Ora, se toda teoria politica coloca a mesma questdo, apresenta sempre também, em sua grande maioria e através de intimeras variantes, a mesma resposta: haveria em prin- cfpio um Estado, um poder, que se tenta explicar de miltiplas maneiras, com o qual as classes dominantes estabeleceriam, em’ seguida, tais ou quais relacdes de vizinhanca ou de alianca. Percebem-se estas relacées de maneira mais ou menos sutil, evocando-se os grupos de pressio que agem sobre o Estado ou as engenhosas e sinuosas estratégias que se propagariam nas malhas do poder e que se moldariam aos seus dispositivos. Esta representacao levaria sempre ao seguinte: o Estado e o poder seriam constituidos de um nucleo inicial impene- travel e de um “resto”, que as classes dominantes, agin- do por fora, poderiam'influenciar ou no qual poderiam se introduzir. , no fundo, tomar a imagem renovada do Estado pela de Jano ou, melhor ainda, pela que jé obce- cava Maquiavel: Poder-Centauro — metade-homem, me- tade-fera, © que muda de um autor a outro é que ora a face-homem, ora a face-fera se coloca do lado das classes. Quando nao vejamos: se assim fosse, como explicar, sendo como por ataque de cegueira, o que constatamos cotidianamente, no como filésofos, mas como simples cidadaos? # cada dia mais evidente que estamos enre- dados nas praticas de um Estado que, nos minimos detalhes, manifesta sua relacio com interesses particula- res e, conseqiientemente, bem precisos. ‘Um certo marxismo, sempre preso a uma certa tra- digo politica, pretende nos dar a resposta: 0 Estado se reduzitia & dominag&o politica no sentido em que cada classe dominante produziria seu proprio Estado, & sua medida e A sua conveniéncia, e manipulé-lo-ia & sua von- lade, segundo seus interesses. Todo Estado nfo passaria, neste sentido, de uma ditadura de classe. Concepcao puramente instrumental do Estado que reduz, empre- 4 guemos j4 os termos, aparelho de Estado a poder de Estado, “© —Acesta concepedo falta 0 essencial. Néo que o Esta- do nao tenha uma “natureza de classe”, mas justamente © problema, que é 0 de toda teoria politica do Estado, apresentou-se também aos pais fundadores do marxis- mo, embora eles nao o tenham abordado sob o mesmo Angulo. Este problema também os preocupa, ou melhor, 0 obeeca, O Estado, insistem, é um aparelho especial! possui uma ossatura material propria que ndo é redu- zivel As relagdes (tal e qual) de dominagao politica. O que pode ser formulado para o Estado capitalista da seguinte maneira: por que a burguesia geralmente re- corre, com a finalidade de dominaco, a este Estado na- cional-popular, a este Estado representativo moderno com suas instituigdes proprias, e ndo a um outro? Por- que nao é de maneira nenhuma evidente, longe disso, que, se a burguesia pudesse criar um Estado completo e conforme suas conveniéncias, teria escolhido este Es- tado. Se este Estado Ihe propiciou, e propicia continua- mente, muitos beneficios, ela est4 longe, nao mais hoje do que no passado, de se gabar por isso. “© Questo candente esta, pois diz respeito igualmente ao estatismo atual, as atividades do Estado que se esten- dem, como se sabe, a todos os campos da atividade da vida cotidiana, Ai também, a resposta dada por este marxismo nao tem atrativos: 0 conjunto destas ativi- dades seria a emanacao da vontade da classe dominante ‘ou dos politicos a seu soldo e sob seu tacdo. Existe entdo, 6 evidente, uma série de funcées do Estado, como a seguranca social, por exemplo, que nao se reduzem unicamente ao dominio politico. 3 Por menos que se tente fugir & imagem de um Estado e do poder; ela se reporta particularmente as for- nante, depara-se imediatamente com outra armadilha outra, porém ainda a mesma — a da tradicional réplica da, teoria politica. Outro marxismo, mais atual ainda, nao consegue evita-lo: evoca a dupla natureza do Es- tado, Haveria por um lado (ainda a grande diviséo) um micleo do Estado, de certa forma separado das classes e 15 de suas lutas. Certamente a explicagio desse nticleo ‘© nfo é dada da mesma maneira que nas outras teorias do Estado e do poder; ela se reporta particularmente as for- gas produtivas, as quais se reduzem as relagdes de pro- ducdo, Trata-se da famosa estrutura econémica, onde as classes e suas Iutas estariam ausentes, Ela’ daria lugar a um primeiro Estado, precisamente “especial”, e @ medidas puramente técnicas ou, segundo um termo mais nobre, puramente sociais do Estado. Isto 6, haveria entdo outra natureza do Estado, relacionada desta vez com as classes e suas lutas. Um segundo Estado, um superestado dentro do Estado, em suma, um Estado que agregaria a si o primeiro’ao implantar-se nele, e que seria entao o Estado de classe. Neste caso, o da bur- guesia e da dominacdo politica. Este segundo Estado viria para perverter, viciar, contaminar ou desviar as fungées do primeiro. Referia-me também a um certo marxismo, que chamei de tecnocratismo de esquerda, € que atualmente assola, sobretudo quando nao menciona as forcas produtivas e menciona de maneira prosaica a complexidade intrinseca das tarefas técnico-econdmi- cas do Estado nas chamadas sociedades “pés-indus- triais”, as quais fazem que... ete. © - portanto, esta resposta nao difere tanto da secular resposta da teoria politica tradicional, ou ao gosto do fregués: um Estado-poder parte, que seria, por con- seguinte, utilizado de tal ou qual maneira pelas classes dominantes. Falamos das coisas como so: nao se pode- ria falar de uma natureza de classe, mas de uma uilica- do de classe do Estado. Usei o termo de dupla natureza do Estado, no entanto este termo néo engloba a reali- dade dessas andlises. A verdadeira natureza do Estado € 0 primeiro Estado; o outro 6 um hébito. Como para a teoria politica secular — a do Estado como metade- homem, metade-fera: o verdadeiro Estado-poder para ela também nao é a metade que esti do lado do quintal (do lado das classes), mas a outra que esta do lado do jardim, So esquematizo para sugerir o seguinte: se toda teoria politica, todas as teorias do socialismo (inclusive o marxismo) giram sempre em torno desta mesma ques- 16 to, é que existe af um problema real. Nao é, muito ao tontrétlo, © Unico neste campo, mas 6 o principal ¢ diz respeito também, supée-se, & questdo da transfor- mac&o do Estado numa transic¢ao para o socialismo de- mocratico. O que quer que seja, 86 hé um meio que neste campo leva a algum ponto, s6 uma resposta. que pode fazer sair do circulo, Tal resposta pode ser dada de maneira simples: o Estado apresenta uma ossatura material propria que nao pode de maneira alguma ser reduzida & simples dominac&o politica. O aparelho de Estado, essa coisa de especial e por conseqiiéncia temi- vel, nao se esgota no poder do Estado. Mas a dominacao politica esté ela propria inscrita na materialidade insti- tucional do Estado. Se o Estado nao é integralmente produzido pelas classes dominantes, néo o é também por elas monopolizado: o poder do Estado (o da burgue- sia no caso do Estado capitalista) est4 inscrito nesta materialidade. Nem todas as acdes do Estado se reduzem A dominagdo politica, mas nem por isso séio constituti- vamente menos marcadas. preciso demonstré-lo. Tentar fazé-lo néo seria, a meu ver, uma tarefa facil, As questées mais simples s80 também, quando verdadeiras, as mais complexas. Para nao se perder nos dédalos e labirintos é preciso nao per- der o fio da meada, Deve-se procurar o fundamento da ossatura material do Estado nas relagdes de produgéo @ na diviséio social do trabalho, néo no sentido que se entende habitualmente, nem no que se acabou de ver. No se trata ai de uma estrutura econémica em que as classes, os poderes e as lutas estariam ausentes. A bus- ca deste fundamento ja estabelece uma relagao entre 0 Estado, com as classes e as lutas, embora nao passe de um primeiro paso, Por se tratar do fundamento, con- centrar-me-ei no seu exame para entrar no debate atual mais amplo sobre o Estado 0 poder. ' 2 preciso, pols, comecar por uma breve revisdo de Aaa ems eu proprio fiz em trabalhos an- teriores. Ww A relagio do Estado com as relagdes de produgao jd apresenta o problema da relacdo do Estado e da “base econémica”. Do que se entende precisamente pelo termo “base econémica”, depende a posigao que se adota quan- to a relagéo do Estado e as relagGes de producao e, conse- qientemente, do Estado e das lutas de classes, # mais do que nunca necessdrio demarcar-se da concepcao economicista-formalista, que considera a economia como sendo composta de elementos invariantes através dos diferentes modos de producéo — de natu- reza e de esséncia quase aristotélicas, e como sendo auto- reproduzivel e auto-reguldvel por uma espécle de com- binatéria interna, Essa foi, sabe-se, uma tentacdo per- manente na histéria do marxismo e que mantém-se ainda atual. Esta concepcio, reatando neste ponto com 0 economicismo tradicional, oculta as lutas travadas no cerne mesmo das relagdes de produgao e de exploracio, Considera igualmente o espaco ou campo do econdmico (e, em contrapartida, o do politico, do Estado) como imutavel, possuindo limites intrinsecos, tracados de uma vez por todas por sua pretensa auto-reproducéo, através de todos os modos de producdo, No plano das relacoes do Estado e da economia, esta concepeao, aliés bastante antiga, pode dar lugar a dois equivocos cujas conse- qiiéncias se apresentam freqiientemente agrupadas. Pode, por um lado, respaldar um velho equivoco referente a representacéo topoldgica da “base” e da “superestrutura”’ e considerar assim o Estado como sim- ples apéndice-reflexo do econémico. A relagao do Estado e da economia se converteria, no maximo, na famosa “ago retroativa” do Estado sobre uma base econémi considerada no essencial como auto-suficiente. Trata-se af da concepeo economicista-mecanicista. tradicional do Estado, cujas implicacdes e conseqiiéncias séo agora suficientemente conhecidas para que sobre elas eu me estenda, Porém ela pode dar margem igualmente a um outro equivoco, quando 0 conjunto € concebido sob a forma de instdncia ou niveis por natureza ou esséncia auténomos. Sendo a economia apreendida por uma série 18 de elementos invariantes num espaco intrinseco através dos diversos modos de producio (escravismo, feudalis- mo, capitalismo), a mesma concepeao serd aplicada, por analogia, as inst@ncias superestruturais (Estado, ideo- Jogia). Seré a combinacdo a posteriori destas instancias, por natureza auténomas, que ocasionaré os diversos modos de produgao. A esséncia dessas instancias é ante- rior 4 sua articulagéo no interior de um modo de produgao. Aqui, em vez de tomar as instdncias superestrutu- rais como apéndices-reflexos da economia — esta tiltima concepcao baseada sempre na representacao de um espa- 0 econdmico auto-reprodusivel em si mesmo —, corre- se o risco de substancializi-las e dotd-las de autonomia invariante através dos diversos modos de producao, em relacdo & base econdmica, A autonomia de natureza ‘das insténcias superestruturais (Estado, ideologia) servira de legitimagao & autonomia, a auto-suficiéncia e a auto- reprodugdo da economia, Vé-se pois a conivéncia teérica destas duas concepcoes, que encaram as relac6es entre 0 Estado e 0 econémico como relagoes de ezterioridade de prinefpio, quaisquer que sejam as figuras empregadas para designé-las. Assim, a imagem construtivista da “base” e da “superestrutura” — de uso meramente descritivo, per- mitindo visualizar de certa forma o papel determinante do econémico — nao somente nao pode convir a uma representag&o correta da articulacdo da realidade social, e conseqtientemente de seu papel determinante, como revelou-se com 0 tempo desastrosa em varios ‘sentidos. Tudo se tem a ganhar se nela nao se confia;.hé muito tempo que nfo @ utilizo na andlise do Estado. Estas concepgdes repercutem igualmente sobre a decomposicao e construcao dos objetos passiveis de tra- tamento tedrico. Apresentam em comum o fato de admi- tirem como possivel e legitima uma teoria geral da eco- nomia enquanto objeto epistemologicamente isolavel, teoria do funcionamento trans-histérico do espaco eco- némico. As diferenciagses do objeto-economia nos diver- sos. modos. de produgdo ilustrariam simplesmente 19 metamorfoses internas de um espaco econémico auto- regulado, de limites inalterdvels, metamorfoses e trans- formagées de que a teoria geral da economia (a “ciéncia econémica”) desvendaria o segredo. Estas duas concep- ges divergem no plano das chamadas superestruturas, Chegando a resultados opostos, uns tao falsos quanto 08 outros, Para a primeira concepeao, é inaceitavel todo tratamento especifico dos campos superestruturais de objeto proprio. Nesse caso a teoria geral fornece apenas ‘as bases para a explicacdo de superestruturas — refle- xos meciinicos da base econémica. Em contrapartida, para a segunda concepcio, a teoria geral da economia deve desdobrar-se por analogia numa teoria geral de todo campo superestrutural, e nesse caso do campo politico — Estado. Esta teoria geral do Estado também deve ter como fim especifico e isolado o Estado atra- vés dos diversos modos de producéo: sendo o Estado um objeto epistemolégico, deve possuir limites inalte- raveis que Ihe seriam atribuidos por excluséo, fora dos limites intemporais da economia. As fronteiras intrin- secas do objeto-economia, realidade auto-reproduzivel do interior por forca de suas lels internas, tende as fronteiras intrinsecas do exterior, isto ¢, do Estado, es- paco imutdvel, pois que envolve o proprio espago imu- tdvel da economia, Concepgdes erréneas. Afinal de que se trata? 1. © espago e o lugar da economia, o espaco das relacdes de producao, de exploracao e de extracéo do excesso de trabalho (espaco de reprodugio e de acumu- lacio do capital e de extragéo da mais-valia no modo de producdo capitalista) jamais constituiu, nem nos outros modos de producio (pré-capitalistas), nem no capitalismo, um nivel hermético e enclausurado, auto- reprodurivel e depositério de suas prdprias “leis” de funcionamento interno. O politico-Estado (valido igual- mente para a ideologia), embora sob formas diferentes, | sempre esteve constitutivamente presente nas relacées \. de producéo, e assim em sua reproduedo, inclusive no estagio pré-monopolista do capitalismo, contradizendo 20 g uma série de ilusées relativas ao Estado liberal, que su- postamente néo interfere na economia, a ndo ser para friar e manter “‘a infra-estrutura material” da produ- giio. # bem verdade que o papel do Estado em relagio fT economia modifica-se ndo somente no decorrer dos diversos modos de producdo, mas também segundo os estagios e fases do proprio capitalismo. De qualquer for- ma, estas modificagdes nao podem, em hipétese alguma, inscrever-se numa figura topoldgica de base, pois o Es- tado, instdneia sempre exterior & economia, ora inter- viria’ nas relagées de produgdo penetrando no campo tconémico, ora manter-se-ia de fora agindo apenas em sua periferia. © lugar do Estado em relacfio & economia nada mais é que a modalidade de uma presenca consti- tutiva do Estado no seio das relacdes de producao e de sua reprodugéo. “© 2. Isto quer dizer que tanto os conceitos de eco- nomia como os de Estado nao tém e nem podem ter a mesma extenséo, 0 mesmo campo e o mesmo sentido nos diversos modos de producao. Mesmo num nivel abstra- to — assim como nao podem ser tomados como formas puramente econémicas resultantes de uma combinatéria Sempre diferencial de elementos econdmicos em si inva- riantes, movendo-se num espago fechado e de limites intrinsecos — também nao formam combinatérias en- tre estes elementos ¢ elementos invariantes de outras instancias (do Estado), concebidas também como subs- tancias imutaveis. Em suma, um modo de produgio néo 60 produto de uma combinacao entre diversas instan- cias em que cada uma possuiria previamente, a0 se relacionar, uma estrutura intangivel. # 0 modo de pro- duc&o, unidade de conjunto de determinagées econd- micas, politicas ¢ ideologicas, que delimita as fronteiras desses espacos, delineia seus campos, define seus tespec- tivos elementos: 6 primeiramente seu relacionamento ¢ articulagao que 0s forma, Isto se faz em cada modo de 3. Nos modos de produgao pré-capitalistas embora 08 produtores diretos estivessem separados do objeto do trabalho e dos meios de produc&o, na relacdo de proprie- dade econémica, nao estavam separados na segunda relacdo constitutiva das relagdes de produgéo — a rela- co de posse. Os produtores diretos (os camponeses e 08 servos no feudalismo, por exemplo) estavam ligados a estes objetos e meios, conservavam um dominio relative do processo de trabalho e podiam acionar estes processos sem a interveneao direta do proprietério. A conseqiién- cia disto é 0 que Marx chama de “imbricacao” estreita ou “mixagem" do Estado e da economia. O exercicio da violéncia legitima esta organicamente implicito nas re- lagées de producio para que haja extorsio do excesso de trabalho aos produtores-detentores da posse do objeto e dos meios de trabalho. Devido as nitidas relacdes entre © Estado e a economia, consideramos que essas mesmas relagdes apresentam contorno, extensAo e sentido total- mente diferentes no capitalismo, No capitalismo, os produtores diretos estéo total- mente despojados de seu objeto e meios de trabalho; les estéo separados nao somente na relacdo de pro- priedade econdmica, como também na relacdo de posse. Vé-se 0 aparecimento dos “trabalhadores livres”, pos- suindo apenas sua forga de trabalho e nao podendo introduzir-se no processo de trabalho sem comprometi- mentos do proprietdrio, comprometimento representado juridicamente pelo contrato de compra e venda da for- ga de trabalho. # esta estrutura precisa das relagdes de producdo capitalista que transforma a forca de trabalho, em mereadoria e o excesso de trabalho em mais-valia, e que da lugar igualmente nas relacdes do Estado e da economia a uma separagdo relativa (acumulagéo do capital e produgao da mais-valia), base da ossatura ins- titucional propria ao Estado capitalista, pois traca os novos espagos ¢ campos relativos respectivamente ao Estado e & economia. Contudo a separacio do Estado e do espago de reproducao, especitico ao capitalismo, nao deve ser tomada como efeito particular de instAncias essencialmente auténomas:e compostas de elementos invariantes, qualquer que seja 0 modo de producéo; 22 porém, e sim, como caracteristica propria ao capitalis- mo, na medida em que ele cria novos espagos do Estado e da economia, transformando seus prdprios elementos. Esta separagéo nao nos deve levar a crer em real exterioridade do Estado e da economia, como se 0 Es- tado s6, do exterior, interviesse na economia. Esta sepa- racdo é a forma precisa que encobre, sob o capitalismo, a presenca constitutiva do politico nas relacdes de pro- ducéo e, dessa maneira, em sua producdo. A separacio do Estado e da economia e a presenca-acdo do Estado na economia, que nao de uma tinica e mesma figura das relagdes do Estado e da economia sob 0 capi- talismo, atravessam, embora modificadas, toda a his- toria do capitalismo, todos os seus estagios e fases: pertencem ao duro cerne das relagoes de producdo capi- talistas. Tanto quanto no estdgio pré-monopolista o Es- tado nao era realmente exterior ao espaco de reprodu- co do capital, seu papel no capitalismo monopolista, notadamente ma fase atual, n&o conduz, e muito pelo contrério, & aboligéio da separacdo entre o Estado e a economia. Trata-se de uma andlise corrente e inexata tanto das relagdes do Estado e da economia no estégio pré-monopolista (chamado de livre concorréncia ou libe- ral) do capitalismo, quanto das relacdes entre o Estado ea economia no estagio e na fase atual. As modifica- oes substanciais dessas relagdes através da historia do capitalismo, prendendo-se As modificagdes de suas re- lagdes de produg&o, nao passam de “formas transforma- das” dessa separacio e da presenca-acao do Estado nas relagdes de producéo. Ora, precisamente na medida em que o-espaco, 0 campo € portanto os conceitos do politico-Estado.e da economia (relagdes de produgéo) apresentam-se de ma- neira. diferente nos diversos modos de producdo, segue-se que, contra, toda teorizagao formalista, da mesma ‘™ma- neira. que no poderia haver uma teoria geral da econo- mia. (no. sentido de “ciéncia econémica”), tendo um objeto tebrico invariante através dos diversos modos de produgo — nfo poderia também haver uma “teoria geral” do politico-Estado (no sentido da “ciéncia” ou da “sociologia” politica), tendo ela mesma um objeto 23 te6rico invariante através destes modos. Seria legitimo se 0 Estado constituisse uma insténcia por natureza ou por esséncia autdnoma, posuidora de fronteiras inal- terdveis, e se essa insténcia contivesse em si as leis de sua propria reproducao historic. Emprego a expressio teoria geral no sentido proprio de um corpus tebrico sistematico que possa ao mesmo tempo explicar, a par- tir de proposigées gerais e necessérias, os tipos de Esta- do nos diversos modos de producao como expressées sin- gulares de um mesmo objeto tedrico, e expor as leis de transformagao que marcariam em ‘seu lugar proprio as metamorfoses deste objeto, de um modo de producéo a