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Psicologia Jurídica

Os Labirintos da Demanda
16 de agosto de 2002

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Psicologia Jurídica

Os Labirintos da Demanda

ORGANIZAÇÃO
Programa de Formação em Direitos da Infância e da Juventude - Pró-
adolescente / UERJ
Divisão de Psicologia da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio de
Janeiro

APOIO
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social

Projeto Gráfico: Erica Fidelis

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Psicologia Jurídica
Os Labirintos da Demanda
Data: 16 de agosto de 2002
Local: Universidade do Estado do Rio de Janeiro

PROGRAMAÇÃO

10:00 AS 12:30 – MESA REDONDA


Palestrantes:
• Fernanda Otoni de Barros (Psicóloga do TJ de Minas Gerais)
• José César Coimbra (Psicólogo da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de
Janeiro)
• Leila Maria Torraca de Brito ( Profª Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ)

14:30 AS 16:30 – LABORATÓRIOS TEMÁTICOS


1. Adoção
Coordenação:
• Mônicca de Carvalho Moreira (Psicóloga da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio de
Janeiro)
• Marta Baims Machado da Costa (Psicóloga da Vara da Infância e Juventude de
Petrópolis)
2. Disputa da Guarda de Filhos
Coordenação:
• Leila Maria Torraca de Brito ( Profª Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ)
• Jaqueline Alves da Rocha (Psicóloga da Vara de Família de Duque de Caxias)
3. Violência Doméstica
Coordenação:
• Antônio Carlos de Oliveira (Prof do Curso de Pós-Graduação em Violência Doméstica
da PUC/RJ)
• Naura dos Santos Americano (Psicóloga da Vara de Família de Madureira)
4.Medidas Socioeducativas
Coordenação:
• Elizabeth Pereira Paiva (Psicóloga do DEGASE)
• Itala Povoleri (Psicóloga da 2ª Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro)

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ÍNDICE
Apresentação................................................................................................................
Mesa Redonda
• José César Coimbra
Os psicólogos e o labirinto, os psicólogos no labirinto?.................................................
• Fernanda Otoni de Barros
Os labirintos da demanda...........................................................................................
• Leila Maria Torraca de Brito
Labirintos da demanda: das solicitações à busca do caminho....................................

Laboratório Temático Adoção


• Marta Baims Machado da Costa
A Habilitação de candidatos no processo de adoção: a demanda endereçada ao
psicólogo
• Mônicca de Carvalho Moreira
Adoção..............................................................................................................................

Laboratório Temático Violência Doméstica


• Antônio Carlos de Oliveira e Naura dos Santos Americano
Psicologia Jurídica e violência doméstica – algumas considerações

Laboratório Temático Medidas Sócioeducativas


• Elizabeth Pereira Paiva
O psicólogo frente à execução de medidas sócio-educativas...............................................
• Itala Povoleri
Demanda e resistência: um pouco do trabalho do psicólogo na 2ª vara da infância e da
juventude da comarca da capital com adolescentes que cometeram ato
infracional.............

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Apresentação

Com o evento ‘Labirintos da Demanda’ a 1a Vara da Infância e da


Juventude e a Uerj procuraram reafirmar os laços que unem essas duas
instituições. Laços que se atualizam de modos diversos e que,
anteriormente, também já haviam culminado num seminário, do qual os anais
continuam uma leitura obrigatória1.
Que num extremo desta publicação nós tenhamos a referência a um
Encontro e, no outro, ao labirinto, talvez não tenha sido obra do acaso. Se
muitas são as dificuldades e caminhos, onde perder-se poderia ser uma
constante, permanece a aposta em que um percurso poderá ser cumprido e,
ao fim, um encontro poderá fazer com que todo o passado tinja-se de cores
insuspeitas, toda a vida, uma vida que valerá a pena ter sido vivida.
Não é isso que a história de Teseu e Ariadne nos conta? Teseu que
voluntariamente é incluído na cota daqueles que comporiam o sacrifício
anual ao Minotauro, sendo lançado ao labirinto; Ariadne, aquela que antevê
um modo de fazê-lo retornar, vivo.
Poderíamos conjecturar se Teseu permanece o mesmo depois de sua
experiência, mas isso seria derivar muito de nosso objetivo. Basta dizer, por
ora, que esperamos destes ‘Labirintos da Demanda’ e dos nossos Encontros,
o fio de Ariadne, aquilo que nos permitirá retornar de nossas experiências
para compartilhá-las com os demais e, assim, mais do que tudo, celebrar a
Vida. Que isso não seja outra coisa que se debruçar sobre termos como Lei,
Ética, Justiça...é o que o 4o Encontro já nos anunciou. Que o fio de Ariadne
possa nos servir para novas descobertas, é o que queremos continuar a crer.

1
Brito, Leila Maria Torra de (org.) [s.d.]. Psicologia e instituições de Direito: a prática em questão. Rio de Janeiro:
Comunicarte/CRP05/Eduerj.

