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MARCO ANTONIO GONGALVES ROBERTO MARQUES VANIA Z. CARDOSO. (orcs.) Etnobiografia Subjetivagao e etnografia Bernas] Pai Vale Gustavo Ruiz Chiesa agmentos de uma religido em movimento [As pessoas que as doengas tém: entre o bioligico ¢ 0 biogrifico Waleska de Aratijo Aureliano Sobre os autores 07 biografia: esbogos de um conceito Antonio Goncalves: x9 Marques # Canoso 263 Inatizagao das ideias de individuo e sociedade pela antropo- ppropiciado novas conceituagdes que procuram dar conta das ‘onige razio cultural, consteugdo de personagens etnogratficos e yubjetivados. A partir desse horizonte de reflexdo, surge, @ par- tedrica, qual seja, a de etnobiografia. A partir ‘iclns individuais de cada um dos atores ancorados em suas ‘cullurais, estrutura-se uma narrativa que procura dar conta multaneidade, propondo de uma s6 vere aum isantagOnica relagdo entre subjetividade e objeti- irae personalidade. cello cle etnobiografia propde, necessariamente, uma pro- ‘los conceitos-chave do pensamento sociolégico clissico + jnividual © © coletive, o sujeito e a cultura — ao abrir espago ‘\julividualidade ou a imaginagao pessoal criativa. O individuo ‘#01 pensado a partir de sua poténcia de individuagao enquanto i crlativa, pois éjustamente através dessa interpretagio pes- 4 deine culturais se precipitam e tem-se acesso & cultura. ‘ome sentido que emerge a conceituagio de etnobiografia que ‘diy conte da intrincada relagao entre sujeito, individuo e cul- Jui a uma definigao de mundos socioculturais em -)40 penmaddos como produgio dos individuos que deles fazem individuos cuja imaginagao pessoal esté sempre situada: criando ‘© mundo, eles préprios e suas perspectivas sobre este mundo. A reali- dade sociocultural, portanto, nao é mais que as histérias contadas sobre isso, as narrativas pelas quais ela é representada Neste modo de encaminhar a simplesmente a manifestagao da representagio coletiva: a individu- agao criativa dos personagens-pessoas desenvolve uma autonomia de sigs sociedade. Pelo contritio, o improviso, a parole, a narracio, em ver de tomados como discursividade neutra, assumem o papel de pura agéncia, nna medida em que criam ¢ agregam novos significados ao mundo e as coisas ao mesmo tempo em que transformam aqueles que constroem @ etno. iscussio, 0 individuo nao s ficados que nao ests submetida diretamente a forga imanente da arrativa etnogrfica, seja 0 antropélogo, seja seus personag. ee Neste agregar de novos significados, a narragio € tida como simul- taneamente constitutiva da expe \gens- pessoas. F tomada para além de uma funcao representativa, cevidenciando assim sua fungio poética de dar forma ao ‘real: No lugar de nta de priticas sociais ‘concretas, a etno. bi cia, clo evento, do social e dos per {ara narrativa como d paragao sistindo na qualidade produtiva do discurso. Da mesma forma, 0 con biografia afeta necessariamente nao s6 0 modo como trata mos as historias que os sujeitos etnogréficos nos contam, mas também fia recusa ire discurso, linguagem e experiénci ceito de: como contamos nossas historias etnogrificas sobre essas historias e seus personagens-pessoas, Em outras palavras, a etnobiografia implica uma dimensao metanarrativa da etnografia, em que o lugar da agéncia da propria narrativa etnografica torna-se objeto ctnogrdfico, Seguindo esta premissa, a realidade sociocultural nao é apreendida partir de uma concepgio de representagio, mas de experienciagio do mundo. Como se pode perceber, mais uma vez, 0 coneeito de individuo ‘esua varidivel,a individuagao, comparecem na formulagao de um projeto etnogrifico. No entanto, em sua formatagao atual, a énfase atribuida ao individuo nao seria uma corroboragao ao sentido de sua construgio oct 1, do individualismo. Se o individualismo é fruto do modernismo justamente um den eda antropologia clissica, a aposta ta individuagao se afastamento de uma determinada concepgio socioligica de sociedade. 