You are on page 1of 51

Anástasis- A Verdade é uma Mentira

Introdução

Cada gota que deslizava janela abaixo reflectia o rosto pálido e inerte
de Susan Fletcher.

Há dois anos que se encontrava encarcerada naquele quarto de paredes


altas e maciças, sem progressos a registar.

Sempre sentada, de pernas longas e magrinhas, dobradas e apoiadas no


parapeito branco deformado pelo peso dos hóspedes anteriores, Susan, de
trinta e seis anos, passava horas a fio a espreitar para o exterior. O
que pensava ninguém sabia e o pouco que falava era desprovido de qualquer
sentido.

Os seus cabelos, longos e negros, escorriam-lhe sobre a vista como se a


quisessem, voluntariamente, proteger da realidade em que se encontrava.

De nariz altivo, condizente em tempos com a sua personalidade vincada,


todos os traços do seu rosto pareciam ter sido desenhados sob formas
geométricas, eram perfeitos.

De olhos azulados e bem abertos, Susan Fletcher parecia estar sempre


atenta a tudo o que a rodeava. Contudo, já havia algum tempo em que
deixara de reconhecer as pessoas mais importantes da sua vida, restando
memória apenas para uma, Anne Rimes.

Anne tinha a mesma idade de Susan, era a sua melhor amiga e era também a
única visita bem-vinda no Bethlem Royal Hospital, em Londres.
I

Ao percorrer os corredores em direcção ao quarto número 270, Megan Fox


sabia o que a esperava. As conversas de trinta minutos com Susan Fletcher
nunca tinham sido fáceis ou compreensíveis. Megan registava, inclusive,
poucas melhorias desde a primeira sessão em que tinham estado frente a
frente. Sentia assim que, provavelmente, esta seria uma das várias
consultas sem resultados, interrompida por novos delírios ou alucinações.
Mas a psiquiatra não desistia facilmente da ideia de conseguir extrair
mais algum facto da cabeça de Susan Fletcher.

Megan Fox desde muito cedo percebeu que iria seguir a área da saúde. Em
criança dizia que queria ser a melhor “curadeira” do mundo, uma expressão
inocente, que fazia rir quem a ouvisse.

Como primeiro objectivo delineado quis ser cardiologista, por acreditar


que o coração é o maior ou o pior amigo do homem. Via-o como um grande
desafio para uma futura carreira profissional. Contudo, com o passar dos
anos, começou a interessar-se cada vez mais pelo estudo da psiquiatria.
Olhava o entendimento da mente com grande fascínio e tinha a convicção de
que não bastava ter-se um óptimo coração, se o cérebro não o pudesse
acompanhar.

Megan terminou a faculdade aos vinte e sete anos, com um diploma de


distinção na mão. Agora, aos trinta e seis, tinha a profissão que
idealizara e um casamento feliz, ao lado de Harry Doe e da sua filha
Sarah. Megan Fox caracterizava-se como uma mulher optimista e acima de
tudo, realizada.

Olhando em direcção ao relógio, os ponteiros marcavam precisamente


11h30m. – Mesmo na hora! – pensou a psiquiatra.

Frente ao 270, rodou o puxador com serenidade e entrou...

-----

Na zona de Charing Cross, na cidade de Londres, situava-se a casa de Anne


Rimes e John Brook, seu marido. Casados de fresco, há pouco mais de um
ano, viviam apaixonados e em verdadeira lua-de-mel.

Anne era professora de Inglês, na Westminster Secondary School. De rosto


marcadamente jovem, despistava os demais dos trinta e seis anos que
tinha, aliás bem como com o seu espírito, desde sempre gostara de vestir
roupa desportiva, como uns jeans largos azuis, uma t-shirt colorida e
botas de cano alto. Sempre bem-disposta, cativava os alunos com a sua
humildade e aproximação.

John Brook, por sua vez, era um reconhecido empresário do mundo das
telecomunicações, desde muito novo detentor de um charme e rosto
irresistíveis. Aos quarenta anos, com os seus olhos translúcidos verdes,
pele morena e os seus fartos cabelos grisalhos, que se ondulavam batendo-
lhe nos ombros, não precisava de nenhum corpo escultural para conseguir
chamar a atenção. Além da forte presença física, John sabia brincar com
as palavras, tinha um jeito especial para fazer rir todos aqueles com
quem se cruzava.
Anne e John tinham-se conhecido através de Susan Fletcher e esta era
precisamente o único ponto sensível do casal. Anne teimava em ir visitá-
la ao Bethlem Royal Hospital, enquanto John detestava que esta o fizesse,
por considerar Susan uma demente e sempre um motivo de discussão. No
entanto, Anne Rimes sentia que este era o momento em que Susan mais
precisava dela e da sua amizade, sabendo que lhe devia isso e muito mais…

– Anne, já te pedi que não vás – insistiu John, sem ser ouvido.

– Sabes bem que ela só fala comigo, não posso abandoná-la… não agora –
disse Anne, irritadiça.

– Mas tu nem sabes se ela te reconhece – insistiu ele.

– Claro que reconhece! Ela só pronuncia o meu nome, isso não te diz nada?
– ironizou Anne.

– Bem, tu é que sabes, estou farto de te avisar! – continuou, rindo. –


Qualquer dia és tu que ficas lá internada com tanto devaneio...

– Deixa-te de piadinhas de mau gosto! – retorquiu a mulher, alertando-o


de seguida. – Logo não te esqueças é de adiantar o jantar...

Anne e John despediram-se da mesma forma de sempre, primeiro um beijo


rápido e depois um forte abraço...

– Vemo-nos logo amor! Bom trabalho! – desejou Anne, saindo disparada de


casa, para não ser chamada de novo à atenção pela directora do colégio
por mais um atraso.

-----

A relação de Kurt e Jessica Fletcher deixou de ser a mesma a partir do


momento em que Susan foi internada. Os dias traduziram-se num sem número
de discussões e num enorme vazio. Susan Fletcher era a única filha do
casal.

Com o desenrolar do tempo, Jessica tornou-se numa mulher desgastada e


sofrida. Apesar de toda a vida ter lutado e conseguido, dessa forma,
conquistar praticamente tudo aquilo com que sonhara, actualmente sentia-
se impotente, desacreditada e incapaz de ajudar a sua filha. No período
que antecedeu à doença de Susan, Jessica era considerada, no seu local de
trabalho, uma vencedora, determinada nas suas opções e atitudes, chegando
a ser rotulada de obcecada pelo cumprimento dos seus objectivos. Nunca
deixara trabalho por fazer ou tarefa por concluir. Apresentava-se pela
manhã cedo, rigorosamente trajada, com os seus fatos de executiva e a
maquilhagem que usava era leve, deixando adivinhar os traços de uma
mulher em tempos muito bonita. Passados dois anos e meio do internamento
de Susan, Jessica Fletcher afigurava-se uma outra pessoa; os colegas
comentavam ironicamente nos corredores que o chefe tinha demitido Jessica
e colocado outra no seu lugar. Uma mulher que não apresentava qualquer
preocupação com a sua aparência, que não conversava com ninguém e que
tinha um desempenho profissional nulo. Todos sabiam a que se devia aquela
mudança...
Já Kurt Fletcher permanecia exactamente como sempre fora, um optimista. O
facto de a sua filha ter sido internada abalou-o, mas não o suficiente
para deixar de fazer uma vida normal. Durante a semana, continuava a ser
esforçado no emprego e às sextas e sábados à noite a participar nas
partidas de póquer, com os amigos. Kurt encarava sempre a vida pelo lado
positivo, acreditando que, mais cedo ou mais tarde, Susan regressaria e
tudo voltaria a ser como era.

Os comportamentos manifestamente opostos do casal acabaram por originar


perturbantes e sucessivas discussões. Jessica deixava constantemente
transparecer a sua revolta e Kurt não conseguia admitir ou conceber que a
mulher parasse no tempo e se deixasse enfraquecer. Os desentendimentos
começavam a afastá-los cada vez mais...

-----

– Oitenta por cento dos assassinos em série estão na América, o que não
quer dizer que não tenhamos que nos preocupar, antes pelo contrário! Como
bem sabem, o Jack Estripador foi o primeiro serial killer em todo o mundo
e os seus crimes foram cometidos aqui mesmo em Londres – explicava Frank
Douglas.

Frank Douglas era detective e colaborador da Metropolitan Police. Como


objectivo primordial do seu trabalho, investigava homicídios em série,
sendo considerado o melhor detective de toda a Inglaterra. Quando não
estava
a trabalhar nas suas pesquisas dava aulas sobre criminologia, no Mannheim
Centre for Criminology and Criminal Justice, um dos centros de justiça
criminal mais conceituados de toda a Europa.

– Hei, silêncio aí atrás! Prestem atenção… Existem três tipos de serial


killers. Primeiro! – exclamava Frank aos seus alunos. – Anotem rápido que
não volto a repetir! Os thrill seekers são os que gostam de brincar com a
lei, que querem captar a atenção dos média e das autoridades… enfim, são
uns vaidosos! – riu-se, continuando. – Não se esqueçam de apagar esta
última informação. Segundo, existem os mission oriented, que são aqueles
que acreditam estar a fazer um favor à sociedade eliminando certo tipo de
gente, como as prostitutas, os sem abrigo, etc. – continuava Frank,
enquanto os seus alunos tomavam notas. – Por último, temos os power and
control, mais precisamente aqueles que cometem o crime porque lhes dá
prazer sentir o terror da vítima, através dos seus gritos, choro,
súplicas, e por aí fora. Alguém deseja perguntar alguma coisa? –
questionava Frank Douglas, entusiasmado e acelerado, como era seu
habitual.

– Como descreve o serial killer mais habitual? – perguntou da segunda


fila do auditório um dos seus alunos, ao que Frank respondeu: – É uma
pessoa que comete uma série de homicídios, que podem ir desde uma dezena
até centenas. Esses mesmos crimes podem ainda ser cometidos com um
intervalo de um dia, de semanas ou meses e para os mais pacientes até
mesmo de anos! – explicava Frank, continuando. – Quase todos os serial
killers, de acordo com os estudos divulgados, foram espancados ou
molestados sexualmente em crianças. Para eles, a vítima é sempre o seu
objecto de fantasia.
Tirem notas que isto é importante! – alertava o detective. – Alguns dos
assassinos em série depois de cometerem o seu crime deixam assinaturas, o
que para nós é bastante importante, pois representa uma grande pista.
– Mas então porque é que eles as deixam? Não me parece nada lógico!
– ripostou o mesmo aluno que tinha colocado a pergunta anteriormente.
Frank sorriu e respondeu: – Não é lógico para pessoas comuns, como nós,
agora para este tipo de assassinos, com perturbações mentais, é! Eles
vêem esse deixar de pistas como um desafio, sentem maior adrenalina
perante uma situação ainda mais perigosa. E para além disso, também
existem aqueles que têm receio que, um dia, os seus crimes sejam
reclamados por outro assassino, de maneira que se assinarem a obra não
dão hipótese a ninguém de lhes roubar a fama... – explicava Frank
Douglas, concluindo de seguida a aula.

– Bem, já está na hora de terminarmos e preciso de vos deixar um aviso


antes de saírem deste anfiteatro! Os serial killers aparentam ser as
pessoas mais normais deste mundo, até chegam a ter, em sociedade,
comportamentos admiráveis, por isso rapaziada, muito cuidado! Nunca
deixem de olhar para trás do vosso ombro! – exclamou ele em tom de piada.
Os alunos responderam com uma gargalhada geral e começaram a abandonar o
auditório.

Frank Douglas tinha um método de ensino peculiar, era divertido e


apaixonado, facto que deixava os alunos interessados e sempre à vontade
para participarem e colocarem qualquer tipo de questão que surgisse, por
mais ridícula que lhes pudesse parecer. Frank utilizava a brincadeira
para lhes prender a atenção, evitando assim que se distraíssem. Frank
Douglas era detective há vinte e cinco anos e professor há catorze, e não
havia nada mais que gostasse tanto de fazer.

-----

Padre Molony, enquanto envergava a batina, pensava no que de novo podia


dizer àquela pessoa que todas as manhãs, impreterivelmente pelas 8h00m,
vinha confessar-se a ele. Reflectia, embora soubesse que não havia forma
de diminuir o peso que esta carregava na consciência, não a quem cometera
semelhante pecado. Essa pessoa tinha optado pelo silêncio e pela eterna
confissão, em detrimento de corrigir o mal que havia feito e Molony
discordava. Logicamente, ele sabia que ela não podia voltar atrás, mas
alguma coisa deveria fazer, na sua opinião, para além de rezar. Tinha
consciência que enquanto padre achava fundamental o pecador confessar-se
e redimir-se através da oração, mas sabia que naquele caso não era
suficiente. Molony partilhava de um segredo que nunca poderia revelar, no
entanto achava que a lei e a justiça deveriam intervir...

– Bom dia, quer confessar os seus pecados? – perguntou do interior do


confessionário.

Padre Molony tinha trinta e oito anos e era irlandês. Desde cedo optara
pela vida religiosa. Em casa, nos seus tempos de juventude, a sua
educação girara sempre em torno de muita disciplina, rigor e fé,
praticada no seio de uma família constituída pelos seus pais e cinco
irmãos, todos rapazes. Molony fora o único a decidir-se pela vida do
sacerdócio. Apesar de ter sido um jovem muito alegre com propensão para
traquinices, teve sempre uma grande aptidão para os estudos e uma forte
inclinação para auxiliar os que mais precisavam. Sempre que chegava a
casa, vindo de mais um dia de escola, tinha por hábito contar aos pais,
cheio de orgulho, as boas acções que tinha feito. O seu nome próprio era
Gair e significava pequeno, este tinha-lhe sido atribuído pela madrinha
no dia do seu nascimento, por medir apenas quarenta e oito centímetros de
altura. Já o sobrenome Molony significava servidor da Igreja, um título
atribuído aos seus antepassados pela devoção demonstrada ao catolicismo.

– Não aguento mais padre, cada dia que passa aumenta a minha tortura! –
respondia alguém do outro lado.

– Tem apenas duas soluções e sabe que não lhe digo nada de novo! Ou vai
em busca do perdão revelando toda a verdade ou aguenta com esse segredo
para o resto da vida – respondia ele, uma vez mais.

Padre Molony não podia fazer mais, sabia que o seu aconselhamento de
pouco ou nada servia, o pecado ia continuar a existir e amanhã lá
estariam os dois novamente a conversar sobre o mesmo assunto...
II

– Olá Susan, podemos conversar? – perguntou a psiquiatra. Susan Fletcher


permaneceu tal e qual estava, sentada no parapeito da janela a observar o
movimento lá de fora, sem sequer virar os olhos em direcção a Megan Fox.

– Bem, se não te importas vou sentar-me para falarmos um pouco... – Susan


continuava paralisada, sem responder. Megan sabia que aquele estado de
apatia e sonolência eram perfeitamente normais, principalmente depois dos
sedativos que o médico lhe tinha administrado. Ao que parecia, Susan
tinha tido mais um ataque, Megan tinha estado presente, mas a equipa que
estava de serviço no hospital descreveu-o como o pior de sempre...

– Doutora, a Susan teve um ataque muito violento há cerca de uma hora –


comunicou um médico auxiliar. – Começam, ao contrário do que estávamos à
espera, a ser cada vez mais recorrentes... – explicava ele. – Ela tentou
ferir-se e agredir o médico que a assistia. Fartou-se de gritar palavras,
mas com tanto histerismo não conseguimos perceber nada do que
pronunciava...

– Palavras! – exclamou Megan. – Ela falou convosco? Não as anotaram? –


perguntou a psiquiatra com aflição.

– O Dr. Evans não ia preparado para isso e como bem compreende também não
faz parte das suas funções. O que o Dr. Evans nos disse foi que Susan
repetiu inúmeras vezes... – Megan interrompeu de imediato. – O quê?

– Uma frase – adiantou uma das enfermeiras. – Parecera-lhe qualquer coisa


como: “A dor mata”.

– Curioso... – constatou Megan Fox, continuando. – E ela disse mais


alguma coisa, ou fez alguma coisa de anormal, que não esteja já prevista
nesses delírios?

– Não. Mas também o Dr. Evans “tranquilizou-a” quase de imediato... –


referiu o médico assistente.