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MESA REDONDA

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Os psicólogos e o labirinto, os psicólogos no labirinto?
José César Coimbra

Não deve causar surpresa que a imagem do labirinto tenha surgido aos
organizadores deste Encontro. Ela serve como uma alegoria das interrogações que
surgem a partir da relação demanda-trabalho no campo da chamada psicologia jurídica.
Dos seus diversos significados, poderíamos destacar: “construção de muitas passagens
ou divisões, dispostas tão confusamente que com dificuldade se lhe acha a saída; parque
ou jardim cortado por caminhos tão entrelaçados que facilmente se perde a pessoa que
nele penetrou; qualquer complicação que perturba o espírito.” [Larrousse,1995].
Ora, esses enunciados nos transportam quase instantaneamente para o coração
do problema que gostaríamos de delimitar aqui. E esse problema poderia ser dito da
seguinte maneira: como estamos respondendo às demandas que nos são dirigidas? Vale
dizer, como nosso trabalho está sendo orientado, criado, ao longo desses anos que já
começam a compor a história dos psicólogos no quadro de funcionários do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro?
Quotidianamente somos atravessados por conjuntos de demandas diversas, dos
operadores do direito às partes que compõem os processos, passando por querelas
familiares, entendimentos diversos na equipe multiprofissional, mazelas infinitas... Por fim,
muitas vezes nos deparamos com uma única interrogação a nossa frente: “que caminho
seguir?”. Essa interrogação também nos sinaliza os limites a partir dos quais um trabalho
realiza-se. Isto é, colocar-se na posição daquele que responderá, tout court, às demandas
pode, em contrapartida, revelar de modo maciço a impotência diante de tal objetivo.
É preciso recordar que a fim de delimitar o campo de atuação a Corregedoria-Geral
da Justiça lançou ao quadro de psicólogos, quando do ingresso de sua primeira turma,
um pedido: “diga-me o que fazes”. Esse pedido atualizou-se de diversas maneiras.
Primeiro, ao determinar que houvesse um representante da categoria, o qual, de fato,
inicialmente, configurou-se sob a forma de uma comissão; segundo, ao solicitar que essa
comissão especificasse, à guisa de sugestão, atribuições para uma futura coordenação e
também para o quadro de psicólogos; e, por fim, ao determinar que dentre os integrantes
da referida comissão fosse indicado um nome que poderia vir a assumir o cargo de
coordenador.
Parte das sugestões elaboradas por aquela Comissão está na base do provimento
39/99 da Corregedoria Geral da Justiça, o qual tem por razão principal “a imperiosa
necessidade de disciplinar a atuação do quadro de Psicólogos, a fim de otimizar a

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eficácia pedagógica de suas atribuições no âmbito do Poder Judiciário” [grifos meus]. Ao
lado de tal argumentação, é dito também que os Assistentes Sociais serão regidos pelo
mesmo provimento, pois a atuação de ambos profissionais deverá ser conjunta, com
vistas ao melhor rendimento do trabalho realizado.
Seria interessante nos determos sobre o uso de certas palavras utilizadas nas
considerações desse provimento, tais como “necessidade de disciplinar” ou mesmo
“eficácia pedagógica”, as quais, não por acaso, são expressões caras à história das
práticas psi. Mas, não seria esse, exatamente, o ponto que se gostaria de sublinhar aqui.
Para o que se faz necessário destacar neste momento o retorno a esse provimento
é importante, pois ele é desde muito cedo - data de outubro/99, havendo a primeira turma
de psicólogos entrado em exercício em janeiro do mesmo ano – a marca de uma primeira
demanda dirigida a nós. Alterando o artigo 344 da Consolidação normativa da
Corregedoria ele diz: “Incumbe ao Assistente Social e ao Psicólogo...” seguindo-se a esse
enunciado uma série de incisos que delimitam o campo de ação e prescrevem as
intervenções possíveis. Ou seja, o provimento instaura um campo de possibilidades a
serem exploradas pelos profissionais que a ele estão afeitos. Mais precisamente, é
importante notar a idéia de limite que se pode depreender de sua leitura: porque não está
ao alcance do psicólogo tudo fazer, tudo responder, algumas intervenções tornam-se
possíveis.
Não seria cabível neste espaço realizar uma interpretação minuciosa de todos os
incisos que compõem a portaria 39/99, nem mesmo traçar em detalhe a genealogia de
cada um deles. Contudo, há que se destacar que a letra da portaria não diz de imediato o
que de fato deve ser feito pelo psicólogo. Ainda que seguramente encontre-se ali uma
enumeração de atos possíveis, ao nos determos por mais tempo em cada item notamos
que o sentido a ser conferido a cada inciso exige uma tomada de posição. Ou, em outras
palavras, uma interpretação singular. Podemos ter como exemplo o inciso V
(“Empreender ações junto a problemas sociais/psicológicos evidenciados, utilizando
metodologia específica das áreas de atuação”) ou o VI (“Desenvolver trabalhos de
intervenção, tais como apoio, mediação, aconselhamento, orientação, encaminhamento e
prevenção, próprios ao seus contextos de trabalho”).
“Empreender ações junto a problemas psicológicos”, “apoio”, “aconselhamento”,
“encaminhamento” compõem enunciados que podem e devem nos levar a perguntar: o
que seriam? Se não quanto ao seu sentido, ao menos quanto a forma com que se
atualizam na prática de cada um. Por exemplo, como proceder a um “encaminhamento”?
O que se espera dele? É ele oriundo do resultado da intervenção do psicólogo, sentido