'snogos bE UM coNeHITO Noste sentido, a sociedade nao pode ser somente apreendida a partir de du formutaga swultfacetadae,p ‘is dicotomias do tipo piblico e privado, individual e social, pois, cen- trando seu i lista ce papeis e deveres, mas de maneira miltipla, nto, complexa. Assim, etnobiografia nao se prende sse na criatividade individual, penetra as instituigdes ‘eulturais a partir do seu uso, personalizando-as, A partir desse horizonte de preocupagd + 08 artigos aqui apre- wentados sao frutos de pesquisas na area de antropologia que preten- dem demonstrar 0 al nce e as tensdes da reflexdo etnogrifica a partir dy obordagem biografica, Pretende-se aqui explorar conceitualmente © etnoge te 0 que se designa por ‘cultura’ na antropologia, tes {nso assim, seus limites e definicoes a partir de narrativas construidas pla interagao produtiva entre os sujeitos da etnografia (nativo e antro- prdlogo. Osautores aqui reunidos perseguem, pois, o desafio de realizar uma etnografia de uma biografia, Marco Anténio Goncalves, no texto de abertura desse livro, con- Vido-nos a pensar sobre a relagdo entre etnografia e biografia através deumy norama de conceitos, antinomias abordagens di intas mar las pelo tema que inspira essa coletanea, tais como: personografia; biogratia como ficgdo ou criagdo pessoal; narrativas partilhadas x inte roridade; ideologia biogrifica; autopoiess;fabulagao e experiéncia; nar- ragiio como ato reflexivo; verossimilhanga ¢ incomunicabilidade do ato plicagao de si u lemonstra a centralidade dessa questao fundante das ciéncias humanas, icada pelo ato narrative. Gongalves ‘en um texto que nao se pretende panorimico, mas instrumental, no sentido de “ajudar a avangar determinadas proposigdes sobre a possibi lidade de ‘escrever uma vida", © esforgo deste amplo panorama demonstra a quantidade de auto: res qui dobram e se dobraram sobre o tema, bem como a riqueza € \ pluralidade de questdes trazidas por escolas ¢ iniciativas tao diversas. Na segunda parte do texto, Gongalves aproxima o interesse sobre 1 inscrigio criativa através de personager s a relagio entre antropolo- sem, esclarecendo, assim, o deslocamento central que unifica 1 proxgao enfeixada nesse livro: "O conceito de etnobiografia empre- juice aqui nao &u iva de produzir uma visio autés ica de dentro procurando ‘aprender um ponto de vista native, mas sim um modo de definir a complexa forma de representagdo do outro, que se realiza enquanto construcio de diilogo, no qual o cineasta € 0 antro- pologo estao diretamente implicados”.S cia aproxima antropélogos, documentaristas € rrin, MacDougall, Rouch, Bernardet, Rapport e Overing, Gongalves faz questio de frisar como a dimensao da pessoalidade nas representagdes textuais caracteriza a antropologia moderna desde seu nascimento, sefa com 0s ‘Trobriandeses, de Malinowski; com os Inuit, de Flaherty; com 8 Tikopias, de Firth, ou os Nuer, de Evans-Pritchard. Em todos eles, a forma da sobreposigao do nome proprio pelo nome da aldeia de origem dos colaboradores fotografados, descritos ou filmados demonstra um enfrentamento da pessoalidade em nome da abstragio sociolégica para Idea, lado, essa confluén- , por ui ineastas como Prelo- caracterizar um grupo, uma coletividade, ‘Além de um estilo de época, Gongalves nos chama a atengao para as implicagies desse estilo de sociologizagao em termos de disputa de oria, na qual o antropélogo se faz. soberano na colagem entre viven- cias pessoais e abstragio sociolégica. Por fim, partir da antinomia entre arti dos anos pessoa ¢ personagem, caracteriza o género etnogratico a p 60 como fecundo na problematizagio do controle pelo narrador etné- grafo, estimulando a expresso de vor teridade constituidora da narrativa ual realizado por Gongalves, Vania es de pessoas de carne e 