– Certo, mas para a próxima vez, se puderem, chamem-me, gostaria de


assistir... – retorquiu Megan, dirigindo-se ao médico presente. – Já
agora, pode arranjar-me uma cópia do relatório da consulta de hoje?

– Claro Dra. Fox, deixo-a na sua assistente. Mas ainda vai tentar
consultar a Susan hoje? Olhe que não deve conseguir grandes resultados! –
exclamava ele.

– Claro que sim! Tudo é importante, colega, tudo! Até amanhã e por favor
não se esqueçam do relatório! – exclamou Megan, intrigada com o
acontecimento, dado que Susan nunca tinha proferido qualquer palavra
perante os médicos.

Depois de ter lido o relatório e confirmado que as reacções da sua


paciente estavam efectivamente a piorar, Megan foi falar com Susan.

– Susan – insistia Megan, para cativar a sua atenção –, hoje trouxe-te


uns presentes, queres vê-los? – levantando-se da cadeira e dirigindo-se a
ela. Mas Susan Fletcher permaneceu imóvel. Megan Fox retirou duas
fotografias, da sua pasta em pele, onde carregava o processo de Susan,
tentando que Susan olhasse para elas. – Susan, reconheces quem está nesta
foto? – insistia Megan, encostando-a no vidro da janela, bem à frente do
olhar da paciente. – Reconheces? – insistiu, mas Susan continuou sem
reacção. – És tu Susan, não te lembras? A tua mãe contou-me que aqui
tinhas cinco anos e estavas à porta da tua escola primária! Lembras-te
desta altura, Susan? Tu frequentavas a escola primária de All Saints, em
Bishops Candle, não era? Tinhas aulas todos os dias e adoravas lá andar.
Gostavas especialmente das segundas-feiras porque tinhas aulas de
música... fazias parte do coro, lembras-te? Querias ficar sempre na
primeira fila durante os espectáculos que a tua escola organizava... não
era? Susan, é verdade isto tudo que te estou a contar? Não me queres
fazer só um sinal de como me compreendes? – estimulava a psiquiatra,
tentando obter alguma resposta. Mas nada. Susan Flecther não dava o ar da
sua graça, não pronunciava um “ai”. Simplesmente estava como sempre
estivera, sentada, e com o espírito noutro local que não aquele. Megan
Fox, persistente como era, continuou a descrever situações e histórias
caricatas por que Susan tinha passado na escola, mas esta continuava sem
mostrar que as compreendia ou que entendia o que quer que fosse...

Jessica Fletcher tinha contado a Megan Fox, quando esta lhe pedira,
situações marcantes da infância da filha. A psiquiatra queria com isto
obter informações que conseguissem trazer a cabeça de Susan de volta à
realidade.
Entre outras histórias, Jessica contou-lhe que a filha adorava escrever
no diário da escola. “ – Era sempre ela que escrevia no jornal da escola
as notícias sobre as festas. Ela anotava tudo. Era uma aluna extremamente
atenta e no recreio adorava brincar até não poder mais. Normalmente dava-
se melhor com os rapazes, pois sempre gostou mais de jogar futebol do que
brincar com bonecas” – explicava Jessica, sorrindo. “– Costumavam chamá-
la de Maria Rapaz! Eu e o Kurt optamos pela All Saints, porque além de
residirmos perto, aqui em Sherbone, tínhamos óptimas referências da
mesma” – explicava Jessica a Megan Fox.

– Pronto, já vi que não gostaste da surpresa – dizia Megan a Susan. –


Sendo assim vou guardá-la novamente e levá-la embora. Megan insistia com
pequenas provocações na esperança de obter algum sinal da paciente, mas
sem sorte. – Olha, afinal ainda trouxe mais uma fotografia! Queres vê-la?
– aguardando alguns segundos pela resposta, que não ouviu. – Não? –
continuou. – Ok, mas vou mostrar-te na mesma! – brincava. E, precisamente
na altura em que os olhos de Susan fixaram a imagem que Megan erguia na
mão, bem à frente da sua cara, começaram a pestanejar sem parar, aí Susan
deixa cair uma lágrima. – Susan, o que se passa? Susan, fala! – exclamou
Megan Fox, ainda incrédula no que tinha observado. Não conseguia
acreditar que finalmente tinha conseguido despertar alguma emoção naquela
sua paciente. – Susan, por favor, responde! Se não conseguires faz
somente um gesto qualquer para eu perceber que me entendes... – mas nada.
A reacção de Susan resumiu-se apenas àquela lágrima isolada... nem
gestos, nem sons, Susan não deixou escapar mais nada. – Susan –
prosseguiu Megan –, vejo que reconheces o Chase, muito bem! Isso já é um
óptimo progresso! – comentava emocionada ainda com a fotografia na mão.
Chase tinha sido um dos cães de Susan. Ela recebera-o de presente, pelo
seu sétimo aniversário e tivera-o durante mais de treze anos. Sentia uma
predilecção completa por aquele pointer, andavam sempre juntos, daí o
nome que lhe pusera. Eram inseparáveis. Susan costumava dizer que Chase
era o seu melhor amigo, porque tinha sempre tempo para a ouvir e porque
nunca se irritava quando esta dizia algum disparate.“– O melhor amigo de
todos!” – gritava Susan pela casa fora, correndo com ele. O dia em que
Susan teve que se despedir de Chase foi como se lhe tivesse morrido
alguém muito próximo, agravado pelo facto de ter sido ela a dar permissão
ao veterinário para pô-lo a dormir para sempre. O cão tinha um cancro nos
intestinos e não ia conseguir resistir por muito mais tempo ao sofrimento
a que estava sujeito. No dia em que Susan se foi despedir de Chase,
levou-lhe um saco cheio de biscoitos e ofereceu-lhe todos duma só vez. A
chorar, ficou a observá-lo, enquanto este comia. Quando Chase terminou,
atirou-se a ela, apesar de visivelmente consumido pela dor, e lambeu-a
até não aguentar mais. Susan tinha a certeza absoluta que o cão também
sabia que era a última vez que se viam...

Megan Fox decidiu não puxar mais por Susan. Achava que aquela lágrima já
tinha sido uma vitória e um bom presságio para o caminho da
recuperação... Tinha-lhe conseguido provocar uma reacção e por agora não
pedia mais nada, estava satisfeita. Ia deixá-la descansar aproveitando,
também, para ir para casa mais cedo. Queria reflectir sobre o que se
tinha acabado de passar, pretendia voltar a analisar todo o processo,
incluindo o relatório do Dr. Evans. Aliás, este era o dia em que o seu
marido chegava mais cedo do trabalho e Megan Fox gostava de aproveitar
para estar o máximo de tempo possível em família. Quarta-feira era o seu
dia especial e este até já tinha outro sabor. Megan Fox saiu entusiasmada
do Bethlem Royal Hospital.

A visita de Megan Fox deixou Jessica Fletcher numa angústia maior do que
a habitual. Agarrada à almofada da filha, Jessica chorava compulsivamente
quando olhava para as dezenas de fotografias da filha que espalhara no
chão da sala. Sempre que se sentia saudades, Jessica agarrava numa peça
de roupa de Susan e deitava-se nos seus lençóis, adormecendo a maior
parte das vezes enroscada ao urso de peluche que lhe tinha oferecido pelo
seu terceiro aniversário. O certo é que não havia nada que lhe aliviasse
a dor. Não conseguia suportar o facto da sua única filha estar internada
num sanatório, e sem a sequer reconhecer.

Depois da visita de Megan Fox, Jessica desistira da ideia de ir trabalhar


da parte da tarde. O remexer do passado e a simples conversa sobre a vida
da filha tinham reaberto a ferida. Sempre atormentada, culpava-se pela
ideia de que poderia ter feito alguma coisa para impedir aquele
desfecho... Ao olhar para a fotografia do dia do nascimento de Susan
pensou “ – …gordinha e de um olho azul tão transparente que ninguém
acreditava que fosse permanecer assim. Mas permaneceu…” – sorria. “ –
Permaneceu!”.

– Jessica estás em casa? – perguntou Kurt, assim que entrou. Nervosa,


por não contar que o marido chegasse tão cedo e por saber que Kurt não ia
gostar de ver aquele cenário, começou a arrumar as fotos com rapidez.

– Jessica, o que estás a fazer sentada no chão? – interpelou o marido. –


O que vem a ser isto agora? Já não te disse vezes sem conta para parares
com estes teatros? Arruma-me rápido esta porcaria toda! – gritando
sobressaltado.

– Porcaria? Como podes falar assim das coisas da tua filha? É por tua
causa que ela está internada, é tudo por tua causa! – respondeu Jessica,
descontrolada.

– Deixa-te dessas acusações e não me provoques! Arruma já tudo, depressa!


– Kurt respondia-lhe irritado.

– És sempre a mesma coisa! Já paraste para pensar nela um bocadinho que


fosse? Também é tua filha, lembras-te? Consegues olhar para estas
fotografias? Diz-me! – gritou Jessica, levantando-se com meia dúzia de
fotografias de Susan nas mãos.

– Larga já isso! Não estou para ouvir nem mais um disparate! Dá-me essa
porcaria! Para louca já basta a tua filha! – exclamou Kurt enquanto
arrancava as fotografias das mãos.

– Não! – gritava Jessica, num tom descontrolado, desfeita em lágrimas e


soluços. – Já me tiraste a minha filha, não me vais tirar o pouco que me
resta dela!

Kurt, sem rodeios, reagiu espetando-lhe uma bofetada. Durante alguns


segundos ambos permaneceram imóveis e calados. Nunca tinha acontecido
nada semelhante entre o casal. Jessica, de seguida, limpou as lágrimas,
pegou nas coisas de Susan e trancou-se no quarto da filha, onde se atirou
para cima da cama a chorar. Kurt Fletcher ainda desnorteado e enraivecido
gritou-lhe do lado de fora da porta:

– Tens meia hora para voltar a pôr tudo no sítio e vires preparar o
nosso jantar! Hoje temos visitas! – de seguida foi buscar uma cerveja e
sentou-se frente à televisão a ver… qualquer coisa, não importava o quê,
não depois daquela discussão.

-----

Frank Douglas tinha sido chamado, com urgência, à Califórnia. Ao que


parecia andava um novo serial killer à solta e o FBI sabia que Frank era
o detective mais indicado para ajudá-los a resolver a situação.

Chegado ao aeroporto internacional de Los Angeles, depois de mais de seis


horas de voo, tinha um motorista à sua espera, para levá-lo ao
departamento da Polícia e falar com o comandante Lopez.

Lopez era um veterano no FBI, conhecia o país como a palma das mãos,
bairros, gangs, movimentações ilegais, estava por dentro de praticamente
tudo. No entanto, e apesar do seu reconhecido know-how, enfrentava agora
sérias dificuldades na investigação de um novo assassino. Por conhecer
bem o percurso de Frank Douglas, e admirar o detective inglês desde que
este alcançara a fama internacional ao desvendar o dificílimo caso “Boys
Killer”1, Lopez mandara-o chamar.

– Bem-vindo detective Frank Douglas! Espero que tenha feito uma boa
viagem! Eu sou o comandante Lopez – exclamou entusiasticamente,
estendendo-lhe a mão.

– Muito prazer em conhecê-lo, para mim é uma honra estar mais uma vez na
América a colaborar com o FBI – respondeu cordialmente Frank Douglas,
continuando. – Espero conseguir ajudá-los!

Frank Douglas estava bastante excitado por ter sido chamado à Califórnia.
Adorava novos desafios e à escala do FBI, ainda melhor. Embora cheio de
vontade de trabalhar, sentia-se derreado. Não gostava de andar de avião,
ficava nervoso, e como se isso não bastasse tinha sido acordado, em total
sobressalto, às seis da manhã, com o pedido invulgar de viajar com a
maior urgência para a América.
– Espero que possamos começar de imediato! Aceita um café? – perguntou
Lopez com simpatia. Frank aceitou, respondendo: – Estou ansioso por saber
o que se passa!

– Ok, eu vou explicar-lhe em traços gerais, depois com calma leva os


processos para o apartamento onde vai ficar instalado e analisa tudo ao
pormenor, amanhã dá-me a sua opinião mais fundamentada, pode ser? –Frank
acenou afirmativamente e ele continuou. – Desde há cerca de quatro
semanas que temos vindo a descobrir corpos de homens assassinados, todos
eles na faixa dos quarenta/cinquenta anos, que não apresentavam sinais de
violência, de luta, de violação, de nada. Tudo isto nos poderia soar a
algo comum, se não tivessem sido descobertos os três no mesmo local,
embora em dias diferentes. Hoje por exemplo descobrimos o terceiro…

1 N. A. - Boys Killer, cognome de John Wayne Gacy, um serial killer amado


por todas as crianças e seus familiares. Durante um período de sete anos,
ele abusou sexualmente e assassinou 33 rapazes, enterrando 28 deles
debaixo da sua casa e da garagem, que se situava num subúrbio de Chicago.

– E onde estavam?

– Foram todos deixados no porto de Long Beach, no sul do Estado, cada um


numa ponta diferente do porto. Não estavam propriamente escondidos, antes
pelo contrário, pareciam ter sido deixados propositadamente à vista.
Desde então, sempre que temos a participação de mais algum
desaparecimento, que corresponda ao perfil, vamos logo lá “cheirar”...
Ah, e o facto talvez mais importante e invulgar, e que só descobrimos
durante as necropsias2 é que nenhum dos três tinha coração – explicava o
comandante.

– Bem, é estranho, arrepiante… mas óptimo! – exclamava Frank Douglas,


cheio de adrenalina. – É uma grande pista! E mais, não encontraram mais
nenhum vestígio nos corpos... já vasculharam toda a área? – questionava,
excitado.

– Sim, já efectuámos todos os procedimentos habituais… Não se esqueça que


está a falar com o FBI! – gozou Lopez.

– Desculpe, não queria de forma alguma ensinar-vos, mas sou um pouco


impulsivo – justificava-se Frank, um pouco embaraçado.

– É exactamente por lhe conhecermos esse feitio que o chamámos. Se no


passado foi capaz de resolver o caso John Wayne Gacy, de certeza que
também nos vai conseguir dar uma mãozinha neste. Bem – continuava Lopez –
, tudo o que descobrimos está nessa papelada que vai levar consigo. Agora
aconselho-o a ir descansar, porque amanhã retomamos as investigações logo
cedo. O motorista que o trouxe até aqui ficará à sua inteira disposição,
para tudo o que precisar, durante estes dias em que estará connosco. E já
está lá em baixo à sua espera para o levar ao hotel onde vai ficar
hospedado.

– Obrigado comandante – respondeu Frank Douglas.

– Ora essa, não tem nada que agradecer, afinal de contas é você que nos
está a fazer um enorme favor! Deixou da noite para o dia as suas
investigações, as suas aulas, não tem nada que agradecer. Ah! E se
precisar de alguma coisa que não nos tenhamos lembrado de lhe deixar no
quarto, avise-nos! – exclamou Lopez, piscando-lhe o olho.

2 N. A. - Termo correcto para a dissecação dos cadáveres e não autópsia,


que significa exame em si próprio.

Frank Douglas já conhecia o tratamento VIP que o FBI fornecia aos seus
convidados. Após descer ao hall do prédio viu que do lado de fora já
estava à sua espera um motorista com o carro. Frank dirigiu-se a ele,
entrou no carro e este arrancou de imediato. Pelo caminho, de janela
aberta, Frank Douglas apreciava ao pormenor tudo o que via. Nunca tinha
estado na Califórnia, apesar de ter tido sempre um especial interesse em
conhecê-la. Em conversa com os amigos, estes diziam-lhe que era um Estado
carismático pela presença das estrelas cinematográficas e pela graça de
ter como seu governador um actor de Hollywood. “Só mesmo na América, a
terra das oportunidades... Quem diria que viria à terra de Schwarzenegger
à procura de um assassino. Se calhar devia contratá-lo para entrar neste
filme!”, brincava ele consigo próprio. Mesmo cansado, o investigador
estava muito bem-disposto e acima de tudo orgulhoso por se terem lembrado
de si e reconhecido o seu árduo trabalho de 1993.