outro, isto 6, a passagem-transicao de um Estado a ou- tro. Em contrapartida, o que é perfeitamente legitimo 6 uma teoria do Estado capitalista, construindo um obje- toe um coneeito especificos, possibilitado pela separacao do Estado da economia sob o capitalismo. O mesmo ocor- re quanto A legitimidade de uma teoria da economia capllalista, possivel em yirtude da separagao das rela- Ges de produgao-processo de trabalho do Estado, “© © bem verdade que se podem lancar sicbes tabrjods porate relatioes Go Petaao® fodks thnx: borien, ‘© mesmo valor das teorias de Marx relativas “4 produ- do em geral”, isto é, nao poderiam pretender ser esta- futo da teoria geral do Estado, Em virtude do dogma- tismo prodigioso inerente & apresentacéo das proposi- Ges gerais sobre o Estado dos clissicos do marxismo sob a rubrica “teoria marxista-leninista do Estado”, ainda remanescente, é importante assinalar esta tendéncia. Pude constatdla, quando do recente debate sobre a di- tadura do proletariado no interior do POF, junto a certos defensores da “manutencdo” desta nogdo, notadamente E. Balibar no seu livro: Sobre a ditadura do. proleta- Na realidade nio se encontra nos cléssicos do mar- xismo uma teoria geral do Estado. Nao que nao tenham “© podido ou sabido desenvolver plenamente uma teoria semelhante, mas sim porque ndo poderia haver uma teoria geral do Estado. Questo terrivelmente atual, observada especialmente no debate desenvolvido no seio da esquerda italiana. Em dois artigos de grande reper- 4 cussio de N. Bobbio, eseritos ha pouco tempo, ele acen- tua o fato de o marxismo nao dispor de uma teoria geral do Estado, Intimeros marxistas itallanos sentiram-se obrigados a responder que uma teoria semelhante existe em “gestacio” nos classicos do marxismo e que se trata apenas de desenvolvé-la, afirmando pois sua legitimi- dade Mesmo néo sendo boas as razées de Bobbio, o argumento continua valido: ndo existe teoria geral do Estado, pois ndo poderia haver. Nese ponto, é preciso ser rigido com todas as criticas, de boa ou de mé 16, que recriminam as pretensas caréneias do marxismo ao ni- vel de uma teoria geral do politico e do poder. Um dos méritos do marxismo é justamente o de ter afastado, neste caso como em outros, os grandes devaneios meta- fisicos da filosofia politica, as vagas e nebulosas teori- zacées gerais e abstratas que pretendem revelar os gran- des segredos da Histéria, do Politico, do Estado e do Poder. Fato este que deve ser hoje mais do que nunca observado num momento em que, face as preméncias politieas na Europa e particularmente na Franca, vé-se mais uma vez esta dissimulagao tipica do ressurgimento das grandes sistematizacées Filosoficas Primeiras e Der- radeiras do Poder, as quais s6 fazem, na maioria das veres, ruminar as proposicdes gastas da mais tradicional metafisica espiritualista. De Deleuze aos “novos fil6- sofos” seria longa a lista’ dos que inundam inconseqtien- temente o mercado de conceltos das grandes Nocdes terroristas e mistificadoras do Déspota, do Principe, do Senhor e de outras da mesma lavra. Atualmente na Franca 0 Congresso filoséfico se diverte; no fundo, po- rém, nada disso é divertido. Os problemas reais sao bem graves e complexos para serem resolvidos por gene- ralizagées ultra-simplificadoras e grandiloqiientes, que jamais conseguiram explicar 0 que quer que-seja. Nao que haja caréncias do marxismo nas anilises do Estado e do poder, o fato é que as caréncias nao es- tao onde as procuramos. O que custou caro as massas populares em todo o mundo nao foi a auséncia no marxismo de uma teoria geral do Estado ¢ do Poder, mas certamente 0 dogmatismo escatolégico e profético que nos deu durante muito tempo um sistema teérica semelhante com o nome de “teoria marxista-leninista”* do Estado. As caréncias reais, e conseqtientemente im- portantes do marxismo a este respeito, referem-se aos dominios em que a teorizacéo é legitima. Mostrei em Poder politico e classes sociais*, assim como em trabalhos posteriores, que estas caréncias, cujas causas tentei ex- plicar, levam ao mesmo tempo as proposicdes gerais e & teoria’ do Estado capitalista. Um dos seus efeitos atuais é a auséncia de anélise suficientemente desenvolvida e satisfatéria dos regimes e do Estado nos paises do Leste. Na medida em que nao poderia haver teoria geral do Estado estabelecendo leis gerais que regulassem as transformacGes de seu objeto através dos diversos modos de producao, também nao poderia haver teoria seme- Thane referente a transicao de um Estado a outro, mente & passagem do Estado capitalista ao Esta- do socialista. Uma teoria do Estado capitalista fornece elementos importantes no que se refere ao Estado em transiggo a0 socialismo. Estes elementos, porém, néo tém a mesma categoria da teoria do Estado capitalista. e sim formam uma categoria particular no seio das pro- posigdes te6ricas gerais sobre o Estado. 86 poderiam constituir nodes tedrico-estratégicas no estado prdtico, funcionando como guias para a aco e, no maximo, como painéis indicadores, Nao pode e nem poderia haver modelo possivel de um Estado de transicio ao socialis- mo, nem receita infalivel teoricamente garantida, a nao ser para um pais em particular, o que também nao pretendo fazer nas andlises do presente trabalho sobre © Estado de transico ao socialismo nos paises da Eu- ropa ocidental. & preciso decidir de uma vez por todas que andlise fazer, sabendo-se agora que nao se pode pe- dir a uma teoria, por mais cientifica que seja, 0 que ela nao pode dar — e ai se inclui o marxismo, que per- manece uma real teoria da acdo. Sempre existe uma distancia estrutural entre a teoria e a prdtica, entre a teoria e o real. Duas disténcias que se resumem a uma, Tal como os filésofos do Tluminismo nfo sfo “responsdveis” pelo totalitarismo do Ocidente, o marxismo nao é “responsé- vel” pelo que se passa a Leste, Ndo 0 € 6 no sentido comum em que no Leste seria um marxismo desviado, © que inocentaria o marxismo puro, e, sim, porque ha a distancia entre a teoria e a pratica valida para qual- quer teoria, e portanto para o marxismo. Querer redu- zi-la € querer que qualquer teoria exprima qualquer coisa, fazer em nome da teoria o que quer que seja. Este vazio nfo representa um obstéculo instrans- ponivel, muito pelo contrario, pois é justamente neste vazio sempre aberto que se precipitam as vanguardas dos contestadores. Sabe-se agora que néo ha teoria — qualquer que seja e por mais liberal — que possa, na pureza de seu discurso, impedir seu eventual emprego com fins de poder totalitario pelos encobridores da dis- tancia entre teoria e pratica, e defender-se dos aplicado- res de textos e os redutores do real, que sempre poderio alardear a propria pureza da teoria. A culpa nao cabe a Marx, nem a Platao, a Jesus, a Rousseau ou a Voltaire. © responsavel por Stélin nao ¢ Marx; por Napoledo Bonaparte, Rousseau, Franco — Jesus; nem. por Hitler © culpado & Nietzche, ou por Mussolini — Sorel, mesmo se suas idéias foram usadas, sob alguns pontos de vista, em sua propria pureza, para encobrir totalitarismos. © contrario disso é o que atualmente nos dizem os “novos filésofos”, que até agora, que eu saiba, nao acharam resposta melhor para o problema, a nao ser repetir Karl Popper‘, porém com muito menos intel géncla e sutileza, quando afirmam que 0 universo con- centracionario é causado por sistemas tedricos ditos “fechados”, haja visto o aspecto estatal dos mestres pensadotes que os inspiraram. A distancia entre a teo- ria eo real explica na verdade o que, sem isso, 6 um paradoxo colossal: os totalitarismos utilizaram-se jus- tamente de pensadores que no contexto de sua época foram ineontestavelmente menos estatais que muitos outros; utilizaram Jesus, Rousseau, Nietzche, Sorel, Marx, enfim aqueles para quem © preocupacao cons- tante e primordial foi o enfraquecimento do Estado. Volto & minha resolugdo: nao considerar a distan- cia entre a teoria e o real, querer reduzir a qualquer 2 prego @ distancia entre teoria e pratica é querer que 0 marxismo exprima o que quer que seja. Nao se pode pedir ao marxismo, ao “‘verdadeiro” marxismo, a receita infalivel e expurgada de desvios de uma auténtica tran- sicéo ao socialismo democratico, pois trata-se de algo que ele nao pode dar, assim nao pode demarcar o ca- minho para as sociedades do Leste. Isto no quer dizer que nao se possa analisar & luz do marxismo uma parte importante (pois o marxismo em si nao explica tudo, nem poderia fazé-lo sozinho) do Estado nos paises do “‘socialismo real” (U.R.S.S., Europa Ocidental, China), isto 6, nos paises em que se tentow uma certa transi¢ao ao socialismo e chegou-se & situa- cdo que sabemos. & evidente que, para fazé-lo, as andli- Ses histéricas (do tipo ‘“‘as condicdes coneretas desses paises”) ou as de estratégia politica que as seguiram, em- ‘bora indispensaveis, séo insuficientes. Seré que seria ne- cessério construir uma teoria marxista geral do Estado que explicasse os aspectos totalitérios do poder nesses Palses, de maneira andloga 28 varias generalizagses sim- plificadoras que nos dao do outro lado, do modo terro- rista que se sabe, os diversos especialistas em goulags? Nao o ereio, embora (melhor: porque) o problema do totalitarismo seja terrivelmente real. Nao pode ser apreendido em sua totalidade por generalizagces tota- lizantes, Pondo as cartas na mesa, diria que s6 se pode estabelecer as premissas de uma andlise simultanea do totalitarismo moderno e de seus aspectos nos paises do Leste, desenvolvendo as proposigées tedricas gerais sobre 0 Estado e, também, definindo a teoria do Estado capi- talista em ‘suas ligacdes com as relacdes de producao ¢ a divisdo social capitalista do trabalho. Duas coisas que tentarei fazer indicando as raizes do totalitarismo. Claro esté que s6 posso partir de premissas, pois o atual Estado nos paises do Leste é um fendmeno especi- fico e complexo, e nao se pode reduzi-lo ao Estado em desenvolvimento em nossas, sociedades, objetivo princi- pal deste trabalho, Nesses paises o Estado esta longe de ser uma simples variante do Estado capitalista, Estou pouco propenso a achar que as raizes € o segredo de cer- tos aspectos totalitérios do Estado nos paises do Leste esto (pois 0 capitalismo ndo é a fonte de todos os ma- les*) entre outras causas, mas fundamentalmente no que chamarei de aspectos capitatistas desse Estado: as rela- Ges de producao e a divisdo social do trabalho que o suportam, Emprego propositalmente @ expresséo aspec- tos capitalistas, e a titulo indicativo, pois — quer se trate de caracteres capitalistas remanescentes num socialis- ‘mo autoritério em particular, ou de influéneias de um meio envolvente capitalista em paises socialistas, ou entdo de um resultado, e em que medida esses paises de efetivo capitalismo de Estado emergem sob nova rou- pagem, eis um problema particular que néo desejo abor- dar —. pois é muito importante e merece ser estudado convenientemente. Minha posicéo tem conseqiiéncias mais amplas, j4 que algumas de minhas andllises, indo além do Estado em e incluindo também o Estado capitalista em suas ligagdes com as relagdes de producto e a divisio social-do trabalho, referem-se igualmente, Jevando-se em conta seu fim especitico, ao Estado nos paises do Leste. # necessério lembrar-se constantemente disso, por isso me encarregarei de lembré-lo quando ne- cessério. Voltando ao Estado capitalista, reafirmo que sua teoria s6 terd carater cientifico se conseguir explicar a reproducdo e as transformag6es historicas de seu objeto nos lugares em que esas transformacoes esto ocorren- do, nas diversas formacdes sociais, lugares da luta de classes; e isto se conseguir explicar as formas de Estado segundo os estagios e fases do capitalimo (Estado libe- ral, Estado intervencionista etc.), a distincao entre essas formas e as formas de Estado de excecao (fascismos, di- taduras militares, bonapartismos), formas d 1e em paises concretos. 4 teoria do Estado capitatista ser separada da histéria de sua constituioao e de sua re- producéo. Nem por isso deve-se cair no positivismo e no em- pirismo e construir o objeto tedrico do Estado capitalis- ta a partir de um modelo ou tipo ideal, isto 6, por indu- gdo-adigéo comparativa de tracos caracteristicos de Giversos Estados capitalistas concretos. Isso quer dizer simplesmente que, mantendo a distancia entre modo de producdo (objeto abstrato-formal em suas determina ges econdmicas, ideolégicas e politicas) e formagées 30- ciais coneretas (articulacdes num momento histérico dado de varios modos de producéo), essas formagées so- ciais nao devem ser tomadas como simples ajuntamen- tos-coneretizacdes espaciais de modos de produgao re- produzidos abstratamente, logo um Estado conereto, simples realizagao do Estado do modo de produgdo ca- Pitalista, As formacées sociais so o lugar real de exis- téncia e de reproducao, portanto do Estado em suas formas diversas, as quais no podem ser deduzidas do modelo capitalista de Estado que designa um objeto abs- trato-formal. Colocar o Estado capitalista em primeiro lugar quanto as relagdes de producdo nao significa construir a partir disto 0 objeto teérico deste Estado. Objeto-tipo que no prosseguimento seria particularizado ou concretizado de uma maneira ou de outra segundo a luta de classes em uma ou outra formacdo social. Uma teorla do Estado capitalista s pode ser elaborada ao se relacionar este Estado com a histéria das lutas politicas dentro do capitalismo. 3 © Recapitulando: se as relages de producéo tragam © campo do Estado, este desempenha contudo um papel auténomo na formacéo dessas relacdes. A ligacdo do Es- tado as relagdes de producéo constitui a primeira relacdo do Estado com as classes sociais e a luta de classes. No que diz respeito ao Estado capitalista, a separacdo rela- tiva das relagdes criadas pelas relacdes de ‘producao constitui o fundamento organizacional de sua ossatura organica e revela sua ligacdo com as classes sociais e a luta de classes sob o capitalismo. O processo de producdo é fundamentado na unidade do processo de trabalho e nas relacdes de producdo (elas mesmas incluindo uma dupla relacdo — a de proprieda- de econémica e a de posse). Esta unidade é realizada pelo primado das relagées de produgao sobre 0 processo de trabalho, freqtientemente chamado de “forcas pro. 30 incluindo a tecnologia e 0 processo técnico. Contrariamente ao eeonomicismo tradicional que leva diretamente ao tecnicismo e que vé apenas ages de produgo a simples eristalizag&o-envoltdrio-reflexo de um processo tecnolégico das foreas produtivas como tais (assim, sendo importante na origem do processo de pro- dugdo a concepedo das relagées entre base e superestru- tura reflexo), ¢ o primado das relacdes de produgao sobre a forges profutivas que df tun artculagfo a forma de cess0 de produgio e de reprodugéio. PD rosathebepdeeeteac tna rnatarielltsde peat ‘que nao se pode ignorar, elas se organizam, contudo, segundo relagdes de produgdo dadas (0 que nfo exclui nem as contradigées entre elas, nem seu desenvolvimento de- sigual no seio de um processo que ¢ conseqiléncia deste primado), Nao 6 a passagem do moinho a vento ao moi- nho a vapor que explica a passagem do feudalismo’ a0 capitalismo, Toda obra de Marx o comprova, apesar das anbigiidades que contém, fruto da influéncia da ideo- logia do progresso téenico da filosofia Tuminista, que o acompanha até nos trabalhos de sua maturidade. Deste primado decorre a das relagées poli- ag (e ideolégicas) no seio das relacdes de producao, As relagdes de producao e as ligacdes que as compoem (propriedade econémica/posse) traduzem-se sob a form: de poderes de classe que sio organicamente articulados as relacées politicas e ideolégicas que os consagram e le- gitimam. Estas relagdes nao se sobrepdem simplesmente a relacoes de producao jé existentes, nao atuam sobre elas retroativamente numa relac&o de exterioridade de prin- cipio ou num ritmo de @ posteriori cronologico. Estao presentes, de maneira especifica a cada modo de produ- cdo, na formagio das relagdes de producio, As relacdes politicas (e ideolégicas), contudo, nao intervém mee mente na reproducao das relagdes de produgéo seg hemaelin stale sorbent daupalbesorspatinetoiien jue a reproducdo oculta a formacao das relagdes de pro- dca. introduzindo diretamente as relagdes politico-ideo- logicas, conservando nas relacdes de producao sua pureza original de autogeragéo. Estando as relagdes politico- ideologicas desde j4 presentes na formagio das relagbes 31 de produgdo, desempenham um papel essencial em sua reprodugao, e dese modo o processo de produgio e de explorado ¢ ao mesmo tempo processo de reproducio das telagées de dominacao/subordinacéo politica e ideo- logica. Deste dado fundamental decorre a presenca do Estado, especifica para cada modo de produgéo, o qual concentra, materializa e encarna as relagées politico-ideo- logicas nas relagdes de producao e sua reprodugao. # enfim deste dado que decorre a primeira atuagio do Estado na formagéo e reproducao das classes sociais, em suma na luta de classes. As relagdes de producio, sua ligagéo com as relagdes de dominio/subordinagao politica e ideoldgica, definem lugares objetivos (as clas- Ses sociais) que 840 distingoes no conjunto da divisdo social do trabalho (relagdes de produgao que tém papel determinante, relagdes politicas, relagdes ideologicas). Esse resultado do primado das relagdes de produgio sobre as forgas produtivas implica igualmente na colo- cacéo das classes sociais no proprio seio das relagdes de produgo, £ a diviséo social do trabalho, tal como se apresenta nas relagoes politicas e ideolégicas no seio do processo de trabalho, que detém a primazia sobre a di- visio técnica do trabalho. Isso nao significa que a divi- so técnica do trabalho seja redutivel a diviséo social, porém que ndo existe nem se reproduz a ndo ser inserida na divisao social. Assim os lugares de classe, que se traduzem por poderes, consistem, no selo das relagdes de produgio, em praticas e em lutas de classe. Bem como essas rela- g6es € a divisdo social do trabalho no constituem uma estrutura econdmica exterior (prévia) as classes sociais, também ndo pertencem a um campo exterior ao ‘poder e ds lutas, Nao existem classes sociais anteriores sua contestacdo, isto é, as suas lutas. As classes sociais nao se colocam “em si” nas relagdes de produgao para entrar na luta (classes “para si”) somente depois ou noutro lugar. Situar o Estado em sua ligacdo com as relagdes de produgao € delinear os contornos primeiros de sua presenca na luta de classes. 32 0 Estado, Repressdo + Ideologia? “© © Estado tem um papel essencial nas relagdes de produgio © na. delimitagio-reprodugso das classes, so- ciais, porque ndo se limita ao exercicio da repressao fi- sica otganizada. O Estado também tem um papel espe- cifico ma organizacio das relacdes ideolégicas e da ideologia dominante. Deter-me-ei agora nese aspecto: © papel eminentemente positivo do Estado também nao se limita A dupla represséo + ideologia. “© A ideologia nao consiste somente ou simplesmente num sistema de idéias ou de representacdes. Compreende também uma série de prdticas materiais extensivas aos habitos, aos costumes, ao modo de vida dos agentes, e assim se molda como cimento no conjunto das praticas sociais, af compreendidas as praticas politicas e econd- micas. As relagdes ideologicas séo em si essenciais na constituicéo das relages de propriedade econdmica ¢ de posse, na divisdo social do trabalho no préprio selo das relagdes de producdo. O Estado nao pode sancionar e reproduzir 0 dominio politico usando como meio ex- clusivo a represso, a forca ou a violéncia “nua”, e, sim, lancando méo diretamente da ideologia, que legitima a violéncia e contribui para organizar um consenso de certas classes e parcelas dominadas em relaciio ao poder puiblico, A ideologia nao é algo neutro na sociedade, 56 existe ideologia de classe. A ideologia dominante consis- te especialmente num poder essencial da classe domi- nante. 