0sso, cons truidas a partir de uma relagio de Apos o enquadramento cone fe o do “poder magico das palavras’ por uma reflexao sobre a individua :niltiplas perspectivas ‘guagem. Contrapondo-se a certos usos da histiria de vida como género ‘etnogrifico,a autora sugere um outro olhar analitico atento’ poética das, narrativas, que permita entrever como as estorias agem sobre © mundo, personagens-pessoas no proprio ato social do contar, Fm “Marias: a individuagio biogrifica e 0 poder das estérias a discussio de Cardoso traz a conceituagio da etnobiografia para uma reflexio sobre o universo das religiosidades afro-brasileiras em cultos € quando falamos em ‘doso retoma a discuss Fa pro- io biogrifica que coloca em relagao sricas acerca da dimensao performativa da lin- produzindo priticas rituais que dio vida aos espiritos. Ora, s etnobiografia supomos falar de um agente que precipita possibilidades de sua cultura a partir de sua agao criativa, quem 0 sujeito da eriagio snogos be us conetit0 Hesse Universo religioso? Cardoso poe, portanto, em jogo a complexi- dude entre a pessoa-personagem Maria Padilha ¢ a sua incorporagio por uma outra, Ana; a tensa relagdo entre corpo € espirito € como as vas sobre Maria Padilha acabam se cristalizando em uma espécie ividuagio biogrifica de um espirito do “povo da rua’. ‘Ao evocar as relagbes de pre nga e auséncia, negociagao e siléncio pire Ana, Maria Paditha, seus clientes, a antropéloga/cambona, © pai de santo da casa e 0 conjunto de narrativas sobre essas friccdes, Vania Cardoso mostra como as estérias e priticas rituais estao entremeadas de biogrificas. Mostra também como “compilagbes biogrifi- n sempre sio 0 que se espera delas; que agéncias assumem for- ‘mas diferentes em distintos universos nativos, tragando, como nos diz, “a so coletiva da subjetivagio implicada na ‘individuagao biogratica, nie para’ elar uma inversio dos termos dessas relagdes, mas para apon- Lara poténcia dessas estérias como produtoras de novas construgdes, de transformagdes, dos sentidos dos proprios termos destas relagies” Em “Alexandre vai a festa: género e criagao no Forré Eletronico’, Roberto Marques retoma tais questoes a partir de outro cenério, ma ver~ shade, um cendrio musical, 0 do forts eletronico no Nordeste, a partir Alas trajetorias e performance de um sujeito que “vai & festa” Através de um fazer e escrever antropoldgicos que Marques des- seguir um sujeito’, ele nos desvia de perspectivas ana- Iiticas da festa que buscam correspondéncias inelutaveis entre sujeito, cultura e local, entre o extraordindrio da festa e a reorganizagio do social. Tal deslocamento nos permite refletir sobre a criatividade para além dos limites de uma concepgao do social como transcendente & simbolicamente contido. mstruindo seu texto contra o fundo da experincia etnogrétfica, Alas vivencias pessoais tanto do antropélogo quanto do “native” nas {estas de forrd, Marques argumenta que as experiéncias do “corpo-em- movimento” nesta circulagao no forré operam como uma “escrita de s¥” — a criagaio de uma “imagem de si negociada em ato”” Essa dupla escrita ~ da etnografia e do sujeito no forré ~ ultrapassa “os sentidos dle int joridade e unidade de lugar de fala” comumente presentes tanto na nogao de pessoa quanto na construgo de um. aber antropoligico. A circulagao do sujeito no forré — ou sua “perambulagao’, para tomar a formulagao de Perlorgher evocada por Marques ~ ¢ a forma postica de ‘uma “gestio de si” que expressa as possibilidades da “cultura’: © modo como o autor nos leva a refletir sobre as trajet6rias dos participantes no! a pensar na performance criativa do sujeito além da chissica oposigao entre agéncia individual e estrutura social, Scott Head, em “Mestre Russo de Caxias: um jogo improvisado centre etnografia e biografia’, também poe em questio os sujeitos ins do forré nos leva tamb¢ ccrilos nas priticas