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CINDERELA ra uma ver uma pré-mulher (menina) chamada Cindere- 1a, cuja mae verdadeira mor- rera quando ela era pequi na, Poucos anos depois, sei pai casou-se com uma vit- va que tinha duas filhas. A mie-por-enlace-matrimo- sangitinidade (madrasta) de Cinderela tratav mente ¢, suas irmas-nio-carnais (meias-i ziam com que ela trabalhasse duro, como se fosse uma trabalhadora-afro-americana-sem-proventos (es- crava). Um belo dia, chegou pelo correio um convite. 0 CONTOS DE FADAS POLITICAMENTE CORRETOS e dos marginalizados com um grande baile a fantasia. As irmas-ndo-uterinas de Cinderela ficaram radiantes de serem convidadas ao Palacio Real, Comegaram a sonhar com roupas carérrimas que usariam para mo- dificar a imagem natural de seus corpos, em fungao de um falso padrio de beleza feminina (o que, no caso delas, era perda de tempo). Sua mie-nao-natural também planejava ir ao baile, e Cinderela trabalhava ‘como um c&o (nao que isto significasse qualquer de- mérito para com nossos companheiros caninos). Quando o dia do baile chegou, Cinderela ajudou sua Miie-ndo-genitora e suas irmas-néo-consangilineas ho- rizontalmente avantajadas (gordas) ¢ esteticamente di- ferentes (feias) 2 por seus vestidos de baile. Quase foi preciso pedir a intervengio do exército para executara operacio. Em seguida, veio a sessio de maquiagem, que é melhor no ser descrita. Quando a noite chegou, elas foram para o baile e deixaram Cinderela para terminar © servigo de casa. Ela ficou triste, mas se consolou ouvindo seu disco de salmos do Cid Moreira. De repente, fez-se um claro e, diante de Cinderela, apareceu um homem vestindo um colant de lycra roxa, todo trabalhado com migangas e paetés, usando 48 CUNDERELA um chapéu de abas largas enfeitado com plumas € carregando na mao uma varinha de condio, coberta de purpurina e com uma estrelinha na ponta. De inicio, Cinderela pensou que se tratava de uma Drag Queen, mas ele logo foi se apresentando: “Olé Cinderela, sou sua fada madrinha.” Cinderela percebeu de imediato que o rapaz havia feito uma op¢io sexual alternativa como ser humano adulto € consciente que era, ¢ que no cabia a ela qualquer comentirio irénico sobre 0 fato. A fada- madrinha-alternativa continuou: ‘Vocé quer ir 20 bai- le, no 6, fofs? E est4 disposta a se submeter 20 conceito masculino de beleza, ¢ se apertar numa mini justissima, que vai lhe impedir de sentar com conforto e prejudicar sua circulacao? Espremer os pés em sapatos num salto altissimo, que vai armainar sua estrutura dase © wansformr sua coluna numa sanfo- na? Pintar seu rosto com produtos quimicos e maquia- gem, camuflando todos seus tragos nanurais? Fazer uma lipo e tirar um pouco dessa barriguinha, deixan- do vocé toda roxa e dolorida? £ também colocar um pouco de silicone nesses peitinhos para transforms- los em dois meldes duros e voluptuosos?" 49 ‘CONTOS DE FADAS POLITICAMENTE CORRETOS “Claro que quero!", disse ela rapidinho. Sua fada- madrinha-consciente-e-assumida entio suspirou fun- do ¢ decidiu adiar sua educagao politica para outro dia. Com seus poderes mgicas, ele a envolveu numa linda luz brilhante ea transportou para 0 Palacio Real. Centenas de carruagens faziam filas interminaveis diante do palicio naquela noite (aparentemente, nin- ‘guém por ali conhecia manobreiros). Numa carmua- gem dourada, puxada por uma parelha de cavalos exageradamente enfeitados, chegou Cinderela. Ela usava um vestido justo, feito com uma seda deslum- brante, roubada de inocentes bichos-da-seda. Seu cabelo estava preso com guitlandas de pérolas, pro- Guzidas por ostras exploradas. E em seus pés, embora ossa parecer mentira, ela usava sapatinhos feitos do mais puro cristal. (Evidentemente eram totalmente desconfortéveis, mas 0 contrato assinado com o fada madrinha exigia os calcados de cristal para nao des- virtuar totalmente esta histéria ¢ com isso afetar as vendas do livro e sua inevitével adaptacio para uma minissérie na Globo.) Quando Cinderela entrou no baile, todas as cabecas se viraram. Os homens olhavam e desejavam aquela 50 CINDERELA, muther que capturara perfeitamente seu ideal Barbie” de beleza ¢ feminilidade. ‘As mulheres da sala, treinadas desde pequenas a desprezar seus proprios corpos, olharam com des- peito € inveja. A mie-estepe e as irmis-refil de Cin- derela, mortas de despeito, sequer a reconheceram. Os inquietas olhos do principe, que contava piadas