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Revista Critica de Ciénetag Sociais n* 4/5 Outubro 1980 FREDRIC JAMESON (*) REIFIOAGAO E UTOPIA NA CULTURA DE MASSAS A teoria da cultura de massas — ou cultura para o grande pablico, cultura comercial, cultura «popular», indtistria da cul- tura, as diversas formas como é conhecida —tendeu sempre fa definir o seu objecto em oposigao A chamada alta cultura, sem Teflectir sobre o estatuto objectivo desta oposigio. Como to frequentemente acontece, as posigdes neste campo redu- zem-se a duas imagens que se espelham uma a outra, e sio apresentadas essencialmente em termos de valor. Assim, 0 mo- tivo corrente de elitismo argumenta a favor da prioridade da cultura de massas devido & quantidade imensa de pessoas que cla atingo; estigmatiza-se entio a prética de uma cultura supe- Tior ou hermética como sendo passatempo de casta de pequenos grupos de intelectuais. Como o seu pendor anti-intelectual deixa entender, esta posi¢éo essencialmente negativa tem pouco con- telido tedrico, mas responde claramente a uma conviegio funda- mente enraizada da esquerda radical americana e articula uma pereepeao bem alicergada de que a alta cultura é um fenémeno do sistema, irremediavelmente manchado pela sua ligagio &s instituigdes, em particular & Universidade. O valor invocado é, por conseguinte, um valor social: seria preferivel tratar de pro- gramas de televisio, O Padrinko ou o Tubardo, em vez de Walla- ce Stevens ou Henry James, porque aqueles falam claramente (2), Fredric Jameson ¢ actualmente professor da Universidade de Yale (EU.A). Becreveu, entre outres obras, Martism and Form (1811), The Prison “House of Language. A Critical Account of Structuralism and Russian Forma lism (1972) ¢ Fables of Aggression: Wyndham Lewis, The Modemist as Fascist (1579), assegurando, alsin disso, uma ‘colaboragio regular a numerosas publi- Sagdet, O presente esto fol tadurido do. nimero Maugural da revista Norte- ‘americana Social Test (Winter 1979), pp, 1306148, 18 Fredric Jameson ‘uma linguagem cultural que tem signifieado para estratos da populagio muito mais amplos de que 0 representado socialmente pelos intelectuais, Os radicais, porém, aio também intelectuais, de modo que esta posi¢ao tem ressonineias suspeitas de mi conseiéneia, ao mesmo tempo que no se da conta da atitude anti-social e eritica, negativa (embora geralmente nio-revolu- ciondria), de boa parte das mais imporiantes formas da arte moderna; finalmente, nao fornece nenhum método para a Jeitura sequer dos objectos culturais que valoriza e pouca coisa de inte- esse tem tido a dizer sobre o seu contetido. Esta posigio inverte-se na teoria da cultura elaborada pela Hscola de Frankfurt; como seria de esperar desta antitese exaeta da posigéo radical, a obra de Adorno, Horkheimer, Mar- cuse e outros é uma obra intensamente tedrica ¢ fornece uma metodologia operatéria para a andlise pormenor'zada precisa- mente dos produtos da indiistria da eultura que estigmatiza e que a perspectiva radical exaltava, Resumidamente, esta concepgac pode ser caracterizada como a extensio ¢ aplicagio de teorias marxistas da reif.cagio na forma da mereadoria as obras da cultura de massas, A teoria da reifieacéo (aqui fortemente im- pregnada da anilise da racionalizagao por Marx Weber) descreve a Maneira como, no capitalismo, as antigas formas tradicionais da actividade humana so reorganizadas e «taylorizadas> ins- trumentalmente, fragmentadas analiticamente e reconstruidas segundo varios modelos racionais de eficiéncia, ¢ reestruturadas essencialmente segundo as linhas de uma diferenciagio entre meios e fins, Mas esta 6 uma ideia paradoxal: s6 podemos apre~ cié-la devidamente depois de compteendermos até que ponto a cisio meios/fins pbe de facto entre paréntesis ou suspende os proprios fins, e dai o valor estratégico do termo — quer dizer, sobrenatural ou divina — perfeitamente diferente. B s6 com’a transformagio geral da forca de trabalho numa Cultura de Masses 19 mereadoria, que O Capital de Marx designa como condigio prévia fundamental do eapitalismo, que todas as formas de trabalho humano podem ser precipitadas da sua diferenciagao qualitativa irredutivel como tipos distintos de actividade (a exploragio mineira oposta A agricultura, a composi¢ao de 6pe- ras diferente da manufactura téxtil), e serem todas ordenadas ‘sem excepgio sob o denominador comum do quantitativo, isto 6 sob o valor universal de troea do dinheiro, Neste ponto, portanto, a qualidade das diferentes formas da actividade