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estrito, ou conseqüência de uma medida judicial? Neste caso, como posicionar-se? Essas
são breves descrições possíveis que nos servem principalmente para indicar que o
sentido e o modo como um enunciado ou demanda é interpretado revela muito daquele
que é o suposto destinatário da mensagem. Assim, “o que eu faço com aquilo que
esperam de mim” é o primeiro e talvez principal trabalho a ser realizado por nós. Em
grande medida, é a partir desse posicionamento que novas cadeias de sentido, novas
possibilidades de intervenção poderão surgir.
A leitura mesmo que displicente da portaria torna patente que o trabalho do
psicólogo não é de modo algum restrito a elaboração de laudos. Ainda que em seu inciso
II essa ação seja descrita (“Elaborar laudos e relatórios sobre os aspectos
sociais/psicológicos dos jurisdicionados, os quais deverão ser apresentados à autoridade
judicial), ela encontra-se listada num arco que é irredutível a esse item. Mesmo assim,
sob a rubrica “elaborar laudos e relatórios” muitas surpresas podem ser vislumbradas. Os
trabalhos de Fernanda Otoni ou de Leila Torraca, por exemplo, apontam, cada um ao seu
modo, como os laudos podem ser um espaço de elaboração e descoberta, com
resultados efetivos sobre todos que a ele estão ligados. Todavia, pontualmente
deparamo-nos com laudos que por seu excessivo caráter descritivo parecem querer dizer
que a verdade encontra-se ali, a olhos vistos, quase que à revelia do psicólogo que
ocuparia a função de autoria. De qualquer modo, trata-se de buscar nas linhas do parecer
os sinais daquele que em termos de função o elaborou, a tal ponto que poderíamos
parodiar o dito popular e afirmar: “diga-me o que/como escreves e eu te direi quem és...”.
É interessante acompanharmos o desenho que as demandas da instituição
judiciária vem fazenda na história do quadro de psicólogos da Corregedoria. Na exposição
de motivos da proposta de abertura de concurso público para o cargo de psicólogo
encaminhada ao Conselho da Magistratura, publicada em 12.11.1997, o Estatuto da
Criança e do Adolescente aparecia como um eixo primordial da justificativa, em particular
no que diz respeito à articulação entre a doutrina da proteção integral e o trabalho do
psicólogo. A partir desse enunciado inicial, há uma derivação que textualmente elenca as
áreas do poder judiciário para as quais o trabalho do psicólogo traria grandes benefícios:
infância e juventude, família e execuções penais. O peso que a infância, que a relação
cuidado com a infância-psicologia, tem na exposição de motivos mereceria, numa outra
oportunidade, ser vista mais detidamente.
Mas, neste momento, é preciso apontar apenas que aquela configuração inicial
encontra-se sobremaneira modificada, já que as varas criminais e de fazenda pública, por
exemplo, vêm sinalizando de modo muito claro que o trabalho do psicólogo, do psicólogo

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do quadro, também faz-se necessário ali. Se em termos corporativos essa disposição
atual pode ser recebida com alegria - afinal, tratar-se-ia do reconhecimento do valor de
uma categoria, resultando em novas possibilidades de trabalho e, no limite, na ampliação
do número de vagas - tal configuração não deve nos fazer esquecer de perguntar o que
em nós estaria sendo valorizado. Ou, ainda, quais as nossas novas responsabilidades
diante desse possível novo horizonte. Quer dizer, o que poderia ser o nosso trabalho
nesses lugares? Como posicionar-se diante dessas demandas?...
Como Canguilhem e Foucault já apontaram tão bem, realizar um trabalho
psicológico - em que nível for - será sempre também perguntar-se sobre o que ela é.
Será, do mesmo modo, ter que haver-se com uma história onde as perspectivas de
disciplina e controle estarão sempre presentes. E é no ensaio de uma resposta sempre
renovada que lançaremos mão, para concluir, de uma advertência feita por Canguilhem
[1973: 123] há muitos anos, mas que continua tão viva como quando pronunciada pela
primeira vez:

“É, pois, muito vulgarmente que a filosofia coloca para a psicologia a questão:
dizei-me em que direção tendes, para que eu saiba o que sois? Mas o filósofo
pode também se dirigir ao psicólogo sob a forma - uma vez que não é costume
- de um conselho de orientação, e dizer: quando se sai da Sorbonne pela rue
Saint-Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Pantheon,
que é o Conservatório de alguns grandes homens, mas se se desce dirige-se
certamente para a Chefatura de Polícia”.

Bibliografia

CANGUILHEM, Georges (1973). O que é a Psicologia? Revista Tempo Brasileiro 30/31.


LABIRINTO. In: LAROUSSE cultural (1998). S. Paulo: Folha de S. Paulo.