etnogrifica e biogrifica, Recorrendo a Roy Wagner, 6 autor pergunta: “Afinal, quais sujeitos sio esses?”, Para além de uma possivel definigao de pessoa circunscrita a uma sociedade, Head nos faz ver que 0 sujeito dla pritica etnogréfica 86 ganba s indo apenas as variadas teorias antropologicas do sujeito, mas a outros modos de escrita e de autoinscrigao que se distinguem das convengoes do texto etnogeifico e da (auto)biografia ‘A partir da anilise de um livro ‘popular’ sobre capoeira, Head mos tra como o autor desse livro, ao escrever sobre a pritica a que seu livro ito, acaba escrevendo igualmente sobre si mesmo, revelando como uma extensio do proprio sujeito/autor em questio. Por 10 relacionar os modos imbricados de represe livro a problematica da escrita etnogr ressalta como a propria indefinigao que emerge entre o sujeito e 0 objeto tido se referenciado diz ve tal pri ven represen nos dois casos nos possbilita ir além de um apandgio tebrico abstrato sobre 0 conhecimento antropol6gico do sujeito, rumo a uma antropografia do sujeito etnogrifico, Mylene Mizrahi nos leva a refletir sobre as concepgdes de cultura € personalidade, individuo e sociedade a partir de uma problematiza. ‘glo da propria pessoa do “artista criador” Voltando-se para Mr. Catra, cantor do funk carioca, Mizrahi articula passagens etnograficas, letras de funk e mpb e reflexdes tedricas em seu argumento sobre a invengio criativa como algo que, a um s6 tempo, individualiza a p social. Em sta producio de si mesmo como cantor do 1a do can- tor e conduz funk, Mr. C uilo que Mizrahi nomeia como a logica da lesta forma artistica, um englobamento do contrério que nao um “eine de relagdes’ Fa incorpora estét se concretiza, Mizrahi nos diz que Mr. removendo coisas de seus lugares “culturais” para coloci-los em uma snags oe um concer perturbadora proximidade que leva a um continuo recriar do “artista dla “sociedade” e da “cultura” Mr, wes destas apropr Se como artis atra 6 apropriativo, inventando criativamente a des, de certo modo essa também & a ligica que organiza o texto etnogrifico da antropéloga. Sua justaposigao de uma ‘multiplicidade de tedricos e conceitos antropoldgicos, atravessados pelo fazer do artista do funk, dé forma a “apropriagao” textual através da qual xe de relagdes’, que nos leva a estranhar con- ea aprender de novas formas as tensdes entre ciedade, sujeito e cultura produz seu proprio “ cepyoes antropolégicas individuo ‘Ana Liicia Marques Camargo Ferraz, em sua discussio sobre Luciane Rosa’ e os personagem do circo-teatro, propde 0 conceito de We’, isto 6 “o que seria eu se nao tivesse sido..”, para dar conta da criagdo dos personagens no filme etnogritico, no didlogo com nhia da tradigao do circo-teatro, tirando dat importantes consequéncias epistemolégicas. Ferraz aponta para uma multiplicidade ‘subunit dle pontos de vista que ao criarem duplos de si ajudam a perscrutar © que seria o “eu”: uma complexidade de movimentos, de apresentagoes © representagies. A atriz de circo, ao fazer a jungio entre ficgao e real shade, afirma que a poténcia maxima da construgao de si passa, necessa- riamente pela construgao da alteridade. Num inusitado e surpreendente diilogo entre personagem e atriz ou quando a “personage comenta 4 personagem que a atriz interpreta” vislumbra-se este jogo complexo dle reconhecimento de si através de miltiplos pontos de vista: “Luciane € trés:atriz, personagem e piblico” Performance de representar- sea si mesmo, um “como se” que permite & pessoa experimentar outras vidas, outras ligicas e, sendo outro, pode olhar-se, ver-se, descobrir-se lim seu texto sobre ‘Tomazito — um respeitado contador de causos na zona fronteiriga de Brasil e Uruguai -, Luciana Hartmann prope lum dislogo entre formas distintas de narrativas: as formas locais do o etnogratico; as diversas formulagdes tedricas acerca da narrativa (aquelas pretensamente ndo-locais); e a propria narrativa da autora, que justapoe essas varias formas, mantendo-as ao mesmo tempo dispare: Lin “Fomazito, eu € as narrativas: porque estoy hablando de ‘esses cruzamentos, iteralmente encenados na composigao do texto, s40 \ forma através da qual Hartmann se propde a etnografar uma biografa 5 isse etnografar toma como seu objeto de reflexao, a um s6 tempo, tanto a produgao antropol6gica da biografia de um sujeito ~ seus méto- dos, teorias e ret6ricas ~ quanto a forma poética local em que a vida de a em natrativa - entrelacada por memérias onde familia, politica, historia e a propria geografia do lugar nao constituem dominios distintos da exper que Hartmann toma emprestado dos estudos de historia oral ~ do texto elnogritfico que © complexo mundo from gratia de Tomazito, que, como ele mesmo nos diz: fala nao s tum sujeito € consti sncia. E através da “transeriagao” ~ termo iso “pessoalizado” na bio: mente de suia vida, mas de sua relagdo com 0 outro. Diego Madi Dias, no capitulo sobre “Mokuki: a antropologia de um Kayapé’ explora de modo penetrante como biografia de um individuo esti associada & produgio cultural de imagens entre os Kayapo. Mokuki cencarna a possibilidade dos encontros entre 0s indios ¢ os brancos mediados por set corpo-cimera que, a0 filmar os encontros, as intera ‘goes, abre possibilidades de se compreender o outroa partir das imagens produzidas no contexto das relagdes sociais. Ao fazer uma ‘antropolo- gia reversal a partir de suas imagens, Mokuki demonstra seu legitimo interesse pela alteridade, pela possibilidade de conhecer ¢ pensar por su desejo de se tor- nar, efetivamente, outro. Hi, portanto, um ponto de confluéneia entre imagens, forma de conhecimento que se ancora er ‘6 que faz Mokuka ¢ 0 fazer da antropologia, ou seja, 0 devir-outro do Jor (antropologo ou native) a0 contri, oferece possibilidades de construgao do conhecimento a pesqui a sua condigao de “ser possibilidade de viver situagdes-outras Gustavo Chiesa escreve "Pai Valdo: fragmentos de uma religido em movimento” ¢ traz a luz um personagem fascinante que, a0 descons- {ruir sua prdpria historia a partir de suas rupturas de vida e de crenga, constitui sua prépria ‘cosmologia individual’ associada ao que se quali- fica como “umbands’: Pai Valdo, assim, surge em sua maxima pot através de sua narrativa, uma narrativa que nao é algo desvinculado das Para Pai Valdo a ‘narrativa’cria mundos plenos de pen- samentos e ages 6, por isso, ao narrar seu percurso no mundo da reli- ncia praticas socia gido cria seu proprio mundo. O que estrutura sua criagdo-narrativa do ‘mundo é seu proprio discurso em permanente movimento produzindo somas, sinteses, simultancidades e nao contradicoes. E ¢ justamente esta 6 snogos DE/UM CONC:ITO le novos hibridos” que cria a possibilidade de difusio deste Jo narrado” que ao engendrar novas mediagdes © conexdes religido'(umbanda) ou seu ‘sistema cultural’ se perpetuar. sna abordagem bastante particular, Waleska Aureliano ana- {isa “as possibilidades performativas inerentes aos processos narrativos n diversos espagos institucionalizados de tratamento do cancer, Dessa fo avant a partir de eventos caract os do cancer, em “As pessoas que as doengas tém: entre 0 biolégico ¢ o biogréfico” Aureliano pensa como passado, presente e futuro sio recontados, relacionando senti- dos da doenga a questées como genética, familia, priticas cotidianas ‘emogdes, friecionando discursos leigos e especializados a partir de um. teposicionamento biogriico” do paciente. Assim, ao mes que essas histérias so marcadas por formas de repr culam em diferent ras sociais, tais como as midias, rel cenvolvid -s,biomedicina ¢ propostas terapéuticas diversas no tratamento, tais contetidos si submetidos criativamente « histérias produzidas, compartilhadas e confrontadas coletivamente nosambientes