humana, os seus «fins» ou valores irredutiveis e distintos, foi efectivamente posta entre paréntesis ou suspensa pelo sistema do mercado, deixando todas estas actividades & mere€ de uma reorganizagio impiedosa em termos de eficiéncia, como simples meios ou simples instrumentalidade, ‘A forea da aplicagio desta idela a obras de arte pode ser medida em contraposiedo com a defini¢io da arte pela filosofia estét'ea tradicional (especialmente por Kant) como uma «fina- lidade sem fim», quer dizer, como uma_actividade orientada para um objectivo que, no obstante, nfo tem qualquer pro- pésito ou fim pratico no «mundo real» dos negécios ou da politica ou da praxis humana conereta em geral. Esta definigo tradicional é seguramente valida para toda a arte que funciona como tal: nao para histérias falhadas, cinema caseiro ou rabis- cadelas poéticas sem tino, mas sim para as obras bem sticedidas tanto da cultura de massas como da alta cultura, Suspendemos as nossas vidas reais e as nossas preocupacses priticas imedia- tas tdo completamente quando vemas O Padrinko como quando lemos The Wings of the Dove ou ouvimos uma sonata de Beethoven. Neste ponto, contudo, 0 eoneeito de mereadoria introduz a possibilidade de uma diferenciagio estrutural e histériea naquilo que era concebido como deseri¢ao universal da expe- rigncia estética como tal e fosse sob que forma fosse. O conceito de mercadoria intersecta 0 fendmeno da reifiea¢do — descrito atris em termos da actividade ou de producio —de um Angulo diferente, 0 do consumo. Num mundo em que tudo, ineluindo a forga de trabalho, se transformou numa mereadoria, os fins nfo permanecem menos indiferenciados do que no esquema da produgio; esto todos rigorosamente quantificados e torna- ram-se comparaveis abstractamente por intermédio do dinheire —o seu prego ou salirio respective, Podemos, contudo, expri- mir a sua instrumentalizagéo, a sua reorganizacio segundo a cisio meios-fins, de nova forma, dizendo que, pela transfor- macio em mercadoria, uma coisa, seja de que tipo for, fol reduzida, a um meio para o seu proprio consumo, Jé nao tem 20 Fredric Jameson qualquer valor qualitativo em si prépria, tem-no apenas na medida em que pode ser : as diversas formas de acti- vidade perdem as suas justificagdes intrinseeas imanentes enquanto actividade e tornam-se meio para um fim. Os objectos do mundo de mercadorias do capitalismo perdem também o seu «ser» independente ¢ as suas qualidades intrinsecas e transfor- mam-se noutros tantos instrumentos de satisfagio enquanto mereadoria: exemplo corrente 6 o do turismo — o turista ame- ricano j4 no deixa a paisagem «ser no seu sendo», como teria dito Heidegger, mas tira um instanténeo dela, transformando assim graficamente 0 espago na sua propria imagem material. A actividade conereta de olhar para uma paisagem — inchuindo, sem diivida, o desnorteamento inquietante perante a propria actividade, @ ansiedade que necessariamente se gera quando seres humanos, postos perante 0 nfio-humano, se interrogam sobre o que estio a fazer ali e sobre qual poderia ser, antes do mais, a razio ou 0 objectivo de uma tal confrontagio— é assim substitufda confortavelmente pelo acto de tomar posse dela e converté-la numa forma de propriedade pessoal. E este o sen- tido da grande cena em Las Carabiniers de Godard em que os novos conquistadores do mundo exibem o produto do seu saque: a0 contrario de Alexandre, possuem apenas as imagens de tudo e mostram triunfantemente as suas fotografias do Coliseu, das Pirdmides, de Wall Street, de Angker Wat, como se fossem fotografias pornogréfieas. & também este o sentido da afirma- Gao de Guy Debord num livro importante, A Sociedade do Espec- téculo, segundo a qual a forma suprema da reificagio na forma de mercadoria na sociedade de consumo contemporanea 6 preci- samente a prépria imagem. Com esta transformacio geral do nosso mundo de objectos em mereadorias, fazem-se também as andlises bem eonhecidas da orientagio-para-o-outro do con sumo exibicionista préprio do nosso tempo e da sexualizacio dos nossos objectos ¢ actividades: 0 carro de novo modelo é, essencialmente, uma imagem pata os outros terem de nés, ¢ consumimos menos a propria coisa do que a sua ideia abstracta, susceptivel dos investimentos libidinosos que a publicidade habilmente nos arranja. evidente que esta deseri¢aio do processo de transfor- magio em mereadorias tem uma relevineia imediata para a estética, quanto mais ndo seja por implicar que, na sociedade de consumo, tudo adquiriu uma dimensio