Chegados ao Hotel Raffles L´Ermitage Beverly Hills, o motorista desligou


o carro e no mesmo segundo aparecia o bagageiro para carregar as malas e
acompanhá-los à recepção. Frank Douglas consolava a vista só com a
fachada do hotel. “Imponente…”, pensava. A fachada concebida em mármore
era soberba e deixava adivinhar o luxo do seu interior, aliás já
justificado pela atribuição das cinco estrelas, e era para Frank um
verdadeiro convite à sua visita. À medida que entrava e circulava, o
detective inglês ficava abismado com a elegância sedutora dos espaços. Já
tinha pernoitado em vários hotéis, mas nunca em nenhum como aquele. Sabia
que a cadeia L´Ermitage era considerada uma das melhores do mundo e agora
entendia bem porquê.

– Número 425 – disse-lhe a recepcionista, com um sorriso encantador. –


Aqui tem a sua chave Sr. Douglas, boa estadia!

Num silêncio que chegava a ser incómodo, subiram os três de elevador até
ao vigésimo piso. O bagageiro deixou as malas frente à porta, desejando a
Frank uma boa noite. Em seguida falou o motorista:

– Sr. Douglas, se precisar de qualquer coisa, seja o que for, é só


chamar-me. Aqui tem o meu número de telemóvel. Eu estarei sempre lá em
baixo, preparado para o servir!

– Obrigado! Por agora só me falta saber o seu nome. – gracejou Frank.

– David! – exclamou o motorista, satisfeito por Frank se interessar.

– Obrigado David e até amanhã! – despediu-se Frank, fechando a porta do


quarto.

A suite estava dividida em três partes: quarto, sala e casa de banho.


Todas as áreas ofereciam um amplo e luxuoso espaço em ambiente euro-
asiático, decorado com artes contemporâneas.
Frank olhava à sua volta e constatava que entre todo aquele espólio de
requinte podia encontrar a mais alta e moderna tecnologia, adaptável às
diferentes necessidades de cada hóspede. O quarto estava apetrechado com
um computador portátil, uma impressora, com um fax e scanner, um sistema
de som e um plasma; já na sala podia utilizar o telefone sem fios,
regular o temporizador de ambiente, de luz e som, e outro plasma, este
com DVD. “Impressionante!”, pensava, “Não se esqueceram de nada!”

Depois de descalçar os sapatos, desapertar a gravata e pôr-se mais à


vontade, começou a arrumar o que trazia nas malas. A sua roupa interior,
o seu necessaire e por último algo que o acompanhava sempre, para
qualquer lado que fosse, a sua bíblia de crimes, um livro onde constavam
todas as descrições dos maiores crimes praticados até aos dias de hoje.
De seguida, ligou para o serviço de quartos e encomendou o jantar. Estava
cheio de fome e queria qualquer coisa rápida e prática para comer. Assim,
pediu um bife acompanhado por bastantes batatas fritas, duas garrafas de
Coca-Cola e café. Frank nem se lembrou de abrir o mini frigorífico que
tinha na sala, onde podia encontrar qualquer bebida que fosse. Enquanto
esperava pela comida decidiu tomar um banho. Para Frank Douglas um bom
banho tinha que ser sempre com água muito quente e de preferência com
bastante pressão, isto no caso de ser duche. Era a melhor solução para o
deixar calmo e relaxado. Frank não tinha vícios além do café. Tinha
deixado o tabaco há pelo menos 12 anos, altura em que apanhara um valente
susto, por existirem suspeitas de ter um tumor nos pulmões. Só mais tarde
os exames concluíram que não se tratava de cancro, mas sim aspergilose
pulmonar, um fungo raro e simples de tratar.

Quando entrou no quarto de banho deliciou-se com o tamanho da banheira de


hidromassagem que o esperava. De forma circular e com vista panorâmica de
um vigésimo andar para a cidade, tratou logo de a encher e mergulhar lá
para dentro. De seguida, começou a folhear os processos que tinha trazido
consigo, sabia que lhe restavam cerca de trinta minutos até lhe trazerem
o jantar. “Pensa Frank, três homens, entre os quarenta e cinco e os
sessenta anos. Encontrados no Porto de Long Beach ali bem à vista de
todos e com os corpos sem estarem danificados, pelo menos por fora,
claro, já que quando os abriram viram que não tinham coração... de que
serial killer estamos a falar Frank?”, interrogava-se. “Até aqui é fácil!
É um assassino de segunda categoria, ou seja um mission oriented, porque
ele ou ela acredita estar a fazer um favor à sociedade eliminando estes
homens... agora resta saber o porquê! Pelo menos deixou assinatura... mas
ainda assim poderá ser qualquer pessoa...”, Frank Douglas tirava notas e
rabiscava palavras, enquanto isso a sua pele ficava enrugada, queixosa de
estar há tanto tempo dentro de água. “Primeiro, ir ao local do crime ver
se encontro alguma pista. Segundo, investigar através dos registos do FBI
todos os serial killers já encontrados na Califórnia. Terceiro, procurar
aspectos em comum na vida de cada uma das vítimas, dos seus familiares,
características físicas, ocupações, crenças, etc. Quarto, porquê no porto
e bem à vista? Colocar lá um agente de prevenção, uma vez que estes três
foram encontrados num espaço de dez semanas entre si; o assassino pode
voltar lá mais cedo do que se pensa. Quinto, procurar o motivo!”

Frank fechou os dossiers e saiu da banheira, já estava a ficar com frio.


Entretanto bateram-lhe à porta. Rapidamente se apressou a vestir o roupão
e foi abrir.

Após ter devorado o jantar, Frank deitou-se de imediato. O dia tinha sido
longo e cheio de emoções e sabia que no dia seguinte seria acordado bem
cedo para prosseguir com a investigação. Por isso reduziu a luz do quarto
e deixou-se adormecer...
III

Quinta-Feira, 23h00m.

– Já estamos todos? – perguntava o Mestre.

– Sim! – responderam as vozes em conjunto.

– Então vamos dar início à nossa celebração! – exclamou.

O ritual era sempre o mesmo. Todos os homens se colocavam em forma de


círculo e o Mestre, no meio deles, proferia as suas rezas e penitências,
junto ao corpo de alguém que se encontrava deitado ao seu lado sobre uma
pedra tumular, amarrado e amordaçado.

O ambiente da cerimónia decorria à luz das centenas de velas espalhadas


em torno daquele que era um salão medieval. A casa, já muito antiga,
remontava ao séc. XIII e continuava a pertencer à mesma família que a viu
construir, os Garden. Semanalmente acolhia, em segredo, um grupo de
homens que se juntava com a finalidade de castigar e maltratar pessoas
com distúrbios mentais. A Seita Anástasis – que em grego significava
ressuscitar – tinha sido criada com o objectivo único de identificar e
castigar as pessoas que não mereciam, na opinião dos seus membros, viver
em sociedade. Por acreditarem estar possuídas pelo demónio, ou por seres
malignos enviados por ele. A Seita era secreta e composta essencialmente
por homens brancos, devotos de Deus, que acreditavam que através dos seus
rituais podiam ajudar na elevação da alma das suas vítimas.

Evans sempre que assistia ao ritual sentia-se poderoso, superior a


qualquer homem. E o facto de se tratar de uma sociedade secreta conferia-
lhe a si próprio e aos restantes membros o poder misterioso sobre a
restante sociedade. Por ser secreta, era atractiva e alimentava a vaidade
dos seus membros, fazendo-os sentirem-se seres únicos e especiais,
perante Deus, na crença de que conseguiam ajudá-Lo a purificar todos
aqueles que, para a Anástasis, não eram dignos da vida.

Evans estava ansioso por ser promovido à etapa seguinte, a de Mestre.


Faltava-lhe apenas um mês para deixar de ser um mero iniciado. “Aí sim”,
pensava, “ Aí sim vai valer a pena!”. Nessa categoria já podia ser ele
próprio a fazer justiça com as suas mãos, purificando os corpos dos
pecadores. Evans esperava há bastante tempo por aquele momento. Sentia-se
vaidoso e importante perante os novos membros. Sentia-se orgulhoso por
faltar tão pouco para se tornar Mestre. “E melhor!”, pensava ele, “Vou
descobrir finalmente o que fazem os elementos superiores”. Evans, tal
como os outros membros que não pertenciam aos últimos estádios da
Anástasis, não tinham o direito ou privilégio de saber o que os seus
superiores praticavam na sua ausência.

O ritual, em casa dos Garden, tinha início todas as quintas-feiras às


23h00m e terminava com o soar da meia-noite, altura em que todos os
membros eram obrigados a retirar-se, à excepção dos seus superiores que
lá continuavam, sem Evans saber porquê.

– Seu filho do Demónio! – gritava o Mestre na direcção da pessoa que se


encontrava presa ao seu lado. – Venho por este meio, e pelos poderes que
me foram atribuídos por Deus-Todo-Poderoso, castigar-te e purificar-te
revelando-te toda a verdade! Deixa que os seres do mal desabitem o teu
corpo para sempre! Deixa-os sair! – gritava ele de chicote em punho,
enquanto feria o corpo de quem estava deitado ao seu lado. Muitas pessoas
que eram sujeitas àquela tortura desmaiavam ainda a cerimónia não ia a
meio. Os membros que assistiam proferiam insultos e pediam justiça,
purificação, e sobretudo sangue. O cenário era pesado e desenrolava-se
num clima de horror para aqueles que tinham sido raptados pela Seita e
apelidados de Escolhidos. Evans saía sempre daquela casa com um enorme
sorriso nos lábios. Os membros não falavam entre si e todos eles usavam
máscaras brancas a tapar a face para não serem reconhecidos.

A vida de Evans estava dividida entre a sua profissão de médico, no


Bethlem Royal Hospital e a Seita Anástasis.

Naquela noite, como em todas as quintas-feiras, Evans chegou a casa e


preparou uns ovos com bacon antes de se deitar...

-----

No dia seguinte em Londres...

– Olá John! – atendia Anne o telefonema do marido.

– Olá princesa, como estás? – retorquia John bem-disposto, como era


usual.

– Bem, apanhaste-me no intervalo...

– E que tal estão a correr as aulinhas?

– Está tudo normal! Esta turma que tive agora porta-se muito bem, piores
são os alunos que vêm a seguir! Os da turma B, já te falei neles... –
contava Megan.

– Ui, coitada! Diz-lhes que se forem mauzinhos contigo terão que se ver
comigo! – riu-se John, continuando. – Liguei-te porque queria saber se
logo queres ir jantar fora.

– Jantar fora, hoje? Mas o que é que te deu? John Brook, o que é que tu
andas a preparar? – perguntou Anne Rimes feliz, mas desconfiada.

– Nada... – respondeu ele tranquilamente.

– Não me esqueci de nenhuma data especial, pois não? – perguntava ela. –


Deixa cá ver... hoje não fazes anos, nem eu –¬ riu-se. – Também não é o
nosso aniversário… – Anne tentava adivinhar sem sucesso.

– Não, por enquanto ainda não é nenhuma data especial – interrompeu-a


John Brook. – Mas poderá vir a ser se tu quiseres…

– Ai estás a deixar-me super curiosa! Conta lá amor, desembucha!

– Vais ter que aguentar... – gozava ele.

– Foi no teu emprego, é isso? Promoveram-te? Por isso é que estás tão
contente, adivinhei?

– Ai chatinha, já te disse que não é nada disso e pára de tentar


adivinhar!
Vá, pela última vez, queres jantar comigo ou terei que convidar outra? –
riu-se, continuando. – Outra pessoa claro! – riu-se ainda mais.

– Que engraçadinho... é claro que quero jantar contigo! Isso é pergunta


que se faça por acaso? Só estranhei por quereres sair hoje, sexta-feira,
o dia em que costumamos ficar em casa, mandarmos vir a nossa pizza, ver
um filmezinho… namorarmos… – brincava Anne.

– Bem, encontramo-nos então em casa, e tenta não te atrasares muito,


marquei mesa para as 20h00m, no Locanda Locatelli, assim pelo menos já
não te podes queixar de que não comeste pizza! – John riu-se.

– Ai seu malandro, tanta conversa e afinal já tinhas reservado mesa!

– Claro, nunca duvidei que aceitasses!

– Convencido! Agora tenho que desligar que já está a tocar para dentro e
ainda tenho um bando de pestinhas para aturar!

– Yes teacher, see you later! Big kiss and I love you! – brincou o
marido.

– Também te amo muito, até logo.

Anne Rimes ficou em pulgas para saber o porquê daquele jantar e o porquê
de ser no seu restaurante italiano preferido, onde pela primeira vez
tinha sido apresentada a John. John Brook estava decidido. Tirou a tarde
de folga para preparar o ambiente. A mesa já estava reservada e agora ia
tratar do ramo de flores. Na florista comprou trinta e duas rosas
vermelhas, que pediu para serem embrulhadas em papel dourado. John queria
que tudo fosse perfeito. Para muitos casais esta decisão era a mais
normal e fácil do mundo, mas para eles não, portanto achava que tinha que
dar o devido valor ao momento. Sabia que Anne esperava há muito tempo por
isto e agora sentia-se mais que preparado para o assumir e realizar o
desejo da sua mulher. Dentro do ramo colocou um cartão com a mensagem:
“Que este dia mude para sempre as nossas vidas! Amo-te Princesa! John.”

Quando chegou a casa tratou imediatamente de enfeitá-la e caprichá-la,


com outras flores que tinha comprado, todas elas flores silvestres, as
preferidas de Anne. A empregada da limpeza já tinha saído, por isso
estava à vontade para preparar o ninho do amor, como gostava de lhe
chamar. Colocou velas e incenso no quarto, umas pétalas sobre o edredão,
preparou a música e guardou champanhe no frigorífico, juntamente com uma
taça morangos.

No momento em que Anne entrou em casa, John estava sentado a ver o


telejornal. O noticiário tinha aberto com a notícia da existência de um
possível serial killer na Califórnia e pelo que os repórteres diziam, o
FBI já tinha arrancado com as investigações e chamado, propositadamente
para investigar o caso, o famoso detective inglês, Frank Douglas. Anne
aproximou-se dele e deu-lhe um beijo...

– Desculpa amor, atrasei-me… Apanhei imenso trânsito que não estava a


contar, mas vou já arranjar-me num instante – disse Anne Rimes, enquanto
caminhava.
– Não! – impediu John que ela entrasse no quarto. – Estamos atrasados,
por isso é melhor sairmos já, sabes como aquela zona é terrível para
estacionar!

– Oh, mas eu gostava de me arranjar... – lamentou-se ela.

– Estás linda Anne Rimes, tu és linda! – elogiou-a John, enamorado.

Anne estava admirada com a quantidade de atenções e cavalheirismos que o


marido lhe dera até ao Locanda Locatelli. Anne já não se lembrava de
receber tanto mimo num só dia e para ela, aquele encontro trazia água no
bico.

Já no restaurante...

– Temos uma mesa reservada em nome de John Brook – disse John ao


empregado.
– Com certeza, façam o favor de me acompanhar... – retorquiu o homem.

– Não acredito amor, esta foi precisamente a mesa em que nos conhecemos,
lembras-te? – perguntou Anne, comovida.

– Eu sei querida, hoje nada acontece por acaso – retorquiu John.

– Queiram sentar-se... – disse o empregado, mostrando o local.


Posteriormente entregou o cardápio a ambos e retirou-se desejando-lhes um
bom jantar.

– Ora bem, o que é que vamos escolher? – perguntou ele.

– Ai, pára com isso! Diz-me porque é que estamos aqui, estou a morrer de
curiosidade! – insistiu ela.

– Calma, primeiro vamos pedir os pratos... – respondia John, enquanto ela


revirava os olhos de interesse.

Entretanto escolheram as pizzas preferidas de cada um, uma entrada de


pães de alho e um bom vinho.

John tinha acabado por conseguir distrair a mulher. Ele sabia que bastava
falar da família dela, fosse dos pais, da irmã ou até do gato, para que
Anne nunca mais parasse de falar. Antes da sobremesa ele fez um sinal ao
empregado, sem que ela reparasse, e passado poucos segundos este entregou
a Anne o ramo de John. Anne Rimes ficou perplexa a olhar para o
empregado, que se justificou dizendo: “De um admirador seu!”. Ela corou e
olhou para o marido enquanto o empregado se afastava...

– Obrigada John, são lindas! ¬– ao ler o cartão, Anne emocionou-se e


perguntou-lhe uma vez mais...

– É agora que me vais contar?


– Sim! – respondeu John, entusiasmado e seguro de si. – O que tenho para
te dizer acho que te vai deixar muito feliz. Foi uma decisão muito
ponderada, como sabes, mas finalmente já me sinto preparado para tomar
esta decisão. Anne quero seguir em frente com uma verdadeira família.

