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Letras de Sangue

FelizFelizAniversário,
Aniversário, Barreto!
Barreto!

Edson Tomaz da Silva


Letras de Sangue

Feliz Aniversário, Barreto!

Tudo começou com uma leve dor nas costas, que Barreto imaginou ser mais
uma das muitas provocadas pelo banco do carro. O infeliz que projetou
aqueles bancos devia ser condenado a passar o resto da eternidade sentado
neles, para ver o que era bom.

O problema foi que o dia ia passando e nada da dor cessar. Já tomara dois
anti-inflamatórios e nada. Não conseguiu produzir muita coisa no trabalho,
sem falar no mau humor. Às cinco horas, deu graças a Deus quando o sinal
de saída tocou. Foi para o carro quase correndo.

Quando chegou em casa, não encontrou ninguém. Nem um bilhete. Mas com
a dor piorando cada vez mais, não conseguiu nem raciocinar sobre onde
poderiam estar a mulher e os meninos. Melhor assim: eles iam encher o saco
pra que ele fosse ao médico, que era a coisa que ele mais detestava na vida.

Tudo que o Barreto mais queria naquela hora era tomar um banho, engolir
mais um anti-inflamatório e cair na cama. Era uma quarta-feira, ia ter jogo do
Brasileirão, mas ele não ia agüentar.

Jogou a roupa de qualquer jeito sobre a cama. Se a mulher visse ia falar pra
caramba, mas ia ser um banho rápido. Depois ele dava um jeito. Estava louco
pra dar uma mijada, o resto podia esperar.

Posicionou-se em frente a privada e foi aí que o inferno abriu as portas: sentiu


uma dor tão lancinante na altura dos rins que acabou vomitando. No afã de se
apoiar para tentar não sujar o chão, escorregou e foi direto com o queixo na
válvula de descarga. Já zonzo de dor, acabou desmaiando.

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Quando a mulher do Barreto viu o carro parado na garagem, xingou


mentalmente a mulher do bolo pela milionésima vez. Não bastasse aquele
trânsito de São Paulo, quando chegou na casa da mulher o bolo ainda não
estava pronto. Aguardou mais de quarenta minutos para que terminasse de
assar e pudesse ser montado e confeitado. E tome mais trânsito na volta.
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Tudo isso regado à bagunça dos dois moleques, que insistiam em não ficar
quietos de jeito nenhum.

Mandou os meninos entrarem na frente e distraírem o pai. Só estava


preocupada para que ele não visse o bolo. Ele não ia lembrar que era seu
aniversário no dia seguinte; na verdade, se não fosse ela, ele não ia nem
lembrar que essa tal coisa chamada aniversário existia. Nem o seu próprio,
nem o de ninguém, especialmente o aniversário de casamento.

Perdida em seus pensamentos, assustou-se com o grito de “mãe”, que veio


num tom muito mais desesperado do que de costume.

----xxxx----

Barreto trocou as contorções por causa da dor pelo tiritar de frio. Por que
enfermaria tem que ser um lugar tão frio desse jeito? É pra gente morrer e o
cadáver já ficar preservado?

Irritado – odiava hospital – Barreto praguejava baixinho contra o lençol fininho


que não lhe protegia do frio, contra aquele maldito camisolão, que deixava a
bunda à mostra cada vez que ele levantava da cama, contra a enfermeira que
conseguira furar sua veia e deixar seu braço todo roxo, contra o soro que
pingava lentamente e, especialmente, por aquela porcaria de plano de saúde
da empresa o ter colocado numa enfermaria sem televisão. Estava irritado e
morrendo de tédio. Não tinha também nenhuma companhia para conversar.

A mulher e os meninos já tinham ido embora, ele ficou para observação. De


certa forma, tinha que ficar feliz por estar internado. O médico disse que o
plano de saúde não aceitaria pagar pela internação por causa da pedra nos
rins, mas ficou claro que outra crise daquelas sem tratamento adequado e o
Barreto poderia sofrer graves complicações. Então o médico explicou
direitinho o que ele deveria falar caso alguém começasse a lhe fazer
perguntas sobre seu problema.