estética, A forea da anilise da indistria da cultura por Adorno-Horkheimer reside, contudo, na sua demonstracio da introducio inesperada e im- perceptivel da estrutura da mercadoria na propria forma e contefido da obra de arte, Isto é, no entanto, algo de semelhante Cultura de Massas 21 & absoluta quadratura do cfreulo: o triunfo da instrumentali- zagio sobre a Ned Land a explodir finalmente de firia), organizando as suas frases em paragrafos, cada um dos quais constitui por si s6 um sub-enredo, ou em torno da estase propria de objecto da frase ou. do quadro «dramatico»; todo o ritmo de uma tal leitura é entretanto, sobredeterminado pelas suas ilustra- cées intermitentes, que, antes ou depois do facto, confirmam de novo a nossa fuuncio de leitores, que é transformar o fluxo transparente da linguagem tanto quanto possivel em imagens e objectos materiais que possamos consumir. Esta é no entanto, uma fase ainda relativamente primi. tiva da transformagio da narrativa numa mercadoria, Mais subtil e interessante & a forma como, desde o naturalismo, 0 best-seller tendeu a produzir um nas diversas sagas podem ser vistos como outras tantas mereadorias para cuj consumo as narrativas pouco mais sio que meios, sendo a sua material dade essencial confirmada e encarnada na miisiea que acom- panha as suas versdes para a tela, Esta diferenciagio estrutural entre a narrativa e um clima de pressentimento consumivel 6 uma manifestacio mais ampla ¢ histérica, ¢ formalmente mais significativa, da espécie de do passado. Assim, se a tragédia grega, Sha- Kespeare, 0 Don Quijote, a liriea romantica ainda muito lida do tipo da de Hugo ou romances realistas de grande éxito como 24 Fredric Jameson os de Balzac ou de Diekens forem enearados como combinando um amplo piblico «popular» com uma elevada qualidade esté- tica, fiea-se fatalmente preso em falsos problemas como o do valor relativo — medido em relacio a Shakespeare ou mesmo a Dickens —de auteurs contemporineos populares de alta quali- dade como Chaplin, John Ford, Hitchcock, ou mesmo Robert Frost, Andrew Wyeth, Simenon ou John O'Hara. O absoluto sem-sentido deste interessante assunto de conversa torna-se claro quando se chega conelusio que, de um ponto de vista histérico, a tinica forma de nova por si sé: nao apenas é a mercadoria a forma primeira em enjos termos, ¢ 86 neles, 0 modernismo pode ser estruturalmente compreendido, mas os préprios ter- mos da sua solugio—a concepe%o do texto modernista como produgao e protesto de um individuo isolado, e da légica dos seus sistemas de signos como outras tantas linguagens parti culares ( ou da «producao textual> pela tradigéo francesa, que baseia a sua autoridade em Althusser e Lacan, Se se est disposto a jogar com a possibilidade de a que nao tém original) caracteriza a producio de mereadorias do capitalismo de consumo e marca ‘0 nosso mundo de objectos com uma irrealidade e uma ausén- cia A deriva do ereferente> (por exemplo, o lugar ocupado até agui pela natureza, pelas matérias-primas e pela producio priméria, ou_pelos «originais» da producio artesanal ou ma- nual) que nfo tem absolutamente nenhuma semelhanga seja com o que for da experiéneia de qualquer formagio social anterior. Se isto é verdade, entio esperariamos que a repeticio constituisse mais uma caracteristica da situacio contraditéria da produefio estética contemporanea & qual tanto o modernismo como a cultura de massas, de uma maneira ou de outra, nio podem sendo reagir. Aasim é de facto, ¢ basta evocar a posicio ideoldgiea tradicional de toda a teoria e pritica modernizantes desde os rominticas até ao grupo Tel Quel, pasando pelas for- Cultura de Massas 27 mulagées hegeménicas do modernismo anglo-americano classico, para observar a insisténcia estratégica na inovagio ¢ na novi- dade, a ruptura foreosa com estilos anteriores, a pressio «to make it new» — que aumenta em progresséo geométrica com a historicidade cada vez mais rapida da sociedade de consumo, em que os estilos ou modas mudam todos os anos ou trimestres —pressio para produzir uma coisa que resista ¢ venca a forca da gravidade da repetigao como caracteristica universal da equivaléncia entre mereadorias. Tais ideologias estéticas nio tém, € claro, valor critico ou tebrico— quanto mais nio seja porque 840 puramente formais e, a0 abstrairem um conceito vazio de inovagio do contetido conereto da mudanca. estilistica em qualquer perfodo dado, acabam por obliterar a propria his- téria das formas, jf sem falar da historia social, e por projee- tar uma espécie