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Labirintos da demanda: das solicitações à busca do caminho
Leila Maria Torraca de Brito

Ao abordar o tema das demandas direcionadas aos psicólogos jurídicos, torna-se


adequado, inicialmente, esclarecer que incluímos nesta categoria não só os profissionais
que exercem sua prática junto aos Tribunais, mas também aqueles que trabalham com
questões diretamente relacionadas ao sistema de justiça. Por exemplo, psicólogos que
executam medidas socioeducativas junto aos adolescentes em conflito com a lei, ou que
trabalham em organizações não governamentais, abrigos, ou outras instituições. As
atividades desenvolvidas por estes profissionais englobam, portanto, uma multiplicidade
de situações e experiências que nos remetem à indagação sobre os encaminhamentos e
respostas facultados às distintas demandas recebidas. Cabe recordar, todavia, que o
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira,1986), na explicação sobre o
verbo demandar expõe: ir em busca de, procurar, pedir, requerer, solicitar, disputar, litigar.
Compreende-se que a Psicologia Jurídica não representa um campo de trabalho
unificado, ou ainda diferenciado da Psicologia enquanto ciência. Neste sentido, não temos
uma Psicologia para cada instituição, como escolas, hospitais, empresas. Os
pressupostos teóricos da Psicologia são os mesmos, independente de onde o profissional
irá executar o seu trabalho. Quanto à praxis, esta será desenvolvida de acordo com a
melhor contribuição dos profissionais às causas que lhes são dirigidas nos distintos
espaços de atuação. Dessa maneira, na expressão ‘Psicologia Jurídica’ o que o jurídico
demarca é uma variante institucional e, quando conjugado à palavra Psicologia, torna-se
um adjetivo. Portanto, nossa intervenção necessita estar constantemente comprometida
com os estudos de nossa disciplina, assim como com as recomendações éticas.
Como exemplo, podemos citar a preferência de alguns autores pela terminologia,
quando é o caso, de diagnóstico ou trabalho psicológico no âmbito jurídico, no lugar da
expressão diagnóstico psicológico jurídico, na medida em que esta última pode acarretar
a falsa idéia de que existe um modelo de diagnóstico exclusivo para o uso no contexto
forense (Alvarez, 1992). Tais autores assinalam, ainda, que neste campo trabalhamos
com uma demanda que não é direcionada ao psicólogo pelo indivíduo a ser atendido,
situação que pode ocorrer também em outros contextos, como, por exemplo, no
atendimento a crianças encaminhadas pelos pais ou pela escola. Caricaturando, podemos
dizer que, muitas vezes, os pais chegam com seus filhos aos consultórios dizendo que
estão ali por indicação, ou recomendação do colégio das crianças, do pediatra, ou ainda
devido ao fato de que seu filho tira notas baixas e precisa melhorá-las. Como vamos

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acolher esta demanda? Será que teremos que fazer com que a criança tire notas
maiores? A idéia, portanto, de que o psicólogo deve se adaptar e responder aos distintos
e múltiplos requerimentos não faz sentido. Devemos tomar cuidado, enquanto psicólogos,
para não ocuparmos o lugar de auxiliar do discurso jurídico, daquele que foi incumbido de
desvendar a verdade. Como nos alerta Saunier (In: Brito, 1999, p.43),

“....no es raro encontrar-se com profesionales que preocupados más por su


próprio reconocimiento que por la correcta operatoria de su gestión, se
esfuerzan por constituir a la psicologia como uma ‘ciencia positiva’ ofereciendo
al magistrado conclusiones ‘certas’ que apuntam más a la investigación del
hecho que a las particularidades del sujeto.”

Assim, neste labirinto de demandas que nos são remetidas, não podemos
desprezar a questão ética, especialmente no tocante à realização de informes e
pareceres, ou ainda nas perícias. Nosso Código expõe no artigo 23, parágrafo 1: “Nos
casos de perícia, o psicólogo tomará todas as precauções, a fim de que só venha a relatar
o que seja devido e necessário ao esclarecimento do caso”. Isso significa que nos
relatórios, ou pareceres produzidos, não devemos descrever todas as informações
colhidas ao longo dos atendimentos. Também não é necessário reproduzir frases ditas
pelos sujeitos em uma tentativa de justificar a argumentação utilizada, ou ainda de
traduzir a veracidade dos discursos apresentados. É necessário, porém, decodificar, de
acordo com o nosso conhecimento teórico, as perguntas e demandas que nos são
dirigidas, procurando interpretar a problemática de acordo com o nosso referencial,
outorgando uma especificidade a nossa tarefa.
No contexto do atendimento psicológico, não são as frases soltas que fazem
sentido ou justificam situações, assim como as palavras não possuem a mesma
materialidade para o Direito e para a Psicologia. Freud, no texto “A Psicanálise e a
Determinação dos Fatos nos Processos Jurídicos” (1906) já apontava que não podemos
solicitar à pessoa atendida no contexto forense que verbalize espontaneamente seus
pensamentos sem censurá-los. Sabemos que a censura nestas situações normalmente é
extrema, já que estão sendo decididas questões de suma importância para o sujeito.
Retornando ao nosso Código de Ética, também não podemos desprezar o que está
disposto no parágrafo 2 do artigo 23: “O psicólogo, quando solicitado pelo examinado,
está obrigado a fornecer a este as informações que foram encaminhadas ao solicitante e
a orientá-lo em função dos resultados obtidos.” Entrevistas de devolução fazem parte das