acompanhados por Aureliano em sua pritica etnografica. Nessus histérias, a vivéncia/corpo/pessoa é evidenciada em contraste a Jw pano de fundo multifacetado e diverso, mostrando, como diz. uma thas colaboradoras de Aureliano, que “cada pessoa & um organismo’, Das rodas de capoeira a0 universo religioso; do palco dos bales de Junk ao transito nas festas de forr6 eletrOnico; das reelaborages de siem onalizados de tratamento de cincer ou entre persona- jensem espeticulos circenses, as experiéncias etnograticas apresentadas hese livro retomam questdes fundantes da antropologia como saber, religido, festa, jogo, criagao, ao mesmio tempo em que se conjugam esfor ‘os para (descrevé-Ias em primeira pessoa: Maria(s), Alexandre, Mestre Ihusso de Caxias, Mr. Catra, Luciane Rosa, Tomazito, Moruki, Pai Valdo ‘ou as pessoas reapresentadas por um evento comum em ambulatérios dle tratamento, Nessa iniciativa claramente o improviso, a parole, a per- formance, o ato, a narragao assumem o papel de criagao e reapresenta- ao, transfor mando todos os implicados na escrita etnogratica, antropé- Jogos, atores e leitores, em um mundo nunca igual a si mesmo. Linobiografia: biografia e etnografia ‘ou como se encontram pessoas e personagens Marco Antonio Gongalves Adere @ narrativa a marca de quem a narra como na tigela de barro a marca das mais do oleira. \W. BENIAMIN (1980) Observa-se que desde sempre as ci ncias humanas e, em particular, as ‘iencias sociais reconheceram a dualidade entre ago ¢ estrutura, vivido lo como antinomias fundantes no modo como se constroem os modelos e as interpreta dade social. Antes de querer fazer un inventirio geral das formas como a biografia foi abordada nas cién- cas sociais,e especificamente na antropologia, minha intengao € propor jroblemas e encaminhar questdes que nos ajudem a pensar e a avangar Alcterminadas proposigdes sobre a possibilidade de “escrever uma vida” ww se buscar inscrever uma representacao sociolégica modelar. fe pens: (0 OGRAFICO E.0 SOCIAL Aw telletir sobre o rendimento das historias de vida na antropologia, Lang- ness (4965) constata que poucos antropélogos investiram na abordagem «lo biogrifico como produgio de conhecimento: as biografias ou histérias «le vida foram tratadas como algo para ser explicado e nao como algo que cxplica, por si s6, 0s fatos culturais,E, sabedor da poténcia intelectual da \limensio biogréfica, Langness (1981) procura cunhar 0 cone ‘nygraphy como possibilidade de realizar uma etnografia de uma pessoa. ‘Oscar Lewis (1964), apostando na poténcia do vivido e do biogr’- odugao de uma ctnografia, descreve a vida de Pedro Martinez, (ode perso- 9 como possibilidade de se compreender os fatos culturais, Durante vinte anos de entrevistas gravadas, Pedro Martin 1 que ja outros trabalhos de Oscar e Ruth Lewis, ganha densidade, e sua vida e a de sua familia configuram um modo de se ter acessoa um panorama da historia do México e da sociedad mexicana, Este ponto de confluéncia entre d biografia) e compreensio dos fatos culturais produz o significado ambi- igao literdria (entendida como valente que © biografico assume na construgio dos modelos sociokigh cos. A biografia, muitas vezes por estar relacionada & area da ficgio € do romance, nao recebe a devida atengao da antropologia ou da socio logia. © fendmeno parece der ar da conceituagao do individuo e do individual que, desde Durkheim (1888; Dumont, 1985), ocupa um lugar psicologizante no pensamento social, ensejando, por seu turno, um cardter reativo nas ciéncias sociais, qui uma representagdo anti-individualista como garantia de aceder a uma srpretagao da sociedade, Paradoxalm da representagio individual engendra um poderoso conceito de individuo que produz.o ‘vem obrigadas a construir te, a fug, priprio conceito de sociedade, como bem apontaram Strathern & Toren (1996) ao refletirem sobre a importancia do conceito