de visdo cfelica da mudanca — mas so sinto- mas titeis para detectar as maneiras como 0s diversos moder- nismos foram forcados, a despeito de si proprios, e no cere mesmo da sua forma, 'a responder 4 realidade objectiva da propria repeticio. Na nossa época a concepedo pés-modernista de «texto» e 0 ideal da eserita esquizofrénica demonstram aber- tamente esta vocaciio da estétiea modernista para produzir frases que sio radicalmente descontinuas ¢ desafiam a repe- tigio, nao apenas ao nivel da ruptura com formas ou modelos formais anteriores, mas agora dentro do microcosmos do pré- prio texto, Entretanto, os tipos de repetic’o de que, de Ger- trude Stein a Robbe-Grillet, 0 projecto modernista se apropriou e tornou seus podem ser vistos como uma espécie de estratégia homeopitica em que o escandaloso ¢ intolervel elemento irri- tante externo 6 arrastado para 0 proprio processo estético ¢, assim, sistematicamente re-utilizado, «representado» e simboli- ‘eamente neutralizado. #, porém, claro que a influencia da repeticio sobre a cultura’de massas no foi menos decisiva. Na verdade, tem sido observado com frequéncia que os discursos genéricos antigos —estigmatizados pelas varias revolugées modernistas, que repudiaram sucessivamente as velhas formas fixas da Iirica, da tragédia e da comédia o, finalmente, até o proprio «roman. ce», substituido agora pelo «Livres ou «texto» inclassificével — continuam uma vigorosa existéncia péstuma na esfera da cul tura de massas. Os livros expostos em drugstores ou aeroportos reforgam todas as distingdes, agora subgenéricas, entre 0 romance gético, o best-seller, o livro policial, a fiecio cientifica, a biografia ou a pornografia, o mesmo acontecendo com a clas- sificagio convencional das séries semanais de televisio e com fa produgio e comereializagio dos filmes de Hollywood (eviden- 28 Fredric Jameson temente que o sistema de géneros existentes no filme comercial contemporaneo 6 completamente distinto do padrio tradicional da producio dos anos 30 ¢ 40 e teve que responder & competi- clo da televisio inventando novas formas meta-genéricas ou englobantes, elas prdprias geralmente reduplicadas por roman- ces por direito proprio e voltam a eneaixar-se na estereotipificagdo e reprodugao gené- ricas usuais). ‘Temos, porém, de especificar historicamente esta evolu- qo: os antigos géneros pré-capitalistas eram manifestacoes de algo como um «contrato> estético entre um produtor cultu- ral e um certo pitblico homogéneo de classe ou de grupo; iam buscar a sua vitalidade ao estatuto social e colectivo — que, evidentemente, variava muito consoante o modo de producto em causa —da situagio da producio e do consumo estético, quer dizer, ao facto de que a relacao entre artista ¢ ptiblico era ainda, de ura mancira ou de outra, uma instituieio social e uma Telagio social e interpessoal concreta com a sua validade ¢ especificidade proprias. Com o advento do mercado, este esta- tuto institucional do consumo e produgio artisticos desaparece: a arte torna-se mais um ramo da produgio de mercadorias, 0 artista perde toda a posicdo social e enfrenta as opcdes de'se transformar num poste maudit ow num jornalista, a relacio com © pliblico torna-se problemitica e este transforma-se num vir- tual so um testemunho revelador deste novo ¢ intolerével estado de coisas). A sobrevivéncia do género na cultura de massas emer- gente nao pode, por conseguinte, ser de modo algum encarada como um retorno a estabilidade dos pttblicos das sociedades pr6-capitalistas: pelo contririo, as formas e sinais genéricos da cultura de massas devem ser compreendidos muito especifica- mente como reapropriacio e deslocamento histéricos de estru- turas antigas, ao servico da situacio, qualitativamente muito diferente, da repeti¢ao. O «piblico> atomizado ou serial da cul- tura de massas quer voltar a ver sempre a mesma coisa, dai a preméncia da estrutura e do sinal genér:cos; se se duvida disto, pense-se na consternagio que se sente ao descobrir que 0 livro eseolhido na prateleira dos policiais se vem a reve- lar como obra romanesea cu de ficcdo cientifica; pense-se na exasperagio das pessoas da fila & frente da nossa que Cultura de Masses 29 compraram os bilhetes juigando que iam ver um filme de ‘emogio ou um filme politico, em vez do filme de horror ou de ocultismo que na realidade est a ser passado, Pense-se tam- bem na da televisio, por demais mal compreendida: a razio estrutural da incapacidade das diversas séries televisivas para produzir episédios que sejam socialmente ‘crealistas> ou tenham uma autonomia estética e formal que transcenda ‘a simples variagio tem bem pouco a ver com o talento das pessoas envolvidas (embora seja certamente exa- cerbada pelo «esgotamento» crescente do material e pelo ritmo, em constante aumento, da producto de novos episédios), mas reside precisamente na nossa . ‘A situacio 6 mais ou menos a mesma no que se refere ao ¢'ne- ma, embora aqui surja institucionalizada na distingio entre o filme americano (agora multinacional)—que determina a expectativa de uma repeticio genérica —e os filmes estrangei- ros, que determinam um reajustamento do shorizonte de expec- tativa» para a recepgio do diseurso ede alta cultura» dos cha- mados filmes de arte. Bista situagio tem consequéncias importantes para a and- lise da cultura de massas, que nio foram ainda plenamente avaliadas. O paradox filos6fico da repeti¢io —formulado por Kierkegaard, Freud e outros — pode ser compreendido a partic do facto de que, por assim dizer, ele s6 pode ter lugar epela segunda vez». O acontecimento primeiro nio 6, por definicio, a repeti¢fio de nada; ele é entio reconvertido em repeti¢io & segunda vez pela accio peculiar daquilo a que Freud chamou «retroactividades (Nachtriiglichkeit). Mas isto signifiea que, como acontece com 0 simulacrs, nfo existe uma «primeira vez* da repeticio, nenhum «originals de que sucessivas repetigies sejam simples edpias, Também aqui o modernismo fornece um eco curioso, na sua produgéo de obras que, como a Fenome: nologia de Hegel, como Proust ou o Finncgans Wake apenas 5° podem reler. Apesar de tudo, no modernisms, o texto hermético permanece, nfo apenas como um Everest 2 atacar, mas tam- ‘bém como um livro a cuja realidad estavel se pode voltar repe- tidamente. Na cultura de massas, a repeticdo yolatiliza efectiva- mente o objecto original —o «texto», a nium elube nocturno, num concerto num esté- io ow nos discos que se compram e se levam para casa para ouvir, Esta é uma situagdo muito diferente da perplexidade de uma primeira audigio de uma pega clissica complexa, que voltamos a ouvir na sala de concertos ou em casa. A adesiio apaixonada que se pode dar a esta ou aquela pega pop, o rico investimento pessoal de toda a espécie de associagdes privadas e de simbolismo existencial que é a caracteristica dessa adesio, siio tanto fungio da nossa propria familiaridade como da obra em si: a peca pop, por melo da repetigéo, torna-se insensivel- mente parte da trama existencial das nossas vidas, de modo que aquilo que ouvimos 6 nés préprios, as nossas proprias audi- Ges anteriores. Nestas circunstincias, néo faria sentido tentar recuperar uma impressio do texto musical coriginal> tal como ele era realmente ou como poderia ter sido ouvido «pela primeira vez». Sejam quais forem os resultados de um tal projecto académico ‘ou analitico, o seu objecto de estudo seria perfeitamente dis- tinto, seria ‘constituido de forma perfeitamente diferente, do mesmno «texto musical» concebido como cultura de massas ou, noutras palavras, como pura repeticao. O dilema do estudioso da cultura de massas reside, por conseguinte, na auséncia estru- ‘tural, ou na volatilizagio repetitiva, dos textos primérios»; também nfo se ganha nada com a reconstituigio de um «cor- pus» de textos &’maneira, por exemplo, dos medievalistas, que trabalham com estruturas genéricas ¢ repetitivas pré-capita- listas s6 superficialmente semelhantes as da cultura de massas ou comercial contemporinea, Na minha maneira de ver, tam- bém nada fica explicado pelo recurso ao termo muito em voga de cintertextualidade>, que me parece, na melhor das hipéteses, designar mais um problema que uma solugio. A cultura de massas poe-os perante um dilema metodolégico que o habito convencional de postular um objecto estavel de comentério ou exegese na forma de um texto ou obra priméria no deixa ver, e muito menos resolver; também neste sentido, uma concepcio dialéetica deste campo de estudos em que o modernismo e a Cultura de Massos 1 cultura de massas sejam entendidos como um s6 fenémeno historico e estético tem a vantagem de postular a sobrevivéncia do texto primario num dos seus polos ¢, assim, de fornecer um fio condutor para a exploragao desconeertante do universo estético que se situa no outro, uma massa de mensagens ou um Sombardeamento semiotico de que desaparocon 0 referente textual. As reflexdes feitas atris de modo algum levantam, e muito menos visam directamente todas as questées mais pre- mentes com que se defronta uma abordagem da cultura de