2 © — Desse modo, a ideologia dominante invade os apa- rethos de Estado, os quais igualmente tém por fungio elaborar, apregoar e reproduzir esta ideologia, fato que 6 importante na constituigao e reprodugdo da. diviséo social do trabalho, das classes sociais e do dominio de classe. Esse € por exceléncia o papel de certos aparelhos oriundos da esfera do Estado, designados aparelhos ideo- légicos de Estado, mesmo que pertencam formalmente 33 ao Estado ou conservem um juridico “privado”: Igreja (aparelho religioso), aj eseolar, aparelho oficial de informagées (radio, televisdo), aparelho cultural etc. Resta lembrar que a ideologia dominante intervém na organizagao dos aparelhos aos quais compete principal- mente o exercicio da violéncia fisica legitima (exército, policia, justica-prisiio, administracao). H& uma distingéo entre aparelhos repressivos ¢ ideol6gicos cujos limites so bem nitidos. Antes de men- cioné-la, lembro 0 papel repressivo do Estado, As vezes tio evidente, sobre 0 qual quase néo se fala. Insistir no papel do Estado nas relacdes ideolégicas nao deveria levar, como acontece com freqiiéncia’, a subestimar seu papel de repressor. Em primeiro lugar, é preciso distinguir a violéncia fisica organizada, no sentido proprio do termo, da vio- léncia sobre 0 corpo. Um dos aspectos essenciais do po- der, condigaio de sua instauragao e manutengao, ¢ a coer- G0 dos corpos, e também a ameaca sobre os corpos, a ameaca mortifera, Claro que o corpo nao é uma simples naturalidade biolégica, mas uma instituicao politica: as relagdes Estado-poder com o corpo séo muito mais com- Plleadas e extensas do que aa relagdes com a repressio fada impede que a sustentacao do Estado seja sempre @ marca constrangedora sobre os corpos por meios fisi- cos, a manipulagdo e a devoracgéio dos corpos. Essa sus- tentagdo se da duplamente, alias: pelas instituigdes que atualizam a sujei¢éo corporal e a ameaca permanente de mutilagao (prisdo, exéreito, policia); pela instauragéo por parte do Estado de uma ordem , que a0 mesmo tempo institui e gera os corpos, dando-ihes, for- ma, dobrando-os e encerrando-os nas instituicdes e apa- relhos. O Estado é capaz em sua materialidade, de reno- var, disciplinar e consumir os corpos dos stiditos, em suma, de introduzir na propria corporalidade dos stidi- tos-objetos a violéncia do Estado. Se nfo se pode falar de mortificacéo corporal por parte do Estado —o que levaria & imagem de um corpo primeiro naturalmente livre e em seguida corrompido politicamente, quando 56 existe corpo politico —, existe contudo nesta ordem cor- poral, um efetivo adestramento e arregimentacio dos x corpos, operado por dispositivos fisicos apropriados. Quando virmos o papel da lei, tratarei mais a fundo desse problema e veremos que o Estado capitalista apre- senta particularidades marcantes. ‘A concep¢ao que sustenta a distingdio entre apare- thos repressivos e aparelhos ideoldgicos do Estado re- quer, porém, reservas profundas, pois esta distingao 86 pote ser considerada a titulo meramente descritivo e indicativo, Se ao mesmo tempo esta concepedo, baseada nas andlises de Gramsci, tem o mérito de ampliar o es- paco do Estado nas instituigdes ideolégicas, nao impede, entretanto, que de fato funcione de maneira restritiva. Do modo como foi sistematizada por L. Althusser’, apdia- no pressuposto da existéncia de um Estado que 36 agiria, sé funcionaria pela repressao e pela doutrinagao ideolégica. Essa concepcao supde de certa forma que a eficdcia do Estado esteja no que proibe, exclui, impede de fazer, ou entéo-no que , mente, oculta ou faz crer: que este funcionamento ideolgico baseia-se em praticas materiais, e nao altera a analise restritiva do papel do Estado. Considera ainda o econémico como instancia auto-reprodutivel e auto-reguladora, onde o Estado apenas coloca regras negativas do “jogo” eco- némico. O poder politico nao esta presente na economia, 36 poderia organizé-la, nela ndo poderia engajar-se de- vido @ uma positividade propria, pois s6 existe para im- pedir (pela repressio e pela ideologia) as intervengdes perturbadoras. Trata-se de uma antiga visdo juridica do Estado, a da filosofia juridico-politica dos primér- dios do Estado burgués e que jamais correspondeu & realidade. evidente que com tal concepedo de Estado é im- possivel compreender a formagdo das relacées de prodi cdo. Isto {4 é verificavel na transico do feudalismo 0 capitalismo e no estdgio da livre concorréncia ow libe- ral do capitalismo, Isto ainda é mais valido, e em par- ticular, para o Estado atual, que introduz-se no proprio cerne da reproducio do capital. Em suma, o Estado também age de maneira positiva, cria, transforma, rea- liza, Nao se pode tomar as atuais agdes econémicas do Estado, a menos que se faga. um jogo de palavras, sob 35 © exaustivo Angulo da repressio e da doutrinagdo ideo- légica, ficando claro, contudo, que estes aspectos exis- fo pt na materialidade das atuais fungdes do Estado. E ainda: 6 imposs{vel por meio do binémio repres- sdo-ideologia definir 0 dominio do poder sobre as massas dominadas e oprimidas sem cair numa concepedo poli- cial ou idealista do poder. O Estado dominaria as mas- sas, quer pelo terror policial ou pela repressio interio- rizada — pouco importa aqui —, quer pela impostura e pelo ilusdrio, O Estado defende — proibe e/ou ilude, pois precavendo-se de identificar ideologia e ‘‘conscién- cia errada”, o termo ideologia s6 faz sentido se admitir que os procedimentos ideolégicos comportam uma es- trutura de ocultagdo-inversio. Acreditar que o Estado 86 age assim 6 completamente errado: a relacéo das massas com poder e o Estado, no que se chama espe- cialmente de consenso, possui sempre um substrato ma- terial. Entre outros motivos, porque o Estado, trabalhan- do para a hegemonia de classe, age no campo de equilfbrio instével do compromisso entre as classes do- minantes e dominadas, Assim, 0 Estado encarrega-se ininterruptamente de uma série de medidas materiais positivas para as massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concess6es impostas pela luta das clas- ses dominadas, Eis af um dado essencial, sem 0 qual néo se pode perceber a materialidade da relacao entre o Es- tado e as massas populares, se fosse considerado o bind- mio repressao-ideologia. O que ¢ igualmente, em tltima inst@ncia, o fundamento, com a ténica sobre 0 aspecto consentimento, de toda a série das atuais concepcdes do poder, particularmente as que se desenvolvem em torno do fendmeno fascista.* pela imagem do Estado-poder, segundo 0 binémio repressao-ideologia, que se tenta ex- plicar a base de massa do fascismo: as massas teriam ‘desejado” a repressio ou teriam sido mistificadas pela ideologia fascista. Considerar como unicas categorias do Estado repressio-interdito e ideologia-encobrimento leva forgosamente a subjetivar as razées do consentimen- to (porque se diz sim ao interdito) e a situd-las seja na ideologia (no sentido de ilusao: os fascistas iludiram as 36 massas), seja pelo desejo da represséio ou amor ao Se- nhor. Ora, mesmo o fascismo foi obrigado a tomar uma série de medidas positivas as massas (reabsorcio do desemprego, manutencéo e as vezes melhoria do poder real de compra de certas categorias populares, legislacio dita social), o que nao exclui, bem a0 con- trério, o aumento na exploracdo das massas (por meio da mais-valia relativa). Que o aspecto ideolégico-engodo esteja sempre presente, isto néo altera o fato de que o Estado também age pela produgéo do substrato mate- rial do consenso das massas em relacéo ao poder. Se 0 substrato difere de sua apresentacdo ideolégica no discurso do Estado, nao é contudo redutivel a mera propaganda, Evidentemente, nfo séo esses os tinicos casos da eficdcia positiva do Estado; esses exemplos, porém,-bas- tam no momento para mostrar que sua agdo ultrapassa de muito a repressio ou a ideologia. ‘Acrescenta-se, por outto lado, um mal-entendido quanto & representacio do Estado em relacio ao bind- mio represséo-ideologia: a representacéo da ideologia dominante é confundida com mero encobrimento ou dissimulagdo das metas e objetivos do Estado, o qual 86 produziria um. discurso unificado, permanentemente mistificador, e s6 progrediria envolto em segredo e sem- pre dissimulado. # errado por varias razdes: uma das funcdes do Es- tado que ultrapassa o mecanismo de inversdo-encobri- mento proprio & ideologia, refere-se desta vez a0 papel de organizador em relagdo as proprias classes dominan- tes e consiste também em dizer, formular, declarar aber- tamente as tdticas de reproducdo de seu poder. O Estado nao produz um discurso unificado, e, sim, varios, en- carnados diferentemente nos diversos aparelhos de acordo com a classe a que se destinam; discursos diri- gidos as diversas classes, Ou entio produz discurso seg- mentar ¢ ttagmentado segundo as diretrizes da estra- tégia do poder. O discurso, ou segmentos de discurso dirigidos & classe dominante e suas fragées, e as vezes 37 também as classes de apoio, sio na realidade discursos- confissées de organizacéo. O Estado jamais se esconde, nem as taticas que representa; nao que se trate de con- cilidbulos de ante-sala que se tornam conhecidos contra a vontade do Estado, mas porque a um certo nivel o dizer da tatica 6 parte integrante das disposicdes do Es- tado com vistas a organizar as classes dominantes, é parte do espaco cénico do Estado em seu papel de re- presentagdo dessas classes (caso patente, o famoso dis- curso de De Gaulle em maio de 68). Um fato de aparén- cia paradoxal é que tudo, ou quase tudo que a burguesia © 0 poder realmente fizeram, foi dito, declarado, cata- logado publicamente em algum lugar por um dos dis- cursos do Estado, mesmo se incompreendido na época, Hitler jamais escondeu o designio de exterminar os judeus. Num certo nivel, o Estado, nao somente o ver- dadeiro, declama a verdade de seu poder, como também assume 0s meios de elaboracdo e formulagao das taticas politicas. Produz o saber ¢ as técnicas de saber, que, im- bricadag na ideologia, de muito a superam. As estatis- ticas “burguesas” e 0 “INSEE”, por exemplo, elementos do saber do Estado com fins de estratégia politica, néo 8&0 mera mistificacao. Claro que a palavra do Estado nao é a de qualquer pessoa, nem ven de qualquer lugar; existe ai um segre- do do poder e um segredo burocratico. Segredo que néo equivale contudo a um papel univoco de siléncio, porém mais precisamente ao de instauracao no seio do’ Estado de circuitos tais que favorecem a enunciagdo a partir de alguns de seus centros. No que diz respeito A classe dominante, o siléncio burocrético nfo passa, na maio- ria dos casos, de organizador da palavra. Se o Estado nem sempre diz sua estratégia ao discursar & classe do- minante, é que freqiientemente receia desvendar seus designios as classes dominadas. Se, no seio do Estado, ha taticas que se realcam, a estratégia nao passa de resultante da conduta contraditéria de entrechoques entre as diversas taticas e circuitos, redes e aparelhos que as encarnam e portanto nem sempre é sabida ou conhecida previamente no (e pelo) Estado, portanto nem sempre é formulavel discursivamente. O indice de ideologizagdo do discurso e também das praticas materiais do Estado ¢ portanto flutuante, va~ ridvel e diversificado segundo as classes e fracdes de classe as quais se dirige o Estado e sobre as quais age. ‘A verdade do poder escapa freqtientemente as massas populares, néo porque o Estado a esconda, mascare ex- pressamente; sim, porque, por razées infinitamente mais ‘complexas, a8 massas néo conseguem compreender 0 discurso do Estado as classes dominantes. Enfim, quando a aco do Estado é vista apenas atra- vés do bindmnio repressio-Ideologia no que diz respelto aos aparelhos de Estado, isso nos leva especialmente: a) A decompor o exercfcio do poder em dois grupos de aparelhos: os aparelhos repressivos e os aparelhos ideolégicos do Estado. O maior inconveniente 6 que isso reduz a especificidade do aparetho econémico de Estado, diluindo-a nos diversos aparelhos repressivos e ideolé- gicos, e torna Lmposs{vel a localizagéo da malha do Es- fado onde por exceléncia se concentra o poder da fracio hegeménica da burguesia, oculta enfim as modalidades necessarias A transformacéo desse aparelho econémico no caso de transi¢ao ao socialismo, em relag&o as mo- dalidades necessdrias & transformagio dos aparelhos re- pressivos e ideol6gicos. b) A distinguir de maneira quase nominalista ¢ cane aihiel conta aparelhos como repressivos (agindo principalmente pela repressio) € como ideolégicos (agin- do principalmente pela ideologia), o que é discutivel. De acordo com as formas de Estado e regime e de acordo com as fases de reproducao do capitalismo, certos apare- thos podem deslocar-se de uma esfera a outra, acumular ‘ou permutar fungdes. Exemplo caracteristico @ 0 exér- cito, que em certas formas de ditadura militar trarisfor- ma-se diretamente em aparelho ideoldgico-organizador, funcionando principalmente como partido politico da burguesia. Desnecessério assinalar 0 constante papel ideolégico de uma série de aparelhos repressivos (justi- ca, prisdo, policia), de tal como que esta classificacao taxionémica derivada do critério, aliés bem vago, de “prineipalmente” (principalmente repressivos ou princl- palmente ideolégicos), tende a desaparecer. Em suma, a formulacao do espaco estatal em termos de aparelhos repressivos e aparelhos ideolégicos s6 pode ser considerada a titulo puramente descritivo e levan- do-se em conta as restricdes ja feitas. Tem o mérito de ampliar a esfera estatal, nela incluindo uma série de aparethos de hegemonia, geralmente “privados”, e de insistir na aco ideolgica do Estado, mas nem por isso deixa de implicar numa concepedo do Estado e de sua acdo que ainda permanece bem restritiva. Il. © Estado, os Poderes e as Lutas © papel decisivo do Estado nas relacées de produgdio ena luta de classes ja esta presente em sua formacio, portanto em sua reproducdo. Enquanto que uma das caracteristicas da histéria teérica do marxismo no seio da III Internacional foi a de ter negligenciado a especificidade do espaco politico proprio ao Estado e seu papel essencial (a superestrutura como simples apéndice da base), as criticas feitas atual- mente ao marxismo referem-se ao seu pretenso “esta- tismo”. Enquanto o marxismo negligenciava o Estado, tratava-se de economicismo; quando fala do Estado, trata-se de estatismo. As criticas nao se restringem & pratica politica stalinista e & realidade sécio-politica dos s do Leste, mas A propria teoria marxista. Ora, se 0 Estado desempenha o papel que aca- bo de indicar, permanece a tese de que, ao contrario do que se 1é atualmente, o poder nio se identifica e nao se reduz, no marxismo, ao Estado. Se considerarmos no ‘proceso de producio a pri- mazia das relagdes de producdo sobre as forcas produ- tivas, somos levados a considerar que as relagdes de 40 Go fundamental da exploragdo: a propriedade econd- mica espelha notoriamente a capacidade (o poder) de Gestinar os meios de producéo a determinadas utiliza- ges e de, assim, dispor dos produtos obtidos, da posse, Ga capacidade de ativar os meios de producio ¢ de co- mandar o processo de trabalho, Estes poderes situam-se na rede de relagdes entre exploradores e explorados, nas oposicdes entre priticas de classes diferentes; em suma, na luta de classes, pois esses poderes inscrevem-se num sistema de relagdes de classes. Porque é precisamente considerando 0 proceso econémico ¢ as relagées de pro- Gugao como rede de poderes, que se pode compreendér que as relagdes de produgio, como poderes, esto ligadas constitutivamente as relagses politicas e ideoldgicas que as consagram ¢ legitimam. ¢ que estdo presentes nas re- lacées econémicas. a Vé-se bem que: I — As relagdes de poder no marxismo no estéo, ‘como sustentam Foucault e Deleuze, “em situagio de exterioridade em vista de outros tipos de relacées: pro- cesso econémico. © processo econdmico é luta de classes e portanto relacdes de poder (e nao somente de poder econémico) : levando-se em conta que esses pode- res so especificos, na medida em que estao ligados & ex- ploragfio (0 que raramente ¢ considerado por Foucault e Deleuze). No caso da luta de classes, o poder liga-se a lugares objetivos, ancorados na divisao de trabalho, e designa a capacidade de cada classe de realizar seus in- teresses, nao podendo portanto ele fugir as relagdes eco- némicas, Essas relagdes de poder, lastreadas na produgéo da mais-valia e na ligacdo aos poderes poli- tico-ideolégicos, materializam-se nas instituigdes-apare- Thos especificos que séo as empresas-fabricas-unidades de produgao, lugares de extragio da mais-valia e de exercicio desses poderes. 41 It — 0 poder nfo é de nenhuma forma redutivel ou identificével a0 Estado, embora Foucault e Deleuze assim o digam do marxismo, porque o “poder seria poder do Estado, estaria ele mesmo localizado num aparelho do Estado. ..”” e “identificar-se-ia ao Estado." As rela- ‘ces de poder, como é 0 caso da divisdo social do traba- Tho e da luta de classes, ultrapassam de muito o Estado. ‘Mesmo que abandonemos uma definicao juridica limitada do Estado que surpreendentemente permanece em Foucault e Deleuze, ainda assim essas relacées ul- trapassam-no. O conjunto de aparelhos de hegemonia, mesmo juridicamente privados, faz parte do Estado (aparelhos ideolégicos, culturais, igreja ete.), enquanto que para Foucault e Deleuze o Estado limita-se sempre ‘ao micleo piiblico (exéreito, policia, prisio, tribunais etc.), 0 que lhes possibilita dizer que o poder existe fora do Estado tal como o concebem, isto é, uma série de Tugares, supostos como fora do Estado (aparelho satide- asilos, hospitais, aparelhos esportivos ete.). Porém esses lugares constituem, apesar de tudo, lugares de poder, tanto mais por se ‘incluirem no campo estratégico do Estado. Digo tanto mais e, nao, embora (inclufdos no Es- tado) porque o poder ultrapassa de muito o Estado, mesmo quando concebido em termos amplos e genéricos. Em primeiro lugar, quando relacionados as classes sociais e as lutas de classes, os poderes nao sao reduti- veis ao Estado. # especialmente o caso dos poderes nas relagdes de produgdo, apesar de suas intersegdes com 0 poder politico e consequiéncia do fato de que sua liga- 40. a0 Estado nao ¢ de exterioridade. Ainda hé mais: © Estado capitalista, particularmente em sua forma atual, além de que deve ser concebido de maneira mais ampla, concentra cada ves mais em si as varias formas de poder, interferindo sempre mais em todas as esferas da realidade social, dissolvendo 0 tecido social tradicio- nalmente “privado”, e infiltrando-se totalmente nas tra- mas e setores do poder, de todo poder de classe. Origi- nando-se na atual forma de separacdo entre trabalho intelectual e trabalho manual a intima relagdo entre 42 Estado e saber — diretamente instaurada pelo discurso do Estado e portanto constituindo técnica politica para cocupago pelo Estado dos campos de consumo coletivo (transportes, habitacao, satide, assisténcia social, lazer), em que os poderes ideolégico-simbélicos materializados nas produgdes (habitagdes, centros culturais etc.) pro- Iongam diretamente as relacdes estatais —, as ligacdes entre os poderes de classe e o Estado tornam-se cada vez mais estreitas. Dito isto, nao é menos verdadeiro que os poderes de classe, e nao apenas os econdmicos, ultrapassam sempre o Estado. O discurso do Estado, mesmo quando estendido a seus aparelhos ideoldgicos, nao esgota todo discurso politico, discurso que inclui, con- tudo, em sua estrutura um poder de classe. Da mesma forma 0 poder ideolégico jamais se esgota pela acio do Estado e de seus aparelhos ideologicos. Estes, assim como néo criam ideologia dominante, também nao so fatores primordiais e exaustivos de reproducdo das relagdes de dominio/subordinacao ideolégica. Os aparelhos ideolé- gicos apenas elaboram e expardem a ideologia dominan- te, pois como j4 dizia Max Weber no é a Igreja que cria e perpetua a religido e, sim, a religiao que cria e perpe- tua a Igreja. Em suma, as relag6es ideologicas apresen- tam sempre um lastreamento que transcende os apare- Thos e que j4 so em si relacdes de poder. Isso nos obriga a recapitular uma proposicéio suple- mentar: se 08 poderes de classe no sao redutiveis ao Estado e sempre transcendem seus aparelhos, é que estes poderes fundamentados na divisio social do trabalho e na exploragao detém a primazia sobre os aparelhos que os encarnam, notadamente o Estado. O que corresponde a exprimis de vanbaira Hota § prOnoaleoe deauntO qual, na complexe relacdo luta de classes/aparelhos, so as lutas que detém o papel primordial ¢ tal, lutas (econémicas, politicas, ideolégicas) cujo campo, j4 visto ao nivel da exploracdo e das relagdes de produ- ‘cdo, no é outro senao o das relacdes de poder. Deve-se por isso dizer que o Estado tem apenas um papel secundario, desprezivel na existéncia material do poder? Para fugir da imagem de um Estado totalitdrio, cair na ilusdo de um Estado como simples apéndice do social? Nada disso. © Estado tem um papel constitutivo na existéncia e reprodugdo dos poderes de classe, e em especial na luta de classes, o que explica sua presenca nas relagées de produgdo. Tem um papel constitutivo, e deve-se compreender a proposi¢ao no sentido proprio, © que implica dizer que se afasta de toda uma corrente atual, que, insistindo na primazia do “social” no sentido mais vago do termo (a “Sociedade” como principio “‘ins- tituinte” do Estado), chega exatamente & imagem do Estado como apéndice do social. Corrente que na forma atual é conhecida na Franca sobretudo pelas andlises e pela evolucdo dos autores da Revista, dos anos 50, So- clalisme et Barbarie (Lefort, Castoriadis etc.). Através das criticas de estatismo que dirigem ao marxismo, inei- dem nos mesmos erros do marxismo instrumentalista”': © Estado como simples apéndice das Iutas e do poder. Essa corrente é importante pelas andlises que faz como também pela maneira com que se prende a tradicao li- bertaria do movimento trabalhista francés, especial- mente de certos setores da C.F.D.T. e a tendéncia “Assis- ses du Socialisme” do Partido Socialista'*, Dependéncia & corrente de autogestao, resultado de um grande qiti- proqué: trata-se de basear uma politica de autogestéo na importaneia que pée na