Emocionada, Anne retorquiu: – Não me digas que….

– Sim, é isso mesmo! – interrompeu-a John. – Quero um filho teu!

Anne, quase desmaiava de emoção, num pulo levantou-se da cadeira e


abraçou o seu marido. Ela já queria ter filhos há muito tempo, o seu
sonho de vida era ser mãe, mas quando se casou com John foi com o
compromisso de respeitar a vontade dele, que era a de não ter filhos, até
se sentir preparado.

– Estou tão feliz! Quando é que podemos começar a tentar? – fez Anne um
sorriso malandro ao marido.

– Não sei, preferes antes ou depois da sobremesa? – provocou John, ao que


Anne respondeu: – Já! – Ambos se levantaram num repente, John só teve
tempo de pagar ao balcão e de sair disparado do restaurante atrás de
Anne.

Em casa já estava tudo preparado para terem uma noite mágica e


inesquecível. No quarto viveram horas de paixão e de muito amor até
adormecerem abraçados ao som de blues.

-----

O padre Molony visitava semanalmente os pacientes do Bethlem Royal


Hospital. A maioria destes era perfeitamente capaz de o receber e
entender. Eram pacientes que sofriam de doenças controláveis, que
partilhavam quartos e conviviam em grupo nas salas de lazer, no
refeitório, recebendo visitas regulares de familiares e amigos. Eram
pessoas que precisavam somente de aprender a controlar e a lidar da
melhor forma com as suas obsessões e medos. Que por esses motivos deviam
permanecer medicadas e observadas, sendo que grande parte delas, passado
poucas semanas do seu internamento, regressava a casa.

Era hora do almoço quando chegou ao hospital e como já conhecia os cantos


à casa, dirigiu-se à cantina. Molony costumava visitar os doentes porque
sentia que ajudá-los era uma das suas missões.

– Olá senhor padre, quer aproveitar para petiscar alguma coisinha? –


perguntou uma das enfermeiras.

– Não, muito agradecido Jenny! Só vim mesmo ajudá-los a fazer a digestão!


-brincou ele, perguntando de seguida: – Como está a nossa Sophie hoje?

– Está fantástica! Quem a viu e quem a vê! Pode ir falar com ela, está
ali sentada ao cantinho... – respondia a enfermeira, contente pela visita
do padre.

– Óptimo! Vou lá então! – respondeu Molony.


Enquanto circulava pela cantina, reparava nos doentes que lá almoçavam e
nas caras novas que tinham chegado essa semana.

– Olá Sophie, estás boa? – disse ele.

Sophie pousou a colher com que comia a sopa e cumprimentou Molony


entusiasticamente.

– Olá, estava a ver que se tinha esquecido de mim! – retorquiu.

– Claro que não, só tenho andado um pouco ocupado com as tarefas da nossa
paróquia. E a Sophie, quando é que volta a aparecer na missa?

– Não sei padre, todos dizem que estou a recuperar bem, mas agora não
tenho coragem de regressar. Sinto-me uma estranha, tenho vergonha! –
desabafou a paciente.

– Ó Sophie isso é um disparate, bem o sabe! – ripostou Molony. – Toda a


sua família está ansiosa por recebê-la, os seus filhos principalmente...
ah, e sempre que falo com as suas amigas, Kate e Melanie, dizem-me que
estão cheias de saudades suas.

– Sim, mas e as outras pessoas? – questionava-o com aflição Sophie. –


Todos me acham louca. Vão apontar-me o dedo, vão humilhar-me…

– Sophie, infelizmente há sempre gente disposta a fazer o mal, mas nós


temos que ser superiores a isso. Terá que ser forte e ultrapassar todas
as piadas de mau gosto que ouvir a seu respeito. Sabe que há muita gente
maldosa e invejosa. Pessoas dispostas a ferir quem está feliz, por ainda
não terem encontrado o seu próprio caminho para a felicidade. Não se
deixe magoar por aqueles que não lhe interessam. Todos os que a amam,
querem-na por perto e esses é que realmente importam – aconselhava
Molony, já sentado na cadeira ao seu lado.

– Eu sei padre, mas é tão difícil voltar. Aqui somos todos iguais, cada
um com a sua mania é certo, mas todos nos entendemos. Ao longo destes
seis meses fiz muitos amigos que não quero perder...

– E não vai perder ninguém Sophie, um dia também eles vão acabar por sair
deste hospital e aí poderá retomar todas as amizades que travou.

– Obrigada padre, sem si não tinha conseguido recuperar... – dizia


Sophie, de cabeça baixa.

– Tinha pois! – retorquia Molony, continuando. – Você é uma mulher muito


forte! Quando é que vai ter alta?

– Amanhã à tarde os meus filhos já me vêm buscar... – respondeu ela.

– Que bom, fico muito feliz por si! Ah, e fico também à sua espera no
domingo. Quero-a a assistir à missa na primeira fila, bem à frente de
todos! – levantava-lhe Molony a cabeça. – Para mostrar como está muito
bem!

– Ai padre, acho que já está a pedir demais! ¬– respondeu ela,


atrapalhada.
– Nunca nada é bom demais para pessoas com o seu coração. Força Sophie e
muito boa sorte! – despediu-se Molony, saindo da mesa.

– Obrigada e até domingo, se Deus quiser! – sorriu Sophie.

– Vai ver como ele quer! – respondeu-lhe de longe Molony, todo


sorridente.

Naquela cantina via de tudo, por mais vezes que lá fosse sentia sempre
uma profunda tristeza por ver tantos doentes distantes e perdidos numa
outra realidade.

Depois de conversar com outros tantos, Molony solicitou à secretária da


administração que o deixasse falar com o director do hospital, a qual,
depois de confirmar com o próprio, o autorizou a entrar na sua sala.
Frente ao responsável daquela instituição, Molony pediu permissão para
poder visitar os doentes que se encontravam em situação isolada, os
doentes mais críticos...

– Senhor padre, vai-me desculpar, mas não podemos deixá-los ter visitas,
não é de todo aconselhável! – respondeu o director, que se encontrava
sentado na sua poltrona de cabedal.

– Mas…podia abrir uma excepção – pedia Molony. – Se calhar a minha visita


até lhes fazia bem… – gesticulava.

– Padre, vai-me desculpar, mas os doentes que estão colocados em estado


de isolamento sofrem de psicoses profundas, têm um quadro clínico
bastante reservado. Têm ataques violentos, manifestações de
agressividade, e quando não estão assim normalmente também não estão para
grandes conversas, se é que me entende? – questionava o director. – Temos
inclusivamente um caso, ainda a ser estudado, de uma paciente que
raramente reage seja ao que for, e é muito perturbante...

– Ainda assim gostava de arriscar, e se pudesse ser com essa pessoa de


que me acabou de falar, ainda melhor! – sugeria Molony.

– Com a Susan Fletcher? Não me parece boa ideia! – respondeu de imediato


o director, levantando-se da poltrona.

– Mas senhor director, pense... – insistia Molony. – O que é que me pode


acontecer? Ou ela reage ou não reage, e se reagir e me agredir chamo
algum enfermeiro que me possa auxiliar, aliás é tudo da minha inteira
responsabilidade!

– Padre Molony, já vi que não desiste, e eu contra a vontade de Deus nada


posso! – brincou o director.

– Agradeço, não passará somente de uma experiência – respondeu Molony,


satisfeito por ter conseguido.

– De acordo! – disse o director, selando o acordo com um aperto de mão.


De seguida, chamou um enfermeiro à sua sala e pediu-lhe que acompanhasse
o padre até ao quarto número 270. E assim foi. Molony e o enfermeiro
desceram de elevador e percorreram o corredor do hospital até ao quarto
de Susan Fletcher. Lá chegados, o enfermeiro espreitou pelo postigo de
vidro, colocado propositadamente nas portas para conseguirem observar os
doentes sem que estes reparassem, e disse a Molony que a paciente estava
sossegada, e que se encontrava sentada no parapeito da janela a olhar
para o lado de fora, como era seu costume.

– Acho que podemos entrar! – exclamou o enfermeiro.

– Não! – retorquiu Molony. – Eu entro sozinho!

– Mas o senhor director...

– Não se preocupe – interrompeu Molony –, você fica a observar-nos daqui


e se eu precisar de ajuda tratarei imediatamente de chamá-lo. Aliás, não
conto ficar lá muito tempo.

– Está bem padre, como preferir, entre! – disse o enfermeiro, pouco


convencido, destrancando a porta.

Molony entrou silenciosamente no quarto de Susan e com alguma ansiedade,


não queria fazer nenhum movimento ou ruído que a pudesse assustar, ou
afugentar.

– Susan, olá! – disse ele baixinho.

Mas não recebera em troca nem um movimento, ou um gesto. Susan Fletcher


permaneceu imóvel, como se ninguém tivesse entrado ou falado.

– Olá Susan sou eu, o padre Molony! Nós conhecemo-nos, lembras-te? –


insistiu ele.

Nisto Susan afastou-se da janela e olhou para ele, em movimentos


vagarosos caminhou até à sua cama e sentou-se. Molony não fazia ideia do
que tinha acabado de acontecer, pois julgava que, como lhe tinha dito o
director, era suposto ela não reagir a nada. Já o enfermeiro espreitava,
do lado de fora, estarrecido pelo que acabara de assistir, pois não era
provável Susan ter saído do seu sítio e ter-se aproximado de alguém, pelo
que se lembrou de telefonar a Megan Fox, dado ela ter pedido para que lhe
ligassem sempre que tivessem novidades.

– Estou?

– Dra. Megan? – perguntou o enfermeiro.

– Sim, é a própria!

– Boa tarde, daqui fala o Phill do hospital!

– Ah, olá Phill, então alguma novidade?

– Acho melhor a doutora vir ver com os seus próprios olhos!

– É a Susan Fletcher? – perguntou Megan, aflita.

– Sim...

– Vou já para aí! – respondeu de seguida, desligando o telefone.


Megan Fox estava a conduzir em direcção a casa, mas depois da chamada de
Phill decidira encaminhar-se de imediato para o hospital.

– Susan, estás a reconhecer-me? Posso sentar-me ao teu lado? – falava o


padre Molony.

Após algum silêncio, Susan Fletcher acenou que sim com a cabeça. Ainda à
espreita, Phill não conseguia acreditar no que os seus olhos viam. Era um
milagre. Tinha que avisar toda a gente do que estava a acontecer, tinha
que informar o Dr. Evans que Susan tinha comunicado com outra pessoa, sem
ser Anne Rimes.

– Fico muito contente por me reconheceres – retorquiu Molony –, afinal


somos amigos há mais de dez anos… – disse Molony, na esperança que ela
continuasse a reagir. E Susan sorriu-lhe.

– Então, Susan, sentimos muito a tua falta! – exclamou Molony. – Vim aqui
falar contigo porque tenho saudades das nossas conversas. Eles não me
queriam deixar entrar, achavam que não ias falar comigo, nem ias gostar
da minha visita... mas não é verdade, pois não? Quando voltas para nós? –
perguntou Molony, mas desta não obteve resposta. Susan fitou-o somente
com atenção. Molony começou a achar que ela lhe queria transmitir algo,
mas não conseguia entendê-la.

– Susan podes contar sempre comigo, sabes disso! – perante o silêncio da


amiga, lembrou-se de perguntar: – Queres falar comigo em confissão? – mas
Susan permaneceu calada. Molony conseguia compreender parte desse
silêncio, por conhecer a sua história...

Megan Fox estava de boca aberta a assistir do lado de fora a todo aquele
cenário. Ao lado de Phill, espreitava fascinada pelo postigo. Embora não
conseguissem ouvir nada, Megan tinha optado por não entrar, pois poderia
estragar o que quer que estivesse a acontecer naquele momento lá dentro.
“Incrível!”, magicava ela para si mesma, “Incrível”.

– Susan, trouxe-te um presente, mas vais ter que o esconder muito bem,
não podes mostrá-lo a ninguém! O que estou a fazer não é permitido e
podem proibir-nos de estar juntos de novo. Por isso presta bem atenção ao
que te vou dizer – pediu Gary Molony. – Por baixo deste casaco que pousei
aqui ao nosso lado está um caderninho. Quero que fiques com ambos. Com o
meu casaco para te cobrires sempre que te sentires insegura e sozinha e
com o caderno, que aconselho a esconderes debaixo do colchão, para
fazeres o que sempre fizeste, escreveres os teus pensamentos e
sentimentos. Promete-me que fazes isso Susan, ok? – olhava-a Molony,
enquanto Susan o observava olhos nos olhos. – É um segredo que fica só
entre nós. Eu acho que te consigo ajudar se me deixares. – Susan abanou
positivamente a cabeça. O padre Molony aproximou-se dela, com alguma
cautela, e beijou-a na face. Susan Fletcher deixou, sem oferecer qualquer
resistência. Nunca ninguém o tinha conseguido antes.

– Agora vou ter que sair, mas prometo que volto em breve! – exclamou o
padre. – Fica bem Susan Fletcher e não te esqueças que há quem goste
muito de ti, amiga!

Quando Molony saiu do quarto, Megan abordou-o de imediato.

– Boa tarde! Chamo-me Megan Fox e sou a psiquiatra da Susan.


– Boa tarde doutora, como está? – retorquiu o padre, à espera que se
seguisse um interrogatório.

– Muitíssimo melhor depois do que vi a passar-se lá dentro! O que


aconteceu foi incrível, padre! – falava Megan, entusiasmada.

– Não sei se estou a entender... – fez-se Molony de desentendido.

– Padre, a Susan não comunica com ninguém à excepção de uma amiga... –


explicou a médica.

– Mas se já o faz com alguém qual é o motivo de tanto espanto? –


disfarçou Molony.

– O espanto é que o padre é um desconhecido... – justificava Megan muito


excitada, na tentativa de obter mais alguma informação.

– Bem, fico muito satisfeito por achar que a paciente reagiu bem à minha
visita, agora se não se importa precisava de me retirar – disse Molony,
um pouco incomodado por não pretender dizer que conhecia Susan e que era
seu amigo de longa data.

– Com certeza, mas diga-me só mais uma coisa por favor – insistiu Megan
Fox. – A Susan falou?

– Não, não abriu a boca. Boa tarde Dra. Megan. – retorquiu Molony num tom
frio e esquivo, à medida que se afastava dela.

Megan não sabia o que pensar, apesar de serem boas as notícias a história
não lhe parecia fazer muito sentido, por isso decidiu também ela tentar a
sorte com Susan e entrou...

– Olá Susan, sou eu, a Dra. Megan! – mas, de resposta, Megan obteve
simplesmente aquele que era o mesmo silêncio do costume. Aliás, naquele
espaço de tempo, Susan já tinha regressado à janela onde se sentava
imóvel.

– Já percebi que gostaste da visita do padre, e que gostaste de estar com


ele, ele é simpático? – mas tudo continuava na mesma, Susan não reagia.
Nisto, a porta abre e bate com força contra a parede, dando espaço à
entrada abrupta de Evans no quarto.

– Então, ouvi dizer que temos novidades? – perguntou ele, enquanto


apreciava Susan. Mas Megan não tinha gostado da forma como Evans tinha
entrado no quarto e acabado de abordar a paciente, não era a forma, nem a
altura própria para o fazer. – A Susan falou ao Senhor? – continuou ele,
agora a falar num tom mais sarcástico. – Percebeu o trocadilho doutora?
Senhor... Deus? – falava Evans, rindo sozinho. Megan estava possessa,
nunca em todos aqueles anos em que trabalhava no hospital, simpatizara
com Evans ou com as suas piadas de péssimo gosto.

– Doutor, penso que lá fora falamos melhor! – sugeriu ela, sem que Evans
lhe ligasse, voltando-se em vez disso para Susan, num tom irónico e
metediço.

– Então já tivemos progressos, minha linda?


Susan Fletcher levantou-se da janela e teve subitamente um ataque de
fúria. Começando a berrar e a tentar agredir compulsivamente Dr. Evans.
Megan tentou impedi-la puxando-a, mas não teve forças suficientes. Phill
entrou de imediato no quarto, de seringa na mão, agarrou-a pela cintura e
sedou-a. Tudo em menos de trinta segundos.

– Uma injecção e voilá, hoje já não volta a chatear-nos! – exclamou Evans


vingativo e satisfeito com a atitude de Phill.

Megan sentia-se quase tão furiosa quanto Susan e saiu disparada do


quarto. Evans foi atrás e chamou-a.

