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Na Casa de Meu Pai: a África na filosofia da cultura

Kwame Anthony Appiah, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Augusto Drumond

“Na casa de meu pai...”, de Kwame Anthony Appiah, é um livro que deve
ser lido por todos aqueles que discutem questões relativas à identidade e à
cultura. Partindo de produções literárias, artísticas e filosóficas africanas, e
articulando-as com o pensamento ocidental, Appiah vai aos poucos
mostrando os equívocos que a imposição de um tipo de “universalismo”
ocidental criou. Isso sem desprezar a necessidade da racionalidade ao
desenvolvimento humano, mas revelando o erro induzido de se considerar
um pensamento local como universal, como o mundo ocidental faz crer.
Segundo Appiah, esse pensamento norteou as mentes daqueles que
pensaram um mundo africano para os africanos, inventaram uma África
pós-colonial, “criaram” uma raça e minimizaram as diferenças existentes na
diversidade continental sub-saariana.

O autor deixa muito claro que sua visão de mundo e sua crítica a um
pensamento que domina, desde o século XIX, as transformações políticas e
sociais são produtos do seu contexto.

Criado com uma educação formal européia, dentro de uma família africana
cristã, mas sem abrir mão de diversas “tradições” de sua terra natal, ele
consegue nos mostrar como essas práticas, conflitantes aos olhos de
qualquer ocidental, conseguem coexistir, lado a lado, na África. E sua
história é igual à de muitas outras pessoas naquele continente.

Dois exemplos de vida de seu pai, a quem o livro é dedicado, servem de


cerne ao livro de Appiah: o pan africanismo sem racismo e o apego à
multiplicidade identitária. É a partir desses exemplos, analisados pelo autor,
que podemos passar a pensar um mundo sem conflitos identitários
significativos e sem os pré-conceitos com os quais estamos acostumados.

Esse livro é composto por nove capítulos escritos na forma de ensaios,


todos intimamente interligados. Abordando questões que passam pela
biologia, sociologia, teorias e críticas literárias, filosofia, antropologia e
história, o autor procura desarticular os pensamentos que dominaram o
século XX no que diz respeito à raça, ao negro, à África, à política e à
modernidade. E isso tudo com uma linguagem acessível a todos. Aliás,
Appiah mostra muito bem que raça não existe, que é possível uma
identidade africana fugindo dos alicerces conceituais ocidentais e que
muitos daqueles que um dia procuraram fugir desses conceitos acabaram
reforçando-os.

Os capítulos, que detalharemos no decorrer deste texto, podem ser


divididos em quatro grupos a partir das preocupações centrais de cada
ensaio. O primeiro grupo, formado pelos dois primeiros capítulos, procura
mostrar o papel que a ideologia racial desempenhou no desenvolvimento do
pan-africanismo. O enfoque é dado aos intelectuais afro-americanos que,
baseados nas idéias de negro e raça africana fundamentadas nos ideais
biológicos e éticos da Europa e dos EUA do século XIX, foram responsáveis
pela construção do discurso pan-africanista que dominou o século XX. Os
principais intelectuais analisados aqui são Du Bois e Crummell.

“A invenção da África” é o primeiro ensaio deste grupo. O centro da


discussão aqui é a visão dos pais do pan-africanismo de que os povos da
África devem ser pensados como sendo um único povo a ser concebido
como uma unidade política natural. O cerne desse pensamento se encontra
na existência da raça do negro.

Appiah procura mostrar como o pensamento racialista do século XIX e a


experiência da escravidão africana no novo mundo influenciaram Alexander
Crummell, um dos pais do pan-africanismo. O racialismo, termo utilizado
por Appiah, é uma das três doutrinas consideradas cruciais para se discutir
o termo “racismo”. As outras duas doutrinas são os racismos extrínseco e
intrínseco. Segundo o autor, o racialismo é a

visão de que existem características hereditárias, possuídas por membros


de nossa espécie, que nos permitem dividi-los num pequeno conjunto de
raças, de tal modo que todos os membros dessas raças compartilham entre
si certos traços e tendências que eles não têm em comum com membros de
nenhuma outra raça” (Appiah, 1997, p.33).

O racialismo é base das outras duas doutrinas. A principal diferença entre


os racismos extrínseco e intrínseco é que o primeiro fundamenta a aversão
racial sobre características objetáveis, enquanto o segundo se baseia na
afirmação de que certo grupo é objetável.
A noção de “raça” para os pais do pan-africanismo é muito mais sentida do
que pensada. O fato é que Crummell não percebeu que a vida dos negros
na África colonial não podia ser considerada igual à experiência dos negros
afro-americanos. E muito menos percebeu que o sentimento da
“africanidade” teve princípios diferentes a partir da diferença entre a
colonização britânica e francesa.