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tarefas e obrigações dos psicólogos, independente da instituição na qual está atuando.
Qual o sentimento de uma pessoa que é atendida pelo profissional quando não lhe damos
qualquer retorno? O sujeito de um informe psicológico tem direito a conhecer o conteúdo
deste, ainda que a solicitação para a confecção do relatório tenha sido feita por outra
pessoa. É preciso assim, ao iniciarmos o trabalho, explicar ao sujeito o objetivo do
mesmo, esclarecendo que ao final do atendimento será feita uma entrevista de devolução,
fato que pode, inclusive, facilitar a tarefa.
Não podemos confundir a função do psicólogo jurídico com a de um espião
qualificado, ou de um detetive, para o qual a pessoa presta um depoimento e depois
assina a sua declaração. Podemos recordar que Pierre Legendre (1994) questiona se os
profissionais psi não estariam em vias de se converterem em um juiz oculto, na medida
em que diversas sociedades parecem dispostas, cada vez mais, a delegar aos psicólogos
a redação das sentenças. Esclarece o autor que o trabalho destes profissionais não deve
excluir a possibilidade de o Juiz manter suas dúvidas e, portanto, sua capacidade de
julgar. Este sujeito que estamos atendendo se encontra perante um profissional de saúde
que se propõe a escutá-lo, mesmo que no espaço jurídico.
Em pesquisa recente2, realizada com os psicólogos concursados que começaram a
atuar junto às diversas Varas de Família no estado do Rio de Janeiro, procurávamos
saber como foram estruturados os serviços de Psicologia, as dificuldades, as demandas
recebidas e a prática exercida. Constatamos que, ao iniciar suas atividades, a grande
maioria dos profissionais se sentiu isolada na instituição – passear ou vagar pelos
corredores foram expressões utilizadas pelos entrevistados, na referência a sua chegada
ao Fórum, quando não dispunham de uma sala própria, ou apropriada às necessidades
do atendimento. Eram poucas as demandas que recebiam, já que a instituição estava
acostumada só com o trabalho dos assistentes sociais, não existindo clareza a respeito
da colaboração que os psicólogos poderiam fornecer.
Esses profissionais precisavam dividir pequenas salas com as assistentes sociais,
com os defensores, ou utilizavam os bancos de espera para viabilizar, ou não atrasar, um
atendimento. Dessa forma, as acomodações e condições para a realização do trabalho
eram classificadas como precárias. Concluíram os entrevistados que estes fatores
contribuíam para a inexistência de uma equipe entre os psicólogos alocados em uma
mesma Vara, ou entre estes e os assistentes sociais, classificando o encontro, que por
vezes ocorria entre os profissionais, como trocas ocasionais. Alguns, isolados em suas
comarcas, queixavam-se da ausência de referências para realizar suas atividades, com
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Pesquisa denominada Separação, divórcio e guarda de filhos – questões psicossociais implicadas no direito de família,
desenvolvida junto ao Instituto de Psicologia da Uerj, no período de 1999 a 2002.

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dúvidas quanto aos propósitos de sua intervenção. Em relação aos operadores do direito,
os psicólogos permaneciam afastados, sem qualquer integração e com dificuldades,
algumas vezes, para esclarecer sua proposta de trabalho.
Todos os entrevistados reconheceram que os psicólogos que integram o quadro do
Poder Judiciário ainda não possuem metas ou diretrizes de trabalho comuns, fato que
causa inquietação a muitos, que reivindicam a premência de uma coordenação de
Psicologia, para que se possa dar início ao processo de discussão sobre a abrangência e
os limites das ações a serem empreendidas. A extinção, pela Corregedoria do Tribunal de
Justiça, da coordenação de Psicologia, criada logo após o ingresso dos primeiros
psicólogos concursados, foi identificada como um dos fatores responsáveis pelo
isolamento entre os profissionais, que se vêem sem representação.
Foram colhidas distintas visões dos entrevistados quanto às atribuições e às
responsabilidades profissionais, evidenciando sérias controvérsias, caracterizadas no
modelo e nos objetivos de atuação. Enquanto alguns depoimentos identificavam o
trabalho como eminentemente clínico, “como se fosse em um consultório particular”,
outros argumentavam a favor da realização de perícias, contrariados por uma pequena
parcela: “temos que deixar claro que não somos mais peritos”. Os entrevistados
esclareceram ainda que gostariam de empreender outras práticas, mas se encontravam
sem condições no contexto institucional.
Um fato que nos despertou atenção, entretanto, foi o de que no provimento da
Corregedoria Geral de Justiça (n.39/99), que visa disciplinar a atuação dos psicólogos no
âmbito do Poder Judiciário, não encontramos a incumbência de realização de perícia.
Este documento, confeccionado após o ingresso do primeiro grupo de profissionais,
dispõe no inciso II que cabe ao psicólogo “elaborar laudos e relatórios sobre os aspectos
psicológicos dos jurisdicionados, os quais deverão ser apresentados à autoridade
judicial”, acrescentando no inciso VI “desenvolver trabalhos de intervenção, tais como:
apoio, mediação, aconselhamento, orientação, encaminhamento e prevenção, próprios
aos seus contextos de trabalho.” Ou seja, a determinação para que os psicólogos utilizem
a intervenção mais apropriada à causa em análise encontra-se disposta no provimento, o
qual, no entanto, era desconhecido por muitos.
Em termos jurídicos, sabemos que nos processos encaminhados às Varas de
Família são comuns as desavenças pela guarda no momento da separação conjugal, já
que um dos pais será designado como guardião e o outro como visitante. Nessas
ocasiões, os processos costumam ser encaminhados aos psicólogos para que auxiliem
quanto à disputa instaurada. Roberto Saunier, em conferência que proferiu no decorrer do