- E por favor, senhor Barreto, tome cuidado. Eles perguntam primeiro e o


senhor só vai saber que era o médico do plano de saúde quando vier a conta
do hospital. Pode complicar minha vida e a sua.

Incapaz de dormir por causa do frio e da raiva, ficou observando pela janela
da enfermaria o movimento no corredor. Mas, como já era de madrugada, só
muito de vez em quando alguém de branco passava para lá ou para cá.

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Não soube dizer exatamente o que era, mas alguma coisa naquele médico
alto e magrelo o tinha desagradado. De cara, o jaleco branco cobria as suas
mãos até a metade e seu pescoço flutuava dentro da gola. A mulher do
Barreto definiria com certeza como um clássico caso de “o defunto devia ser
maior”. O sujeito ficou um tempão parado em frente ao vidro, só olhando para
dentro da enfermaria. Barreto ficou se perguntando o que tanto ele olhava,
pois as luzes estavam apagadas e não dava para ver quase nada lá dentro
com a pouca luz que vinha do corredor.

Quando o magrelo entrou no quarto e acendeu a luz na sua cara, Barreto teve
que juntar toda a educação que recebera dos pais para não mandar o médico
pros quintos dos infernos. Será que era por isso que médico não se refere a
gente como cliente, mas como paciente? Porque tudo naquele momento
parecia ser feito para testar a paciência dele. E ela estava no limite.

- Boa noite, Senhor Barreto! O médico entrou e fechou a persiana do vidro


que lhe permitia ver o corredor. Apanhando o prontuário nos pés da cama,
continuou - Pedrinha no rim, hein?

- Pode ser uma pedrinha, mas está doendo pra caramba. Algum motivo
especial para me acordar, doutor? – Já estava matando a charada. Devia ser
o tal médico do plano de saúde. Olha só que safadeza: vindo de madrugada,
para ser mais difícil de alguém mentir para ele!

- Nada, avaliação de rotina. Estou vendo aqui no seu prontuário que hoje é
seu aniversário.

- É mesmo? Nem lembrava.

Enquanto o médico parecia entretido em continuar avaliando seu prontuário,


Barreto ficou pensando: bem, aquilo explicava porque não tinha ninguém em
casa quando ele chegou. Na certa, a mulher havia encomendado um bolo e
estavam preparando uma festa surpresa. Sentiu-se culpado: ela nunca
esquecia uma data especial, já ele...

Assustou-se ao perceber que o médico estava com o rosto quase colado ao


seu. Nem percebera que ele havia se aproximado tanto. Mas não teve tempo
para nenhuma reação. Apesar de magrelo, o cara tinha uma força e tanto.
Com apenas uma das mãos, agarrou o pescoço de Barreto, imobilizando-o.

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Barreto se debatia, mas não conseguia se soltar. Apavorado, viu os olhos do


sujeito assumirem uma cor vermelho sangue e seus caninos superiores
crescerem em presas descomunais.

- Seu túmulo vai chamar atenção no cemitério. Coincidência nascer e morrer


na mesma data, não é mesmo?

A última coisa que ouviu antes de morrer foi o irônico comentário do vampiro:

- Feliz aniversário, Barreto!

----FIM----

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Letras de Sangue

Sobre o Autor

Edson Tomaz da Silva nasceu em São Paulo, capital, em 26 de abril de 1971.


A paixão pelos gêneros de terror e suspense é antiga, mas o autor só
começou a publicar seus textos em 2009 no site Recanto das Letras”

Em 2010, criou o site Letras de Sangue, onde publica seus textos, na


companhia de outros escritores amadores, também apaixonados por terror e
suspense.

Para ajudar na divulgação do site, passou a publicar seus textos também no


Scribd, criando a Coleção Letras de Sangue.

Licenciamento da Obra

A presente obra encontra-se licenciada sob a licença Creative Commons


Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported. Para visualizar uma cópia
da licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/ ou mande
uma carta para: Creative Commons, 171 Second Street, Suite 300, San
Francisco, California, 94105, USA.

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