A vida de Crummell se passou numa sociedade segregacionista e racial dos


EUA do século XIX enquanto que, na África, a participação da colonização
européia foi mais superficial. Os conflitos vividos por Crummell e outros
pensadores afro-americanos não foram, não tiveram o mesmo peso e
jamais foram experienciados na maioria dos povos na África colonial.

Não é difícil observar que a forma de colonização britânica e francesa tenha


resultado no mesmo sentimento pan-africanista dos afro-americanos. Os
africanos anglófonos aprenderam na Europa que tinham em comum a
“africanidade” e importaram a noção de uma raça africana dos europeus. Na
África francófona, a única forma dos africanos serem diferentes dos
europeus era pertencendo a uma raça diferente. Foi o que aprenderam com
os franceses, já que, pela assimilation, eles eram no mínimo ‘franceses’” (p.
28) [onde começa essa citação?]. Daí para aproximar o “sentimento racial”
do “sentimento familiar” foi um pulo.
Outro ponto levantado nesse capítulo é a dupla origem do pensamento
racista. De um lado, a visão da Grécia clássica, na qual as características de
um povo estão ligadas ao ambiente em que vivem. De outro lado, há a
visão teológica dos antigos hebreus. Daí fica também evidente a influência
do modelo teológico dos hebreus para Crummell. A língua do colonizador
era “uma providência divina” que ajudaria a unir os povos cuja diversidade
lingüística era um empecilho para a unidade africana. Muito mais que isso, a
língua também era o meio de cristianização e de civilização da África. E a
concepção de civilização e de modernidade adotada por Crummell é a
mesma dos ingleses e norte-americanos do século XIX.

Mas a visão de Crummell sobre os africanos não foi compartilhada pelos


africanos coloniais em pelo menos um ponto: eles poderiam ser unidos pela
raça, mas determinadas tradições não poderiam ser desprezadas. A
psicologia racial crummelliana levou ao pensamento da existência não só de
uma forma de pensamento africano, mas também de um conteúdo
caracteristicamente africano. E isso levou ao pensamento de que a África
era também culturalmente homogênea.

O segundo capítulo é “Ilusões de raça”. No capítulo anterior, Crummell é


dado como precursor da articulação intelectual do pan-africanismo, mas,
como já dito antes, através de uma noção muito mais sentida do que
pensada. É W. E. B. Du Bois quem lança as bases intelectuais e práticas do
movimento.

Por mais que Du Bois tentasse negar a constituição de raças através de


definições do cientificismo do século XIX, os princípios utilizados para definir
raça levavam à definição de raça biológica que ele negava. É claro que a
definição biológica de raça era fruto das ciências no século XIX, e esta,
resultado de uma época, assim como as pessoas também o são.
Du Bois partia da convicção de que os homens se dividiam em raças, ainda
que fosse difícil chegar a qualquer conclusão imediata sobre elas. Afirmava
apenas que não eram as diferenças morfológicas que constituíam as raças,
mas “diferenças que, de maneira silenciosa mas definitiva, separaram os
homens em grupos” (ibidem, p.54). Mas a raça como biologicamente
definida estava implícita na noção de “sangue-comum” adotada por ele e
trazia à tona o sentimento da raça como uma família, de Crummell.

O que Du Bois tentou foi partir para uma concepção sócio-histórica de raça.
A partir dessa concepção, ele tentou unir os africanos através do
compartilhamento histórico e geográfico. E a aproximação que ele obtém
para unir a experiência dos afro-americanos com a dos africanos
colonizados foi o que Appiah chamou de “insígnia de insulto”, e não o
insulto em si, já que a discriminação e a segregação a que os afro-
americanos estavam sujeitos não correspondiam à experiência dos
africanos. Ou seja, “a história de cada um é a história das pessoas que
viveram num mesmo lugar” (ibidem, p.60). Não se pode esquecer que o
desenvolvimento da concepção sócio-histórica de raça por Du Bois acabava
levando novamente a sua concepção biológica.

A articulação intelectual que Du Bois tentou, no final das contas, não


desprezava a definição científica da raça. Era uma reação ao preconceito a
que ele estava sujeito e, como conseqüência, o resultado obtido por ele foi
uma linha de pensamento em que reforçava as raças, mas valorizava-as
afirmando que cada uma teria sua mensagem a dar para o mundo, e assim
sendo, a raça negra também teria a sua.