necessidade de formas de democracia direta na base, numa teoria que despreza 0 papel real do Estado. Na melhor das hipéteses, trata-se fai de tomar os desejos por realidades, deduzir uma poli- tica antiestatal de uma visdo segundo a qual o Estado quase desaparece em seu papel proprio, Ora, é 0 papel terrivelmente real do Estado que necessita de uma tran- sigdo ao socialismo amplamente apoiada na democracia direta, e isto implica o conhecimento exato do Estado e de seu papel atual. Tanto isso é verdade que uma certa tradig&o do socialismo estatal jacobino deriva, também, da instrumental de ‘um Estado como simples apéndice do social e das classes. Estado cujo fortaleci- mento ilimitado nao traria conseqiiéncias nefastas, pois se trataria de um Estado operério, simples apéndice da classe operdria. Porém, para circunscrever exatamente 0 papel cons- titutivo do Estado nas relagées de produgao e nas lutas 44 de classes, portanto nas relagdes de poder, é preciso se- parar esta questo em seu conceito histérico, de uma vez para sempre, da questdo da origem cronolégica e da gé- nese (quem nasceu primeiro, 0 ovo ou a galinha, o Es- tado ou a luta de classes/relagdes de producao) ; 6 preciso romper radicalmente com a corrente positivista-empi- rista, visto historicista, até no selo do marxismo. Na ordem de explicaeéo tedrica, falar de um campo social de divisdo de trabalho em classes e de poder de classe anterior & existéncia do Estado, de uma base originaria- mente primeira (no sentido cronolégico e geneal6gico) que em seguida geraria o Estado, e que certamente in- terviria depois — porém somente depois — néo faz sen- tido de forma alguma. Onde existe divisio de classes, hié portanto luta e poder de classe, existe o Estado, o poder politico institucionalizado, Nao ha nessa ordem Tuta e poder de classe anterior ao Estado ou sem o Estado, “estado natural” ou “estado social”, como pretendia toda uma tradigfio que currega os sinais evidentes da fi- losofia politica do Ituminismo (a do contrato social an- terior ao Estado). O Estado baliza desde entao o campo de lutas, af incluidas as relagdes de produgdo; organiza ‘0 mercado e as relagdes de propriedade; institui o domi- nio politico e instaura a classe politicamente dominante; marca e codifica todas as formas de divisdo social do trabalho, todo o real no quadro referencial de uma so- ciedade dividida em classes. Assim, se (uma) histéria é (a) historia da luta de classes, se as sociedades “primitivas” sem Estado sio sociedades sem (esta) historia ¢ que esta hist6ria nao existe sem Estado, Nao ha uma histéria de lutas onde, um dado momento, o Estado seja fruto e resultado, pois esta historia ¢ inimagindvel sem Estado. Nao que a par- tir do momento em que o Estado apareceu tenhamos entrado num tempo irremediavel (a Histéria), ou que enquanto haja homens haverd Estado; porém, como di- zia Marx, fim da divisdo de classes significa fim do Es- tado, e por isso mesmo fim de um certo tempo que ndo 60 final dos tempos, porém o fim de uma certa historia, que ele chamava também de pré-histéria da humanidade. A divisio em classes e a luta de classes nfo podem ser imaginadas como origem do Estado, como um prin- cipio de génese do Estado. Deve-se por isso concluir que isso pée em diivida a proposicao essencial do fundamen- to do Estado nas lutas sociais, o papel determinante das relagdes de produedo e, em geral, a primazia das lutas e ligacdes do poder em relacio ao Estado? Em suma, colocar assim o problema do Estado é fazer estatismo? Proponho o problema de maneira tortuosa para de- senrolar 0 novelo embaralhado das varias tendéncias atuais que, se tém em comum o fato de colocar em dui- vida este fundamento do Estado e do poder nas lutas de classes, diferem em outros pontos. Deixarei para mais tarde a problematica de Foucault, que consiste no essen- cial em unir a ligacio do Estado e das relacées de pro- dug&o, dos poderes econdmicos e dos poderes politicos, um terceiro principio, a um “diagrama” de Poder co- mum aos diversos poderes em um dado momento. Pelo menos esta concepedo nao se aventura numa teoria ge- ral do poder desde a origem dos tempos, nao vé no Estado © fundamento de todo 0 real social. ® exatamente isso que faz a corrente atual chama- da “nova Filosofia”, que, numa pretensiosa e oca meta- fisica do Poder e do Estado, restabelece, desde B. H. Levy a A Glucksmann, uma velha tradicao institucionalista, ‘ou seja, o Estado como fundador e instituinte de toda relagdo’ social, forma aprioristica de todo real social possivel, arquiestado originério no qual as lutas sociais seriam apenas reflexo e so teriam existéncia através dele. Nao 6 0 marxismo e, sim, essa concepedo que reduz todo poder ao Estado e vé no poder a conseqiléncia desta realidade primeira que ¢ 0 poder do Estado. Tudo é sem- pre réplica do Mestre, do Estado, e da Lei( a teoria psi- canalista Lacaniana ‘assim obriga), pols, assim como as lutas, s6 haveria um real social, poder, lingua, saber, discurso, escrita ou desejo através dele.’ Mal radical ¢ incontornével por qualquer tipo de luta, toda luta sendo © substituto e a imagem do Principe, formada nas ar- madilhas oriundas de um Poder Estado eterno cuja pe- renidade decorre de uma universalidade e necessidade de cardter metafisico. & entao fundamento-origem de 46 tudo, fundamento porque origem e vice-versa, O totall- tarismo estatal 6 ao mesmo tempo original e eterno, pois o tema de toda Histéria possivel é o Estado: na rea- lidade, em Kant ¢ Hegel que se encontra. Vé-se que 0 Estado é tudo; o que 6 respondido de maneira simetricamente inversa pela outra corrente que mencionei, que considera a mesma problematica, porém diz que 0 social é tudo, sendo o Estado apenas o apén- dice institufdo, Mudou'o peso dos termos Estado e so- ciedade, a problemética continua a mesma, a de uma causalidade mecanica e linear baseada em um princf monista simples e calcada em uma metafisica das origens. % preciso entdo relembrar certas andlises feitas hé muito tempo por intimeras pessoas: o papel determi- nante das relagdes de producdo, a primazia das lutas de classe sobre o Estado e seus aparelhos néo podem ser considerados segundo uma causalidade mecanica, transposta além disso em causalidade cronologica linear, 0 que tinhamos chamado de historicismo, Esta determi: nag&o e esta primazia nem por isso significam, obriga- toriamente, uma existéncia histérica anterior ao Estado; se 6 ou nAo 0 caso, ouso dizer, é outro problema. Isso é vélido de infcio para as ligacdes entre o Estado e as relagdes de producio, de tal ou tal modo de producao e para a transicéo de um modo de produgéo a outro. Marx 0 estabeleceu perfeitamente quando diferenciou tais ou quais relacées de producdo como “pressupostos” ou prius logique de tal ou qual Estado, de uma_prece- dénca histérico-cronolégica daqueles sobre estes. A de- terminagao do Estado pelas relacées de producao, a pri- mazia das lutas sobre 0 Estado inscrevem-se-em tempo- ralidades diferenciais para cada um, em historicidades proprias a desenvolvimento desigual uma forma de Es- tado pode preceder, na ordem da génese histérica, as relagdes de producao As quais corresponde. Séo intime- ros os exemplos na obra de Marx, e eu mesmo j& mos- trei que tal 6 0 caso do Estado absolutista na Europa, Estado de dominante capitalista, enquanto as relacGes de produc&o ainda”apresentam dominante feudal. at Exemplos indicativos no que se refere as relagdes de tal ou tal forma de Estado e de tais ou tais relagdes de produco e luta de classes que tém, porém, maior am- plitude, pois atingem a origem do Estado. Vé-se que a questo da origem histérica do Estado, a da ordem de Sucessio entre, de um lado o Estado e de outro as rela- de produg&o e os poderes de classe, na historiogra- da génese, nfo ¢ teoricamente idéntica ao funda- mento do Estado nas relagdes de producdo, nas lutas de classes e nas relagdes de poder. ‘esse aspecto, uma série de mal-entendidos devem- se a Engels. Diria’ esquematicamente que Engels, tribu- tario da problematica historicista da causalidade linear, tentou fundamentar o primado da diviséo em classes e suas lutas no Estado, calcando o problema justamente na génese do Estado, cedendo desse modo ao mito das origens, Um dos objetivos de A Origem da familia, da propriedade privuda ¢ do Estado é demonstrar a apari cdo historicamente primeira, nas socledades chamadas primitivas, da divisdo em classes nas relagdes de produ- Go; divisio que teria como conseqiiéncia o nascimento do Estado; supostamente uma “prova” da determinacio e fundamento do Estado nas relagées de producao, 8 evidente que isto nfo pode ser prova, mesmo supondo que a investigagao historica de Engels seja correta, pois 86 0 seria se 0 marxismo fosse um historicismo integral. Também ¢ evidente que uma ordem inversa de emergéncia histérica na série das origens nao poderia fornecer prova do contrario, a ndo ser que compartilhe- mos dessa problematica historicista. Refiro-me especial- mente aos trabalhos de Pierre Clastres, que, defendendo que a passagem das sociedades sem Estado as socieda- des de Estado se faria por meio de uma emergéncia pri- meira do poder politico, emergéncia que precederia a divisdo em classes nas relacées de produgfo, cria 0 ar- gumento de um papel fundamental e determinante do Estado em relacdo A divisio em classes. Argumento si postamente definitivo da critica contra o marxismo: “f portanto o extrato polities que ¢ decisivo, e nio a mu- 48 danca econémica... E se se deseja conservar os con- ceitos marxistas de infra-estrutura e superestrutura, é necessério, entdo, reconhecer que a infra-estrutura é 0 politico, que a superestrutura é 0 econémico. ..” E ain- da; “A relago politica do poder precede e fundamenta a relagao econdmica de exploracio, Antes de ser econd- mica, a alienagao 6 politica, o poder esté antes do traba- tho, 0 econémico é derivado do politico, a emergéncia do Estado determina o aparecimento das classes.”"* Trata- se de exemplo brilhante de raciocinio historicista de cau- salidade linear, empregando neste caso a mesma pro- blematica de Engels. Supondo que as andlises de Clastres sejam historicamente pertinentes, assunto em que nao vou tomar partido, naé existe contradicéo com o mar- xismo, pois que ‘“fundamento” do Estado nas relagdes de producdo-divisdo de classes no significa necessaria- mente prévia “origem” destas relacoes em relacéo a0 Estado. Essas andlises néo questionam o papel determi- nante das relagdes de producdo e a primazia das lutas sobre o Estado; so apenas prova nesse sentido para uma problemética positivista-empirista, e mesmo histo- ricista, que confunde origem e fundamento. #, entre outros, 0 caso de B. H. Levy'* quando evoca as andllises de Clastres em apoio da tese de eternidade do Estado, fundamento, pois origem de tudo. Nao somente as lutas de classes detém a primazia sobre o Estado e 0 ultrapassam, como as relagdes de poder também ultrapassam 0 Estado em outro sentido: as relagées de poder néo englobam completamente as relagoes de classe e podem ultrapassar as proprias rela~ Ges de classes. Isso evidentemente nao quer dizér que ndo tenham nesse caso pertinéncia de classe, que néo se situem no terreno do dominio politico ou que nao sejam um inicio, mas que nao provém do mesmo funda- mento da divisio social do trabalho em classes, que néo sdo nem homélogas nem isomorfas. Esse é especialmen- te 0 caso das relacdes homem-mulher. Sabe‘se agora que a divisfio em classes nao 6 0 terreno exclusivo de consti- tuigao de todo poder, mesmo sabendo-se que nas socie- dades de classe todo poder encobre uma. significacdo de classe. A conseqiiéncia, jé se sabe; transformar os aparelhos de Estado numa transi¢&o ao socialismo nao bastaria para abolir ou transformar o conjunto das re- lagGes de poder. Ora, embora as relagdes de poder ultrapassem as relagées de classe, tanto como no podem dispensar os aparelhos e instituicdes especificas que as materializam reproduzem (0 casal, a familia), os aparelhos de Estado delas nao se afastam. O Estado interfere com sua acio e conseqiiéncias em todas as relagdes de poder a fim de thes consignar uma pertinéncia de classe e inseri-las na trama dos poderes de classe, Dessa forma o Estado en- carrega-se de poderes heterogéneos que se transformam em retransmissores e recenseadores do poder (econémi- co, politico, ideolégico) da classe dominante. O poder nas relacdes sexuais homens-mulheres, sem duvida he- terdgenas As relacdes de classe, nem por isso deixa de ser inserido, desviado e reproduzido pelo Estado (e tam- bém pela empresa-fabrica), como relacao de classe. O poder de classe 0 atravessa, o utiliza, o reduz, em suma, dé-Ihe significacdo politica. O Estado nao é um Estado no sentido nico de concentrar o poder fundamentado nas relagdes de classe, mas também no sentido em que se propaga tendenciaimente em todo poder, apoderan- do-se dos dispositivos do poder, que entretanto 0 su- planta constantemente. Feitas estas observagées, resta que o marxismo apre- senta as seguintes proposicdes: @) 0 poder de classe é a base fundamental do poder em uma formaco social dividida em classes cujo motor 6 a luta de classes; b) 0 poder politico, embora fundamentado no po- der econbmiieo e nas relacdes de exploracdo, 6 primor dial na medida em que sua transformacdo condiciona toda modificacdo essencial dos outros campos do poder, embora essa modificacéo no baste; ©) 0 poder politico no modo de produgdo capitalis- ta ocupa campo e lugar especificos em relagdo a outros campos do poder, apesar de intersegdes; 4) este poder concentra-se e materializa-se por exceléncia no Estado, lugar central do exercicio do po- der politico, Esse conjunto de proposicées é refutado notada- mente por Foucault e Deleuze, que privilegiam uma visio que dilui e dispersa o poder em incontaveis micro- situagdes, subestima consideravelmente a importancia das classes e da luta de classes e ignora o papel central do Estado, Nao pretendo, estender-me nesses pontos, porém eles refazem uma yelha tradicao da sociologia e da ciéncia, politica anglo-saxénica, a do deslocamento do centro de anélise do Estado para o pluralismo dos “micropoderes”, do funcionalismo ao. institucionalismo, de Parsons a Merton, Dhal, Lasswell e Etzioni, que de- senvolveram explicitamente esses t6picos. Tradigao re- lativamente desconhecida na Franga, onde o pensa- mento politico, contrariamente, sempre se concentrou no Estado (juridico). Unicamente esse desconhecido, li- gado ao bem conhecido provincialismo do meio intelec- tual francés, permite que essas andlises sejam apresen- tadas como novidades, quando séo velharias das mais tradicionais que existem. ® digno de nota que esse dis- curso — que torna o poder invisivel, pulverizando-o na capilaridade de microcadeias moleculares — tenha o sucesso que se sabe, num momento em que a expansio € 0 peso do Estado alcancam um nivel inigualado até hoje. Resumindo: todo poder (e ndo somente um. poder de classe). s6 existe materializado nos aparelhos (e nao somente nos thos de Estado). Esses aparelhos nio sao simples apéndices do poder, porém detém um papel constitutivo, pois o proprio Estado esta presente camente na geracao dos poderes de classe, Eni , na relagéio poder/aparelhos, e mais particularmente lu- ta de classes/aparelhos, a luta (das classes) que detém. © papel fundamental, uta cujo campo ¢ o-das relagées de poder, de exploracéio econémica e de dominio/subor- dinagdo politico-ideoldgica.-As lutas sempre detém pri- mazia sobre os aparelhos-instituigdes, e constantemente os ultrapassam. 51 Assim, contrariamente a toda concepcéo de apa- réncia libertéria que se alimenta de ilusoes, o Estado tem um papel constitutivo nas relagdes de producdo e nos poderes que elas exercem, e no conjunto das liga- Ges de poder em todos os niveis, Em contrapartida, contrariamente a toda concepcao estatal, desde Max Weber, que j4 via nos aparelhos/instituigdes 0 lugar original e o campo primeiro de constituigdo das relacoes de poder, até o caloroso momento atual, sio as lutas, ons primeiro das relagoes de poder, que sempre detém imazia sobre o Estado. Isso se refere nfo somente av lutas econtmicas como tacibsia wo coujunte dag utes e inclusive as lutas politicas e ideolégicas. @ claro que nessas lutas as relagoes de producao tém o papel deter- minante, Porém a primazia das lutas sobre o Estado vaza as relacdes de producao porque nao se trata ai de uma estrutura econémica, que por sua vez criaria lutas, essas relagdes de produgéo jé séo relagées de luta e poder. Além do mais, esse papel preponderante faz com que, no essencial e geralmente, existam lutas e que o conjunto das lutas detenha a primazia sobre o Estado. Rejeitando-se esse fundamento das lutas, rejeita-se ndo somente o papel preponderante do econémico, como também a primazia das lutas, nao importa quais, so- bre o Estado, Quando se pensa rejeitar a tirania do econémico, é forcosamente na onipoténcia devoradora do Estado-poder que a encontramos. Vé-se portanto que, entre as contestacdes intteis (existem titeis) feltas ao pensamento de Marx, nfo ha sem divida alguma mais cega e ignorante que a do estatismo, mesmo quando provém de intencdes politicas perfeitamente legitimas (politica antiestatal) ¢ funda- mentadas nos aspectos totalitdrios do Estado nos paises ditos do socialismo real. Em nenhum outro lugar, a eriti- ca apresentou-se de tanta ma f¢ como nos “novos fil6- sofos”, especialmente Glucksmann. A esse propésito, ce- do a palavra a J. Ranciére, que alias é bem severo quanto a0 pensamento de Marx: “Glucksman, apesar de toda evidéncia em contrério, ¢ mais radical quando demonstrar que Marx valoriza 0 Estado como oposto & sociedade privada. % a impossibilidade de fornecer a menor prova que Ihe dé a prova suprema: O capitulo do Estado, escreve Glucksmann, embora previsto, como se por acaso, falta em O Capital. Légica stalinista bem conhecida — “a melhor prova de que as pessoas sio culpadas é que nao hé provas. Pois se nao ha provas, 6 que as esconderam, e se as esconderam é porque sao culpadas. NOTAS 1. © conjunto desta controvérsia foi publicado sob o titulo It marzismo e lo stato, 1976. Em portugues, O marxismo ¢ 0 estado, EDICOES GRAAL, Rio, 1979. 2. G. Deleuze e F. Guattari, © antiBdipo. No que dis res- eito aos “novos fildsofos”, me reportarei doravante a duas obras: B. H. Lévy, La barbarie 4 visage humain, 1977, e A. Glu cksmann Les maitres penseurs, 1977. 3. Maspero, 1968. 4. K. Popper, The Open Society and its Ennemies, 1946. 5. Expresso que tomei de empréstimo a Jean Daniel. 6. © que bem fez observar Perry Anderson, The Antinomies of Antonio Gramsci, in New Left Review, novembro 1976, jw 7. L, Althusser, Ideologia e aparelhos ideoldgicos de Estado, in Edig6es Graal, 1980 (La Pensée, junho 1970). 8, Encontram-se essas concepgdes em alguns artigos da opra coletiva, Eléments pour une analyse du facisme, sob a diregho de M. Antonieta Macciochi, 1976. 9. G, Deleuze, em seu artigo sobre Foucault: Ecrivain non: un nouveau cartographe, in Critique, dexembro 1975 ¢ M. Fou- cault agora em A vontade de saber, Edicdes Graal, 1978 (La vo- lonté de savoir, ed. 10. bid, 1977, p. 123. 11. Cl. Lefort, em seu artigo “Maintenant”, no primeiro mi- mero da revista Libre, 1977; C. Castoriades, Liinstitution imagi- naire de Ia societé, 1975. Corrente que retoma alids a de G. La. passade e R. Loureau, dita “antiinstitucional” 12, Refirome mais especificamente & revista Faire. 