massas nos nossos dias. Negligenciimos, em particular, uma apreciagio um tanto diferente da cultura de massas, que deriva ‘também vagamente da posicSo da Escola de Frankfurt sobre © assunto, mas entre cujos adeptos se incluem tanto —reduzida a pegas de teatro, a poemas e a concertos para intelectuais — é por exce- leéncia a actividade mais trivial ¢ nio-séria da «vida real» dessa corrida de ratazanas que é a existéncia quotidiana, No entanto, mesmo a vocacéo do esteta (avistado pela tiltima vez nos E.U. durante 0 apogeu pré-politico dos anos 50) e do seu sueessor, © professor de literatura da universidade, tinha um conteido socialmente simbélico ¢ exprimia (em geral ineonscientemente) a ansiedade gerada pela competi¢io no mercado e o repiidio do primado de objectivos e valores comerciais: estes sio entdo, 6 evidente, suprimidos tao completamente do formalismo aca- démico como a cultura o é da obra dos socidlogos da manipul do, supressio que permite explicar em larga medida a res téncia e atitude defensiva dos estudos literdrios contemporaneos perante seja o que for que faga lembrar a reintrodugio penosa dessa «vida real>—o contexto sdcio-econdmico, 0 contexto hist6rico —que a vocacéo estétiea tivera antes ‘de mais por fungio negar ou camuflar. ‘A pergunta que temos de fazer aos sociélogos da mani- pulagio € se eles habitam 0 mesmo mundo que nés. Falando em nome pelo menos de alguns, direi que a cultura, longe de consistir na leitura casual de um bom livro por més ou numa ida a0 drive-in, me parece ser o elemento mesmo da prépria sociedade de consumo: nenhuma sociedade esteve jamais tio saturada com signos ¢ mensagens como esta. Se seguirmos a tese de Debord sobre a omnipresenca e a omnipoténcia da ima- gem no capitalismo dos nossos dias, entiio o que acontece 6 que as prioridades do real se invertem e tudo é mediado pela cul: tura até um ponto em que mesmo os compa- ‘rativas, de cada uma destas mensagens filmicas. No caso do Tubardo, contudo, a versio ou varante em eontraposicio com a qual vamos ler o filme nfo 6 a segunda parte, inferior e decepeionante, mas sim o romance de enorme tiragem a partir do qual foi adaptado o filme —uma das atrac- ges de bilheteira de maior éxito da hist6ria do cinema, Vamos Ver que a adaptacao implicou modifieacdes significativas da narrativa original; ‘na verdade, a nossa atencdo a essas altera- Cultura de Massas 37 Ges estratégicas pode levantar algumas suspeitas iniciais sobre 0 contetido oficial ou «manifesto» preservado em ambos estes textos e em que a discusso sobre o Tubardo tendeu, na maior parte, a centrar-se, Assim, os eriticos, desde Gore Vidal e do Pravda até Stephen Heath, tenderam a acentuar 0 problema do proprio tubario e daguilo que ele «representa»: uma especu- lagio deste tipo vai das ansiedades psicanaliticas as ansiedades histéricas sobre 0 Outro que ameaca a sociedade americana —seja a conspiragio comunista ou o Tereelro Mundo— e abrange mesmo os receios sobre a irrealidade da vida quoti- diana na América dos nossos dias, em particular, a persisténcia obsessiva e inominivel do orginico—nascimento, eépula, morte —, que a sociedade de celofane do capitalismo de con- sumo confina desesperadamente em hospitais e asilos para velhos e higieniza por meio de toda uma estratégia de eufe- mismos lingufsticos que se vém acrescentar aos antigos, de natureza puramente sexual, Nesta perspectiva, as praias de Nantucket a este. E claro que_a inexactidio histériea (como, por exemplo, encaixar os anos 50 nos anos 60 e 70, na narragdo da carreira de Hoffa em F.LS.7.) pode frequentemente fornecer uma via sugestiva para a compreensiio da fungio ideolégica: nao porque haja qualquer virtude cientffica nos proprios factos, mas antes como sintoma de uma resisténeia da «légica do con- 42° Fredric Jameson ‘tetido», da substéncia da historicidade em questo, ao paradigma narrativo e ideologico a que foi, assim, assimilado a forca. O Padrinho, contudo, funciona obviamente dentro de uma convencio genérica, que altera; muito haveria a dizer sobre as sucessivas funcdes sociais ¢ ideolégicas desta convencio, mos- trando como motivos andlogos so invocados em situagées his- torieas distintas para emitir mensagens estrategicamente dis- tintas, mas simbolicamente inteligiveis. Assim, os gangsters dos filmes eléssicos dos anos 30 (Robinson, Cagney, ete.) eram caracterizados como psicopatas, solitdrios perturbados que se Iancavam contra uma sociedade constitufda essencialmente por pessoas integras (0 e orga- nizada. Que espécie de