Acontece que qualquer definição de raça baseada na biologia já parte de um


pressuposto errado. Hoje, todos sabemos que determinadas características
humanas são definidas pela genética, mas sabe-se também que não se
pode definir raças a partir dela. A diferença genética existente entre
qualquer pessoa considerada “racialmente pura” na África e qualquer
pessoa “pura” na Europa é percentualmente muito parecida com a diferença
genética encontrada entre pessoas de mesma “origem racial”. Essa
diferença pode parecer maior ou menor dependendo da maneira com que os
biólogos trabalhem com os números. Ou seja, as diferenças genéticas
existentes entre habitantes de uma mesma população são as mesmas
encontradas entre populações diferentes, e que não há diferenças
marcantes a não ser aquelas referentes à morfologia.

No final das contas, não há raças, não há nada que comprove que elas
existam, nem há nada no mundo que se refira àquilo que chamamos de
raça, como também não há nada no mundo idêntico ao que se espera que a
raça faça para as pessoas. Olhando a história do mundo, podemos perceber
que a única coisa que a raça trouxe para o homem foi muito sofrimento.
Como o exemplo dado por Appiah, é só olhar os horrores que o nazismo
trouxe para a humanidade e o resultado do segregacionismo e da
discriminação. O que o conceito de raça faz é biologizar aquilo que se refere
à cultura e à ideologia.

Os capítulos 3 e 4 fazem parte do segundo grupo e questionam como a


tentativa de se criar, através da literatura, uma identidade africana
enraizada nas tradições levou a minimizar a diversidade cultural e
identitária na África e a censurar a relação dos intelectuais africanos com a
vida intelectual euro-americana. A análise é feita na exploração das idéias
de críticos e teóricos literários. A figura central analisada aqui é o escritor
nigeriano Wole Soyinka, no capítulo 4.

“Pendendo para o nativismo” é o terceiro capítulo do livro e o primeiro


ensaio desse segundo grupo. Nele, ao mostrar a relação entre os pares
nação-raça e raça-literatura, Appiah nos detalha como as questões
referentes à identidade estão presentes na literatura africana do século XX.
E faz essa relação tratando o termo nação como intermediário para
estabelecer a relação entre raça e literatura.

A relação entre nação e raça é mais fácil de discernir. Os modernos Estados


nacionais passaram a ser concebido dentro das definições raciais. Enquanto
na Europa as comunidades giravam em torno da ascendência hereditária,
nos EUA, a comunidade partia do princípio do livre-arbítrio, e o que fazia
essa união era o “amor fraterno”. A justificativa da hereditariedade, ou
desse “amor fraterno”, era a noção de que determinadas ações e gostos
eram determinados pela raça. Um exemplo era o “‘amor natural pela
liberdade’ dos ingleses” que se dizia ser uma herança dos cidadãos anglo-
saxões livres nos tempos imemoriáveis. Essa visão encontrou eco nos EUA
pós-independência como explicação para evitar que a recente república se
transformasse numa monarquia. É com base nesse mesmo princípio que
surgiu o racismo. Sendo as características herdadas, e pensando-se o
homem branco como superior ao homem negro, estava delineada a visão da
inferioridade cultural das raças.

É a partir da concepção da Sprachgeist, o “espírito” da língua, de Herder,


que se estabelece a relação do nacionalismo moderno em torno da língua. A
proposta de Herder de se ter a língua não apenas como instrumento, mas
como parte das artes e das ciências é que traz à tona a língua como mais
do que um meio com o qual as pessoas se comunicam. O surgimento dos
Estados alemão e italiano no século XIX está intimamente relacionado com
a intenção herderiana de se criar Estados que compartilhassem a mesma
nacionalidade, esta compreendida como nações que compartilham mesma
língua e mesma literatura.

Entretanto, aquilo que era considerado “natureza humana” acabou sendo


relacionado cada vez mais com a biologia e a antropologia, ou seja, à raça,
e acarretou uma superposição entre a noção herderiana e a concepção
racial de nação. E daí surge a relação entre literatura e raça, tendo a nação
como eixo de ligação.

