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O IMPÉRIO DO GROTESCO

(Muniz Sodré & Raquel Paiva, Ed. Mauad, 2002, 160p.)

O grotesco se caracteriza pelo rebaixamento operado por uma combinação insólita e exaspe rada de
elementos heterogênos, com referência freqüente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações
absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos.
O grotesco é o fenômeno da desarmonia do gosto, que atravessa as épocas e as diversas co nformações
culturais. O grotesco é algo que se tem feito presente na Antigüidade e nos tempos modernos. Atravessa
tempos diversos, à maneira de uma constante supratemporal.
É antiqüíssimo, por exemplo, o procedimento grotesco de identificação figurativa entre o homem e o
animal, fazendo-se presente nas fáb ulas e em sistemas morais. Muitas vezes, a identi ficação passa pela
referência ao excremento como metáfora para o rebaixamento frente a valores tidos como sublimes ou para
uma radi cal ausência de qualidades. O grotesco representa o grau zero da condição humana.
O grotesco, assim, não opta por nenhuma moral progressista ou positivista. Muito pelo contrário, o
grotesco funciona por catástrofe.
A palavra “grotesco” vem do italiano “gro tta”, que significa “gruta” ou “porão”.
Em fins do século XV, escavações feitas no porão do palácio romano de Nero revelaram ornamentos
esquisitos – na forma de vegetais, abismos, caracóis, etc. – que fascinaram os artistas da época, que
passaram a chamar tais objetos esquisitos de “grotescos”, em referência às grutas ou porões em que foram
encontrados. Em seguida, a denominação “grotesco” aplicou-se à combinação bizarra de elementos
humanos, animais, vegetais e minerais.
Sempre associada ao disforme, a palavra “grotesco” foi ganhando significados novos, em geral
associados ao desvio de uma norma expressiva dominante, seja referente a costumes, seja referente a
convenções culturais.
O grotesco assume modalidades diversas:
a) escatológica: trata-se de situações caracterizadas por referências a dejetos humanos, secreções,
partes baixas do corpo, etc.:
b) teratológica: referências risíveis a mons truosidades, aberrações, deformações, bestialismos, etc.
No grotesco, a excrescência e o nojo são apresentados como o antídoto para a banalidade da existência
humana.
O grotesco revela-se na exasperação tensa ou violenta dos contrários, com recursos da caricatura, da
sátira e da ironia. Manifesta-se também pela crueldade com que se tiram os véus das regras ou das
convenções ditas civilizadas.
O grotesco tem obsessão pela corporalidade humana – comer, defecar, copular, arrotar, vomitar.
Também se faz referência à nudez e ao sangue.
O grotesco é uma categoria ampla, com vári os aspectos, capaz de aplicar-se a uma infinida de de
situações: da escultura e pintura à literatura, ao cinema e à televisão.
No caso da televisão, tem -se a tendência re cente desse veículo é testar os limites de sua audiência.
Nossa TV caracteriza-se por uma atmosfera sensorial de “praça pública”, a praça como “feira livre” das
expressões diversificadas da cultura popular (melodramas, danças, circo, etc.)
A televisão para as massas tornou-se importante dispositivo de articulação de um espaço público ao
constituir como seu público categorias sociais as mais diversas, sob a bandeira uniformizante do consumo
de massa.
A televisão se especializou num tipo de programa voltado para a ressonância imediata, atuando sobre a
imediatez da vida coditiana. E como procedimento básico a TV privilegia fortemente a óptica do grotesco.
Primeiro, porque suscita o riso cruel (o gozo com o sofrimento e o ridículo do outro); segundo, porque a
impotência humana, política ou social de que tanto se ri é imaginariamente compensada pela visão de
sorteios e prêmios, uma vez que se tem em mente o sentimento crescente de que nenhuma política de
Estado promove ou garante o bem -estar pessoal; terceiro, porque o grotesco cho cante permite encenar o
povo e, ao mesmo tempo, mantê-lo a distância – dão-se voz e imagem a ignorantes, ridículos, patéticos,
violentados, mutilados, disformes, aberrantes, para mostrar a crua realidade popular, sem que o choque daí
advindo chegue às causas sociais, mas permane ça na superfície irrisória dos efeitos.
Na realidade, as emissoras oferecem aquilo que elas e seu público desejam ver. O sistema televisivo-
mercadológico constituiu esse público que, ao longo dos anos, tornou-se ele próprio “audiência de TV”.
O telespectador, entretanto, não é vítima, e sim cúmplice passivo de uma situação a que se habituou.
Em sua existência miserável, costuma o telespectador sonhar com o acaso que o levará, pela sorte, a ser
chamado pela produção de um “reality show” para transformar em espetáculo a sua aberração existencial e
sair de lá com um eletrodoméstico qualquer como prêmio. O grotesco, dessa maneira, é o que arranca o
telespectador de sua triste paralisia.
No tocante ao público, não se sustentam as hipóteses de um “voyeurismo” freudiano com relação ao
“reality show”, pois o que se evidencia mesmo não é uma sexualidade de fundo, mas a fusão entre a
banalidade dos fluxos televisivos e a existência banal dos telespectadores.
Após décadas de rebaixamento de padrões, o público em geral tornou-se esteticamente parte disso que
os especialistas chamam de “trash” (lixo).
Daí o império da repetição exaustiva do banal.

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