13, P. Clastres, La societé contre I'Btat, 1974, pp. 169, 172, ete. i 14, Op. cit, pp. 74 etc. 15. © artigo de J, Ranci’re em Le nouvel Observateur, 25:31 julho 197. PRIMEIRA PARTE A MATERIALIDADE INSTITUCIONAL DO ESTADO : Podemos agora voltar ao nosso problema inicial: a materialidade institucional do Estado como aparelho “especial” nfo pode ser reduzida a. sou papel na doml- nacdo politica. Deve ser, antes de mais nada, procura- da'na Telagio do Estado com as relagées de’ producdo ea divisdo social do trabalho que elas implicam. Mas esta relacao nao é de ordem epistemoldgica diferente da relagéo do Estado com as classes sociais e a luta de classes. Colocar 0 Estado em relagéo com as relagdes de producao e a diviso social do trabalho nada. mais € que o primeiro momento, certamente diferenciado, de um tinico e mesmo processo: 0 de relacionar o\Bstado com 0 conjunto do campo das lutas. E isso que tentarei mostrar aqui com referéncia, mais partic te, 20 Estado capitalista, sem reportar-me, de maneira exaus- tiva, a andlises feitas em meus textos lentes. Con- tentar-me-ei em aprofundar e com} Pontos, retificar outros, 4 luz de andlises que somos, agora, capazes de fazer. A questo que tentei responder j4 em Poder politico ¢ classes sociais era a seguinte: Por que a burguesia dispée, para sua dominacio politica, deste aparelho de Estado absolutamente especifico que 6 0 Estado capita- lista, este Estado representativo moderno, este Estado nacional-popular de classe? De onde provém a ossatura. material primeira deste Estado? Minhas andlises j4 se situavam na seguinte direcao: Esta materialidade ba- sela-se na separacéo relativa do Estado e das relacées de producao sob 0 capitalismo. O fundamento desta se- paracao, principio organizador das instituigdes proprias do Estado capitalista e de seus aparelhos (justica, exér- cito, administracéo, policia, etc.), de seu centralismo, de sua burocracia, de suas instituigdes representativas (sufragio universal, parlamento, etc.), de seu sistema Juridico, consiste na especificidade das relagdes de pro- ‘dugéo capitalistas e na divisdo social do trabalho a que induzem: separacio radical do trabalhador direto de seus meios e objeto do trabalho, na relacio de posse no proprio processo de trabalho. ‘© que me parecera caracteristico entéo, é um trago permanente da teoria marxista do Estado que persiste ainda hoje'e que esta relacionado, alids, as profundas ambigiiidades do pensamento do proprio Marx a esse respeito, A esmagadora maioria dos autores marxistas que nao reduziam o Estado capitalista a dominacéo politica (& “ditadura” de uma burguesia-sujeito), e colocavam ent a pertinente questéo: “Por que este Estado precisamente e néo um outro que corresponda & dominacao politica burguesa?”, tentou encontrar o fundamento deste Estado no domtnio da circulagdo do capital e nas irocas mercantis “generalicadas”. A linha geral dessas andlises 6 suficientemente conhecida: tro- cas de mercadorias entre proprietarios “privados” — esta propriedade privada considerada apenas a nivel juridieo —, contrato de compra e venda da forca-tra- batho, troca equivalente e, valor de troca abstrato, etc. Este seria o terreno de emergéncia da igualdade ¢ da Uberdade “formais” e “abstratas”, particulas isoladas da sociedade de troca — 0 individuo genérico instau- radas como “individuos-pessoas” juridico-politicos, da lei e da regra juridica formal e abstrata como sistema de coestio dos comerciantes que trocam. A separacio rela- tiva do Estado e da economia 6 tomada como separacéo do Estado e da famosa “sociedade civil”. Esta sociedade civil, palco de necessidades e trocas entre individuos isolados seria representada em si como uma associacéo contratual de sujeitos juridicos individualizados, sendo a separagio da sociedade civil e do Estado reduzida a um mecanismo ideolégico localizado no Amago das re- lagées mercantis, & fetichizacdo-reificacio do Estado a partir do famoso fetichismo da mercadoria. As varian- tes desta concepeao sio numerosas, porém a trama con- tinua sempre a mesma, Esta concepedo foi tematizada principalmente pela escola marxista italiana (Galvanno della Volpe, U. Cerroni, ete.). Ela permanece extraordi- nariamente viva: basta mencionar os recentes trabalhos, a nés mais proximos, de Henri Lefebvre sobre o Estado.’ Procurei demonstrar que esta concepedo é insuti- ciente e parcialmente falsa, porque ela procura o fun- damento do Estado nas relagdes de circulagio e nas tro- cas mercantis (o que é de qualquer forma uma posicao pré-marxista) e nao nas relagdes de producao, que tém um lugar determinante no conjunto do ciclo de repro- duc&o ampliada do capital. Esta concepeao empobrece consideravelmente as pesquisas sobre o Estado. E o que é mais, ao levantar a questo da especificidade ins- titucional do Estado capitalista, torna impossivel a arti- culag&o entre esse Estado-sociedade civil e 0 Estado- Tuta de classes: as classes sociais tém elas mesmas seu fundamento nas relacdes de producio. Néo que esta concepeao. nfo encerre certos mecanismos. institucio- nais importantes do Estado, pois o espaco de circulacio do capital tem ele proprio efeitos sobre o Estado: mas ela omite o essencial. Ela tem assim uma conseqiiéncia suplementar: nao deixa perceber certas caracteristicas do Estado nos paises do Leste que se assemelham as do Estado capitalista, ainda que as relagdes mercantis af tenham sofrido conslderdvels transformagées, Ora, esta semi a, entre out 3, BOS “as] sneaker ence ogeemeenianres marcam igualmente suas relagées de producio ¢ sua divisdo social do trabalho. Os trabalhadores nao detém nem 0 controle nem 0 dominio dos processos de trabalho (relago de posse), nem o poder econdmico real. sobre ‘os meios de trabalho (relacdo de propriedade econémica, diferente da propriedade juridica): trata-se de uma esta tizagio e nao de uma verdadeira socializacdo da pro- dugao. No plano politico, trata-se de uma ditadura sobre © proletariado. Seja como for, a discussio e pesquisa sobre o Estado 0 poder, na Franca e no estrangeiro tém, desde entao, avancado consideravelmente, de maneira tal que a con- juntura ideolégico-tedrica mudou parcialmente. Porém certas andlises recentes, me parece, reproduzem os incon- venientes e as deficiéncias daquelas que ataquei A época. Criticou-se muitas vezes minhas anélises sob a pecha de politicismo: tentando estabelecer 0 espago politico pré- prio do Estado e do poder capitalistas a partir “exclu- sivamente” das relacdes de producao, eu nao teria dado suficiente atencdo as relagdes do Estado e da economia. ‘A questao seria entao relacionar 0 Estado com o que alguns designam como a légica do capital, ou seja, sua acumulacao e reproducio ampliada, Problematica que desenvolveu-se particularmente na Alemania Fe- ieral sob a denominacdo de Ableitung, na Gra-Bretanha e nos Estados Unidos sob a denominacao de Derivation, e sobre a qual atualmente se dispde de determinados textos em trancts, Trata‘se af de fazer “derivat”, diga- mos deduzir, as instituicdes proprias do Estado capita- lista das “‘categorias econémicas” da acumulagio do capital. Ora, essa problemtica recai numa concep¢io assaz tradicional do capital como entidade abstrata com ‘logica intrinseca — as categorias econémicas —, e cul- ina em duas linhas de pesquisa, insuficientes tanto uma como outra, para explicar a especificidade material desse Estado. Ora recai, como J. Hisrch demonstrou, precisamente no espaco das trocas e da circulacio do capital (troca equivalente, moeda, valor abstrato etc.), e deduz essa especificidade dessas “categorias”* 01 ainda tenta deduzir esta especificidade e as transforma- des histéricas desse Estado, de suas fungdes econdmicas em bdeneficio da acumulagéo ampliada do capital. 'Ten- déncia retomada te na Franga e que se traduz, particularmente para o atual Estado, em deduzir 0 con- 58 junto de suas transformacées institucionais de seu novo Papel na superacumulacdo-desvalorizacio do capital. Aqui também, esta linha de pesquisa omite o essencial: certamente, ao me posicionar essencialmente contra o economicismo, na época, eu desviara o bastdo noutro sentido. As funcdes econdmicas (é preciso que se expli- que ainda o sentido exato desse termo) tém importantes efeitos em favor da acumulaeao do capital, da acumu- lacdo primitiva ao capitalismo concorrencial e 0 capita- lismo monopolista atual, sobre a estruturacdo do Esta- do. Isso seré amplamente retomado na terceira parte deste texto, onde mostrarei que elas so essenciais para explicar a forma atual do Estado, o estatismo autori- tario, Por ora, contudo, digo simplesmente que essas fungées nao sao prineipais e ndo permitem explicar, de maneira exaustiva, as instituicdes politicas. Nao res- pondem A questdo fundamental: por que sio elas pre- enchidas precisamente por esse Estado muito particular que é 0 Bstado representativo nacional-popular, moder- no e nao por um outro? Para colocar uma questéo aparentemente paradoxal: por que esse Estado nao se reproduz sob sua forma de monarquia absolutista? Da mesma maneira que nao se pode responder a esta questo pela referéncia exclusiva A dominacao po- iitica (@ natureza da burguesia ou & luta apenas politica burguesia/classe operdria), nfo se pode responder pela referencia as fungdes econémicas do Estado ou a uma conjungao das duas (funcdes econdmicas + luta poli- tica). Mais exatamente, essas funcdes econdmicas s&o articuladas e baseadas nas relaces de produco e em sua especificidade capitalista, Estas constituem.a base primeira da materialidade institucional do Estado e de sua separacdo relativa da economia, que marca sua ossatura como aparelho: sao a tinica base de partida possfvel de uma anillise das relagdes do Estado com as classes e a luta de classes. As transformacées do Estado estdo ligadas, principalmente, as transformacdes das re- lagGes de producdo capitalistas que induzem transfor mag6es desta separacdo e, dai, as lutas de classes. 1 af que se inscrevem as modificagdes do papel e-das ativie dades econdmicas do Estado que tém, certamente, seus efeitos préprios sobre ele. “Linha de pesquisa que me orientara em Poder politico e classes sociais porém que eu apontava os limi- ‘tes: esse texto, escrito antes de maio de 1968 (publicado em maio de 68), enfatizando o papel da. divisio social — capitalista — do trabalho na medida precisamente em que tomava como base de partida as relagdes de produgéo, ndo traduzia ainda o alcance consideravel desta divisdo. # o maio de 68 e as particularidades do movimento operdrio que se seguiu que fardo saltar toda uma série de bloqueios. Expus minhas dedugées em As classes sociais no capitalismo hoje quanto & importancia da divisdo social do trabalho na constituicao das classes. ‘Tentarei fazer aqui o mesmo em relacao ao Estado, to- mando certos casos tipicos a titulo de exemplo. Feito isso, cuidarei de tratar de questées tedricas {undamen- tals: centrar « perspectiva ¢ 0 eixo da pesquisa. para esta divisdo coloca novos problemas, porque considerar 0 Estado com esta diviséo nao é uma coisa simples, como sempre se vem acreditando. I. 0 Trabalho intelectual e 0 Trabalho Manual: o Saber e o Poder Comecemos pela criagéo e 0 funcionamento do Es- tado burgués na sua materialidade de aparelho. Apa- relho especializado, centralizado, de natureza especifi- camente politica, consistindo num agrupamento de fun- ‘ces andnimas, impessoais e formalmente distintas do poder econémico, cujo agenciamento apoia-se numa axiomatizacdo de leis-regras que distribuem os dominios da atividade, de competéncia, e numa legitimidade ba- ‘seada nesse corpo que é esse povo-nacdo. Elementos que, todos eles, estao incorporados na organlzacau dos apa- relhos do Estado moderno. Estes se distinguem dos apa- relhos de Estado feudais, baseados em elos pessoais, na projecao de todo poder sobre o poder econémico (0 se- nhor desempenhando ele mesmo o papel de juiz, de administrador, de chefe militar ao mesmo tempo que proprietério fundiério), numa hierarquia composta de poderes estanques (a pit senhorial), cuja legiti- midade decorre da soberania do corpo do chefe (rei- senhor) tragada no corpo social. Especificidade portanto do Estado moderno que esté ligado precisamente a esta separago relativa do politico e do econémico, e a toda uma, reorganizagao de seus espacos e respectivos cam- pos, implicada na total espoliacdo do trabalhador direto nas relagdes \de producao capitalistas. Essas relag6es sio 0 solo de uma reorganizacdo pro- digiosa da divisdo social do trabalho da qual elas sio consubstanciais, reorganizacao que distingue a mais-va- lia relativa e a reproducao ampliada do capital no esté- gio do “‘maquinismo” e da “grande industria”. .Esta divisio propriamente capitalista, sob todas as formas, representa a condicéo de possibilidade do Estado mo- derno. Estado que surge assim em toda sua originali- dade histérica: esse Estado constitui uma efetiva rup- tura em relagéo aos tipos de Estado pré-capitalistas (asidtico, escravista, feudal), que néo basta para com- preender exatamente as concepedes que fundamentam as relagGes mercantis (concepees estas que sempre existiram). Nao tomo aqui nfo mais que um caso dessa diviséo, qual seja o da divisio entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esta diviséo nao pode ser concebida de ma- neira empfrico-naturalista, como uma cisao entre os que trabalham com suas mios e os que trabalham com sua cabeca: ela remete diretamente as relacdes politico-ideo- légicas tais como ocorrem em determinadas relacoes de produc&o. Ora, como Marx muito bem mostrou, hé uma especificidade desta divisio no capitalismo, ligada 4 es- poliagdo completa do trabalhador direto de seus meios de trabalho, O que tem como efeito:* a) a separ: caracteristica dos elementos intelectuais e do trabi realizado pelo trabalhador direto, trabalho que, nesta distingdo do trabalho intelectual (0 saber) recobre assim a forma capitalista de trabalho manual; b) a separagao da ciéncia do trabalho manual enquanto que, a “servico 61 do capital”, tende a tornar-se forca produtiva direta; c). as relagdes particulares entre a ciéncia-saber e as relagées ideolégicas, ou seja a ideologia dominante, nao apenas no sentido de um saber mais “ideologizado” que antes, nem simplesmente no sentido de uma utilizagdo politico-ideolégica do saber pelo poder (isso sempre Aeonteceu), mas no sentido de uma legitimag&o ideol6- gica do poder instituido na modalidade da técnica cien- fifica, ou seja, a legitimacao de um poder como decor rente de uma pratica cientifica racional; d) as relagdes organicas estabelecidas doravante entre o trabalho inte- Jectual assim separado do trabalho manual e as relagdes de dominacdo politicas, em suma entre o saber eo poder capitalistas. O que Marx demonstrara a respeito do des- 10 da fabrica e do papel da ciéncia no processo de Producdo capitalista, ao analisar as relacdes dai em Giante orgénicas entre saber e poder, entre trabalho intelectual (saber-ciéncia investido na ideologia) € as Telagdes polfticas de dominacdo, tals como existem € se reproduzem no processo de extorsao da mais-valia. Se esta separacéo capitalista, totalmente caracte- ristica, entre trabalho manual e trabalho intelectual @ apenas um aspecto de uma diviséo social do trabalho mais geral, ela € decisiva no caso do Estado. Uma das intuig6es fundamentais dos clissicos do marxismo, ¢ que 0 aspecto mais interessante, sem diivida, da divisdo Social do trabalho em relacdo.& emergéncia do, Estado ‘como aparelho “especial”, consiste na divisdo entre tra- balho manual e trabalho intelectual. O Estado encarna no conjunto de seus aparelhos, isto 6, nfo apenas em seus aparelhos ideolégicos mas igualmente em seus apa- relhos repressivos ou econdmicos, o trabalho intelectual enquanto afastado do trabalho manual: 0 que se torna evidente quando se sai da distingdo naturalista-positi- vista trabalho manual/trabaiho intelectual. E"é no Es- tado capitalista que a relacdo organica entre trabalho intelectiial e dominacdo politica, entre saber e poder, se efetua de maneira mais acabada. Esse Estado, afastado das relagoes de producdo, situa-se precisamente ao lado do trabalho intelectual ele mesmo separado do. traba- Tho manual: ele é 0 corolario e 0 produto desta diviséo, ts vanes um Papel proprio em sua constituigéo e sua re- Isso se traduz na propria materialidade do Estado. Iniclalmente em sua especializacdo-separacdo relhos de Estado em relagdo aos processos de ante ¢ principalmente por uma cristalizagao do trabalho inte- lectual que esses aparelhos se afastam desse proceso Esses aparelhos, em sua forma capitalista (exéreito, justia, administracio, policia, etc.), para no citar os aparelhos ideol6gicos, ‘implicam exatamente a efetiva- giio e o dominio de um saber e de um discurso (direta- mente investidos na ideologia dominante ou constituidos a partir de formacdes ideologicas dominantes) em que as massas populares esto excluidas. Aparelhos baseados em sua ossatura numa exclusdo especifiea e permanente das massas populares situadas ao lado do trabalho ma- nual, que ai sdo subjugadas indiretamente pelo Estado. # a monopolizacdo permanente do saber por do Estado-sébio-loctitor, por parte de seus ay e de seus agentes, que determina igualmente as funcdes de organizacéo e de direcéo do Estado, fungées centrali- zadas em sua separacdo especifica das massas: imagem do trabalho intelectual (saber-poder) materializada em aparelhos, face ao trabalho manual tendencialmente po- larizado em massas populares separadas e excluidas des- sas fungGes organizacionais. # igualmente evidente que uma série de instituicdes da democracia representativa, dita indireta (partidos politicos, parlamento, etc.); em suma da relagéo Estado-massas, dependem do mesmo mecanismo. Isto Gramsci pressentira, quando via no papel geral de organizacéo do Estado capitalista a rea- lizagdo por exceléncia de um trabalho intelectual..sepa- rado de maneira caracteristica do trabalho manual. # assim que Gramsci inclufa os agentes dos aparelhos de Estado, af inclufdos os aparelhos repressivos (policiais, guardas, militares), entre os intelectuais (organicos ¢ tradicionais) em amplo sentido. ‘ _Esta relacdo saber-poder indo é mais ¢ nao representa apenas a simples funcio iategttinatty do Estado se bem que a assegure, notadamente no terre- no do pensamento “politico oficial, Mesmo durante a 63 transiggo do feudalismo para o capitalismo, depois 80 estégio do capitalismo concorrencial, ambos marcados pela constituicéo do Estado burgués e pela dominan- fia, no seio da ideologia burguesa, da Grea juridico- politica, esta (a politica, o direito), de Machiavel a Th. ‘Morus até em suas conceitualizagées ulteriotes, é explici- tamente legitimada, na forma da técnica clentffica sobre o modelo das epistemes apodidicas, como detentora de um saber que ela opde aquilo que designa como uto- pia. Isto ultrapassa, alls, 0 simples discurso oficial ¢ estende-se a essas formas primeiras de ideologia produ- zidas pelo Estado, que garantem as relacdes internas ao aparelho (autolegitimagéo interna) e a legitimacao de suas praticas para o exterior: legitimagao das praticas do Estado e de seus agentes como portadores de um saber vular, de uma racionalidade intrinseca. Tudo isto, aliés, nfo faz mais que reforcar-se atualmente, sob as formas particulares da relacdo ideologia-saber-cléncia que implica a transformagao du ideologia juridico-polf tica em ideologia tecnocrética. Mas reafirmo exatamente que essa relaco saber- poder ndo é apenas de ordem da legitimacao ideolégica 2 separacao capitalista do trabalho intelectual e do tra- balho manual concerne também a ciéncia em si, ea en globa. A apropriacdo da ciéncia pelo capital se faz certa- Inente na fAbrica, mas igualmente pelo Estado. Esse Estado apresenta isso de particular quando tende a in- corporar a propria ciéncia organizando seu discurso, 0 que atualmente é nitido, Néo se trata de uma simples {nstrumentalizacéo da ciéncia e de sua manipulacéo ao servigo do capital, © Estado capitalista arregimenta @ produgao da ciéncia que se torna assim uma ciéncia de Estado imbricada, em sua textura intrinseca, nos mecanimos de poder; o que, é sabido, nao vale tao so- mente para as chamadas “ciéncias humanas”. Mais genericamente, esse Estado © trabalho intelec- tual por toda uma série de circuitos e redes gragas aos quais cle se substitui A Tgreja, submete-se e confirma 0 corpo de intelectuais-savants, enquanto, na idade mé- dia, isso s6 existia de maneira proteiforme. Os intelec- tuais como corpo especializado e profissionalizado sdo 64 constituidos em sua _funcionalizagio-mercenarizacéo pelo Estado moderno. Esses intelectuais portadores de saber-ciéncia tornam-se funciondrios _(universidades, institutos, academias, diversas sociedades de estudo) do Estado pelo proprio mecanismo que fez dos funcionarios deste Estado intelectuais. Se a relagdo saber-poder nao ¢ de ordem apenas da legitimagao, € igualmente, lembro, porque o discurso do Estado cristaliza em si essa relacao; discurso que ¢, aqui, inteiramente especifico. Nao se trata como para os Esta- dos pré-capitalistas, de um discurso de revelacao, basea- do na palavra (efetiva ou suposta) do Principe, repe- tindo a inscrigéo do corpo soberano no corpo social. Discurso mitico de sentido préprio, e que tende indevi- damente a suprimir pela narrativa a distancia entre os comecos do poder soberano e as origens do mundo, O Estado capitalista nfo funda sua legitimidade em sua origem: ele comporta uma série de fundacdes sucessi- vas na soberanta, constantemente renovada, do puvo- nacéo. Esse Estado afirma assim um papel organiza- cional particular em relac&o As classes dominantes e um papel de regulacio face ao conjunto da formacio social: seu discurso é um discurso da acéo. Um discurso da estratégia e da tatica, imbricadas certamente A ideolo- gia dominante, mas ‘alimentada igualmente de uma ciéncia-saber agambarcada pelo Estado (0s conheci- mentos econémicos, politicos, histéricos). Esse discurso, se efetua por exceléncia a juncéo saber-poder, ndo tem unidade propria e intrinseca. Tra- ta-se de um discurso segmentério e fragmentado segun- do os objetivos estratégicos do poder e as diversas clas- ses as quais ele se dirige. Tive oportunidade de observar que mesmo essa “linguagem totalitéria” por exceléncia que é 0 discurso fascista, apresenta uma série de camentos, de torséio de sentido, de formulas idénticas (do termo corporativismo, por exemplo) segundo a diversi- dade dos objetivos ou das classes visadas. Esse discurso deve sempre ser compreendido e entendido, mesmo que ndo deva ser de maneira univoca e por todos: nao basta que seja pronunciado de maneira encantatoria. O. que supée, através dos diversos cédigos discursivos, uma sobrecodificac&o do Estado, quadro referencial de homo- geneizagso de segmentos discursivos e dos