– Onde vai doutora? Não me vai contar os pormenores do sucedido? -


questionou-a Evans, como se nada daquilo tivesse acontecido.

– Lamento colega, mas não tenho tempo, estou cheia de pressa. Peça ao
enfermeiro que lhe conte, ele viu mais que eu! Até amanhã – respondeu
ela, seca e frontalmente.

Revoltada e angustiada, Megan saiu do hospital. Só lhe apetecia ir ao


gabinete do director apresentar queixa pelo comportamento de Evans. A
todo o gás, partiu para casa, onde ia estudar tudo o que tinha ao mais
pequeno pormenor. Hoje alguma coisa de diferente se tinha passado naquele
quarto e ela ia descobrir o quê.

Entretanto Evans estava enfurecido por saber que Susan tinha registado
uma melhoria. “Para a próxima não me escapas menina, hoje tiveste muita
sorte por não estares sozinha!”, pensou ele.

-----

Frank já estava na Califórnia há uma semana. Tinha começado a sua


investigação tal como delineara, através das questões que anotou no seu
bloco, no dia em que lá chegou…

Frank dormia tranquilo até que o telefone tocou. O detective acordou


agitado sem saber onde estava nem porquê, mas logo se recordara do que o
tinha levado àquele fabuloso quarto de hotel. Levantando o auscultador
perguntou com rouquidão matinal...

– Sim?

– Bom dia Sr. Douglas, fala o comandante Lopez! Presumo que o tenha
acordado...

– Sim, mas que horas são?

– Faltam quinze minutos para as seis da manhã. Precisava que viesse ter
connosco para arrancarmos com as buscas. Consegue estar cá dentro de meia
hora?

– Claro comandante! Vou arranjar-me imediatamente!

– O David está lá em baixo à sua espera – disse Lopez.

Douglas levantou-se num rápido, ligou para serviço de quartos a pedir um


café e meteu-se no duche, desta vez com água fria, para ver se acordava
mais depressa. Depois de vestido tomou o café sem açúcar, como gostava, e
meteu-se no elevador.

Chegados ao FBI, Frank dirigiu-se ao gabinete de Lopez e este mandou-o a


entrar. Ficaram horas à conversa, a analisar dados e a trocar primeiras
impressões. Douglas pediu-lhe que o departamento de investigação e
análise criminal procurasse o cadastro de todos os serial killers
conhecidos na história da Califórnia. Encomendou ainda uma pesquisa sobre
a vida de cada uma das vítimas, bem daquelas que lhes eram próximas.
Frank queria perceber se havia algum ponto em comum entre elas. Perguntou
de novo a Lopez se não tinham encontrado nenhuma impressão digital no
corpo, no local, ou se alguém teria visto algo suspeito... mas as
respostas foram, como já se calculava, todas negativas.

– E vestígios nos corpos? – inquiria Frank Douglas.

– Não, foram os três levados para a Trace Evidence Unit3, mas não
encontraram nada de nada.

Frank era meticuloso e preferia ir ele, com os seus próprios olhos,


analisar o local do crime. Não era que não confiasse o suficiente no FBI
e nos seus métodos, mas para ele qualquer humano, fosse ele do FBI ou da
CIA, podia falhar, até os melhores podiam não reparar em pormenores que
os de fora eventualmente conseguiriam ver, como a sua experiência já o
constatara.

3 N. A. -Unidade de procura de provas.

– Comandante, queria pedir-lhe que colocasse um agente de prevenção, que


circundasse toda a área, 24 sob 24 horas. – solicitou Frank.

– Ok, vou destacar já alguém para esse efeito… Júlio! – gritou o


comandante do interior do seu gabinete para o corredor. – Trata de
colocar alguém a vigiar o porto de Long Beach dia e noite.

– Sim comandante! – respondeu o agente especial do FBI.

– Tratado. E agora Frank? – questionava Lopez.

– Bem, agora eu vou até ao porto tentar perceber o que se passa lá,
enquanto aguardo todos os registos que lhe pedi.

Nisto toca o telefone do comandante Lopez...

– Sim? – pergunta ele e continua. – Quando? Como é que ele é? Ok, vamos
já para lá! Detective, siga-me! – exclamou o comandante num tom alto e
assertivo para Frank Douglas, enquanto vestia o seu casaco.

– Onde vamos? – perguntou Frank curioso.

– Exactamente onde queria ir! Ao porto de Long Beach!

Ambos saíram disparados rumo ao cais. Pelo caminho, Lopez explicou a


Douglas o que tinha acontecido...

– Frank, encontraram mais um corpo!


– E corresponde ao nosso assassino, certo?

– Noventa e oito por cento de hipóteses afirmativo. Pela descrição, é um


homem branco, que ronda os sessenta anos e que não tem marcas de
violência aparentes, à excepção...

– Disse noventa e oito por cento? – Frank sabia que ainda não tinha
ouvido todos os pormenores.

– Sim, existem duas diferenças... Na camisa tem escrito a marcador


vermelho a palavra justiça e faltava-lhe um sapato! – justificou Lopez.

– Bem, sendo assim podemos não estar a falar do mesmo assassino. Pode ser
apenas uma coincidência. Só depois de o abrirmos e vermos se tem coração
é que vamos conseguir ter a certeza... – tagarelava Frank, ansioso por
ver o cadáver.

Chegados ao local do crime estava já uma multidão a espreitar pelas fitas


amarelas do FBI, que circundavam a zona onde se encontrava o corpo. Os
jornalistas tinham sido os primeiros a chegar e andavam em cima do
acontecimento desde o primeiro corpo lá encontrado.

– Detective Frank Douglas, esta morte está relacionada com o serial


killer? – perguntava um deles a Frank, mal este saiu do carro.

– Ainda não sabemos! – respondeu Lopez, na vez do detective inglês,


visivelmente incomodado pela presença do repórter. Lopez detestava
jornalistas, tanto quanto os criminosos, achava-os um verdadeiro
empecilho ao seu trabalho.

– Mas tudo indica que o homicida seja o mesmo, não é verdade? Os outros
também foram encontrados aqui... – insistia o jornalista da CNN.

– Já lhe disse que ainda não sabemos de nada. Quando tivermos informações
válidas e confirmadas comunicaremos em conferência de imprensa, até lá
peço-lhes que se afastem! – falava Lopez, num tom mais brusco. – Se não
se importam retirem-se e parem com as fotografias! Precisamos de
prosseguir! – gritava ele. – Vamos iniciar o trabalho e não queremos
ninguém aqui!

O FBI começou a dispersar os curiosos e os senhores da imprensa. Não


podia deixar que capturassem imagens do cadáver, era uma questão de
respeito para com os seus familiares, que tinham todo o direito ao sigilo
e anonimato.

Frank Douglas começou a analisar o local e o corpo. Ficara fixado na


palavra justiça que estava escrita no peito da vítima. Perguntava-se
porquê. Vasculhou a área mas não encontrou nada. O facto do cadáver estar
só com um sapato calçado levava-o a pensar que o mesmo seria resultado de
uma luta, ou de alguma confusão, mas era estranho o corpo não apresentar
sinais de agressão. Após procurarem o outro sapato na zona circundante,
não obtiveram qualquer resultado...

– Está tudo limpo, comandante. Sugiro que levemos o corpo para ser
analisado!
– afirmou Frank Douglas, convicto de que já não estavam lá a fazer nada.
E assim foi, o cadáver foi transportado para o departamento de
investigação criminal onde Frank e Lopez esperaram até que os
especialistas anunciassem o resultado, após três horas.

– Frank, tem aqui os relatórios que pediu sobre as vítimas e os serial


killers, quer dar uma vista de olhos? – perguntou-lhe Lopez com os
documentos na mão.

– Claro, é com o maior prazer!

– Pode ficar aqui no meu gabinete à vontade. Eu vou ter que sair, volto
dentro de duas horas. Se por acaso me demorar, amanhã é um novo dia,
Frank. Vá até ao hotel descansar, pois preciso de si fresco nesta luta!

– Não se preocupe comandante, que vamos encontrá-lo!

– Os jornalistas não param de me procurar. Parecem umas baratas tontas –


refilou Lopez. – Este caso tem abalado a América e está a tornar-se num
verdadeiro pesadelo para todos nós! O próprio Governador já me telefonou
a pedir que o pusesse a par de toda a investigação.

– Não se preocupe comandante, vamos apanhá-lo!

Frank trancou-se no gabinete depois de ter pedido para não ser incomodado
por ninguém.

– Ora vamos lá ver o que temos aqui! – falava ele em voz alta.

No topo das folhas, que já estavam sobre a secretária, aparecia, como


habitual, o nome Federal Bureau of Investigation (FBI) e mais abaixo o
assunto.
No primeiro dossier a lista tinha o título Serial Killers in Califórnia e
abaixo podia ler-se o nome dos cadastrados e as descrições dos crimes
cometidos por cada um. Em anexo, estavam estampados em tamanho A4 as
fotografias de rosto de cada um deles. Da lista constavam apenas nomes
dos assassinos em série que actuavam sozinhos, uma vez que Frank desde
logo excluíra a hipótese dos crimes terem sido praticados por mais que
uma pessoa.

Federal Bureau of Investigation

Serial Killers na Califórnia:

• Patrick Kearney Necrofóbico - Matou 28 pessoas. Mutilava os cadáveres.

• Juan Corona Homofóbico - Mexicano matou 25 pessoas.

• Richard Ramirez “Night Stalker” - Satânico. Matava durante o sono.

• Randy Kraft Matou dezenas de jovens adolescentes.

• William Bonis Violou e matou um sem número de homossexuais.

• William Lester Suff Assassinou dezenas de prostitutas.

• Edmund Keufer II Matou a família e dezenas de pessoas.


Esta era uma das listas dos assassinos em série que tinham sido
encontrados e executados na história mais recente da Califórnia. Frank
Douglas, após as ter analisado e aos ficheiros que pesquisou nos arquivos
do FBI, concluiu que o homicida que procurava se tratava de uma estreia
no mundo do crime e que em nada tinha a ver com todos os outros já
existentes. Este não se inspirava na técnica e na metodologia seguida por
nenhum dos que encontrou descritos nos arquivos. Enquanto estudava o que
tinha em mãos, a palavra “justiça” não lhe saía da cabeça...

“Porque é que alguém queria vingar-se daqueles quatro homens? Que motivos
teve a pessoa para querer vê-los mortos?”, pensava Frank, enquanto
desenhava rascunhos a lápis numa folha em branco que tinha pousada na
secretária.

Passadas mais de duas horas, Lopez telefonou-lhe a avisar que não voltava
ao escritório.

– Detective, pegue nos dossiers e leia-os na sua suite. No computador que


lá tem poderá aceder aos nossos ficheiros através da palavra-chave que
lhe dei.

– Ok, vou fazer isso mesmo! – respondeu Frank Douglas. – Prefiro


continuar no hotel, é que nem imagina a banheira que tenho lá à minha
espera! – disse Frank, fazendo ambos rirem.

– Frank, aproveite hoje para dar uma volta, se não ficar a conhecer nada
da Califórnia os seus amigos vão-nos achar uns péssimos anfitriões –
brincava Lopez.

– Sou capaz de pedir ao David que me leve a algum café depois do jantar.
Aconselha-me algum em particular?

– Nessa zona são todos bastante agradáveis, mas talvez o The Last Detail,
que é recatado e tem uma decoração engraçada.

– Ok, obrigado. Até amanhã comandante!

Frank pegou nos documentos, deitou a folha fora e saiu do gabinete. David
estava à sua espera no carro.

No regresso ao L´Ermitage Beverly Hills Hotel, David perguntou a Frank se


gostaria de passar pelas ruas mais célebres da Califórnia onde estavam
situadas as mansões dos famosos do cinema, da música entre outras
personalidades. Frank adorou a ideia e disse logo que sim.

Quando chegou ao hotel, ainda muito excitado com as exuberâncias que


tinha visto, aproveitou para fazer um telefonema à mãe. Martha, com
oitenta e um anos, vivia sozinha e apesar da avançada idade ainda
irradiava alegria e juventude.

– Mãe, olá! – exclamou contente.

– Até que enfim, filho! Já não me ligas há quase três dias! – Frank
costumava telefonar-lhe diariamente para conversarem um bocadinho. –
Estava a começar a ficar preocupada!

– Pois é mãe, desculpe, é que tive que vir para...


– Para a Califórnia, sim eu já sei! – interrompeu a mãe.

– Mas como é que sabe? ¬ perguntou Frank ingenuamente.

– Filho, as notícias não dão outra coisa. Sabes como é, o nosso melhor
detective a desvendar um caso desta importância na América... – brincava
a mãe, cheia de orgulho.

– Sim, sim... e a mãe como está?

– Estou óptima, quero é que me contes tudo, sabes como sou curiosa!

Martha sabia que o filho não lhe escondia nada, já era costume falarem
sobre tudo, e um dos assuntos que mais a entretinha eram os mistérios
criminais em que ele se metia.

– Tudo, tudo, fica para depois, mas entretanto posso dizer-lhe onde
estive há pouco... acho que vai ficar com ciúmes! – dizia ele a brincar.
– Passei frente à casa do Sylvester Stallone, do Elvis Presley, do Eddie
Murphy...

– Ai seu sortudo! Com que então em vez de trabalhares andas a passear nas
ruas dos famosos! Que trabalho aborrecido o teu! – brincava agora Martha.

– Pois é e ainda vi a mansão do “Boss”; do Ray Charles, do Charles


Chaplin, até tomei nota dos nomes para não me esquecer de lhe dizer
nenhum! Deixe cá ler... – falava ele muito depressa com a excitação. –
Ah! Do George Clooney também, estava cheia de jornalistas à porta! A mãe
é que o acha um borracho, não é? – riu-se.

– Claro que acho, só se fosse burra é que não o achava sexy! – ripostou
alegremente.

– E mais, sabe quem vi a fazer jogging?

– Quem?

– O Jack Nicholson!

– Pediste-lhe um autógrafo para a tua mãezinha querida?

– Ó mãe, claro que não! Eu ia de carro...

– Desculpas... – reclamava Martha.

– Bem, mas para mim o melhor, melhor foi ver a casa espectacular da
Madonna!

– Sim, a casa... compreendo... tu desde os teus vinte anos anos que és


doidinho por ela!

– Ai é? Então para terminarmos com as piadinhas vou dizer-lhe mais uma


que vai adorar! Vi a casa do Fred Astaire!

Frank Douglas sabia que a sua mãe tinha uma enorme admiração por ele.
– Ai filho, não acredito!

– Pode acreditar! E por sua causa saí do carro e tirei uma fotografia de
recordação com o meu telemóvel!

– Que querido Frank, obrigada! Olha, mas falando de coisas sérias, quando
é que voltas?

– Não sei, só quando a investigação terminar, ou pelo menos a minha


parte. Não posso ter a certeza ainda, mas eu vou-lhe ligando...

– Está bem, e tem juízo! Eu vou-te seguindo pelas notícias… Beijinho


grande!

– Beijos mãe, até amanhã!

Frank Douglas sentia uma enorme admiração pela mãe. Ela enviuvara do pai,
com apenas trinta e sete anos, e decidira nunca mais voltar a ter
ninguém, optando por dar toda a sua atenção ao crescimento e formação do
filho.

Após desligar o telefone, Frank refastelou-se na banheira e fez planos


para a sua noite... “Depois de jantar aqui no restaurante peço ao David
que me leve ao tal café que o Lopez disse, se for mesmo reservado consigo
ler tudo sem interrupções”, pensou ele.

Frank Douglas jantou tranquilamente e de seguida foi até ao The Last


Detail, como Lopez tinha sugerido. Lá chegado sentou-se numa mesinha,
para duas pessoas, frente a uma das janelas. David ficou à sua espera
dentro do carro.

O detective pegou no dossier, que tinha como assunto a descrição da vida


da vítima, seus familiares e factores externos relevantes e começou a
folheá-lo. Naquelas páginas estavam impressas as vidas de quatro homens.
Quatro homens que nunca conheceu mas que, a partir daquela altura,
ficaria a conhecer melhor que ninguém...

Nisto, toca o telemóvel...

– Frank, boa noite, é o comandante Lopez!

– Olá comandante, novidades sobre a nova vítima?