de sociedade para se pensar as formagdes sociais. Resta, porém, a questio de como abor- dar, no i ferior mesmo das ciéncias sociais, a questao da individuagao, do particular, sem rel A nogio de etnobiogritico problemati: grilico € o biografico, as experiénci por assim dizer, o etno- ilividuais e as percepgoes cul cestruturar uma narrativa que dé conta desses dois aspectos na simultaneidade, ou seja, propde, a um s6 momento, repensar a tensa relagao entre subjetividade e objetividade, pessoa e cultura turais, refletindo sobre como é possivi Fste modo de pensar o biogrifico ¢ 0 social a partir do conceito de ctnobiografia se assemetha a0 modo com que Simmel conceitua os dua- lismos contraditérios que, positivamente, constituem a vida social: con. formidade e individuacao (Simmel, 1971;1980 apud Rapport, 1994:3-45). Encontramos, também, em Norbert Blias um modo de conceituar a dif renga entre individuos em ambientes culturalmente homogéneos, estilo ‘ou “gratia pessoal’, 0 que acentua 0 espago da diferenga e da idiossincra sia na construgao do social (Flias, 19942150 apud Carvalho, 20032204) MARCO ANTONIO GONALVES Retornemos a epigrate: Adore 3 narrativa a marca de quem @ narra como na tigela de barro a A percepaa -njamim (1980:63) sobre a obra do artesio sinte ao entre a formulagao sociolégica e a criagao pessoal, proble- nas sobre os quais se constrdi o pensamento socioligico classico e con- ‘0 a0 apontar para a tensio entre o individual, a subjetividade, 0 sovioldgico eas representagdes. Seguindo a mesma intuigao de Benjamin, dirfamos que a constru: ‘glo da etnobiografia depende da capacidade de “intercambiar experi " no sentido de potencializar a experiéncia mesma da narragio pantithada produzida pelo instante etnografico que envolve o etndgrafo © narrador (Benjamin, 19872198). Foucault (1970, 1978) profetizava que a autobiografia, a biografia, » psicobiografia a historia de vida ¢ 0 testemunho pessoal se tornariam, Hi aten tempori uma moda nas ciéneias humanas, uma ver. que 0 ocidente tornot uma sociedade confessional desde a Idade Moderna, Implicada nesta proposigio reside a ideia de sujeito enquanto uma construgio social € pplitica com implicagdes morais, éticas¢ estéticas (Foucault, 1995:235), © {queacentua, ao mesmo tempo, sua potencia: criagdo, consciéncia, iden- \idlade, controle e dependéncia. sta forma de narragio do sujeito nao é, necessariamente, estabe- Jccida a partir da questao da ‘interioridade’ nos moldes de uma percep- io ocidental que se assenta na base da formagao do individualismo noderno (Dumont, 1978; 1985). A narracdo da prépria vida como cons- \rugao do self e construgio do mundo encontra-+ ‘culturais. A narrativa sobre si incide, sobretudo, na nogio de nstruida culturalmente: uma pessoa culturalmente constituida na objeto, também, de modelos convencionados pela cultura dese ter acesso a estas narrativas sobre si que veiculam os acontecimen os a uma historia sociocultural (Mauss, 2011). ste sujeito construido como objeto de reflexdo do Ocidente nos reenvia aos problemas classicos apontados por Dilthey, recuperados por nas mais variadas Ver Grapanmano (38. Gadamer (1997), que so consonantes com as preocupagoes centrais da teoria social: a experineia ndo pode ser pensaa como “uma visio sub- jetivista (romantica ou estética)” e muito menos como “uma percep puramente racional” (Passeggi, 20112149). Ejustamente sobre a experién- cia da construgio do sujeito ao travar uma batalla entre as percepgoes “subjetivistas ¢ racionais” que repousa a problemitica da etnobiografia, Questio antevista por Sartre quando conclui sua autobiografia: (© que acabo de escrever ¢ falso, Verdadeiro, Nem verdadeiro nem falso, ‘como tudo 0 que se escreve sobre os Toucos, sobre os homens fatos com a exatidso que a minha meméria permitia, Mas até que ponto

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