aparelhos que os contém, terreno de seu funcionamento diferencial Essa sobrecodificacdo esta inculeada, por destilacao cal- culada, no conjunto dos suspeitos. # a unificacio da Ingua que instaura o Estado capitalista a0 produzir a lingua nacional e ao extinguir as outras. Lingua nacio- nal certamente necessaria para a criagéo de uma econo- mia e de um mereado nacional, porém, muito mais ain- da, para a funcao politica do Estado. Missi portanto do Estado nacional de organizar os procedimentos dis- cursivos modelando a materialidade do povo-nacdo e criar a lingua, criacéo certamente situada nas trans- formagGes ideolégicas, mas que nao se reduz meramente @ uma operacdo ideolégica. Essa relacdo saber-poder, fundamentada no traba- Tho intelectual que o Estado cristaliza separando-o do trabalho manual, situa-se na ossatura organizacional do Estado. O stado retraca © reproduz em seu proprio corpo a divisdo social do trabalho: ele é portanto o de- calque das relagées entre poder e saber tais como elas se reproduzem no seio do trabalho intelectual. De rela- g0es hierdrquicas, centralizadas e disciplinares para re- lagGes de escalées e miicleos de decisdo/execucao, de es- caldes de delegacdo de autoridade para formas de repar- ticdo-ocultamento do saber conforme esses _escaldes (Segredo burocratico) e para formas de qualificacdo e recrutamento de agentes do Estado (qualificacdo escolar € recrutamento por concurso), a ossatura do Estado ca- pitalista encarna, nos minimos detalhes, a reproducdo induzida e interiorizada, no préprio seio do trabalho intelectual, da diviséo capitalista entre o trabalho inte- lectual eo trabalho manual. Nos seus menores detalhes: isso se propaga, por exemplo, em toda a ritualidade material do Estado, por exemplo e por mais que seja um detalhe, no caso da escrita. Nao hé ditvida de que sempre houve uma estreita relagdo entre o Estado e a escrita, todo Estado ta uma certa forma de divisao entre trabalho intelectual ¢ trabalho manual. Mas o papel da escrita é inteira- mente particular no Estado capitalists: escrita que, mais 66 Ainda que o discurso-fala representa aqui a articulacdo © & ventilacdo saber-poder em seu seio. Do traco escrito, dia nota, das relagdes com os arquivos, nada existe, sob Gertos aspectos, para esse Estado, que ndo seja escrita, # tudo que nele se faca deixa sempre uma marca escrita m alguma parte, Ora, a escrita aqui é inteiramente diferente daquela nos Estado pré-capitalistas: nao ¢ mais uma escrita de retranscricéo, puro decalque da fala (real 04 suposta) do soberano, escrita de revelacdo e de memo- ‘Tializacdo, escrita monumental. Trata-se de uma escrita fnonima, que nao repete um discurso mas torna-se tra: zado-hierarquico deste Estado. Eserita que 20 mesmo ‘empo espacializa e cria espacos lineares e reversiveis nesta cadeia consecutiva e segmentarizada que é a buro- cratizacéo. Papelada da organizacdo estatal moderna que nao é simples detalhe pitoresco mas um traco mate- rial essencial A sua existéncia e funcionamento, cimento interno de seus intelectuais-funciondrios, encarnando a relacdo deste Estado e do trabalho intelectual. Esse Estado néo monopoliza, néo retém para si a escrita como no caso dos Estados pré-capitalistas ou da Igreja: Propaga-a (escolas) por necessidades. muito coneretas de formagéo da forca de trabalho. Mas, ao fazer isso, cle desdobra-a, tanto mais que o discurso-tala do Estado deve ser compreendido ¢ entendido. Tudo se passa como se nesse Estado de fala aberta e lingua nacional unifi. cada, o segredo em relagéo as massas populares ¢ a cristalizagdo do saber-poder estivessem passados intel. ramente na eserita do Estado, cujo hermetismo com referénela as massas populares, excluidas dessa escrita, € ‘assaz conhecido. Foi esse Estado que sistematizou, quando nao descobriu, a gramética e a ortografia mon! tando-as em redes de’ poder, : Enfim, essa ‘relagéo poder-saber se traduz por tée- nicas particulares de exercicio do poder, por dispositivos Precisos, inseritos na trama do Estado, de distancia- mento permanente das massas populares dos centros de decisio: por uma série de rituals, de formas de discurso, de modos estruturais de tematizacao, de formulagao ¢ oT tratamento dos problemas pelos aparelhos de Estado de maneira tal (monopolizagio do saber) que as massas populares (nesse sentido trabalho manual) ficam de fato A parte disso. Certamente, no se trata de reduzir a relagéo do Estado e das rélagdes de produgao a divisio trabalho intelectual/trabalho manual. Nao pretendo mais que ilustrar a direcdio de pesquisa que nos faz abandonar a esfera das relages mercantis como fundamento do Es- tado capitalista (nesse caso, pela burocracia como ins- tancia centralizadora necesséria diante da anarquia concorrencial da sociedade civil). Acrescento que, tam- ‘bém nesse caso, 0 Estado nao é 0 simples resultado da divisio trabalho intelectual e trabalho manual funda- mentada nas relagées de producdo. Ele trabalha ativa- mente para a reprodug&o desta divisio no proprio seio do processo de produgao e, para além disso, no conjunto da sociedade, ao mesmo tempo por aparelhos especiais que intervém na qualificacdo-formacao da forca de tra- batho (escola, familia, redes diversas de formagao pro- fissional) e pelo conjunto de seus aparelhos (partidos politicos burgueses e pequeno-burgueses, sistema parla- mentar, aparelhos culturais, imprensa, midias). Ele esté de anteméo presente na constituicdo desta divisdo no selo das relagdes de produgao: a diviséo trabalho ma- nual/intelectual encarnada no despotismo de fabrica re- mete as relagdes politicas de dominagéo/subordinagao tais como existem nas relagoes de exploracéo e dessa maneira, & presenga do Estado nesses ultimos. Observa-se também agora que essa relacao saber- poder diz respeito igualmente, por alguns de seus aspec- tos capitalistas, ao Estado nos paises ditos de socialis- mo real, apesar das transformagoes que neles sofreram ‘as relagdes mercantis. A divisdo do trabalho intelectual e do trabalho manual, fundamentada nos “aspectos ca- pitalistas” de suas relacdes de producdo, para além mesmo de uma estatizacao (distinta de uma verdadeira socializagéo) da economia, se reproduz af sob uma nova forma, Destaco apenas, & guisa de indicacio, pois entao tudo isso se reveste de formas particulares e considera- velmente diferentes que em nossas sociedades, por inti- meras razées, inclusive pelas particularidades das classes fociais e da luta de classes que distinguem esses paises. Esta relacionamento do Estado com a divisio tra- ho intelectual/trabalho manual, tal como esté_im- plicada nas relagdes de produgao capitalistas, nao é portanto sendo um primeiro passo para estabelecer a relacdo do Estado com as classes e a luta de classes sob © capitalismo. Este Estado, que representa o poder da ‘burguesia, remete as particularidades da constituigio “desta classe como classe dominante. Baseada num cam- po que implica # especializacéo caracteristica das fun- Ges e do trabalho intelectual, a burguesia é a primeira classe da histéria que tem necessidade, para se firmar como classe dominante, de um corpo de intelectuais organicos. Estes, formalmente distintos dela embora arregimentados pelo Estado, nao tém um papel simples- mente instrumental (como foi o caso dos padres para a feudalidade) mas um papel de organizacao de sua hege- monia. Nao 6 por acaso que a forma original da revo- lucdo burguesa fosse, primeiramente, a de uma revolu- glo ideolégica: basta imaginar o papel da filosofia das Luzes e 0 do aparelho ideolégico-cultural da edicao e da imprensa na organizacaéo da burguesia. Mais que isso: se todo Estado capitalista apresenta a mesma ossatura material, essa se singulariza confor- me as particularidades da luta de classes, da organi- zacdo da burguesia e do corpo dos intelectuais em cada Estado e pais capitalista concretas. Nada mais claro que o caso francés: a burguesia francesa, na trajetoria do Estado absolutista e através das formas da Revolu- cdo de 1789, conseguiu especialmente sua organizacao hegeménica e a criag&o, sob sua égide, da unidade na- cional, ao estabelecer estreitas ligagdes com 0 corpo de intelectuais de destaque. Ela garantiu seus préstimos permanentes int lo-os estreitamente nos nichos institucionais do Estado jacobinos e sabendo recompen- sé-los, por varias modalidades de pagamento, pelos ser- vicos ‘prestados. # isso que caracteriza nao apenas as instituigdes culturais e os aparelhos ideolégicos deste Estado, mas igualmente as notaveis particularidades da “intelligentsia” francesa. Ligada as instituicdes do Es- 69 tado republicano que so as redes de seu. poder delegado pela burguesia, ela foi, e continua a ser, ae mesmo tempo uma “intelligentsia” refrataria & ideologia e as formas de Estado facistas, e uma “intelligentsia” macicamente distanciada das lutas populares, quando estas assumem formas radicais que podem vir a colocar em questdo seu proprio poder. Bla oscila permanentemente entre 0 anti- facismo radical-republicano e a sindrome dos Versalhe- ses, Em nenhum outro lugar se pode encontrar, encar- nados a tal ponto nos aparelhos de Estado, os fantas- mas da “intelligentsia”: ora no conselho dos principes, ora, ou ao mesmo tempo, influenciando as massas pelo alto, por cima de suas préprias organizagées e via apare- Thos de Estado (imprensa, instituicdes culturais, mi- dias), em suma a tentagio do populismo elitista. A esta sede de poder intelectual, estimulada pelo lugar desti- nado a “intelligentsia” no Estado francés, corresponde, por justo motivo (se é tentado a dizer), o anti-intele- {ualismo assaz conhecido do movimento operdrio fran- cés e de suas organizacdes que, ele também, por sua vez, marea com seu selo esse Estado, e a caracteristica des- confianga das massas populares com relagéo aos apare- Thos ideol6gicos. I. A Individualizagao 4. A Ossatura do Estado e as Técnicas do Poder ‘A especializagio e centralizacéo do Estado capita- lista, seu funcionamento hierdrquico-burocratico e suas instituigdes eletivas implicam uma atomizagéo e parce- larizacdo do corpo politico nisso que se designa de “‘indi- ‘viduos”, pessoas juridico-politicas, e de sujeitos das li- berdades, Esse Estado supe necessariamente uma organizacéo particular do espaco politico sobre o qual exerce o poder. O Estado (centralizado, burocratizado ete.) instaura essa atomizacéo e representa (Estado representativo) a unidade do corpo (povo-nacao), fra- cionando-o em ménadas formalmente equivalentes (so- 70 beranta nacional, vontade popular). A materialidade desse Estado 6, sob certos aspectos, constituida como se devendo aplicar-se, atuar e agir sobre um corpo social fracionado, homogéneo em sua divisdo, uniforme no iso- lamento de seus elementos, continuo em sua atomizacao, desde o exército moderno a administracdo, A justica, & prisdo, @ escola, aos mfdias, ete. — a lista seria imensa. ‘Também nesse caso, esses fracionamentos nao sur- gem primeiramente das relacdes entre possuidores de Mmercadorias na sociedade civil em que as figuras pri- meiras seriam os individuos-sujeitos das relagGes con- tratuais. Embora esse mecanismo de individualizagao esteja presente nas trocas mercantis generalizadas, sua base esté em outro ponto. % preciso prevenir-se contra uma outra concepeéo igualmente falsa que emprega os mesmos pressupostos da primeira, embora chegue a re- sultados opostos, Ela também situa esse processo unica- mente nas relagées mercantis e, nfio, nas relagdes de produgio-relagdes de classe; evitando, porém. funda- mentar o Estado nessas relacées, termina por negar toda pertinéneia da individualizacéo na organizacdo do Es- tado capitalista, considerando-a como simples aparéncia mistificadora ligada ao fetichismo da mercadoria. Ora, a individualizagéo é terrivelmente real; contudo, o funda- mento dessa instauragio das ménadas sociais em indi- viduos-sujeitos na esfera da circulagio mercantile da relaco primeira do Estado com seus fracionamentos encontra-se nas relacbes de producio e na divisdo social do trabalho que estabelecem. O total desapossamento do trabalhador direto de seus meios de trabalho dé lugar & emergéncia do trabalhador “livre” e “nu”, desligado da rede de lagos (pessoais, estatutarios, territoriais) que antes o formavam na sociedade medieval. Esse desapos- samento imprime ao proceso de trabalho uma estrutura determinada: “Objetos de utilidade s6 se transformam em mereadorias porque S40 0 produto de trabalhos pri- vados executados independentemente uns dos ou- tros”® ‘Trata-se de um modo de articulagéio dos processos de trabalho que impée limites estruturais & dependéncia real dos produtores introduzida pela socializacdo do tra- palho. Os trabalhos, num quadro imposto pelas relagdes ne de produciio, sdo executados independentemente uns dos outros — trabalhos privados —, quer dizer, sem que os produtores tenham de organizar previamente sua ‘cooperacao; é entao que predomina a lei do yalor. Evidentemente, essa estrutura das relagdes de pro- dugdo e do processo de trabalho nao cria diretamente as formas precisas — individualizacéo — que recobrem esse fracionamento, Ela induz um quadro material refe- rencial, das matrizes espaciais e temporais que sao os pressupostos da divisdo social capitalista do trabalho, yente no processo de produgao, no estégio que Marx chama de mecanizacdo e da grande industria. Esse quadro material primeiro é 0 molde da atomizagao e do.fracionamento sociais incorporados nas praticas do processo de trabalho. Ao mesmo tempo que pressuposto das relagdes de produeao e encarnacdo da divisio do trabalho, esse quadro consiste na organizacéo de um espaco-tempo simultaneamente continuo, homogéneo e parcelarizado, que ¢ a base do taylorismo. Um espaco esquadrinhado, segmentarizado e celular onde cada par- cela (individuo) tem seu lugar, onde cada. localizacdo corresponde a uma parcela (individuo), mas que deve apresentar-se como homogéneo e uniforme. Um tempo linear, serial, repetitive e cumulativo, em que os diversos momentos integram-se uns aos outros, orientando-se para um produto acabado — espaco-tempo materializado por exceléncia na cadeia de produc&o. Em suma, o indi- viduo bem mais que criago da ideologia politico-juri- ‘dica engendrada pelas relacdes mercantis, aparece aqui como 0 ponto de cristalizacao material, ponto focalizado no proprio corpo humano, de uma série de préticas na divisio social do trabalho. A diferenca da organizacéo na Idade Média e no Capitalismo (individualizaco) corresponde a corporeidades diferenciais. O desapossa- mento do trabalhador de seus meios de producao no capitalismo, criando a forca de trabalho como base da mais-valia, desencadeia um processo pelo qual o corpo, como j4 mostrava Marx, torna-se simples “apéndice da maquina”, decomposto em “pequena quantidade de for- mas fundamentais nas quais, apesar da diversidade dos 2 instrumentos empregados, todo movimento’ produtivo do corpo humano deve realizar-se..."* # nessa individualizacéo que se escora a materiali- dade institucional do Estado capitalista. Ele inscreve em Sua ossatura a representacdo da unidade (Estado repre- sentativo nacional) e a organizacdo-regulagem (centra- lismo hierérquico e burocratico) dos fracionamentos constitutivos da realidade que é 0 povo-nacdo. Ao mes- mo tempo, os aparelhos do Estado sdo moldados de ma- neira que exercam o poder sobre esse conjunto assim constitufdo: realizam 0 mesmo quadro material refe- rencial, a mesma matriz espaco-tempo implicada nas Telagoes de producdo. A organizacdo interna das redes e dispositivos burocréticos supée esse quadro que torna possivel o encadeamento de seus elementos, mesmo que ‘esse quadro se concretize de forma diferente na adminis- tracao burocratica e no despotismo das fabricas, no tay- lorismo e cadeia de producdo: reestruturacio do espaco litico e substituicao de estatutos, privilégios e outros Tasco ‘pessoais pelo anonimato de uma organizacao de -lagos 20 mesmo tempo continuos, homogéneos, lineares, €quidistantes e segmentados, fracionados.e comparti- ‘tmentados. ___ Ora, 0 Estado nfo é mero anotador dessa realidade “econdmico-social; ¢ fator constitutivo da organizagio da divisdo social do trabalho, produzindo permanentemente jionamento-individualizacdo social. Isso faz-se tam: pelos procedimentos ideolégicos: o Estado consa- ¢ institucionaliza a individ pela constitui- das ménadas econdmico-sociais em individuos-pes- jeitos jurfdicos e politicos. Nao me refiro aqui ao 80 oficial da filosofia politica, nem ao simples ma juridico, mas ao conjunto das praticas mate- do Estado (a ideologia nao esté apenas nas idéias) is conseqiiéncias na esfera econdmico-social. Ideo- de individualizacéo que nao tem por finalidade mascarar e ocultar as relagdes de classe (0 Es- eapitalista jamais se apresenta como Estado de ), mas também a de contribuir ativamente para € isolamento (individualizacéio) das massas . Nao se trata apenas da ideologia constitufda, 73 sistematizada e formulada pelos intelectuais organicos da burguesia, que nunca passa de ideologia de segunda categoria, porém, muito mais, trata-se de formas pri meiras e “esponténeas” de ideologia secretadas pela di- visio social do trabalho, diretamente incorporadas aos aparelhos de Estado e as priticas do poder. © papel do Estado, porém, nao é o de inculcar a {deologla dominante, ‘mesmo materializada em praticas; nao se trata simplesmente da concretizacao dos direitos ¢ obrigagdes, da distincao privado e piiblico etc. na vida cotidiana, O Estado contribu! para fabricar essa indivi- dualidade por um conjunto de técnicas de saber (cién- cia) e de prdticas de poder, a que Foucault chamou de disciplinas (“que se pode caracterizar em poucas pala- vras dizendo que sio uma modalidade do poder para o qual a diferenca individual é pertinente”), procedimento designado pelo termo normalizacdo: “Como a vigilan- cia, a notmalizago torna-se um dos majores instru- mentos do poder no fim da era classica, As mareas que significavam status, privilégios, filiagdes — tendem a ser substituidas ou pelo menos acrescidas, de um conjunto de graus de normalidade que sio sinais de filiagao em uum corpo social homogéneo, mas que tém em si um papel de classificacio, de hierarquizacao e de distribui- ‘80 de lugares, De certa forma, o poder de normalizacéo obriga a homogeneidade, porém individualiza permitin- do medir os desvios, determinar os niveis, fixar as espe- cialidades e tornar titeis as diferencas, ajustando-as umas as outras”. Momento de normalizacio “em que nova tecnologia do poder e uma outra anatomia do cor- po foram elaboradas”, e que se cristaliza nessa forma moderna do poder que Foucault chama de “panoptis- ‘mo’. Processo no qual intervém as formas primeiras da ideologia dominante, j4 materializadas em praticas esta- tais; e ao contrario do que pensa Foucault, que distingue radicalmente inculcago ideoldgica e normalizacao, con- siderando de certo modo que a ideologia nfo esta nas idéias e que todas as vezes que se tratar de praticas ou de técnicas, nao pode ser mera questao de ideologia. Portanto, esse mecanismo suplanta. amplamente a inculéacio ideolégica e também a simples repressio fi- % ica, Esse relacionamento do Estado-poder e do corpo atesta a individualizag&o do corpo social. # certo que as relacdes entre o Estado-poder e 0 corpo, instituigaio po- \itica investida pelo poder, cobrem um campo bem am- plo. Porém as relacdes de constituicio entre o Estado © as formas precisas de coporeidade capitalista, em prin- / cipio, ndo se baselam, conforme afirmam as anal mil vezes repetidas com mais ou menos sutilezas, sobre fas relagées mercantis, sobre 0 corpo-mereadoria da so- cledade de consumo, sobre 0 corpo-espetaculo investido pelos signos da troca, em suma, no fetichismo mercantil do corpo. A tecnologia politica do corpo tem como base primeira o quadro referencial das relacdes de produgéo ¢ da divisdo social do trabalho. # por esse caminho que se pode resolver com seguranca o problema essencial para a teoria do Estado que ¢ a individualizacéo do corpo social, solo ori das classes em sua especifi- cidade capitalista, Essa individualizacéo nao ¢ a reali- dade de um “individuo conereto”, que surge na socie- dade civil da mercadoria generalizada e que propicia ‘a formagdo de um Estado com base nesses individuos, Estado nacional popular que se torna Estado de classe. ‘Também nao é a realidade genérica de um individuo biolégico sede natural de desejos e alienado-reificado pelo Estado. Essa individualizagdo constitui a figura ma- terial das relagoes de producao e da divisdio social do trabalho nos corpos capitalistas, e igualmente conse- qiiéncia material das praticas e técnicas do Estado, criando e subjugando 0 corpo (politico). Nesse ponto as andilises de Foucault tém grande importancia, pois constituem andlise materialista de certas institui do poder. Elas tanto confirmam as andlises marzistas, o que Foucault evita ver ou dizer, como também enriquecem-nas em inimeros pontos. Sabe-se, certamente, que Foucault rejeita uma in- terpretacao que viria basear essa materialidade do po- der, e por conseguinte do Estado, especificamente nas relagdes de