– Sim, o quarto homem também não tinha coração! Faz parte da mesma série
de crimes. Acho que podemos concluir que se trata mesmo de uma vingança!
– exclamava Lopez entusiasmado. – Tirando isso não temos mais nada. Foi
tudo analisado ao microscópio e nem fibras têxteis, nem fios de corda,
cabelo, penas ou pêlos de animais, nenhum vestígio debaixo das unhas,
nada da nada!

– E você, não descobriu nada, Frank?

– Não, comandante. Não há registo de que tenha existido nenhum assassino


em série igual ao nosso, na Califórnia. Quanto às descrições de cada uma
das vítimas só comecei agora a ler, mas para já não reparei em nada de
anormal.

– Continue Frank, continue, havemos de o apanhar desprevenido!


– Ok, encontramo-nos amanhã!

– Sim, até amanhã então!


IV

Anne Rimes andava com a cabeça nas nuvens. Durante a noite sonhava que
era mãe de um lindo bebé e que o embalava no seu colo ao som de caixinhas
de música, e de dia, sempre que se cruzava com uma loja para crianças,
parava frente à montra e deixava-se enternecer com tudo o que lá estava
exposto. O desejo de engravidar e ter um filho era maior que tudo e desde
que John Brook se comprometera a realizar-lhe o sonho que deixara de ter
descanso. Todos os momentos que estavam a sós Anne seduzia-o de forma a
tentar mais uma vez. Ele gostava, mas receava que a vontade da mulher
virasse uma obsessão.

John Brook sempre dispensou ter filhos. Viera duma família de três
irmãos, sendo que estes eram bastante mais novos que ele, frutos de um
segundo casamento por parte da mãe. E como consequência de o padrasto ter
sido sempre uma pessoa bastante ausente, teve que, também ele, ajudar a
tomar conta os irmãos. John achava que já tinha feito muito e não ansiava
passar pela mesma experiência tão cedo, mas Anne, à medida que o tempo
passava, ia tentando convencê-lo de que eram uma bênção.

John desde que a viu pela primeira vez apaixonou-se como nunca antes o
tinha conseguido. Já tinha passado por muitos relacionamentos, mas
nenhuma mulher o deixara tão embeiçado como Anne Rimes. Anne tinha trinta
e cinco anos… e sempre se vestira com roupas sportswear, o seu à vontade
realçava-lhe a simpatia chamando a atenção de todos os que a rodeavam,
incluindo a de John. Ele tinha-se encantado com os seus olhos rasgados
cor de amêndoa. Para John, toda ela era uma figura apetecível, descrevia-
a aos amigos como uma rapariga única, querida, divertida, com um imenso
sentido de humor, em resumo, encantadora. Os seus amigos a princípio
achavam que ele estava somente apaixonado, mas depois de os verem juntos
compreenderam que ele tinha razão. Não propriamente pela beleza dela, mas
porque John estava verdadeiramente fascinado. Nunca o tinham visto assim.
Sabiam que ele conseguia todas as mulheres que queria e que não precisava
de ter só uma, principalmente assim simples como Anne era. No início
custou-lhes a aceitar a sua relação, não estavam habituados àquele John
todo enamorado e caseiro, mas aos poucos lá se foram conformando e
aceitando as mudanças.

Anne também ficou encantada nesse mesmo dia em que foram apresentados,
mas aí já era mais fácil de compreender. John Brook era realmente muito
interessante e charmoso, sempre com uma maneira muito própria de falar,
muito caricata e sedutora. Ambos sabiam que não se podiam apaixonar mas
nem tentaram resistir, pois o seu sentimento tinha sido mais forte.
Quando começaram, oficialmente, a namorar, Anne Rimes teve o receio de
que ele não fosse o homem que desejava. Lembrava-se centenas de vezes das
histórias que Susan Fletcher lhe tinha contado acerca de ele ter muitas
mulheres, ser atiradiço e sério nas relações amorosas. Anne sabia que se
arriscava a ser apenas mais uma no vasto leque de conquistas de John
Brook, mas não conseguia evitar. O desejo de estar com ele era demasiado
intenso. John mexia-lhe com todas as emoções, deixava-a arrepiada,
nervosa, com o coração a bater a mil à hora, as mãos suadas e com um
enorme desejo de o beijar até perder o fôlego. Bastava-lhe aquele piscar
de olhos verdes, para que Anne dissesse que sim a tudo e o seguisse até
ao fim do mundo. Naquele dia o sentimento de ambos tinha sido o mesmo, de
puro encantamento.

Susan Fletcher, assim que os apresentou, ficou com a sensação de que


tinha existido uma química no ar, mas com a consciência de que era uma
pessoa muito influenciada pela imaginação rapidamente esqueceu a ideia e
continuou a jantar.

-----

– Querido, vou ao hospital... esta tarde como não dou aulas vou
aproveitar para ir visitar a Susan!

– Tu lá sabes, já conheces a minha opinião... – respondeu John, pouco


satisfeito.

– Sim, eu sei que não gostas que eu lá vá, mas pronto já chega de
discutirmos sempre por causa do mesmo!

– Vai e manda-lhe um beijinho meu... – ironizou o marido.

– Essa boca era escusada! – protestou ela, enquanto vestia o casaco.

– Estava a brincar querida, não fiques lá muito tempo que também não te
faz bem... voltas sempre triste e desanimada! – gritava ele de dentro da
casa de banho.

– Sim, é verdade. Mas também é normal ou não? Esta história mata-me,


queria contar-lhe tudo duma vez! – continuava ela a falar em voz alta,
para que John a pudesse ouvir do sítio onde estava.

– É melhor esqueceres essa ideia! A Susan está louca...

– Pois está. Mas já te ocorreu que um dia ela pode melhorar? E depois com
que cara é que lhe vamos contar? E se tem outra recaída? – falava ela
através do corredor.

– Se isso vier a acontecer logo vemos, agora olha é para o relógio e não
te atrases!

– Que seca! O trânsito dá conta de mim...

Anne saiu de casa e John continuou a arranjar-se. Ele não tinha horas
para chegar, o seu horário era livre. Enquanto se barbeava pensava no que
a mulher lhe tinha dito: “Já te ocorreu que ela um dia pode melhorar?”.
John nunca colocara essa hipótese. Apesar de já ter gostado de Susan, não
estava para ter mais problemas na sua vida. O seu lado menos bom rezava
para que ela não recuperasse mais.

-----

Jessica Fletcher estava a piorar de dia para dia. A depressão tomava


conta dela a toda a velocidade. Os comprimidos já não faziam o mesmo
efeito, estavam a perder a força sem que ela conseguisse a voltar a ser o
que era.

No emprego, James, o seu chefe, não sabia o que fazer. Tinha sido
obrigado pela administração a despedi-la, mas para ele era muito
complicado, pois além de serem amigos, Jessica tinha dedicado grande
parte da sua vida àquela casa. Entre suores, lágrimas e risos, juntos
partilharam trabalho pela noite dentro, vezes sem conta. James
compreendia a administração pois o caso começava a não ter solução à
vista, e sabia que a decisão não estava mais nas mãos dele. Era certo que
os administradores já tinham reparado que Jessica não respeitava
horários, que andava sempre com um péssimo aspecto e pior que tudo isso
era o facto de nas reuniões não conseguir dar uma única resposta clara e
objectiva aos seus clientes, adjectivos que sempre fizeram parte da sua
postura. O chefe, por mais que gostasse dela, também já não a reconhecia
mais, assim decidiu chamá-la ao seu gabinete...

– Jessica, senta-te por favor – pediu-lhe num tom firme.

– O que se passa, James? – interrogou ela, de sobrolho franzido.

– Tu é que tens que me dizer o que se passa! Já ninguém te conhece nesta


empresa, até eu começo a ter essa dificuldade! – reclamou ele com alguma
agressividade, perante o estado sempre inerte de Jessica.

– Eu sei que tenho andado um pouco cansada e não tenho atingido os


objectivos, como era meu habitual, mas se me deres mais tempo eu também
sei que vou voltar a conseguir! – gesticulava ela na cadeira, ao mesmo
tempo que lhe olhava com descrença.

– Jessica, presta atenção! – James levantou a voz ao mesmo tempo que se


levantou da cadeira. – Tu precisas de ajuda e a sério, não andas nada
bem. Tu estás cá, mas não fazes nada. Esqueces-te dos pedidos, dos
encontros com clientes, não apresentas propostas ao conselho de
administração, não defendes os teus casos, não fazes nada daquilo que
eras a melhor profissional a fazer!

– Mas ainda sou James, só estou a atravessar uma fase má... – baixou ela
a cabeça.

– Jessica, sabes que além da consideração que tenho por ti, enquanto
colegas, tenho ainda uma maior enquanto amigos. A Nora4 tem-me contado
que tu estás cada vez pior, que precisas mesmo de ajuda, por isso deixa-
nos ajudar-te!

– O que é que queres dizer com isso? Queres despedir-me, é isso James? -
agora era ela quem se levantava da cadeira.

– Não, isso é precisamente aquilo que não quero fazer. – segurava ele na
mão dela. – Mas há mais de dois anos que tento esconder todas as tuas
falhas aqui dentro e agora fui obrigado pela administração e sou sempre
pressionado pelos teus colegas para te afastar... O prazo está a terminar
Jessica, temos que fazer alguma coisa! Eu pedi-lhes compreensão por causa
do que aconteceu com a Susan, mas agora já não dá mais...

4 N. A. - Mulher de James.

– Não, James! Eu juro-te que quero trabalhar! – agora era ela quem lhe
segurava nas mãos. – Não me despeças por favor, somos amigos, passei aqui
os melhores anos da minha vida! Sabes bem que eu me sacrifiquei imenso
para construir isto tudo ao teu lado! Tu sabes! – Jessica estava
visivelmente perturbada e James começava novamente a perder as forças
para lhe chamar à razão.
– Claro que sei e também é por isso que ainda cá estás! Mas como teu
amigo, que sou – frisava ele –, tenho que te avisar que a administração
informou-me que se até ao final deste mês não fechares nenhum negócio eu
tenho de te despedir... – suspirava.

– Porque é que eles me estão a fazer isto? James, eles não podem fazer-me
isto!

– Claro que podem, sabes bem que sim, são teus patrões e tu sabes que
eles têm razão em te querer afastar. De milhares de lucros que tínhamos
contigo passamos quase para o prejuízo no teu sector, é uma situação
insustentável!

– Por favor não deixes que me despeçam! O ambiente lá em casa está cada
vez pior e...

– O Kurt?

– Sim, ele tem andado intolerável, diz que já não me aguenta, nem a mim
nem às minhas loucuras.

– Se quiseres falo com ele...

– Não, só ia piorar o ambiente... não aguento estar mais lá em casa e


ainda por cima sem a Susan... – Jessica começou a chorar.

– Calma, Jessica, calma! – James abraçou-a. – Vou tentar demovê-los dessa


decisão, mas não vai ser fácil!

– Nem que tenhas que me despromover, que eu tenha de meter baixa, sei lá…
qualquer coisa é melhor do que ficar sem o meu emprego!

– Está bem, tem calma e limpa essas lágrimas. Uma cara tão bonita não
devia estar assim tão tristonha... olha, tive uma ideia! Eu tento
convencer a administração a mudar-te de cargo, para um inferior claro,
mas só até à tua recuperação e tu entretanto procuras ajuda num médico
especializado, em vez de andares a tomar comprimidos sem receita.
Concordas? – perguntava James com alguma esperança em conseguir ajudá-la.

– James, eu não preciso de nenhum médico! Preciso é da minha filha ao meu


lado... – respondeu ela, desconversando.

– Nós sabemos, mas ela nunca vai melhorar se fores visitá-la sempre nesse
estado! Vou falar com a Nora e pedir-lhe que fale com o psiquiatra nosso
amigo. Vou pedir-lhe que marque uma consulta e não olhes para mim com
essa cara, ou isso ou o desemprego! – ameaçou-a ele.

– Ok James, obrigada, se não fosses tu...

– Também já nos ajudaste em tempos difíceis, a minha obrigação é pelo


menos tentar retribuir-te. Agora vai para casa, que a Nora depois liga-
te!

– Está bem. Obrigada mais uma vez! Vocês são uns verdadeiros amigos –
disse-lhe Jessica, enquanto lhe deu um abraço forte.

– Sempre que precisares, Jessica. E não quero te quero ver mais a chorar!
Força! – incentivou-a James, com receio que ela não seguisse os seus
conselhos.

-----

Anne Rimes após chegar ao Bethlem Royal Hospital, depois de uma viagem de
carro de mais de duas horas, tempo que levava de sua casa em Sherborne ao
hospital, perguntou se podia visitar a paciente Susan Fletcher. A
enfermeira respondeu que sim, mas que naquela altura Susan estava com a
psiquiatra, pelo que Anne ia ter de aguardar pelo final da mesma...

– Susan, onde é que paramos da outra vez? Ah! Já me lembro! Estávamos a


falar do padre que te veio visitar, não foi? – perguntava-lhe Megan já na
consulta e sentada na cadeira ao lado da cama de Susan.

– Já vi que hoje não estás para muitas conversas, mas estranho porque
normalmente quando não te apetece estar com ninguém estás à janela e não
sentada na cama. O que fazes aqui?

Susan Fletcher continuava sem dar qualquer resposta, mas estava na cama
porque tinha estado a escrever no diário que o padre Molony lhe
oferecera.

– Olha... a tua amiga está lá fora, queres que a chame?

Megan Fox já conhecia Anne Rimes e chamara-a ao quarto. Anne, como


habitual, entrava com muito cuidado e algum receio. Para começar não
gostava de hospitais, muito menos de sanatórios, e ver a Susan naquele
estado, sempre com os cabelos à frente dos olhos, vestida com panos
brancos, a viver enclausurada num quarto vazio e frio, partia-lhe o
coração, era muito deprimente para si.

– Olá Anne, então vieste visitar a tua amiga?

– Sim, olá Susan!

Susan tirou o olhar do chão e fixou-o na direcção de Anne.

– Ah, já vi que gostaste da visita de Anne, só tenho pena é que não olhes
para mim...

Mas Susan continuou a fixar Anne.

– Trouxe-te os teus bolinhos preferidos... – disse Anne a Susan. –


Perguntei na enfermaria se lhe podia oferecer e eles disseram que sim –
justificou-se Megan Fox. – Pega Susan!

Susan Fletcher esticou o braço e lentamente retirou a caixa da mão da


amiga.

– São donuts, lembras-te? – perguntou a amiga.

Susan abanou a cabeça em sinal de aprovação.


Megan Fox não conseguia entender como era possível este reconhecimento.
Clinicamente não existia nenhum caso assim. Reconhecia a amiga,
manifestava-se com o padre e no entanto em relação ao resto do mundo
nada, nem uma reacção…

Susan chegou-se mais para o lado na cama, dando a entender que queria que
Anne se sentasse junto de si.

– Sente-se Anne! Está tudo bem... – tranquilizava-a Megan Fox.

Anne nunca tinha estado tão perto de Susan como naquele momento. Sentada
ao lado da antiga amiga, Susan levantou a sua mão e pousou-a na de
Anne.

– Já vi que te sentes melhor amiga! Fico muito feliz! Estamos todos


ansiosos porque voltes, todos! – falava emocionada.

Ao ouvir isto, Susan Fletcher deu um pulo da cama afastando a mão de Anne
com força e encostou-se à parede a chorar. Estarrecidas, Anne e Megan
observaram-na durante alguns segundos em silêncio, pois há muito tempo
que não viam nenhuma reacção sua.

– Susan, estás bem? – questionou Megan Fox, surpreendida.

Susan Fletcher virou-se de frente para elas e começou a gritar: – A dor


mata!

A dor mata! – Anne, petrificada a olhar para todo aquele cenário,


levantou-se muito devagar e disse ao ouvido de Megan que se ia embora,
mas a psiquiatra fez-lhe sinal para que aguentasse um pouco.

– Susan explica-nos, que dor é que mata? De que estás a falar? –


perguntou Megan ansiosa.

Susan sentou-se no chão e começou a girar a cabeça, com muita força,


enquanto balançava o corpo dum lado para o outro e gritava: – A dor mata,
a dor mata!

Anne aproxima-se enchendo-se de coragem e pergunta com muita


serenidade...

– Que dor, Susan? De que dor estás a falar amiga?

– A dor do John, a dor do John...

Anne ficou parada sem qualquer reacção. Não podia acreditar no que tinha
acabado de ouvir enquanto Megan insistia...