A importância que a literatura africana assume se deve ao fato de que,


sistematicamente, com a visão de superioridade cultural dos brancos, os
negros eram acusados de serem incapazes de contribuir para as artes e
para as letras. A resposta veio com os afro-americanos, nos EUA, que
passaram a investir na produção literária. Como resultado surgiram duas
linhas de pensamento – de um lado, os que defendiam a inclusão de
escritores afro-americanos nos cânones literários e, de outro, aqueles que
defendiam esses textos com a possibilidade de serem estudados como
cânones em si.

A utilização das línguas dos colonizadores na constituição de uma literatura


africana poderia indicar um contra-senso na relação entre nações e
literaturas africanas. Mas, como diz Appiah, tanto as queixas quanto a
defesa das línguas estrangeiras parecem mostrar a disputa entre um
sentimentalismo herderiano das línguas e as tradições da África como
essência, de um lado, e o positivismo das línguas e disciplinas européias de
outro. O fato de que se escrever para os africanos falando sobre as
tradições africanas estava acima desta disputa.

O nativismo surge como uma forma de se contrapor ao “universalismo”


europeu. O problema que surgiu desse contraponto foi que, ao repudiar a
dominação cultural do ocidente, os nativistas acabaram reforçando-o. Ao
organizarem suas particularidades na cultura, concepção fruto da
modernidade ocidental, os nativistas acabaram minimizando a diversidade
de tradições existentes na África.

A contestação aos critérios ocidentais pelos nativistas é, portanto, realizada


através do mesmo modo em que esses critérios foram estruturados. Aliás, a
própria história da África, seus mitos e suas tradições podem ter sido
muitas vezes fruto da colonização européia. A noção de negro e de
nacionalismo cultural africano também é herança da hegemonia
“universalista” européia e está tornando as identidades imaginárias reais.
No ensaio “O mito do mundo africano”, Appiah tenta mostrar como a
literatura moderna africana, partindo de um pressuposto errado, levou a
minimizar a diversidade do mundo africano sub-saariano. O autor toma o
escrito nigeriano Wole Soyinka para mostrar sua hipótese.
Apesar da utilização do idioma do colonizador e da educação formal no
estilo europeu, Wole Soyinka escreve de maneira diferente da dos autores
americanos e europeus. A base dessa diferença se deve ao projeto
intelectual literário. Soyinka não escreve e nem poderia escrever com os
mesmos propósitos de escritores ingleses contemporâneos.

A principal diferença entre os escritores contemporâneos europeus e os


modernos escritores africanos pode ser resumida numa frase: os autores
europeus estão preocupados na busca do eu, enquanto a preocupação dos
escritores africanos está na busca de uma cultura. Agora, o fato de a busca
do eu ser um lugar-comum na crítica e teoria literária européia não significa
que ela seja verdade.

No mundo ocidental, a busca do eu é a busca da autenticidade. Essa busca


pode ser considerada como uma fuga daquilo que a sociedade, a escola e o
Estado fazem aos homens. A autenticidade, considerada como cerne da
autoria criativa que se contraponha a uma cultura, não passaria de uma
ficção, quando considerada a teia social que envolve o homem. A questão
da autenticidade para o escritor africano não passa de uma curiosidade, já
que o objetivo de sua literatura é outra. A questão é descobrir um papel
para o público.

Dado o contexto sócio-histórico, o pano de fundo social europeu, seus


escritores sabem qual é o local do “povo” na sua literatura. Para os
africanos, a situação parece ser mais um pouco mais complicada.

O problema para os escritores africanos é que se parte de um pressuposto


errado. Na busca de uma África a sobre qual escrever e de um público
africano a quem escrever, essa mesma África como dada. Esse erro foi
pressupor uma cultura africana enquanto dever-se-ia pressupor suas
próprias tradições. Aqui se impõe um outro problema. As tradições tomadas
como tipicamente africanas são uma reação direta às concepções européias
do que é ser africano. Apesar da diversidade cultural e de tradições na
África, aos olhos do mundo, esses povos são todos vistos como africanos.

As diferenças das colonizações britânica, francesa e portuguesa são


desconsideradas, e os problemas internos e os objetivos são tomados como
comuns. Os Estados pós-coloniais possuem situações e perspectivas sócio-
históricas semelhantes como a colonização e alfabetização recente, a
passagem de uma cultura oral para a cultura escrita e a transição das
sociedades tradicionais para a modernidade. São esses os elementos de
uma “metafísica comunitária africana”.
Enquanto na Europa a metafísica do “eu” se contrapõe ao “nós”, uma
metafísica comunitária serve de resposta àquela. A solidariedade metafísica
é resposta para a busca de uma cultura. O resultado da busca daquilo que
individualiza a cultura africana é minimização da diversidade.
O terceiro grupo, formado pelos capítulos 5 e 6, tem preocupação
fundamental com uma discussão filosófica sobre a modernidade e a razão.
O autor nos mostra que tanto a filosofia moderna da África e quanto as
religiões “tradicionais” estão fundamentadas em uma visão racional da vida
africana, e faz uma proposta de modernização para a África negra que
difere da modernidade européia. Aqui, ele contrapõe a falsa idéia do
universalismo da modernidade européia com o suposto provincianismo das
tradições locais.