producio e na divisao social do trabalho. Foi Deleuze,’ sobretudo, quem se encarregou de expli- car a diferenca entre o pensamento de Foucault e 0 marxismo. O quadro referencial do poder seria anterior 15 ‘a cada campo particular que o concretiza, constituiria um “diagrama” (0 “panoptisme” no caso), uma “mé- quina abstrata” imanente a cada campo particular. Nao se basearia no “econémico” pois é “toda a economia, por exemplo a oficina ou a fabrica, que pressupde esses mecanismos do poder...” Observacées que o proprio Foucault retomou a seu favor em A Vontade de Saber. evidente que nfo se pode atribuir grande impor- tancia a esse aspecto do pensamento de Foucault, essas observacées pendem para o idealismo. Seria fécil inferir que esses diagramas ou maquinas (de onde e como apa- recem?) assemelham-se estranhamente as varias estru- turas mentais e outras categorias do mesmo género, essa “causa comum imanente” que seria o diagrama, fe que nao passa, por mais que se queira e apesar da hheterogeneidade dos campos sobre os quais insiste, da velha homologia estrutural do estruturalismo, fato ha muito verificado por Derrida.” Poder-se-ia, ¢ com justi- a, reprovar Foucault, que, com sua posicao, desemboca freqiientemente em anélises puramente descritivas e, com mais freqiiéncia ainda, em um neo-funcionalismo que retoma os pressupostos epistemoldgicos do mais tra- dicional funcionalismo: “O dispositivo pandptico néo é somente uma valvula, um intermediador entre um me- canismo de poder e uma funcdo, é um modo de fazer funcionar relagdes de poder numa funcdo, e uma funcao por suas relacdes de poder”. J4 havia observado que ‘Malinovski e Parsons jé falavam disso. ‘A meu entender, acho que néo se deve atribuir grande importancia ao discurso epistemolégico de se- gundo grau de Foucault. Muitas de suas andlises sio no somente compativeis com o marxismo, como, mais ainda, s6 a partir dele podem ser compreendidas. Porém sob duas condigoes: ‘A primeira: ter uma concepgio justa do “econd- mieo”, no qual se fundamenta a especificidade institu- cional do poder moderno, quer dizer, abdicar da idéia de Foucault, que Ihe permite relacionar (isso Ihe acon- tece) essa especificidade & economia, ou seja, freqiiente- 76 mente rejeitar o marxismo e o fundamento material das instituicdes na economia. Nos dois casos, ele néo trata nunca das relagdes de produgao e da diviséo social do trabalho nelas implcitas. No primeiro caso (referéncia ‘4 economia para fundamentar as instituicdes), Foucault ‘busca o essencial em dados como o crescimento demo- rifico do século XVIII, ou as necessidades utilitarias la “\produgéo moderna’” para “maximizar o rendimen- to”, No segundo caso (referéncia & economia para refu- tar o marxismo), Foucault volta justamente, é interes- sante notar, A sociedade mercantil das relacdes de troca @ de circulacdo: “Diz-se freqiientemente que o modelo de uma sociedade que tivesse individuos como seus ele- mentos constitutivos seria inspirada nas formas juri- dicas abstratas do contrato e da troca. A sociedade seria representada como associacdo contratual de sujeitos juridicos isolados. Talvez... N&o se deve esquecer que existiu na mesma. época uma técnica para constituir os individuos efetivamente como elementos correlativos de um poder e de um saber’ Ora, é evidente que nfo se pode, de modo algum, relacionar a materialidade dos aparelhos de Estado e 0 “econémico”, e Foucault erra quando tenta fazé-lo dessa maneira, se por isso enten- dermos a demografia ou a simples revolugao industrial, quer dizer, a técnica produtiva. Também niio se pode fazé-lo, e ai Foucault estd totalmente certo, se tomamos somente ou principalmente a esfera de circulacao ¢ das trocas mereantis, o que um certo marxismo tentou fazer durante muito tempo. A segunda condicdo: compreender a relago do Es- tado com as relaces de producao e a diviséo social do trabalho em toda a sua complexidade, isto 6, pelo dado fundamental que séo as matrizes espaciais € temporais cuja andlise desenvolverei quando tratar da nac&o. Essas matrizes primeiras, presentes na organizacio material e nas técnicas de exercicio do poder, terfio entéo uma explicagéo diferente daquela do diagrama misterioso e quase metafisicn de Foucault, sobretudo na versio apre- sentada por Deleuze-Guattari: a de uma maquina ori- ginal, Urstaat, Estado-Déspota ideal-abstrato que acossa a histéria dos diversos Estados e poderes & procura de ” sua encamagéo perfeita, na mais pura tradigdo espi- ritualista. 2. As Raizes do Totalitarismo ‘De qualquer forma, a individualizacao do corpo so- cial sobre 0 qual se exerce o poder do Estado moderno conduz as relagdes de producao e A diviséo social do trabalho capitalistas. O Estado desempenha aqui um papel decisivo, que eu tinha chamado em Poder politico e classes sociais, de “efeito de isolamento”. Porém, em- bora assinalando que o efeito é “terrivelmente real”, tendia a limité-lo, no essencial, aos mecanismos da ideo- logia juridico-politica e ao papel ideologico do Estado. # agora que se pode ver (e af estd a contribuicao original de Foucault) que o papel do Estado traduz-se na mate- rialidade de suas técnicas de exercicio do poder, consubs- tancial & sua estrutura propria: técnicas que moldam os sujeitos sobre os quais se exerce 0 poder até mesmo em sua corporeidade, Aproveito a ocasido para adiantar um primeiro posicionamento do problema do fenémeno iné- dito do totalitarismo moderno em que o fascismo é ape- nas uma das faces. Esse problema 86 pode ser elucidado or uma aérie'de abordagens sucessivas, que jé fiz om ‘oder politico em termos que ainda me parecem validos, embora restritivos. O que eu bem apreendia era que, no duplo movimento pelo qual o Estado moderno cria indi- vidualizacdes e privatizacdes auto representando-se como sua unidade e homogeneizacéo, em suma, no duplo mo- vyimento de criacio dos isolamentos (de que se compdem ‘0 povo-nacao) e de representacio de sua unidade (Estado nacional popular moderno), ndo pode, pela primeira vee na historia, existir nenhum limite de direito e de prin- @ atividade e d invasdo do Estado na esfera do indi- vidual-privado. O individual-privado é uma criagéo do Estado, concomitante A sua separacdo relativa da socie- ‘dade como espaco publico, o que no somente indica que essa separacéo € apenas uma forma especifica da pre- senca do Estado nas relacdes econémico-sociais, como também uma onipresenca do Estado jamais igualada tm runs 7elagSes. Porém ‘eo sexipre’ via aperias's conse: Mid incia material dos mecanismos ideolégicos. Apresen- 4 como exemplo duas passagens, significativas por- ie mostram o problema porém de maneira nitidamente itativa. primeiro refere-se exatamente ao relacionamento se fendmeno totalitério com o principio de legitimi- le do Estado moderno: “ © Estado capitalista, em especial, retira, na ver- le, seu principio de legitimidade do principio de que considera unidade do povo-nacéo tomado como con- junto de entidades idénticas, homégenas e disparatadas, tabelecidas pelo Estado como individuos-cidadaos po- ticos. & nisso que ele difere radicalmente de outras formas de despotismo, do poder politico “absolute”, por ‘exemplo, formalmente semelhante, exercidos por formas de tirania baseadas na legitimidade divino-sagrada. ‘Bssas formas, tais quais apresentavam-se no Estado es- cravagista ou feudal, encerravam contudo o poder em limites rigorosamente regulados. Dizendo de outra ma- neira, é exatamente o tipo de legitimidade do Estado capitalista, representando a unidade do povo-nagdo, que permite um funcionamento especifico do Estado consi- derado sob o termo de totalitarismo”.”* © segundo no relacionamento do fendmeno totali- trio com a ideologia politica burguesa: “A fungdo particular de isolamento e coesio da ideologia politica burguesa conduz a uma notével con- tradicéo interna, que foi por vezes tematizada nas teorias do contrato social, pela distincdo e pela relacai entre 0 pacto de associacio civil e o pacto de dominagao politica, Essa ideologia estabelece os agentes como indi- viduos-sujeitos, livres e iguais, que de certa forma cla imagina em estado pré-social, assim determinando o isolamento especifico sobre as relacbes sociais, Esse as- pecto designado por “individualismo burgiiés” é sufi- cientemente conhecido, Esses individuos-pessoas, assim individualizados, num mesmo movimento veGrico, pare- cem s6 poder unificarem-se e alcancar existéncia social na interpretag&o de sua existéncia politica no Estado, O resultado € que a liberdade do individuo parece logo 9 evaporar-se diante da autoridade do Estado, que encar- na a yontade de todos. Pode-se dizer que para a ideolo- itica burguesa nfo pode haver nenhum limite de direito e de principio atividade e A usurpacao do Esta- do na assim chamada esfera do individual-privado. Enfim, essa esfera parece apenas desempenhar a funcéo de constituir um ponto de referéncia, que é também um. ponto de fuga, a onipresenca e oniciéncia da instdncia politica, Bem que isso é verdade, pois Hobbes aparece ‘como a verdade antecipada das teorias do contrato so- cial, e em resumo, Hegel como o ponto de chegada — nesse caso o assunto & bem complexo, porém todos os assuntos tebricos 0 so, Lembremo-nos do caso caracte- ristico de Rousseau para quem “o homem ser o mais independente possivel de todos os outros homens e 0 mais dependente possivel do Estado”. O caso é ainda mais nitido no exemplo classico dos fisiocratas adeptos fervorosos da nao-intervenco na economia e também adeptos fervorosos do autoritarismo politico, pedindo realmente 0 monarca absoluto, que representaria o inte- esse e a vontade de todos. Isso é igualmente caracteris- tico da ideologia politica liberal: nada de mais exemplar a esse respeito do que a nitida influéneia, e tao mal co- nhecida, de Hobbes em Locke, na corrente cléssica do liberalismo politico inglés, o “‘utilitarismo” em J, Ben- tham, J. Mills e sobretudo em J. Stuart Mill”."* Embora a meu ver os dados do problema permane- ‘cam validos, as raizes de sua solucdo, no essencial, estao Tonge. A individualizacao e a privatizacao do corpo social residem nas praticas e técnicas de exercicio do poder de um Estado, que num mesmo movimento totaliza essas ménadas divididas ¢ incorpora em sua ossatura institu- cional a unidade. O privado é apenas a réplica do pi- Blico, pois se h4 desdobramento, inscrito no Estado e ja ite nas relacdes de producio ¢ na divisdo social trabalho, 6 porque o Estado traca os contornos. O individual-privado nao é um obstdculo intrinseco a agio - do Estado, mas 1m espaco que o Estado moderna eons- tr6i ao percorré-lo: é 0 que se transforma em horizonte infinitamente retratil, e passo a passo, ao longo da cami- nhada estatal. O individual-privado é parte integrante 80 campo estratégico do Estado moderno, é 0 alvo que itado se dé como ponto de impacto de seu poder; em a, 86 existe para esse io. O que é claro nessa \da, inatingivel em si, é que o individuo privado, jeito que tem supostamente liberdades inaliendveis, itos do homem, um habeas corpus em que justamente ‘corpo é inteiramente modelado pelo Estado e também conjunto dos centros de privatizacio. Tomando 10 exemplo a familia moderna, tipico lugar privado, Se estabelece somente em concomitancia absoluta do iblico, que 6 0 Estado moderno; no como o exterior itrinseco de um espaco ptiblico de fronteiras rigidas, rém como conjunto de praticas materiais do Estado jue molda o pai de familia (trabalhador, educador, sol- do ou funcionério), a crianca-estudante no sentido joderno, e, é claro, sobretudo a mae, A familia e 0 tado modernos nao formam dois espacos (0 privado e ptiblico) eqiiidistantes e distintos, limitando-se mu- tuamente, em que um seria, segundo as andllises agora classicas da Escola de Frankfurt (Adorno, Mareuse, ete.), f& base da outra (a familia, do Estado). Embora essas duas instituiedes nao sejam isomorfas e também nao mantenham relagdes de homologia, nem por isso dei- xam de fazer parte de uma tinica e mesma configuracdo, is no é 0 espaco “exterior” da familia que se fecha em face do Estado, e, sim, o Estado, que, ao mesmo tempo que se constréi em pitblico, marca, por meio de divisbes moéveis que ele mesmo desloca, o lugar designado a familia. © Estado no comporta nenhum limite de principio ¢ de direito a suas usurpag6es no privado: por mais paradoxal que pareca, é a separacao ptiblico-priyado, por ele institufda, que Ihe abre perspectiva ilimitadas de poder. Af estfio as premissas do fenémeno totalitério no sentido moderno, nao somente para as sociedades ocidentais, mas igualmente para os paises do Leste. 0 Estado nesses. paises toma as formas que se conhece, sem que, porém, tenha abolido o individuo como ulti mo obstculo face ao poder. Baseado nus “aspectos capi- talistas” de suas relagdes de producio e divisdo social do trabalho, 0 proceso de individualizagdo-isolamento a1 desenvolve-se plenamente, embora néo tome, longe disso, as mesmas formas (especialmente juridico-politicas) € no ocorra segundo os processos que conhecemos nas sociedades ocidentais. A distingéo que o Estado cria en- tre o puiblico e o privado (os trabalhadores estando parados da esfera piiblica e do poder politico) também — se desenvolve, embora a estatizacio atinja proporcdes consideraveis. Ora, também nesse caso, isso nao significa invasao pelo Estado de uma esfera privada de frontei- ras intrinsecas a o Estado teria rompido, mas corres- ponde a um deslocamento mais amplo desse Estado no caminho do Estado moderno e de sua materialidade propria, Claro que essas observacées séo apenas premissas; pois o individual-privado nao é um limite e sim o canal do poder do Estado moderno, embora isso néo queira dizer que o poder nao tenha limites reais, mas, sim, que esses limites néo se prendem a qualquer naturalidade do individual-privado: dependem das lutas populares e das relagdes de forca entre as classes, pois 0 Estado também é a condensacio material e especifica de uma, relacio de forea, que é uma relacdo de classe. Esse indi- vidual-privado aparece igualmente como resultante dessa relac&o de forga e de sua condensacdo no Estado. Em- bora o individual-privado nao tenha esséncia intrin- Seca e, como tal, erie barreiras exteriores absolutas a0 poder do Estado, limita 0 poder como uma das figuras privilegiadas da relacio de classe no Estado nas socie- dades modernas. Esse limite é conhecido: chama-se democracia representativa, que, por mais mutila- da que seja pelas classes dominantes e pela materiali- dade do Estado, ndo deixa de ser uma marca no seio dessa materialidade das lutas e resisténcias populares. Nao sendo o tinico limite ao poder do Estado-nem por isso é menos importante. Provavelmente nao tem signifi- ‘cacao absoluta, na medida em que nasce em terreno capi- talista, porém permanece uma barreira ao poder que sem duvida conta enquanto o Estado e as classes du- rarem. O mesmo ocorre quanto aos direitos do homem € do cidadao, que nao séo uma conquista do individuo face ao Estado e, sim, conquista das classes oprimidas. 82 © individual-privado exprime em sua extensio ou dimi- igo 08 avangos e recuos de suas lutas e resistencias undo tomam essa forma politica. Nao porque se auto- wmulem e assim fazendo um dominio fora do Estado, lividual-privado), mas porque situam-se no préprio \po estratégico do Estado, que, em sua forma mo- wna, existe como espaco publico-privado. Esses direitos, ito aqui como no Leste, podem servir de barragem a poder, cujas raizes totalitérias j4 se encontram no esso de individualizagdo e na separacéo instaurada ‘tre 0 puiblico e o privado pelo Estado moderno. Dai decorrem outras conseqiiéncias: a) © totalitarismo moderno, na forma fascista ou outra qualquer, néo é mero “fenémeno” que se prende unicamente & conjuntura da luta das classes. Tais con- junturas podem propiciar 0 aparecimento dos totalita- rismos modernos, porque as raizes do mal sio mais profundas, instaladas no seio das relagdes de produgao, da diviséo social do trabalho, da ossatura material do Estado. b) Contrariamente a todas as ideologias antigas ou novas do totalitarismo, a emergéncia efetiva das for- mas totalitdrias do Estado nao é um mero desabrochar desses germes e niio pode de modo algum ser explicada dessa maneira, pois depende da luta de classes em toda sua complexidade. De minha parte, é 0 que tentei expli- car em Fascisme et Dictature'* e em La crise des dicta- tures," mostrando que essas formas totalitarias, quer se trate de fascismo, ditaduras militares ou bonapartismo, constituem nas sociedades ocidentais formas_especificas que designel por formas de Estado de excecdo, bem dife- rentes das formas de Estado democrético-parlamentares. Essas observagées valem igualmente, iutatis mu- tandis, para os aspectos totalitérios do poder nos paises do Leste, os quais também nao podem ser explicados reportando-se unicamente as raizes do totalitarismo, que entrentanto exislem plenamente, e aos aspectos capita- listas desses Estados, Somente uma andlise histérica mi- nuciosa poderia fazé-lo, pois essa forma de Estado apre- senta considerdveis particularidades, 0 que aliés néo constitui excegao, mas regra. Sabe-se que essa andllise histérica comeca’a aparecer até mesmo na Franca, e devo assinalar de Jean Ellenstein e de Charles Bette- Ineim, embora de perspectivas diferentes, além das and- lises tradicionais das correntes trotskistas, que, a meu ver, embora insatisfatérias, muito nos ajudaram. Cito-as em conjunto, porque tratam-se de andlises que se refe- rem especificamente ao método marxista. £ claro que 0 marxismo sozinho nao pode tudo explicar, porém gosta- ria que nos mostrassem, entre os “anti-marxistas” pri- méarios que atualmente defendem a idéia de que o mar- xismo no pode explicar o que se passa nos paises do Leste, um tnico que tenha feito, ou mesmo tentado, essa andlise histérica indispensdvel. Essa andlise que fundamenta a materialidade do Estado nas relagdes de producao e na divisdo social do trabalho, ndo é heterégena ou’ complementar a uma andlise dessa materialidade em termos de classes e luta de classes. No que concerne a individualizacio do corpo social sobre 0 qual se exerce o poder, nao se trata de “deduzir” a estrutura organizadora do Estado no pro- cessamento da individualizacéo e de relacioné-la em seguida com a luta de classes e a dominacdo politica, Esse processamento, relacionado justamente ao proces- 80 e & divisio de trabalho capitalistas, é apenas a confi- guracdo do terreno no qual se formam as classes sociais € a luta de classes em sua especificidade capitalista. Contrariamente as classes-castas ou estados escravagis- tas e medievais, classes fechadas em que os agentes pertencem unicamente pela sua natureza — no capita- lismo, as classes sao “abertas”, fundamentadas na repar- tigdo 'e na circulacéo de agentes individualizados em seu meio, quer se trate da burguesia, da classe operdria ou das classes no campo. Essas classes provocam um Papel do Estado até entao inédito, o de distribuir-repar- tir os agentes individualizados através das classes, de formar e preparar, de qualificar e subjugar os agentes, de tal forma que possam ocupar tal ou qual lugar de classe & qual nao estao ligados por natureza ou nasci- mento; papel proprio da escola e também do exército, 84 “da prisio ou da administracio. O mecanismo de indivi- dualizacdo jé 6 uma marea, na materialidade do Estado, da especificidade das classes no capitalismo, pois as téc- nnicas de exercfclo do poder na escola ou no exército isciplinas de normalizagdo-individualizacéo) sao con- jubstanciais a seu papel de preparacéo-distribuicéio- yparticio dos agentes-individuos entre as classes. En- fim, essa individualizagdo traada na corporeidade capi- talista, apresenta sentido e modalidades diferentes segundo as diversas classes sociais. Existe uma indivi- dualizagéo burguesa e uma individualizaciio operdria, ‘um corpo burgués e um corpo operario, modalidades da individualizagéo e da corporeidade capitalistas, assim ‘como existe uma familia burguesa e uma familia operé- ria, modalidades da familia capitalista fundamentada no’ processo de individualizagéo. a Mh A Lei 1, Lei e Terror © tercetro exemplo ao qual chamo atengdo refere-se ao papel da lei, pois ele nos interessa por varias raz6es: permite especialmente apresentar com preciso a questo da repressdo no exercicio do poder. Ora, também deste ponto de vista o Estado capitalista representa uma ver- dadeira ruptura. em relagdo aos Estados pré-capitalistas. Primeiramente porque a lei sé tardiamente, com o Estado capitalista e sua constituicao histérica, apresen- tou-se come limitacdo do arbitrio estatal, até mesmo como barreira a uma certa forma de exercicio da vio- léncia, # esse “Estado de direito” que foi concebido como ‘oposto ao poder ilimitado, criando a iluséo do binémio Lei-Terror. A lel e a regra estiveram sempre presentes na constituicéo do poder: o Estado asiatico ou despo- tico, o Estado escravagista (Roma, Atenas), 0 Estado feudal foram sempre fundamentados no direito e na lel, desde 0 direito babilénico ¢ assirio ao direito grego e romano até as formas juridicas medievais, Toda forma estatal, mesmo a