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III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica (2000), insistiu no fato de que o
trabalho interdisciplinar não pode ser confundido com a incorporação de conceitos
produzidos por outras ciências. Assim, compreende-se que no contexto aqui em análise,
não podemos nos fixar na leitura de que estamos lidando com uma disputa de guarda,
termo que faz todo sentido para o Direito, já que a tipificação é um instrumento deste, mas
que, entretanto, não é uma categoria de trabalho da Psicologia.
Podemos recordar que não estudamos na obras referentes à Psicologia questões
sobre guarda ou visitação – normalmente um capítulo nos livros de Direito –, mas
procuramos compreender as necessidades para o desenvolvimento infantil, das relações
de filiação, da convivência familiar etc. Ou seja, partimos do entendimento de que as
situações que chegam às Varas de Família não podem ser pensadas pela Psicologia no
sentido restrito da disputa. Na maioria das vezes, são pais e filhos que se encontram no
meio de um conflito, permeado por uma série de particularidades. Assim, utilizando
terminologia empregada por Françoise Hurstel (1999), não podemos desprezar o dado de
que devemos estar atentos ao campo social no qual os sujeitos se constituem.
Compreende-se que no trabalho desenvolvido nas Varas de Família é indicado que se
preste atenção aos estudos empreendidos sobre relações de gênero, papéis e funções
parentais, filiação, parentalidade, entre outros.
Também não podemos nos distanciar dos trabalhos que retratam as mudanças que
vem sofrendo a família contemporânea com o crescente aumento da taxa de divórcios,
recasamentos, procriação medicamente assistida, casamentos entre homossexuais, que
nos reconduzem aos questionamentos sobre filiação e parentalidade. Não devemos
deixar de questionar como tais transformações no campo social atingem a problemática
psicológica dos sujeitos, ou, ainda, a constituição de subjetividades.
Assim, entende-se que é no âmago de tais questões que vamos traçando, ou
desenhando, as atribuições dos psicólogos nas Varas de Família, utilizando como
ferramentas, dentre a gama de recursos previstos no provimento específico, aqueles que
melhor respondam às demandas dos sujeitos em atendimento. Nesses casos, nossa
prática profissional não deve deixar de se imiscuir na pergunta: “Como relacionar o Direito
Civil, na sua referência à filiação, à Psicologia?” Ou seja, disputa de guarda, solicitação de
visitação, alimentos, são termos utilizados pelo Direito, situações para as quais a
Psicologia deve lançar um outro olhar, ou uma outra escuta – o olhar das relações de
parentalidade e filiação.
Pensando na amplitude e diversidade de atuação dos psicólogos jurídicos,
podemos citar também o levantamento empreendido, em outra ocasião, com os

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profissionais do atendimento socioeducativo. Neste âmbito, colheu-se a informação de
que muitos justificavam sua prática de trabalho centrada quase exclusivamente na
confecção de pareceres em função de determinação do Poder Judiciário, ou ainda por
estar instituída como norma. Quanto às dificuldades presenciadas, também foram
listadas, além da falta de recursos, a ausência de integração entre a equipe e a
inexistência de uma diretriz de trabalho, já que muitas vezes, em algumas instituições, as
reuniões chegavam a ser desestimuladas. Fato comum também foi a reivindicação para
que fossem oferecidos cursos de formação continuada, uma opção para que pudessem
estar discutindo e repensando sua prática profissional.
Observamos, portanto, que a carência de espaço para a atuação do psicólogo
jurídico não deve ser interpretada somente na referência à estrutura física. Este parece
um lugar em construção; fato que, provavelmente, contribui para a diversidade de
demandas que lhe são dirigidas, assim como para as incertezas que são recebidas. Tudo
indica que nos encontramos em um momento de amadurecimento, em que as demandas
que nos são encaminhadas não podem ser interpretadas em sua face restrita aos pedidos
formulados, mas que, para alcançarmos nossa própria identidade, é preciso procurar,
buscar o melhor caminho, com vistas à colaboração de nosso trabalho, mesmo que, para
isso, seja preciso litigar.

Referências Bibliográficas
ALVAREZ, L. Hacia un diagnostico psicologico forense, Revista da Asociacion de
psicologos forenses de la Republica Argentina, Buenos Aires, nov.1992, ano 4 (7), p.7-18.
FERREIRA, A.B.H. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed.
Nova Fronteira, 1986.
FREUD, S. A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos (1906).
In:Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro:Imago,
1970, vol XIV, p.50-64.
HURSTEL, F. As novas fronteiras da paternidade. Campinas: Papirus, 1999.
LEGENDRE, P. El crimen del Cabo Lortie – Tratado sobre el padre. Espana: Siglo
Veintiuno, 1994.
SAUNIER, R. La Psicologia Forense em Argentina.In: Brito, L. (Org.) Temas de Psicologia
Jurídica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p.19-44.
SAUNIER, Roberto. Desafios de la Psicologia Forense ante el nuevo milênio. Anais do III
Congresso Ibero-americano de Psicologia Jurídica. SP, 2000, p.318-323.