O quinto capítulo, “A etnofilosofia e seus críticos”, abre esse terceiro grupo.


O enfoque deste é se os filósofos que compartilham um mesmo continente
devem ser analisados em conjunto e quais os tipos de atividades que
deveriam receber o rótulo de “filosofia”.

A situação dos intelectuais africanos é bem especial. De um lado, eles estão


imersos, até certo ponto, nas culturas tradicionais locais, e de outro, eles
foram criados intelectualmente dentro das tradições ocidentais. Os filósofos
africanos têm ainda que fazer uma multiplicidade de escolhas.
Primeiramente a escolha recai sobre desenvolver um pensamento baseado
nas tradições da cultura oral africana, e isso a partir de questionamentos
baseados em idéias ocidentais. Devem ter ainda que optar entre a
diversidade de tradições filosóficas da Europa e dos EUA.

O que foi dito acima não pode atrapalhar a visão do modo como a filosofia
africana brota das próprias tradições locais. O fato é que até mesmo as
tradições filosóficas européias surgiram a partir de um determinado
contexto que conseqüentemente levaram além das diferenças doutrinárias,
mas também a diferenças de métodos e expressão. Há no mundo ocidental
basicamente duas tradições: a “continental” originária a partir das
discussões francesas e alemãs, e a “analítica” de origem anglo-saxônica e
norte-americana.

A filosofia africana herdou a disputa dessas duas tradições. Mas os


estudiosos africanos estão preocupados em responder a duas questões
centrais: se há algo característico na história, na cultura, nas línguas e
tradições africanas, que poderia contribuir para a filosofia ocidental, e de
que serve o ensino e a produção da filosofia ocidental na África. Esta última
questão, que seria descartada numa discussão na Europa, tem outro peso
na África. Em primeiro lugar, os departamentos nas universidades disputam
o pouco da verba disponível e, em segundo lugar, a filosofia praticada nas
universidades está bem distante das idéias dos indivíduos comuns.

A concepção que Appiah procura trabalhar é a de Kwasi Wiredu, grande


defensor do racionalismo. Segundo essa concepção, a filosofia africana pode
tomar emprestados e aprimorar os métodos da filosofia ocidental e aplicá-
los à análise dos problemas conceituais da vida africana.
Se há uma expectativa de semelhança, esta se deve à similaridade. Mas as
sociedades tradicionais africanas podem ter tantas diferenças entre si
quanto as têm em relação às sociedades não-africanas. Se essa semelhança
for buscada numa expectativa de uma filosofia negra, corre-se o risco de se
cair num pensamento racista. Agora, se há algo que permite falar de um
projeto filosófico africano é a origem geográfica das tradições, pois seria a
única forma de se discutir problemas referentes à moral, à epistemologia ou
ontologia comuns às situações no continente africano.

A concepção de Wiredu é problemática em pelo menos um ponto. A


natureza dos problemas determina os métodos a serem aplicados, e a
filosofia africana não compartilha nem dos problemas nem dos métodos da
filosofia ocidental. A tentativa de criação de uma filosofia africana pode
enveredar por uma perspectiva que outro escritor africano, Paulin
Hountondji, chamou de “etnofilosofia”. Esta pode partir de dois
pressupostos: o “unanimismo”, que é a idéia de que haja um corpo central
de idéias compartilhadas por todos os africanos, e um pressuposto
avaliativo que afirma que se deve resgatar as tradições.

Como a filosofia é um rótulo valoroso no ocidente, supor que para tudo que
há no Ocidente deve ser encontrado algo semelhante na África é adotar
uma posição comparativa, o que significa ver as tradições africanas dentro
de um contexto europeu. E essa postura comparativa na África é reforçada
dada a formação dos intelectuais africanos nas escolas ocidentais.