– Quem é o John, quem é?

Mas Susan repetia os gritos e a agitação corporal era cada vez maior.
Megan Fox decidiu acabar com aquilo, com medo que a paciente tivesse um
novo ataque.

– Susan querida, nós vamos embora agora... vamos deixar-te descansar. Vai
ficar tudo bem! – disse Megan olhando para Anne, dizendo-lhe de seguida:
– Vamos! – mas Anne continuou no mesmo sítio a olhar para a amiga,
parecia estar em choque... e Megan repetiu: – Anne, vamos embora?

Anne acenou palidamente e recuou sempre de olhos postos em Susan até sair
do quarto. Depois de fecharem a porta chamaram a enfermeira, mas quando
esta lá chegou, Susan já tinha adormecido no chão.

À saída do quarto Anne ia-se embora, quando Megan lhe pediu para que
ficasse mais um pouco.

– Anne, porque é que ficou assim? Foi pelo comportamento de Susan? Porque
é que está tão transtornada?

– É que eu...bem, ela...não sei, é tudo muito confuso...

– Pois compreendo que não deva ser fácil ver a sua melhor amiga neste
estado, mas veja bem hoje fez uns progressos fantásticos! A Susan tem
melhorado de dia para dia!

– Sim, mas...

– Não se preocupe, logo, logo terá a sua amiga de volta. Olhe só quem vem
aí, Jessica Fletcher, aposto que vai ficar satisfeita com as novidades!

– Bem, eu preciso de ir...

Anne saiu disparada como uma bala, cumprimentando Jessica com um sorriso
forçado e desaparecendo logo de seguida.

– Boa tarde Sra. Fletcher! Como está? – perguntou-lhe Megan Fox.

– Não muito bem doutora, não muito bem, e a minha filha?

– A Susan hoje fez um progresso! – os olhos de Jessica arregalaram-se e a


sua boca tremelicou esperançada no que Megan lhe ia contar. – Pediu a
Anne que se sentasse ao lado dela…

– Mas falou?

– Não, foi tudo por gestos, mas preste atenção! Anne sentou-se na cama
encostada a ela e a Susan pousou a mão dela em cima da de Anne!

– A sério? Mas o que é que isso quer dizer? A minha filha está a
recuperar? Doutora, diga-me?!

– Tenha calma e preste atenção… Depois aconteceu mais uma coisa. A Susan
falou finalmente!

– A sério e o que disse? Perguntou por mim?

– Calma, a senhora está muito nervosa, venha beber um copo de água,


enquanto lhe conto. A Susan disse uma frase muito estranha, disse “a dor
mata”.

– Mas que dor? Dra. Megan, a Susan está a sofrer? – perguntava Jessica
nervosa.
– Depois de Anne lhe dizer que estavam todos ansiosos para que ela
voltasse para casa ela começou a dizer isso de “a dor mata”, depois Anne
perguntou-lhe que dor é que a matava e ela respondeu “A dor do John, a
dor do John”.

Ainda a atravessar o corredor, Jessica Fletcher sentiu uma sensação de


desmaio, as suas pernas fraquejaram e Megan Fox teve mesmo que a segurar.
Levou-a até ao bar pelo braço e lá pediu uma água com açúcar para
Jessica.

– Sente-se bem? Porque é que ficou assim? Mas afinal quem é esse John que
parece fazer toda a gente sentir-se mal?

– Bem doutora, a história não é simples...

– Sim, mas peço-lhe que me conte, senão como posso eu tratá-la?

– John Brook é o marido de Anne Rimes...

– Marido? E o que é que ela tem contra ele?

– Quando a minha filha os apresentou, o John namorava com ela... – Megan


Fox permaneceu calada à espera de ouvir o resto. – Apesar de serem
grandes amigas, Anne apaixonou-se por ele no primeiro dia em que o
conheceu…

– Foi ela que lhe contou? – questionou Megan Fox.

– Não, quem me contou foi a Anne. Confessou-me que ela e o John tiveram
um caso pouco antes de Susan ser internada e que nunca lhe chegou a
contar que estava apaixonada por ele...

– Mas então...

– Então, supostamente a Susan não sabe de nada, nem que namoraram e muito
menos que agora são casados!

– Estranho... – concluiu Megan. – Depois gostaria de conversar consigo


com mais tempo, agora vou ter mesmo de ir embora. Sinceramente hoje não a
aconselho a visitar Susan, ela está a dormir e precisa de repousar... Já
se sente melhor?

– Sim, Dra. Megan, obrigada. Eu nunca lhe contei esta história, porque
pensava não ser relevante... é que a minha filha nunca soube da relação
deles!

– E nunca terá desconfiado? – perguntou Megan com dúvidas.

– Que me tenha contado, não...

– Vá descansar agora que está com um ar muito abatido. Noutra


oportunidade falaremos melhor... – disse Megan, despedindo-se de Jessica
Fletcher.

Anne estava de rastos com a afirmação de Susan. O nome de John tinha-a


deixado confusa e acima de tudo com muito medo. Não sabia o que pensar,
não percebia o significado daquelas palavras. Estava nervosa porque tinha
percebido que a amiga estava a sofrer com qualquer coisa relacionada com
ele. “Mas com o quê?” questionava-se. Depois de uma longa viagem a
interrogar-se, abriu a porta de casa e chamou pelo marido, mas não obteve
resposta, pois John ainda não tinha regressado do trabalho. Para tentar
desanuviar, foi refrescar-se à casa de banho. Enquanto se olhava ao
espelho perguntava-se: “ O que é que Susan quis dizer com aquilo, meu
Deus?”.
Mas essa era precisamente a pergunta que todos queriam ver respondida. O
fardo que carregava, o seu segredo, estava a ficar cada vez mais pesado
de suportar.
Sentia-se uma traidora e não arranjava qualquer desculpa para o que tinha
feito à sua amiga. “Mas ela não pode saber... nós nunca lhe dissemos e
ela, coitada, esteve sempre tão bem comigo...”. Anne dava voltas e voltas
à sala... entretanto pegou num livro que tinha na mesa, ao lado do sofá,
com o intuito de continuar a sua leitura diária, mas imediatamente o
largou voltando a colocar no lugar. Anne não estava em condições para se
concentrar, estava demasiado perturbada e aflita. Sabia que tinha de
fazer alguma coisa. “Mas o quê?”, pensava. Já na cozinha, começou a
preparar o jantar. Ainda era um pouco cedo, mas ia tentar abstrair-se
daqueles pensamentos e visões que a continuavam a perseguir. Puxou uma
faca e começou a cortar bifes de um naco de carne que tinha deixado de
manhã a descongelar, dentro da banca. Quando entornou o arroz para a
panela, ouviu a chave a rodar na fechadura e foi a correr receber o
marido.

A primeira coisa que fez foi abraçá-lo, e com tanta força, que John teve
que delicadamente afastá-la, para conseguir voltar a respirar
normalmente. Ele vinha carregado com jornais, a sua pasta e ainda uma
saca de compras. Tinha passado na mercearia ao lado da empresa para
comprar fruta.

– O que se passa, Anne?

– Ó meu amor, não sei o que fazer... – respondeu ela, rebentando em


lágrimas.
– Mas o que é que tens? Estás a deixar-me preocupado! Dói-te alguma
coisa?

– Não, não é nada comigo... É connosco!

– Anne, querida, não estou a perceber... Vá lá, afasta-te, deixa-me


entrar, pousar estas coisas e já conversamos com calma, pode ser? – Anne
disse que sim com a cabeça. – Acalma-te e vai-me contando o que é que se
passa connosco...

– John eu não sei como te dizer isto...

– Ai que já me começas a preocupar... – começou também ele a enervar-se.

– Olha, hoje quando fui visitar a Susan...

– Claro! Só podia ter a ver com essa destrambelhada! Sempre que existem
problemas é por causa dela!

– Ouve-me! – interrompeu Anne com um súbito grito. – Ouve-me por favor.


– Calma querida, desculpa – disse John, pasmado com a reacção da mulher,
enquanto se sentava na cabeceira da cama. Por sua vez, Anne circulava dum
lado para o outro, numa agitação tremenda.

– John, a Susan falou de ti!

– A Susan falou? De mim?! Mas o que é que ela disse? – perguntou John tão
espantado quanto Jessica, Megan e Anne ficaram.

– Aí é que está! O que ela disse é que foi horrível! Começou por dizer
palavras sem sentido como “a dor mata”... E quando eu lhe perguntei que
dor é que a matava, ela respondeu a tua! “A dor do John”! – Anne uma vez
mais rebentara num pranto.

John Brook ficara momentaneamente sem palavras, também tinha sido


apanhado desprevenido... – Não percebes John? Ela está assim por nossa
causa!

– Pára Anne, já estás a dramatizar... É claro que a loucura dela não tem
nada a ver connosco! Aliás ela nem sabe que estamos juntos ou que alguma
vez estivemos. Eu namorei com ela até ela ter sido internada e nós já
tínhamos um caso há muito tempo, lembras-te?

– Claro que sim, mas...

– Não há mas nem meio mas, ela não podia sequer desconfiar, senão tinha
terminado com a nossa relação, não achas?

– Sim, mas então porque é que ela disse isso? Porque é que ela mencionou
o teu nome?

– Sei lá! Perguntas-me a mim? Eu não sou psiquiatra. Provavelmente


recordou-se do meu nome e pronto foi só isso. Ela nunca diz coisa com
coisa.

– Não sei...

– Ai, tu e os teus filmes! Acho mesmo que estás a exagerar. Qual é o


problema de ela mencionar o nome de alguém que conhece? É mais que
natural!

– Sim, mas daí a dizer-me a mim que a dor que a mata és tu!

– Olha, como vês voltamos a discutir por causa dela. Eu não te disse que
não devias ir lá mais? Já viste o estado em que voltaste? Ainda para mais
o hospital é muito longe.

– Eu sei querido, mas carrego um sentimento de culpa tão grande...

– Anne, não podemos fazer nada para corrigir o passado. O que está feito
feito está! Agora temos mais é que nos preocupar com o futuro, ou já te
esqueceste que temos um filho para fazer? – John levantou-se e abraçou a
mulher.

– Claro que não!


– Olha falta muito para o jantar? Estou cheio de fome! – desviou ele a
conversa.

Anne ainda tristonha respondeu: – Não, deve estar quase... vou espreitar
o arroz!

– Ok, se não te importas eu vou dar uma vista de olhos aos jornais de
hoje, ainda não consegui ouvir uma única notícia!

Anne na cozinha continuava numa pilha de nervos... “Amanhã vou lá voltar!


Preciso de percebê-la!”

-----

– Kurt, eu já te expliquei mais de vinte vezes o que ela disse! –


respondia Jessica já sem paciência.

– Mas o que é que ela quer dizer com isso?

– Achas que alguém sabe? A tua filha está lá por vários motivos e o de
não fazer sentido no que diz é um deles!

– Pára de ser irónica! Eu sei disso! Mas também sei que a Susan não fazia
ideia de que o pulha do John e a traidora da amiga eram amantes! Nem ela
nem nós, e ao que parece, ninguém! Por isso não compreendo mesmo.

– Já te ocorreu que pode não haver nada para compreender? Eles eram
namorados é natural que ela se comece a lembrar de certos pormenores,
como do nome dele...

– Mas e a parte da dor... porque é que lhe dói? Será que aquele
impostorzinho fez algum mal à minha filha? – perguntou Kurt num tom
exaltado.

– Ah, agora já é a minha filha? Antes não te lembraste disso pois não?

– Cala-te desgraçada! – respondeu Kurt descontrolado. – Estou farto de te


aturar! E digo-te mais, se aquele anormal magoou a Susan vai ter que se
ver comigo, ai vai, vai! Já ando há muito tempo para ajustar contas com
esse senhor.

Depois da ameaça, Kurt saiu de casa enfurecido. Jessica não fazia ideia
para onde o marido ia àquelas horas, mas também já tinha desistido de
perguntar.
Antigamente só saía às sextas e sábados, mas agora era diário. A ela
também não lhe fazia diferença, até lhe agradecia poder ficar sozinha.

– Estou?

– Nora?

– Olá Jessica! – a amiga reconhecera-a instantaneamente. – Estás melhor?

– Nem por isso, será que te posso fazer uma visitinha depois do jantar?
Gostava de conversar um bocadinho a ver se espaireço!
– Claro, até é um favor que me fazes! O James vai a um jogo de futebol e
eu ia ficar sozinha...

– Está bem, então logo passo aí.

– Quando quiseres, estás à vontade já sabes!

Jessica depois desligou a chamada e foi até ao quarto de Susan, deitou-se


sobre a cama a observar tudo aquilo que a fazia lembrar dela. Começou a
ter vontade de mexer nos brinquedos da filha, Susan mantivera alguns
guardados.
Dizia que um dia serviriam para a sua filha brincar. Jessica lembrava-se
angustiada da altura em que Susan dizia que, quando engravidasse do John,
seria uma menina. Jessica levantou-se e puxou a arca da filha para a
beira da cama, voltando a sentar-se. Ao tirar brinquedo por brinquedo do
baú de memórias de Susan. Jessica conseguia sentir-se mais perto da
filha. Todos os brinquedos tinham um determinado significado. Uns eram
resultado de presentes de aniversário, outros presentes de boas notas. Já
o “Teddy” tinha sido comprado pela mãe numa loja caríssima. Jessica
lembrava-se tão bem de estarem as duas a sair do centro comercial, quando
Susan desatou a correr para a montra dessa loja.

– Mamã, por favor!

– Não filhota, agora temos que ir para casa!

– Mas eu quero aquele ursinho, é tão querido!

– Susan agora não, depois falamos com o teu pai sobre isso em casa...

Mas Jessica sabia a filha que tinha. Susan tinha herdado o seu feitio
persuasivo e não se ia calar até conseguir o que queria.

– Por favor!

– Já disse que não!

– Mamã, deixa o Teddy – já lhe tinha atribuído um nome – ser o meu


irmãozinho. Na minha classe sou a única menina que não tem manos. Se me
comprasses o ursinho podia fingir que tinha um...

Aquela era a justificação mais convincente que Jessica poderia ouvir.


Susan ainda era muito novinha para compreender o que tinha acabado de
dizer, para perceber a importância e o peso das suas palavras. Susan
nascera de uma gravidez de risco com apenas seis meses e meio de
gestação, passando os dois meses seguintes internada até recuperar e
estabilizar. Jessica ainda se lembrava da conversa com o médico que a
assistira.
– A partir de hoje já podem levar Susan para casa!

Jessica nem cabia em si de contente. Abraçara Kurt enquanto batia palmas


de felicidade nas costas dele.

– Bem, mas Jessica, há um problema, não se preocupe que não é nada com a
bebé... – Kurt parou imediatamente de festejar e perguntou ao médico que
problema era esse. – Não tenho outra forma de lhes dizer isto sem vos
magoar. Eu sei que a senhora queria ter mais dois filhos, mas é com muita
pena minha que lhe vou ter que dar esta notícia...

– Não doutor, não me diga…

– Sim, a senhora não pode ter mais filhos. Lamento por ambos – Kurt
Fletcher abraçou a mulher e esperou que ela se acalmasse. – Vou retirar-
me para os deixar mais à vontade, Jessica não se esqueça de que está de
parabéns, tem uma linda filha à sua espera no berçário! – ao dizer isto,
o médico saiu.

O casal ficou por uns momentos a sós, no consultório do médico, o tempo


suficiente para se recompor e aperceber que naquela altura tinha era que
estar feliz por Susan.

– Vamos buscá-la Kurt, vamos levar a nossa filhota para casa!

O que o Teddy a fizera lembrar… Jessica, de sorriso nos lábios pousou o


peluche no colo e continuou a remexer no baú até reparar em algo que
nunca tinha visto. “O baú tem um fundo falso?”. De entre todos os
objectos que estavam no interior, Jessica notara uma pequena saliência na
madeira, que ao empurrar fez levantar uma tampa falsa que se encontrava
no fundo do baú. “A Susan escondia coisas?”. Antes de retirar a tampa,
trancou a porta do quarto e depois com todo o cuidado levantou-a e
deparou-se com uma dezena de cadernos lá guardados. “Diários, Susan? Ó
filha, nunca pensei que escrevesses!”. Jessica observou-os, sem lhes
tocar, e decidiu deixar tudo como estava. “Se nos escondeste isto é
porque não queres que os vejamos.
Vou guardá-los Susan, não te preocupes que não conto a ninguém!”. Jessica
Fletcher fechou a arca como se nada fosse, quando reparou nos ponteiros
do relógio. Já era tarde, num instante jantou, arranjou-se e saiu para
casa da Nora. Kurt ainda não tinha voltado.