17
Os Labirintos da demanda
Fernanda Otoni de Barros

O sofrimento psíquico é um dos inúmeros efeitos que invadem o cotidiano diante


da inegável crise social. A exclusão, a violência, a violação dos direitos humanos
provocados pela silenciosa crise econômica e social, explode nas diversas redes de
atendimento social do país, em busca de alguma inserção... de uma possibilidade de
resgate da dignidade no laço social.
Igrejas, Postos de Saúde, Secretarias de Estado, Universidades, Comunidades de
Bairro, Ongs, Escolas Públicas e Privadas, Hospitais, Tribunais, Prefeituras, instituições
organizadas a partir de iniciativas de grupos isolados, recebem as demandas mais
diversas que trazem indubitavelmente em sua formulação a expressão do sofrimento
psíquico, a violação dos limites, o desrespeito ao outro, etc...
Cada vez mais a inserção de análises produzidas pela ciência acerca do sofrimento
psíquico na rede social vem caracterizando o alargamento de um mercado de trabalho
para psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, numa política que aposta no saber
especializado como possibilidade de construção de um fazer comprometido com a saúde
mental, seja onde for que esta demanda se apresente.
Embora o século passado fosse proclamado, nas diversas manifestações
discursivas como sendo o ápice do processo civilizatório, entramos no terceiro milênio
com um questionamento incessante sobre os saberes produzidos e instituídos na
resolução de conflitos. O progresso técnico científico que caracterizou o século XX
contaminou a todos com a esperança de que os processos racionais poderiam trazer
respostas e soluções que tornaria a humanidade mais ética, solidária, mais "humana” e
saudável.
A cada dia, assistimos a realidade confrontar os discursos "oficiais", denunciando
as falácias dos modelos pré-concebidos, das teorias fechadas, do sentido unívoco que
tenta dar conta do homem e do mundo, reduzindo-os a dados formais, estatísticos,
empiricamente analisados e posteriormente "traduzidos" em leis genéricas e universais,
em teorias classificatórias, responsáveis pela alienação do homem e pela esterilização da
vida.3 É preciso que não nos esqueçamos, nos dizeres de Bachelard, "Que a experiência
nos exponha as razões de sua oposição as conclusões de uma teoria."4

3
Idem.
4
BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. 2 ed. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p.16.

18
A sociedade através do Estado fez seu apelo as ciências "psi", como um lugar de
produção de saber. Estas instituições demandam destes profissionais uma intervenção,
na maioria das vezes, sob a alcunha de uma avaliação...
Neste momento, o sistema judiciário torna-se um lugar de endereçamento de
inúmeras situações de conflito que não encontram regulação no cotidiano das pessoas
envolvidas. Um certo excesso de sofrimento vai buscar ordenação no ordenamento
jurídico. Busca-se a instauração de uma ordem, imposição da lei, regulação do gozo que
o sofrimento encarna. É inegável o entrelaçamento entre Direito e a estrutura subjetiva
das relações: lugar contraditório. Mas o instrumento jurídico é insuficiente para dar conta
de se inserir dentro da objetividade que este campo almeja, pois a complexidade do
conflito intersubjetivo, o fenômeno do impasse litigioso, ocorre num terreno onde a
antinomia e a ambiguidade são elementos relevantes, próprios do campo simbólico, da
estrutura da ficção.
Abre-se, na contemporaneidade, a conexão entre a as ciências “psis” e o direito,
pois no estrangulamento do sistema judiciário perceberemos que a maioria da demanda
que hoje bate em sua porta, são questões relativas ao sofrimento psíquico. Os Jornais
estampam o tempo todo a situação de calamidade dos Manicômios Judiciários, cidadãos
esquecidos nos porões da loucura, exilados a partir de uma ideologia que tinha por
princípio segregar tudo aquilo que escapasse ao controle da racionalidade humana, o
atendimento aos adolescentes em conflito com a lei e a aplicação das políticas
estabelecidas pelo Estatuto da criança e do adolescente expõem sua fragilidade neste
terreno ceifado por fatores múltiplos que caracterizam a sua complexidade, as novas
formas de organização familiar produzem divergências no cotidiano oscilando entre
valores arraigados na tradição e a novidade instaurada por estes arranjos inovadores que
acabam perdendo o sentido dos princípios reguladores da convivência entre cônjuges,
pais e filhos. Dentre outras coisas, a contemporaneidade produz novas formas de
subjetivação e novas formas de manifestação dos conflitos. Por outro lado, as normas
jurídicas não acompanharam a evolução social e cultural recorrendo a outros campos de
saber para cumprir sua função de regular as relações humanas.
Essa conjuntura recriou o campo da psicologia jurídica, e merecerá novas formas
de intervenção. As concepções sobre a saúde e a doença, a evidência histórica a
demonstrar a responsabilidade do estado na produção da violência urbana, os aspectos
sociais e políticos que embasam a criminalidade e o desvio da norma, a preponderância
da ciência como mecanismo de produção da verdade e o próprio processo de
globalização instauram novos elementos na leitura dos conflitos que o ordenamento