O que Appiah procura mostrar é que não há como fugir do uso dessa
formação ocidental na filosofia africana, mas deve-se procurar evitar
projetar as idéias ocidentais junto com os métodos derivados do Ocidente
no arcabouço conceitual local. Torna-se fundamental compreender a relação
do pensamento africano com o pensamento do mundo ocidental. Não se
pode esquecer que, como trocas culturais sempre ocorreram, a etnofilosofia
pode ser considerada um bom começo, mas ela deve desenvolver-se no
sentido de poder intervir nas sociedades africanas.

Em “Velhos deuses, novos mundos”, Appiah considera as religiões


“tradicionais” africanas para discutir o papel da razão na vida africana pré e
pós-colonial e uma proposta de modernização para a África. O principal
questionamento pelo qual um intelectual africano passa é se a África deve
tornar-se moderna e, se deve, como deve fazê-lo. O autor mostra que as
técnicas que garantem sucessos práticos, tecnológicos, encontram-se
praticamente ausentes na vida africana, mas não se deve confundir esse
sucesso técnico com o abandono de determinadas práticas “tradicionais”.

A questão da modernidade é um pouco complexa para o africano. É que,


enquanto para o europeu a modernidade é um fait accompli, pois ela é fruto
de um processo sócio-histórico da Europa, para os africanos ela pode tanto
significar a esperança quanto algo que suscite seu temor. A compreensão
da modernidade só será possível se os povos conseguirem compreender uns
aos outros.
Uma das vias de se compreender o que significa a modernidade é através
da discussão do que é “tradição”. Essa oposição entre tradicional e moderno
pode levar a um erro. Ainda mais se levar em conta que o tradicional se
refere a tudo aquilo anterior à colonização. Há aqui um elemento
intermediário nesse processo de modernização da África que Appiah chama
de não-tradicional, pois não são tradicionais por coexistir com elementos
culturais dos colonizadores e ao mesmo tempo não serem modernas. O fato
é que a mistura de elementos que possam ser considerados conflitantes
para o europeu na verdade se torna uma fonte extraordinária de atividades
culturais.

O que faz com que os ocidentais chamem as sociedades africanas de


tradicionais e de extremamente religiosas se deve ao fato de que os povos
tradicionais são cerimoniosos e a religião também o é. Mas o que faz um
ato se tornar um ato religioso é o que se acha que se obtém com ele, e não
o ato em si. A questão analisada por Appiah é que, nem sempre, aquilo que
não é explicado racionalmente não significa que não seja racional, e nem
mesmo que seja verdade. Partindo-se de pressupostos errados, pode-se
chegar a conclusões racionais que não correspondam à verdade.

Outro erro que os ocidentais incorrem aqui é considerar as religiões


tradicionais africanas como simbólicas porque o cristianismo e o judaísmo,
hoje, são considerados assim. Ao se perguntar não em que as pessoas que
praticam as religiões tradicionais acreditam, mas como elas passaram a ter
essas crenças, pode-se compreender que as religiões “tradicionais” não
devem ser consideradas simbólicas.

A análise do autor nos mostra que há muitas semelhanças entre as ciências


naturais modernas e as religiões tradicionais. Ele não quer afirmar que
institucionalmente as religiões tradicionais e as ciências naturais sejam
iguais, mas sim que o modo em que elas funcionam possuem a mesma
lógica da “explicação-previsão-controle” adotada pelo racionalismo
científico.

O que faz uma grande diferença entre o racionalismo de tradição oral, na


África, e de tradição escrita é que, nas sociedades ágrafas, a falta da escrita
faz com que as explicações não possam ser questionadas, pois estão
localizadas no tempo e no espaço. A escrita abstrai e desloca as palavras no
tempo e no espaço, o que não acontece com a oralidade. O fato é que a
oralidade acaba se tornando conciliatória, em oposição ao pensamento
antagonístico da escrita. Não se pode esquecer que a escrita foi
fundamental para o desenvolvimento da ciência, mas não deve ser
considerada a causa dela.

Os últimos três capítulos discutem questões políticas e de identidade


através do mercado artístico e literário, o sentido do Estado Nacional
africano, as formas de organização social que permitem a existência desse
Estado ao mesmo tempo em que os enfraquecem se levada em conta a
visão ocidental de como devem ser os Estados. A força das identidades, as
possibilidades da política e a participação intelectual são levantadas, e uma
nova proposta para se pensar o que é ser africano é feita.
“O pós-colonial e o pós-moderno”, primeiro ensaio deste último grupo,
procura analisar, através o mercado artístico e literário, o sentido do Estado
africano e de identidade. Appiah toma como exemplo uma exposição
artística para mostrar o papel da mercadologização na constituição do
sentido do Estado e das nacionalidades.