crime, diz Brecht, é 0 assalto a um baneo, comparado com a fundagio de um banco? No entanto, até hi Poueos anos, o grande capital americano gozou de uma singular liberdade frente & eritica popular e & indignagao colectiva orga- nizada; desde a despolitizacao do New Deal, a era de MeCarthy € © comeco da Guerra Fria e da sociedade de consumo ou dos meios de comunicacao de massa, que ele beneficiou de uma ‘trégua inexplicdvel por parte de formas de antagonismo popu- lista que s6 recentemente mostraram sinais de reaparecer (cri- mes em empresas, hostilidade a eompanhias de servigos piblicos ou & profissio médica). Esta imunidade as censuras é tanto. mais digna de nota se observarmos a miséria crescente que @ vida quotidiana nos E. U. deve ao grande capital, e & sua posi- eGo pouco invejivel como a forma mais pura de capitalismo de mereado existente no mundo de hoje. B este o contexto em que pode compreender-se a funcio ideolégica do mito da Mafia como substituicao do grande capital pelo crime, como deslocamento estratégico de toda a raiva gerada pelo sistema americano para esta imagem especular do grande capital dada pela tela e pelas varias séries televisivas, subentendendo-se que o fascinio com a Mafia permanece ideo- logico mesmo se, na realidade, o crime organizado tiver exac- ‘tamente a importancia ¢ influéneia na vida americana que essas representagGes Ihe atribuem. A funcdo da narrativa da Mafia 6 na vendade, encorajar a convieedo de que a deterioracao da vida quotidiana nos Estados Unidos hoje em dia & uma questo ética, e no econémica, relacionada, nfo com o luero, mas antes, «simplesmente», com'a desonestidade e com uma corrupedo moral omnipresente cuja fonte mitiea tiltima reside no Mal puro dos proprios mafiosos. O mito da Mafia substitui estrategica- mente uma compreensio genuinamente politiea das realidades econémicas do capitalismo avangado pela visio daquilo que & eoneebido como uma aberracio criminosa em relagao & norma, e nio como a propria norma; na realidade, o deslocamento da aniilise politica e histérica através de juizos e eonsideragdes éticas & geralmente sinal de uma manobra ideolégica e da inten- do de mistificar. Os filmes sobre a Mafia projectam, assim, uma das contradigdes sociais — ineorruptibilidade, honestidade, Iuta contra o crime ¢, finalmente, a propria lei-e- -ordem —o que é, evidentemente, uma proposta muito diferente daquele diagnéstico da miséria americana que levasse a receitar a revolugéo social. 44 Fredric Jameson ‘Mas, se é esta a funcio ideolégica de narrativas sobre a Mafia, como O Padrinko, qual poder dizer-se que é a sua funcao transcendente ou utdpica? Esta deve ser buseada, parece-me a mim, na mensagem de fantasia projectada pelo titulo deste filme, isto é, na propria familia, vista como um simbolo de colec- tividade e como objecto de uma nostalgia utépica, se nio de uma inveja utépica, Uma sintese narrativa como 0 Padrinko 86 é possfvel na conjuntura em que um contetido étnico — a refe- réneia a uma colectividade estrangeira— vem ocupar © lugar dos velho; esquemas de gangsters e inflecti-los fortemente na direc do social; a sobreposicao de matéria de fantasia rela- cionada com grupos étnicos & conspiracio faz deflagrar a funcdo utépica deste paradigma narratiyo transformado. Nos Estados Unidos, na realidade, os grupos étnicos nao sio apenas objecto de preconeeitos, so também objecto de inveja; estes dois im- ulsos estio profundamente misturados e reforcam-se mutua mente, Os grupos dominantes da clasie média branca — ja entregues & anomic e & fragmentagio e atomizacio sociais — encontram nos grupos étnicos e raciais que sio objecto da sua repressio social e do seu desprezo de casta 20 mesmo tempo a imagem de um gueto colectivo antigo ou de uma solidariedade étniea de vizinhanea; eles sentem a inveja eo resvontiment que a Gesellschaft sente pela antiga Gemeinschaft que, s'mul- taneamente, esté a explorar ¢ a liquidar. ‘Assim, numa altura em que a desintegracio das comuni- dades dominantes 6 «oxplieada> persistentemente nos termos (profundamente ideolégicos) de uma deterioracio da familia, do aumento da permissividade e da perda de autoridade paterna, © grupo étnico pode dar a impressao de projectar uma imagem de reintegrac&o social através da familia patriareal ¢ autori- téria do passado. Os lagos fortemente apertados da familia (nos dois sentidos) da Mafia, a seguranca protectora do Padr(e)inho, com a sua autoridade omnipresente, proporcionam um pretexto contemporineo para uma fantasia utdpica que jt