-----

– Estou? – perguntava.

– Já executei a primeira parte do nosso plano...

– Óptimo, agora é só continuares a seguir as minhas instruções e vais ver


como tudo vai correr bem!

– Nunca duvidei de ti! Apareces mais logo para te contar os pormenores?

– Não sei, mas se não aparecer hoje amanhã estou aí de certeza, aliás
temos coisas para combinar...

– Ok, beijo!

– Beijos.
V

As investigações foram decorrendo e os dias passando. Frank Douglas, com


o passar do tempo, pesquisou a fundo a vida das vítimas, visitando o
local de trabalho e de residência de cada uma, falando com familiares,
vizinhos, amigos e conhecidos, mas sem conseguir descobrir nada de muito
relevante.
À excepção de um pormenor: o facto de as quatro vítimas serem casadas e
terem filhas adolescentes. Mas ainda assim, a filha de um dos homens
assassinados destoava deste cenário, por ter apenas doze anos. Frank
ainda não tinha conseguido detectar nada de invulgar, mas era
persistente, pois sabia que todos os assassinos deixavam marcas, pistas
inconscientes, acreditando que a mais relevante estava de certeza
relacionada com a falta do sapato da última vítima encontrada.

Douglas, depois do almoço, voltou a pedir a David que o levasse ao porto


de Long Beach, decidindo que dessa vez não sairia de lá enquanto não
encontrasse o sapato desaparecido. Pediu auxílio a dois agentes
especiais, que se fizeram acompanhar de dois pastores alemães.

Já tinha caído a noite e o detective inglês continuava de lanterna na mão


à procura do sapato perdido, recusando-se a abandonar o local enquanto
não conseguisse encontrar o mesmo. Nisto, um dos cães de busca começa a
ladrar...

– Detective Frank Douglas! Detective Frank Douglas! – gritava um dos


agentes da outra ponta do cais. Frank, ao ouvir o chamamento, virou a
lanterna na direcção da voz do agente e viu-o a acenar bem lá ao fundo. –
Detective! – insistia. – Aqui! Detective aqui! – do interior do carro,
David apercebeu-se que se estava a passar algo e foi imediatamente a
correr ter com Frank.

– Detective, eu vou lá consigo!

Meteram-se no carro e passados dois minutos já se encontravam do outro


lado do cais, junto do agente, que se encontrava visivelmente
sobressaltado…

– Detective, o cão encontrou o sapato! Está ali preso naquelas plantas


dentro da água! Ontem não estava aqui, deve ter vindo à tona com a
corrente.

– Rápido, ajudem-me! David, ajude-me que eu quero ir lá buscá-lo! –


exclamava Frank.

– Sim, eu seguro-o! Esteja descansado que não o deixo cair!

– Eu posso chamar o meu colega pelo walkie–talkie se puder esperar...

– Não, não vamos perder mais tempo. Ele está longe... depois avisamo-lo!
Agora segurem-me... Podem descer-me mais? – perguntou o detective de
cabeça virada para baixo, enquanto o agarravam pelos pés e tentava a todo
o custo chegar com as pontas dos seus dedos ao sapato. – Desçam-me mais!
Falta pouco! – gritava.
– Já não dá mais detective, estamos no nosso limite! – respondia David,
cansado.

– Está quase! Só mais uma folguinha e eu consigo apanhá-lo, força! –


David e o agente seguravam Frank Douglas pelos pés e a força que faziam
para não deixá-lo cair era demasiada. Tentavam descê-lo mais e mais, mas
tinham medo que o detective escorregasse. – Já está!! Conseguimos! –
gritava Frank todo entusiasmado. – Podem içar-me! Bom trabalho pessoal!

Frank Douglas, já de cabeça para cima, e com o sapato dentro do saco de


plástico, ligou para o comandante Lopez e seguiu para o FBI...

– Frank, nem acredito que me trouxe o sapato! – exclamou Lopez,


satisfeito.

– Sim e este vai de certeza ter alguma pista que nos vai levar ao
criminoso, é desta comandante!

– Não vamos esperar mais! Vamos até à sala das análises! Júlio, chegue
aqui! – chamava Lopez o agente especial.

Frank Douglas estava super excitado. Há uma semana que esperava por
aquele acontecimento. Estava convencido que aquele sapato os ajudaria a
chegarem ao assassino. Entretanto, Júlio esteve com ele no departamento
de busca de provas. Para o agente especial, aqueles últimos dias tinham
sido únicos na sua carreira. Ele estava há apenas dois anos no FBI e
sentia-se imensamente realizado, principalmente naquela altura, com tudo
o que vinha a acontecer: desde que encontraram o primeiro corpo, à
chegada de Frank Douglas, sentia-se ainda mais motivado e com toda a
certeza de que tinha escolhido a profissão certa. Enquanto o analista
observava, através do microscópio, todas as marcas e partículas que
tinham sido encontradas no sapato, os colegas recolhiam os diferentes
vestígios deixados no mesmo, através de lenços molhados e espátulas, para
dentro de sacos de plástico, que posteriormente seriam também analisados.

– O que é que já encontraste? – perguntava ansioso Lopez, enquanto


assistia aos procedimentos do analista.

– Bem, acho que temos material mais que suficiente, comandante...

– Ai sim? Desembucha homem!

Júlio e Frank aproximaram-se da mesa de observações e com os três homens


a olharem para si, o analista começou a explicar o que tinha descoberto.

– Bem, à partida, ao olharem para o sapato, sem recorrerem ao


microscópio, reparam que está desgastado, não só pelos dias que esteve
dentro de água que lhe tiraram a cor, mas também pela sola. Se olharem
atentamente – mostrava-lhes o analista o sapato –, verão que esta sola
está bastante danificada parecendo que foi raspada por algum objecto
cortante… logo, este é o primeiro aspecto – afirmou o técnico.

– Então isso poderá querer dizer... – falou Frank, antes do tempo.

– Só um momento Frank! – O coronel interrompia-o. – Deixe o analista


expor primeiro as suas conclusões e no final trocamos opiniões.
– Perdão – retorquiu Frank, num tom baixo e muito envergonhado. Se
tivesse um buraco onde se esconder era lá que se metia...

– Pronto, como acabei de referir, esse é o ponto número um. A seguir, se


repararem ainda com mais atenção, o sapato tem umas manchas,
provavelmente o par também as terá, é só questão de confirmarmos. Estas
manchas não foram provocadas pela água, mas sim por uma corda. Se
espreitarem pela lente vêem que ainda estão lá partículas dessa mesma
corda. Este é um segundo aspecto. E para terminarmos, encontrei uma lasca
de madeira espetada na sola de borracha, que poderá ser de um ramo das
árvores do porto ou não e ainda uma nódoa de tinta, quase imperceptível
mesmo ao microscópio. Por isso comandante, acredito termos várias pistas
para encontrar o assassino! – exclamava satisfeito o perito, pelo seu bom
trabalho.

– Maravilha! – retorquiu Lopez. – Agora analisem o pedaço de madeira, o


pedaço de corda e a tinta. Precisamos de saber que origem têm, onde são
vendidos, quem os comprou nestas últimas semanas, etc. vocês sabem melhor
que eu... toca a mexer! Júlio, trata de os acompanhar nestas análises,
quero os relatórios todos na minha secretária até às 20h00m, ah! E
analisem o outro sapato também! Frank, acompanhe-me até ao meu gabinete.

– Comandante Lopez, acho que através daquelas pistas há factos que


podemos concluir de imediato, mas como é prematuro penso que só
deveríamos conversar após o resultado final dos relatórios.

– Frank, não podia estar mais de acordo. Já devemos estar muito próximos
desta besta.

– Antes de saber os resultados gostava de ir falar com a filha do Michael


Borne… – disse Frank. Michael tinha sido a segunda vítima a ser
encontrada.

– Mas porquê? Suspeita de mais alguma coisa, detective?

– Sim, preciso de averiguar uma situação particular e esgotar todas as


possibilidades.

– Claro! Vá indo, se entretanto descobrirmos alguma coisa ligamos-lhe.

– Certo! Até logo então! – respondeu Frank.

Frank Douglas, nessa mesma manhã, tinha-se encontrado com Mary Borne,
filha de Michael, mas não tinha conseguido extrair das suas declarações
nada de relevante, tendo sido sempre a sua mãe a dar-lhe as respostas,
concluindo que a rapariga seria muito tímida e também que não tivesse
nada de relevante para lhe contar. Isto até ter encontrado um bilhete no
bolso do seu blazer, quando foi à casa de banho, já no FBI, que dizia:
“Não posso falar agora. Logo no Jurassic Café do Universal Studios, em
Long Beach, às oito e trinta”.

Frank Douglas, espantando com o aviso, percebeu imediatamente que tinha


sido Mary a deixar-lhe o bilhete dentro do bolso, quando este o pousara
no cabide de sua casa e que ela sabia de qualquer coisa que não queria
contar à frente da mãe...
Frank espreitou para dentro do Jurassic Café e viu que Mary já lá estava,
sentada à mesa e a fumar. Parecia-lhe nervosa...

– Olá Mary, desculpa o atraso...

– Olá! – respondeu a rapariga de aspecto muito vulnerável ao seu


cumprimento.

– Posso sentar-me?

– Claro detective! Obrigado por ter aparecido...

– E então queres contar-me alguma coisa?

– Deseja tomar alguma coisa? – interrompeu o empregado.

– Sim, um café e uma tosta de queijo por favor. Mary, queres alguma
coisa? – perguntou-lhe Frank. Mary respondeu que não com a cabeça e o
empregado retirou-se. Ela só tinha bebido um café... Frank percebeu que
devia estar ansiosa demais para comer.

– Bem, eu vou contar-lhe isto porque pediu-me que lhe contasse tudo o que
sei sobre o meu pai e que pudesse ser relevante.

– Sim, sou cem por cento de ouvidos!

– Mas, antes de lhe contar, preciso que me prometa que não conta nada
disto à minha mãe, promete?

– Mary, não te preocupes.

– Detective, prometa-me! – insistiu ela.

– Sim, prometo.

Mary deixou-se estar em silêncio durante uns segundos, como se a ganhar


coragem, respirou fundo e começou...

– Senhor detective, o meu pai era considerado um homem exemplar, um


marido exemplar, um pai exemplar, um profissional e cidadão exemplar...
mas na verdade não era nada disso – Frank Douglas ouvia-a atento. – O meu
pai... bem, eu tinha doze anos a primeira vez que ele me tocou...

– Te tocou? Como assim? – perguntou Frank, com muita calma.

– Assim mesmo como está a pensar, sexualmente! – Frank Douglas ficou


estarrecido. Não esperava por uma revelação daquele teor. – Eu nunca
contei à minha mãe. Ela não sabe de nada, nem sequer desconfia e eu
gostava que continuasse a ser assim. O meu pai desde os meus doze anos
que se aproveita… aproveitava de mim. A princípio não passavam de gestos
carinhosos, ele pedia-me que lhe fizesse algumas coisas e eu fazia por
achar que eram normais… mas, no dia do meu aniversário, dos 15 anos, os
meus pais deram uma festa em minha casa, para os meus amigos da escola.
Correu tudo muito bem, até aos convidados se irem embora e eu me ter
deitado... já era tarde e eu adormeci... – contava Mary sem vacilar e já
de lágrimas nos olhos. – Passadas umas horas ele acordou-me e meteu-se
comigo na minha cama.
Frank não acreditava no que estava a ouvir. Era evidente que já tinha
perseguido violadores. Mas era a primeira vez que ouvia com tanta coragem
e frontalidade, da boca duma rapariga de dezasseis anos, o que estava a
ouvir. – Só que desta vez quis mais que o habitual. Pediu-me que o
deixasse ter relações sexuais comigo. Disse-me que já era maior, uma
mulherzinha, e que portanto estava na hora de estarmos juntos e de
reforçarmos a nossa relação…

Frank estava horrorizado. Não conseguia compreender o tamanho de


semelhante malvadez.

– E tu Mary, recusaste?

– Não... – chorou. – Eu sabia que se não o deixasse ele ia obrigar-me, ia


forçar-me a isso, portanto optei por facilitar uma situação que já me ia
magoar e atormentar para o resto da vida.

– Lamento imenso, mas nunca ninguém desconfiou de nada? A tua mãe...

– Não! Ele era visto como um homem perfeito por todos e a minha mãe
adorava-o.

– Mary, a revelação que me fizeste... porque é que achas que pode ser
relevante para o meu caso?

– Porque... – Mary olhou para baixo.

– Calma, comigo podes desabafar e tens todo o tempo do mundo que


precisares para o fazer...

– Os outros homens também violavam as filhas... – respondeu, perturbada.

– O quê? O que me estás a dizer é verdade?

– É senhor detective, eu conheço-as. Ou melhor, conheço duas delas...

– Mas como é que isso é possível? Os vossos pais não têm qualquer
ligação, nós estudamo-los, nem as vossas famílias ou amigos...ninguém!
Mary, não me estás a mentir pois não? – perguntou Frank, preocupado e
muito confuso.

– Não, juro que não! Estou a dizer-lhe a verdade! Nós pertencemos todas a
um grupo... um grupo secreto, entende? Por isso lhe peço que não revele
nada disto a ninguém.

– Mary, não te preocupes agora com o segredo… – Frank Douglas sabia bem
que não podia guardá-lo. – Conta-me tudo do princípio e com calma.

– Há dois anos descobri que existia um grupo anónimo formado por


raparigas com o mesmo problema do que eu... uma amiga falou-me dele
porque infelizmente tinha passado o mesmo com o pai dela. O pai tinha-a
violado e ela não contou a mais ninguém além de mim… Na altura em que ela
me contou o meu pai já me assediava, mas nunca tinha passado disso, por
isso eu não desabafei com ela. Isto até ter feito 15 anos. No dia
seguinte ao meu pai me ter feito aquilo eu estava desesperada, cheguei
mesmo a pensar em matar-me. Sentia nojo de mim própria, não saía debaixo
do chuveiro, achava o meu pai um ordinário e desejava que ele morresse...

– Não me estás a dizer que tens alguma coisa a ver com estas mortes, pois
não?

– Não directamente... – Frank continuava confuso. – No dia seguinte a ter


tido a primeira relação sexual com o meu pai, decidi contar à minha
amiga...

– Àquela a quem tinha acontecido o mesmo, certo?

– Sim, e ela prontificou-se logo a ajudar-me...

– E como?

– Ela fazia parte desse tal grupo de raparigas que tinham sido violadas
pelos pais e levou-me até lá. Senhor detective, se eu não as tivesse
conhecido, hoje não estávamos aqui a falar. Elas foram a minha salvação!
Entende, não entende? – Perguntava Mary, aflita.

– Sim... e o que é que faziam quando estavam reunidas? – insistia Frank.

– Conversávamos, desabafávamos, falávamos de tudo da nossa vida,


chorávamos… fazíamos tudo o que nos deixasse mais aliviadas. Sabe, é que
ao conhecermos gente como nós passamos a conviver melhor com a situação
de terror a que estamos sujeitas.

– Mary, estás a dizer-me que duas filhas de duas vítimas fazem parte
desse grupo?

– Estou. Somos todas amigas... nestas últimas semanas elas contaram-nos


que os pais tinham saído de casa, desaparecido, e que depois foram
encontrados mortos.

– Isto tudo que me estás a contar é muito importante! Preciso mesmo de


saber tudo... – comentava Frank e Mary, acenando com a cabeça
afirmativamente continuava. – Nós reunimo-nos na casa da rapariga que
criou o grupo, ela é mais velha que nós, tem 19 anos...

– E quantas são ao todo?

– Somos sete…

– E o vosso grupo existe há quanto tempo?

– Já existe há quatro anos. Eu é que sou das mais recentes lá.

– Olha e a que criou o grupo, aconteceu-lhe o mesmo? Também foi violada


pelo pai? – Frank tinha acabado de a colocar na lista dos principais
suspeitos.

– Sim, também foi violada, e o pai só parou quando ela saiu de casa.

– Porque é que vocês nunca disseram nada às vossas mães ou à Polícia?

(…)

You might also like