mais sanguinéria, edificou-se sempre como organizacao juridica, representou-se no direito e funcionou sob forma juridica: sabe-se muito bem que assim foi com Stalin e sua constituicdo.de 1937, reputada. como a ‘mais democratica do munt®, Portanto nada mais falso que uma presumivel oposico entre o arbitrio, 08 abusos, a boa vontade do principe e o reino da lei. Essa visio corresponde a concepcao juridico-legalista do Estado, a da filosofia politica do Estado burgués esta- belecido, contra a qual levantaram-se Marx e Max We- ber, e que nao passou desapercebida pelos tedricos da gestacdo sangrenta do Estado, Maquiavel e Hobbes. De qualquer forma esta suposta cisto entre lei e violéncia é falsa, sobretudo para o Estado moderno, & este Estado de direito, o Estado da lei por exceléncia que detém, ao contrario dos Estados pré-capitalistas, 0 monopélio da violéncia € do terror supremo, 0 monopélio da guerra. iB A lei parte integrante da ordem repressiva e da organizagdo da violéncia exercida por todo Estado. O Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por ai instaura um primeiro campo de injungées, de interditos, de cen- | sura, assim criando o terreno para a aplicagdo eo objeto | da violéncia. E mais, a lei organiza as leis de funciona- | mento da represséo fisica, designa e gradua as modali- | dades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é, neste sentido, 0 eddigo da violéncia piblica organizada, | Avnegligéncia do papel da lei na organizagéo do poder \ €constante naqueles que ignoram.o papel da repressio fisica no funcionamento do Estado; Foucault especial- | mente, como se vé em sua ultima obra, A vontade de Saber, seqiiéncia logica de peregrinagdes em vigiar e Esquematizando, pode-se estabelecer a cadeia do raciocinio de Foucault da seguinte maneira: a)o bind- mio legalidade-terror é errado, pois a lel sempre acom- o exercicio da violéncia e da represso fisica; b) o exereicio do poder nas sociedades modernas baseia- se muito menos na. violéncia-repressao aberta do que nos mecanismos, mais sutis e considerados “heterége- 86 "" 4 violéncia, das diseiplinas: “E se é verdade que idico pode servir para representar de maneira sem Wida no exaustiva um poder essencialmente baseado ‘antecipacdo e na morte, é totalmente heterdgeno aos 0s processos de poder, que funcionam nao para o ito mas para a técnica, néo para a lei mas para a yrmalizagao, ndo para o castigo e sim para o controle, us 26 exercem era niveis e formas que ultrapassam 0 ado e seus aparelhos’"” Exercicio do poder que impli- ia, como 0 disse depois de Foucault, R. Castel, na sagem da autoridade-coercdo & manipulacdo-persu- em uma palavra, & famosa “‘interiorizacao” da re- essiio nas classes dominadas. Dai se deduz ineluta- yelmente que hé em Foucault a subestimagio do pel da lei, ao. menos no exereicio do poder no seio las sociedades modernas, e também subestimagio do “papel do Estado, acompanhada de desconhecimentd do lugar, no Estado -moderno, dos aparelhos repressivos (exército, policia, Justiga, etc.) enquanto dispositivos de exercicio da violéncia fisica. So considerados somente ‘como pecas do dispositivo disciplinar que molda a inte- riorizagdo da represséo pela normalizagao. © primeiro raciocinio referente & relagdo constitu- tiva entre a lel e 0 exercicio da violéncia ¢ correto, porém o segundo esté errado, Alids, néo exclusivo de Foucault, caracteriza igualmente uma corrente de pensamento mais ampla, por sinal bem diferente de Foucault. Esse racioeinio tem raiz no par violéncia-consentimento, re- pressdo-ideologia, que por muito tempo marcou as and- lises do poder, O leitmotiv é simples: o poder moderno nao se basearia na violéncia fisica organizada.mas na manipulagdo ideolégica-simbélica, na organizacéo do consentimento, na interiorizagéo da repressao (o ‘‘tira” na cabeca)”. As origens dessa. concepeao encontram-se nas primeiras anélises da filosofia politico-juridica ‘bur- guesa, que justamente opunha violéncia e lei, por ver no Estado de direito e no reino da lei a limitagdo intrin- seca da violéneia, Essa concepedo teve, sob formas varia- das, prolongamentos atuais: as andlises da escola de Frankfurt — as famosas andlises de substituigao da fa- milia & policia como insténeia autoritaria — e de Mar- 8 cuse e de P. Bourdieu sobre a chamada violéncia simbé- Ae ee eee ee tris anos Dositivi. Sota cnet aadins Ee ace eae ‘dade do poder néo poderia significar ocultar e a questo a ana, pera Caen sical da repressdo eo papel da ideologia que intervém no con- no exercicio do poder tornaram-se lugar c¢ oo aoe sentimento. & 0 que acontece com Foucault, que, diferen- é essencial aqui, 6 a0 mesmo tempo a subestimacio do clando-se das correntes precedentes ao demonstrar — e é papel da repressao, da sujei¢fio mortifera e armada sobre’ me thal Richa nce coe ee ee ideologia, constituindo esses dois termos componentes- Bacics (as: cistiptinanudle. rlorsinitededay Pecnriotion tere antidades de soma zero. Diminuic&o ou retracéo da : Sat ci a subestima constantemente, em suas andlises, o papel da violéneia fisica s6 poderia corresponder, no funciona Mioléncla fisica aberta, sendo a subestimagdo, do papel dame, as newiagoMergier (olen aan da lei (néo como indutora de amor-desejo mas justa- Initerlaniego Gu’ reyeeestioy: mente como eodifieadora dessa violencia) apenas _um © Basicamente 6 uma concepeso do poder pouco dl- Onifuncionalidade das técnicas do poder que, em ferente da que prevalece em incontéveis anélises, muito Foucault, absorve de imediato nao apenas o problema em voga atualmente, que fundamenta 0 consenso no da violéncia fisica, mas também o do consentimento, que desejo das massas (as massas teriam desejado o fascis- 4a torna tna Tn: Probar, SS 6 in mba BG mo) ou no amor do Senhor"*, Tém em comum com a cor- tado teoricamente, ou que cai nas anélises do tipo “in- rente precedente o fato de ignorar o papel da violéncia teriorizagao da repressao”. Quais sao, além das discipli- tisica organizada, reduzindo o poder & repressdo-interdito. nas de normalizagao, as “taz6es” do consentimento, que, Dai se deduz uma subjetivacao do exercicio do poder sob entretanto, nao impedem que sempre haja lutas? a forma de busca das “raz6es de obedecer” no desejo ou Se essas diseiplinas bastassem para explicar a submissio, no amor do Poder, que substituem o papel, suprimido por que permitiriam a existéncia das lutas? Chega-se & nas correntes precedentes, da ideologia como fator de aporia nodal das andilises de Foucault, da qual voltarei interiorizacao da repressao. A lei nunca intervém aqui a falar: a auséncia de fundamento de suas {gmosas “re- Sob a forma de codificadora da violéncia fisica, mas como sisténcias” ao poder que tanto Ihe apraz. Deffto, se deve figura do Senor, que, s6 por sua presenca, enunciagdo haver violéncia fisica organizada ¢ pela mesma razao ou discurso, induz 0 desejo e o amor dos sujeitos. O pi- que deve haver consentimento: porque ha de inicio e némio repress&o-violéncia substitui-se pelo binémio lei- sempre lutas baseadas em primeiro lugar na exploracao. amor, interdito-desejo, porém o papel da violéncia na Se essa realidade primeira e incontornavel, que faz que base do poder é sempre subestimado: sd se consideram as lutas sejam sempre o fundamento do poder, for es- as razdes do consenso, quecida em favor de uma visio que faz do poder (a Lei, < © Senhor) 9 fundamento das lutas, ou de uma relacao © que é inquietante nessas andlises nfo ¢ exatamente entre Lena areanente equivalentes. “poder-resistén- © fato de apresentarem o problema do consenso ao poder, cias”, somos levados, ora a derivar 0. consentimento do e sim que néo considerem o papel da violéncia fisica amor ou do desejo do poder, ora a ocultar o consenti- organizada na repressdo, e que reduzam o poder a re- mento como problema. Nos dois casos escamoteia-se.o pressdo simbélica ou interiorizada e ao interdito. Assim papel da violencia, pa tan consti GD pened cas oseetany tree Ae Na realidade qual é o papel da violéncia? 0 Estado 0 fundamentam no amor-desejo da represséo, enquanto capitalista, ao contrério dos Estados pré-capitalistas, < detém o monopélio da violéncia fisica legitima, Cabe a Max Weber 0 mérito de ter esclarecido este ponto, mos- trando que a legitimidade do Estado, que concentra a forca organizada, é a legitimidade “‘racional-legal” fun- damentada na lei: a acumulacao prodigiosa de meios de coagao corporal pelo Estado capitalista acompanha seu carater de Estado de direito. O grau de violéncia fisica aberta exercida nas diversas situacdes de poder “priva- do” exteriores a0 Estado, da fabrica as famosas micros- situagdes de poder, esté em regresséio na exata medida em que o Estado se reserva o monopélio da forca fisica legitima. Os Estados capitalistas europeus formaram-se quase sempre pela. pacificacdo de territérios devastados pelas guerras feudais. Com o poder politico instituciona- lizado, que contudo detém o monopélio da violéncia, nas circunstancias normais de dominiacao ela é menos usada do que nos Estados pré-capitalistas. Se pusermos de lado: a) as formas, que nao se pode esquecer, com a me- moéria curta e a leviandade europocentrista de nossos tedricos, de Estados capitalistas de excecdo (fascismos ditaduras militares etc.) que hoje infestam nosso mundo (os tebricos 86 se lembram da violéncia nos paises do Leste) ; b) os casos de terror supremo da guerra (Primei- ra Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial, as ou- tras... e agora a nuclear: quem se preocupava em dizer que © poder moderno nao mais funciona para a morte?) ; ©) @ conjuntura de exacerbacao das Iutas de classe, o emprego efetivo da violéncia aberta fica relativamente limitado ao . Tudo se passa como se 0 Estado precisasse usar menos a forga na medida em que detém ‘© monopélio legitimo. Concluir que o poder e o dominio modernos nao mais se baseiam na violéncia fisica é a iluséo atwpl. Mesmo que essa violéncia néo transpareca no exercicio cotidia- no do poder, como no passado, ela é mais do que nunca determinante, Sua monopolizagao pelo Estado induz as formas de dominio nas quais os multiplos procedimentos de criacao do eonsentimento desempenham o papel prin- cipal. Para apreendé-lo devemos nos distanciar da meté- fora analégica de mera, complementaridade entre vio- léncia e consentimento, calcada na imagem do Centauro 90 (metade-fera, metade-homem), de Maquiavel. A violén- cia fisica nfo existe somente lado a lado com consenti- mento, como duas grandezas mensuraveis e homogéneas que mantém relacées invertidas, de tal como que maior consentimento corresponderia a menos violéncia. Se a violéncia-terror tem sempre um lugar determinante, {sso no se deve ao fato dela se manter constantemente retraida e 86 se manifestar abertamente em situacdes critt@s. A violéncia fisica monopolizada pelo Estado sus- tenta permanentemente as técnicas do poder e 0s meca- nismos do consentimento, estd inscrita na trama dos dispositivos disciplinares e ideoldgicos, e molda a mate- rialidade do corpo social sobre 0 qual age 0 dominio, ‘mesmo quando essa violéncia ndo se eerce diretamente. Também néo se trata de substituir o binémio lei- terror, repressio-ideologia, por um trindmio repressao- normalizagao disciplinar-ideologia, substituindo um ter- ceiru termo numa relac&o de funcionamento inalterado: grandezas heterogéneas e distintas de um poder quanti- ficdvel ou modalidades de exereicio de um poder-essénci. ‘Trata-se de apreender a organizacéo material do poder como relagdo de classe em que a violéncia fisica organi- zada é a condigdo de existéncia e garantia de reproducao. ‘A colocagao das técnicas do poder capitalista, a consti- tuigdéo dos dispositivos disciplinares (o grande “inter- namento”), a emergéncia das instituicdes ideolégico-cul- turais (do Parlamento ao sufragio universal e & escola) pressupdem a monopolizacdo da violéncia pelo Estado, recoberta precisamente pelo deslocamento da legitimi- dade para a legalidade e pelo reino da lei. Esses tedricos pressupoem tanto em sua genealogia historica como em sua existéncia e reprodueao. Para citar apenas um exemplo, 0 exéreito nacional € consubstancial ao Parla- mento ¢ A escola capitalista. Essa consubstancialidade repousa na materialidade institucional comum decorren- te da divisio social do trabalho que seus aparelhos en- carnam e também no fato de que o exéreito nacional, justamente como peca do monopélio pelo Estado da vio- léncia fisica legitima, induz as formas de existéncia e de funcionamento de instituicdes — parlamento, escola — nas quais a violéncia nao precisa se atualizar como 91 “@i. A existéncia regular, a propria constituig&io do’ Par- lamento como editor de leis ¢ impensavel sem a institul- ¢80 do exéreito nacional moderno. Enfim, falemos precisamente da morte. Como néo fazer convergir as transformacoes da maneira como se morre, mais prosaicamente no leito, o verdadeiro inter- dito que choca nas sociedades modernas, a morte e a perda pelos cidadaos “privados” de sua propria morte?* com 0 monopélio pelo Estado do terror publico legiti- mo? O Estado nao funcionaria mais para a morte? Mes- mo quando néo executa (pena de morte), nao mata ou nao ameaca fazé-lo, mesmo quando impede de morrer, © Estado moderno gere a morte pois 0 poder médico est& inscrito na lei moderna. <© A monopolizacio pelo Estado da violéncia legitima Permanece o elemento determinante do poder, mesmo quando essa violéncia nfo é exercida direta e aberta- mente, Essa monopolizacdo esté na base das novas for- mas de lutas sob 0 capitalismo, as quais corresponde o papel dos dispositivos de organizaco do consentimento, pois poder e lutas se atraem e se condicionam mutua- mente. A concentracdo da forca armada pelo Estado, o desarmamento e a desmilitarizacdo dos setores privados — condic&éo para estabelecimento da exploracao capita- lista — contribuem para deslocar a luta das classes, de uma guerra civil permanente de conflitos armados pe- riédicos e regulares, para as novas formas de organiza- co politica e sindical das massas lares, contra as quais a violéncia fisica aberta é, sabe-se, de eficiéncia re- lativa, Um povo “privado ” da forca “publica” j é um que nao vive mais o dominio politico sob a forma de fatalidade natural e sagrada, um povo para o qual © monopélio da violéncia pelo Estado s6 é legitimo na medida em que a regulamentacao juridica e a legalidade The permite esperar, e mesmo permite formalmente e em prinefpio, 0 acesso ao poder. Enfim, o Estado con- centra a violéncia em seus corpos especializados, en- quanto ela cada vez mais é insuficiente para a reprodu- go do dominio, As guerras privadas e aos conflitos armados sob forma de teodicéias repetitivas — incan- savelmente colocadas na ordem do dia, catarse da fata- lidade do poder, guerras pacificadas pela concentragéo da forca armada no Estado — sucede a permanente con- testacao politica ao poder, conseqiiéncia da monopoliza- ‘glio da forea fisica pelo Estado. Os mecanismos de orga- (aco do consentimento instalam-se nos postos avan- ‘ados do poder: é 0 reino da lei capitalista que designa te, lugar aos mecanismos de consentimento, inclusive yb a forma de inculcacdo ideolégica, na exata medida que encobre a monopolizagao da forca fisica pelo stado. Embora 0 papel da lei (pois no nivel geral em que Me coloco aqui ndo faco distincao entre lel e direito) ‘mostre ser essencial no exercfcio do poder como orga- \zador da repressao, da violéncia fisica organizada, nao ‘significa contudo que, nessa acdo, a légica da lei’ seja puramente negativa, de rejelcdo, de barragem ou de ‘obrigagéo de nfo-manifestacdo e mutismo. O poder ja- mais é exclusivamente negativo, pois é algo mais que a lei. A lei em seu papel repressivo comporta um aspecto de positividade elevado, pois a repressdo jamais se iden- tifica @ pura negatividade. A lei nao passa de um conglo- merado de interditos e de censura. Também ¢ a lei, desde 0 direito greco-romano, que emite injuncdes positivas, que proibe ou deixa fazer segundo a maxima de que é permitido o que no é proibido pela lei, mas que faz fazer, obriga a acbes positivas em vista do poder, obriga também a discursos dirigidos ao poder. A lei impde 0 silencio ou deixa dizer, 6 ela que freqtientemente obriga a dizer (a prestar juramento, a denunciar etc.). No ge- ral, a lei institucionalizada nunca foi pura injuncéo de abstengdo ou pura censura, de tal modo que teriamos na organizagao do Estado, de um lado a lei-censura-nega- tividade, e de outro lado “outra coisa” — acdo-positivi- dm@. Essa oposi¢éio é parcialmente errada na medida em que a lei organiza o campo repressivo como. repressio daquilo que se faz quando a lei proibe e também como repressao daquilo que nao se faz quando a lei obriga que se faga. A lei sempre esleve ma ordem social, no sentido em que aparece depois para por ordem num estado na- tural pré-existente, porque é constitutive do campo po- 93 > Iitico-social como codificagdo de mwsaitos e injungbes | positivas. © fortanto, a represséo jamais é pura negatividade: nio se esgota nem no exercicio efetivo da violéncia fisi- ca, nem em sua interiorizaeao, HA na repressio outra coisa da qual raramente se fala: os mecanismos do medo. Mecanismos materiais e nada subjetivados; cha- mei-os de teatralidade do Estado moderno, verdadeiro Castelo de Kafka. Teatralidade inscrita na lei moderna, nos dédalos e labirintos onde essa lei se materializa: que isso se basele no monopélio da violéncia legitima, ¢ do lado Colonia Penal, sempre Kafka, que devemos procurar ‘como compreender. © — untim, a lei detém um papel importante (positivo e negativo) na organizacao da represséo ao qual nao se limita; é igualmente eficaz nos dispositivos de criacaio do consentimento, Materializa a ideologia dominante que af intervém mesmo que néo esgote as razdes do consen- timento. A lei-regra, por meio de sua discursividade e tex- tura, oculta as realidades politico-econémicas, comporta lacunas e vazios estruturais, transpée essas realidades para a cena politica por meio de um mecanismo préprio de ocultacdo-inversao. Traduz assim a representacao imagindria da sociedade e do poder da classe dominante, A let 6, sob esse aspecto, e paralelamente a seu lugar no dispositive repressive, um dos fatores importantes da organizacao do consentimento das classes dominadas, embora a legitimidade (o consentimento) nfo se identi- fique nem_se limite a legalidade. As classes dominadas encontram na lei uma barreira de exclusio e igualmente a designacéo do lugar que devem ocupar, Lugar que é também lugar de insercéo na rede politico-social, cria- dora de deveres-obrigacoes e também de direitos, lugar cuja posse imagindria tem conseqiiéncias reais sobre os agentes. ‘Muitas das agdes do Estado que ultrapassam seu repressivo e ideoldgico, suas intervencdes econd- Tilas ¢ sobretdo 0s coupromissos materiais importos pelas classes dominadas as classes dominantes, uma das razées do consentimento, vém inscrever-se no corpo da 94 Jel, fazendo parte de sua estrutura interna. A lel apenas “engana ou encobre, reprime, obrigando a fazer ou proi- bindo, Também organiza e sanciona direitos reais das ¢lasses dominadas (claro que investidos na ideologia do- minante e que esto longe de corresponder em sua apli- eacio A sua forma juridica) e comporta os compromis- os materiais impostos pelas Iutas populares as classes dominantes. Néio é menos evidente, em oposigéo a toda concep- clio juridico-legalista, e psicanalitica também, tal como ‘Aparece em obras interessantes como a de P. Legendre," ‘que a acdo, 0 papel do Estado em muito ultrapassam a lei ou a regulamentagao juridica, a) A actio do Estado, seu funcionamento concreto nem sempre toma a forma de lei-regra: existe sempre um conjunto de praticas e técnicas estatais que escapa i sistematizagdo e & ordem juridicas. Isso nao quer dizer que sejam “anémicas”, arbitrérias, mas que obedecem a uma logica diferente da ordem juridica, logica da re- lagdo de forgas entre classes em luta cuja lei é apenas investimento & distancia e em registro especifico. “© 5) Fregiientemente o Estado age transgredindo a lel-regra que edita, desviando-se da lei ou agindo contra a propria lel. Todo sistema autoriza, em sua discursivi- dade, delineado como varivel da regra do jogo que orga- niza, 0 ndo-respeito pelo Estado-poder de sua propria lei. ‘Chama-se a isso razdo de Estado, que significa que a lega- lidade 6 compensada por “apéndices” de ilegalidade, e que a ilegalidade do Estado esta sempre inscrita na lega- lidade que institui: o stalinismo e os aspectos. totalité- rios do poder nos paises do Leste nao se devem especial- mente as “violagdes da legalidade socialist”. Todo sistema juridico inclui a ilegalidade assim como com- porta, como parte integrante de seu discurso, vazios brancos, “lacunas da lei”: néo se trata de simples des- cuidos ou cegueira causados pela operacéo ideologica de ccultagéo que sustenta o direito, porém de dispositivos expressamente previstos, brechas para permitir ir além da lei, sem falar das violagdes puras e simples que o Estado faz de sua-lei, que embora parecam transgres- 95

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