sexistas € discutia futebol com os velhos da corte, logo foram atraidos por Cinderela. E, quando a viu, assim como a maioria das pessoas, o principe teve que fechar a boca para no babar. “Bis aqui", pensou ele, “uma garota que eu poderia tomar minha princesa e engravidé-la com uma boa safra de meus espermatozbides perfeitos, tornando- me assim objeto de inveja de todos os principes da Terra. E, além do mais, que avi!” O principe comesou a atravessar o salio em dircgio & sua presa. O mesmo fizeram todos os homens da sala com menos de setenta anos (acima dessa faixa, 6 08 que se locomoviam sem 2 ajuda das esposas). * Nao fechamos nenhum merchandising a respeito, mas, até © final do conto, daremos telefone para contato. 31 ‘CONTOS DE FADAS POLITICAMENTE CORRETOS Até os garcons abandonaram as bandejas ¢ foram ver de perto aquela mulher. Cinderela adorou a comogio que criara. Andava de cabeca erguida ¢ se portava como uma dama de alta condigio social. Mas logo ficou claro que a comogio estava degringolando e se tornando disfuncio social. © principe deixou claro para seus amigos que pretendia “papar” aquela jovem. E isso aborreceu a rapaziada, que também planejava passar na cara aquela apetitosa loura. O duque, que era meio débil, ‘mas bem mais forte que o principe, interrompeu-o no meio do salao e declarou que Cinderela era dele. Que jf estava no papol A resposta do principe foi um chute no meio das pernas do duque, que o deixou falando fino e temporariamente fora do pireo. Comegou-se um empurra-empurra, e’o principe foi agarrado por ‘outros homens enlouquecidos sexualmente, até que desapareceu numa pilha de animais humanos. A violencia tomou conta do salfo, ¢ o baile a fantasia parecia um “baile funk", com farta distribuicao de tapas, socos e pemadas. Até representantes do clero entraram na briga para defender seus interesses. Al- ‘guns afro- garcons (garcons negros) improvisaram um 52 CINDERELA, rap pela ndo-violéncia, mas nao conseguiram nenhum apoio das gravadoras, interessadas apenas na cultura branca opressora. Essa demonstracio viva de forga da testosterona assombrou as mulheres, que, embora tentassem, no conseguiam separar os combatentes. Para elas, estava claro que Cinderela era 2 causa do conflito. Entio 2 cercaram e comecaram a demonstrar sua hostilidade. Cinderela tentou escapar, mas os sapatinhos de cristal atrapalharam sua corrida. Sorte dela que 2s outras também tinham sapatos apertados. ‘A confusao era tanta, que ninguém ouviu 0 relégio bater meia-noite. Quando a dltima badalada soou, 0 lindo vestido e os sapatinhos de Cinderela desapare- ceram, ¢ cla se apresentou novamente esfarrapada em seus trajes de camponesi. Sua mie-postica ¢ suas iemis-de-araque reconheceram-na de pronto, mas se calaram, para evitar constrangimento. Com essa transformacio magica, as mulheres silen- ciaram. Livre do confinamento de seu vestido e de seus sapatos apertados, Cinderela suspirou, cogou 2s costelas, esfregou os pés e depois cheirou a mio, para ver se estavam fedidos. Fez tudo sem se importar com 33 ‘CONTOS DE FADAS POLITICAMENTE CORRETOS © modos grosseiros para uma moga, e disse: “Matem- ‘me agora se quiserem, garotas. Pelo menos vou mor- rer confortavelmente." A inveja tomou conta outra vez das mulheres, mas, em vez de se vingarem dela, arrancaram seus cor- petes, sutians, sapatos ¢ tudo que as prendia e confi- ava. Dangaram, pularam e gritaram de pura alegria, sentindo-se soltas e desinibidas finalmente, sem rou- Pas € com os pés descalcos. Se os homens tivessem 20 menos olhado, lé de sua roca de socos machista e destrutiva, teriam visto muita mulher pelada, pronta para a cama, Mas eles, do cessavam de se esmurrar, bater, chutar e agarrar, até que morreram todos, até o tiltimo. As mulheres no sentiram remorsos. O palicio e 0 reino eram delas agora. Seu primeiro ato oficial foi vestir os homens que sobraram com as roupas delas © obrigaram-nos a fazer gindstica, dieta, tirar cuticulas, usar hidratantes a base de colageno e freqientar saldes de beleza! Seu segundo ato foi montar uma ‘cooperativa que s6 produzia roupas femininas confor- taveis, incluindo sutians e caleinhas que jé vinham frouxos de fabrica. A nova confeccio foi batizada de 54 CINDERELA “Cindy-Roupas". Com o sucesso, Cinderela, sua mie- de-araque, suas irmis-de-bosta ¢ todas as mulheres do reino se deram bem e viveram felizes para sempre. 8

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