A importância dessa mercadologização é evidente quando um comprador de


obras de arte, que, por estar no centro, ou seja, ser rico, ser comprador e
ser criado numa sociedade moderna, está autorizado a dizer qualquer coisa
sobre a arte na África. O artista africano só vem ao caso como parte da arte
como mercadoria.

Appiah questiona, em seu exemplo sobre a exposição artística, um


pressuposto equivocado de que um artista africano não pode falar sobre a
arte africana por não conhecer outras formas de arte e por ser influenciado
sobre sua própria visão estética. Aqui, ele destaca dois problemas. O
primeiro é que, quando um artista africano assume sua nacionalidade, sua
etnia, ele o faz por se reconhecer como tal, e se reconhece como tal por
saber que ele não pertence a outro grupo. Isso evidencia o fato de que ele
possui conhecimentos sobre outras culturas e tradições.

Em segundo lugar, todas as pessoas julgam uma obra de arte a partir de


sua própria visão estética. O cerne desse problema é que, novamente, uma
visão local é tomada como universal. A visão de mundo é culturalmente
definida, e achar que a análise estética de uma de uma obra de arte
africana por um crítico ocidental é isenta de pré-conceitos é não enxergar
que essa visão não é universal, mas sim uma visão local. Contrapor essa
visão é contrapor também a visão weberiana de modernidade, que é a visão
da modernidade européia como universal.

Há um outro ponto importante a se destacar sobre a autenticidade das


origens das obras de arte. A arte africana é vista como sendo baúle, ioruba
ou pertencente a qualquer outra etnia. Mas os próprios grupos étnicos hoje
são produtos de articulações coloniais e pós-coloniais.

Essa articulação produziu aquilo algo que pode ser denominado de


neotradicional. Uma pista para se analisar o que é neotradicional é analisar
o pós-modernismo. Apesar de haver uma diversidade de noções sobre esse
movimento, ele tem como ponto central contestar o modernismo. Com base
nessa contestação, toda a produção contemporânea que se opõe ao
modernismo pode ser tomada como pós-moderna. Seguindo essa linha de
pensamento, o tradicional, ou pré-moderno, se opõe ao moderno, e toda
produção “tradicional” contemporânea pode ser denominada neotradicional.

A utilidade do neotradicional como modelo é que

sua incorporação no mundo dos museus faz lembrar que na África […] a
distinção entre cultura e cultura de massa […] corresponde
predominantemente à distinção entre os que têm e os que não tem uma
educação formal de estilo ocidental como consumidores culturais. (Ibidem,
p. 207).

O próximo ensaio é “Estados alterados”. Aqui, Appiah levanta questões


sobre a formação dos Estados africanos pós-coloniais, o seu sentido e as
formas de organização social que o facultam. O autor nos deixa bem claro a
diversidade identitária existente nos Estados pós-coloniais.

Destaca-se a diferença na formação dos Estados nacionais na Europa e a


formação dos Estados na África. Enquanto no processo sócio-histórico a luta
foi criar Estados que correspondessem às nações, o processo de colonização
e descolonização resultou, na África, em Estados em busca de uma nação.

As dificuldades pelas quais os Estados africanos passaram após a


descolonização são conseqüência da colonização. A estrutura colonial
construiu Estados em que não havia a preocupação com a formação de
mão-de-obra qualificada, geração de riquezas e modernização. O único
objetivo desses estados coloniais era investir o menos possível e obter o
máximo de rendimento. Os africanos herdaram essa estrutura, que se
mostrou insuficiente para se atingir os objetivos que se atribuíam aos
Estados modernos: criação de infra-estrutura, alfabetização, geração de
mão-de-obra qualificada.

Outro problema enfrentado pelos novos Estados foi que as elites locais –
provenientes de uma tradição em que elas ditavam as normas, julgavam,
ou seja, detinham as decisões locais – não se adaptaram ao poder
centralizador dos Estados. A centralização deslocava o controle dos
cidadãos de algo que eles conheciam para algo que eles não conheciam.

Esse modelo se mostrou inadequado para as estruturas sociais da África. O


resultado foi que, cada vez mais, a estrutura “tribal” manteve seu poder, as
instituições privadas, filantrópicas, religiosas, etc., ocuparam cada vez mais
o espaço do Estado. O mais importante é que a ocupação desse espaço foi
também aceita pelo Estado. A conseqüência é que o Estado tem aprendido
com isso e se transformado para se adequar à sua realidade social. O
Estado se transformou muito mais num facilitador das ações do que no
centralizador das decisões. A verdade é que, ao contrário do que se
imagina, o “tribalismo”, longe de constituir um obstáculo ao governo, é o
que possibilita qualquer forma de governo.