m&o pode exprimir-se através de paradigmas e esteredtipos antiquados como a imagem da pequena cidade americana, ja desaparecida. A forea de atraegao de um artefacto cultural de masisas como 0 Padrinho pode, assim, ser medida pela sua capacidade dupla de desempenhar uma funedo ideolégica 20 mesmo tempo que fornece o veiculo para o investimento de uma fantasia utépica desesperada. No entanto, do nosso ponto de vista pre- sente, o filme é duplamente interessante pela forma como a sua continuagio —liberta das restriedes do texto de fiegio de grande sucesso em que se baseara a primeira parte — trai de modo evidente o peso e o moilo de funcionamento de uma légica Cultura de Maseas 4S ideol6gica e utépica em algo de semelhante a um estado livre ou sem restrigdes. O Padrinko II fornece-nos, na realidade, uma ustracio flagrante da tese de Pierre Macherey, em Para uma Teoria da Produgdo Lideréria, de que a obra de arte nao exprime tanto a ideologia como, ao dar-lhe uma representagio e uma figuragao estéticas, acaba por eneenar o seu. desmascaramento ¢ autocritica virtuais. B como se os impulsos ideolégicos e ut6picos inconscientes existentes n'O Padrinho I pudessem ser vistos, na continuacdo, a elarificarem-se pouco a pouco ¢ a assumirem por si s6s uma importdncla temética ou reflexiva. O primeiro filme mantinha as duas dimensdes da ideologia e da utopia unidas numa unica estrutura genérica, cujas convengdes permaneciam intactas. Com o segundo filme, contudo, esta estrutura cai, por assim dizer, na propria histéria, que a submete a uma desconstrugio paciente que acabaré por deixar o seu contettdo ideolégico sem Aisfarees © 0s sous deslocamentos visiveis a olho nu. Assim, a matéria da Mafia, que, no primeiro filme, servia de substituto do grande capital, transforma-se agora lentamente na tematica declarada desse proprio grande capital, tal eomo, ena realidade», a necessidade de ter a cobertura de investimentos legais acaba por transformar os mafiosos em homens de negécios autén- tieos. O momento final climéctico desta evolucio histér-ea atin- ge-se (no filme, mas também na histér'a real) no momento em que o capital amerieano, e com ele o imperialismo amerieano, enfrenta aquele obstdculo supremo ao seu dinamismo interno 8 sua expansio estruturalmente necessiria que é a Revolucao Cubana. Entretanto, o fio utépico deste texto filmico, a matéria da velha familia patriarcal, liberta-se agora lentamente deste pri- meiro fio ideoldgico e, remontando no tempo até as suas crigens histéricas, trai as suas raizes na formacéo social pré-capita- lista de uma Sicilia atrasada e feudal. Assim, estes dois im- pulsos narrativos invertem-se, por assim dizer, mutuamente: 0 mito ideolégico da Mafia acaba por gerar a visio autentica- mente utdpica da libertagdo revolueiondria, enquanto 0 con- telido utdpico degradado do paradigma da familia se desmas- cara a si préprio, em tltima insténcia, como remanescente de formas mais arcaicas de repressao, sexismo e violéncia. Entre- tanto, estes dois fis narratives, postos em liberdade para perseguir a sua propria légica interna até ao limite, so, assim, levados até aos marcos mais avancados e até as fronteiras his- t6ricas do proprio capitalismo: um, ao tocar as sociedades pré- capitalistas do pasado, 0 outro, nos comegos do futuro e na alvorada do socialismo, 46 Frederic Jameson Estas duas partes 4’O Padrinho—a segunda muito mais ¢laramente politiea que a primeira — podem servir para drama- tizar a nossa segunda proposicéo fundamental neste ensaio, a tese de que todas as obras de arte contempordneas, sejam'as da alta cultura e do modernismo, sejam as da cultura de massas eda cultura comercial, tém como impulso subjacente —se bem ue numa forma que & muitas vezes inconsciente, distorcida e reprimida —as nossas fantasias mais profundas sobre a natu- reza da vida social, tal como a vivemos agora e como sentimos na propria earne que deveria ser vivida, Voltar a despertar, no meio de uma sociedade privatizada e psicologizante, obcecada com mereadorias e bombardeada pelos slogans ideolgicos do grande capital, alguma compreensio do impulso inerradicivel ara a colectividade que pode ser detectado, ndo importa quao vaga e debilmente, nos produtos mais degradados da cultura de massas tio seguramente como nos eldssieos do modernismo — eis o que é, sem diivida, um pressuposto indispensivel de toda a intervengéo marxista com sentido na cultura contempordnea (tradugio de Anténio Sousa Ribeiro)

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