O controle que as organizações sociais detinham sobre suas vidas mostrou


também um aspecto interessante. E, assim, a democracia fazia muito mais
falta ao Estado, à política, do que ao dia a dia das pessoas. É que, mais do
que uma questão parlamentar, a democracia implica no desenvolvimento de
mecanismos que permitam que os governos sejam limitados pelos seus
governados. E essa alteração dos Estados na África parece mostrar
justamente isso.

No último ensaio, “Identidades africanas”, Appiah procura examinar uma


questão mais geral das identidades, o poder dessas identidades, as
possibilidades políticas e a participação da vida intelectual na vida política.

Praticamente a vida cultural africana não foi afetada pela influência


européia até o final do século XIX. A colonização africana só foi realmente
efetivada no final daquele século. Isso não exclui que o contato comercial
com os europeus e árabes não tenha influenciado a cultura africana.
Séculos de contatos comerciais transformaram e estruturaram a economia
de Estados pré-coloniais. Mas as transformações culturais mais bruscas só
ocorreram, antes desse período, em pequenos enclaves comerciais da costa
africana.

Appiah afirma que, para conhecer a variedade identitária e cultural atual, é


muito importante lembrar da variedade cultural pré-colonial. Mas nada disso
impede de afirmar que haja uma construção de identidade africana nova.
Aliás, após quase um século de dominação, há a construção de uma
identidade africana. O problema decorre da escolha de pressupostos
equivocados sobre a formação dessa identidade. Uma identidade africana
não pode ser pautada sobre pressupostos raciais, de uma história comum e
de uma metafísica compartilhada. Os capítulos anteriores mostram a
falsidade dessas pressuposições.

Sabe-se que toda identidade é construída e é histórica. Sabe-se também


que o mundo inteiro tem pressuposições “falsas” com as quais se constrói
as identidades, sejam elas históricas, biológicas, religiosas, filosóficas ou
literárias. Acontece que, na visão de Appiah, o combate ao racismo e outras
falsidades não pode ser feito através de sua negação. Como diz o autor,
parafraseando Todorov, a existência do racismo não requer a existência das
raças.

Na verdade, apesar de as identidades serem construídas com base em


pressupostos equivocados, as pessoas são reais, assim como as nações
também são, apesar de as tradições serem inventadas. A noção de
identidade só funciona se ela for vista como real. E, para tal, ela se
fundamenta em mitos.

O que parece é que o pan-africanismo e a solidariedade negra podem trazer


resultados políticos reais, mas o pan-africanismo não funciona sem suas
mistificações. E é impossível construir alianças sem os mitos e as
mistificações. Appiah procura destacar o modo como o pan-africanismo e a
solidariedade negra podem trazer bons resultados sem os malefícios do
racismo.

Uma identidade africana deve ser feita sem descartar, no momento, as


noções de raça, história e metafísica, mas reconhecendo que elas não
impõem uma identidade. As identidades africanas devem ser reconhecidas
dentro dos limites das realidades ecológicas, políticas e econômicas. É que
as identidades devem ser constantemente reformuladas.

Para Appiah, as identidades são complexas e múltiplas, brotam de uma


história de respostas mutáveis às forças econômicas, políticas e culturais,
quase sempre em oposição a outras identidades previamente definidas. Elas
florescem em cima de mitos e mistificação, pois a história e as tradições são
construídas. E na construção das identidades não há espaço para a razão. O
autor lembra então que as identidades devem ser celebradas e endossadas,
principalmente aquelas que podem oferecer melhores esperanças de
promover os objetivos a que os grupos se propõem.

A proposta de Appiah para o mundo acadêmico é que aos poucos os


intelectuais possam contribuir para desarticular o discurso das diferenças
“raciais” e “tribais”, pois essas diferenças só prestam interesse àqueles que
lucram com elas. E, como o valor das identidades é relativo, elas devem ser
argumentadas contra e a favor, caso a caso.

Desde o início, o autor mostra estar ciente de que suas idéias não estão
livres de seus pré-conceitos, de sua experiência de vida e de sua formação
intelectual. É por isso mesmo que, dada a inexistência da imparcialidade,
ele sabe estar julgando, por um lado, e também distorcendo os fatos, por
outro. E quem não está livre disso?

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