19
jurídico terá que regular. O enfoque da intervenção da psicologia jurídica deverá assentar-
se sob novos terrenos que implicam um desafio na aplicação de seus recursos habituais
para não se constituírem em mais um instrumento de segregação social, para que não
ofereçam argumentos que dê fundamento "científico" a uma nova forma de etiquetamento
classificatório do indivíduo.
“Trata-se para mim, acima de tudo, de uma questão cuja elaboração precisa-se
encaminhar-se mais no sentido de sua abertura que de seu fechamento. Isto significa,
dentre outras coisas que a fecundidade do trabalho que se possa realizar neste terreno -
neste interregno, mais precisamente, inclusive no sentido etimológico deste termo: aquilo
que medeia entre dois reinos -, pressupõe uma aposta na insistência da indagação, mais
do que na dimensão do que daí possa vir como resposta.”(1)
Historicamente o entrelaçamento entre a psicologia e o direito abriu a possibilidade
de construção de um campo denominado de ”pericial”, que teve num primeiro momento o
entendimento de ser um lugar que desejava tudo saber sobre aquilo que o Juiz
considerava de nossa competência...parecer do técnico... respostas a quesitos...técnicos
para que o julgador defina o melhor dentro dos parâmetros adequados aos princípios da
moral e da ordem pública... Era esta a forma da demanda.
A prova pericial é um dispositivo jurídico que auxilia na formação da convicção do
Juiz, para que este julgue, intervenha na vida privada de uma forma que pode almejar ser
educativa, preventiva ou punitiva. Para que o Estado determine o que é o melhor para o
indivíduo e para a sociedade. O perito deve trazer aos autos um laudo com argumentos
técnicos que esclareça sobre a verdade do fato posto em questão pelo Juízo.
A psicanálise nos aponta que a verdade é sempre não toda, impossível de ser
apreendida em sua consistência. Não existe uma verdade única sendo que cada um
constrói a sua ficção sobre a sua história e em torno d’isso sustenta-se um saber que é
transmitido e repetido “como se” fosse a verdade, mas é uma construção absolutamente
particular. O simbólico não recobre todo o real, não há saber capaz de capturar a
verdade. Ela só pode ser anunciada por partes, parcialmente. O saber disciplinar não
consegue realizar a sua pretensão. Demoramos algum tempo, o que produziu
conseqüências sociohistóricas, para admitir que o homem não pode saber tudo sobre o
objeto de sua investigação pela via da razão instrumental.
A perícia é herdeira deste tempo e traz consigo as suas mazelas. Se a perícia tem
como fundamento no campo jurídico oferecer a verdade aos autos, sabemos que é
impossível responder à demanda de dar provas da verdade. O que temos acesso é a
alguns dados de realidade que chamamos de fato, e o saber do sujeitos envolvidos em

20
torno desse fato, cuja expressão se faz de forma míope, pois toda estrutura de saber é
ficcional.
Ao criar o campo da “perícia” podemos nos atrever em interpretar este ato jurídico
como um reconhecimento de que existe algo no discurso apresentado nos processos que
está fora de ordem, a constatação de um certo caos onde o ordenamento não tem
instrumentos para saber ordenar... falta-lhe saber sobre aquela matéria na qual terá que
decifrar para cumprir a sua função jurisdicional. A partir dessa constatação solicita-se uma
perícia, esperando que o perito vasculhe a nebulosa alma e corpo humanos e apresente
as medidas que comportam a subjetividade... que dê sentido ao sem sentido derramado
nas páginas processuais.
É preciso rever os conceitos e paradigmas, para estarmos mais próximos de uma
posição ética. Caso contrário a intervenção no campo jurídico mediante conceitos
técnicos, cumprindo uma demanda disciplinar, operará como um instrumento de alienação
e subordinação do sujeito a um discurso do mestre, que pretende saber sobre o que é o
melhor, a serviço do poder instituído.
O direito na modernidade teve sua estrutura na manutenção deste estado das
coisas, que assegurou, na sociedade contemporânea, as mesmas funções e finalidades
anteriormente sustentadas pelas práticas religiosas. “O que mudou foi apenas o invólucro
do discurso que, no seu interior, mantém intocável a relação de autoridade estabelecida
para domesticar os homens.”(9)
O campo da “perícia” serviu por muito tempo como um lugar de onde o sistema
jurídico retirou instrumentos de interpretação das cenas apresentadas, arraigada em
crenças teóricas próprias a cada linha de pensamento onde o profissional alinha seu
saber, produzindo um corpo de provas, que objetivavam a reprodução do discurso da
ordem, submetendo os envolvidos aos ditames deste saber. Uma crença que a ordem
social é boa, sendo preciso domesticar, corrigir e segregar aquilo que dela se desvia.
Neste campo, na análise das provas apresentadas retirava-se o material necessário para
a formulação de uma sentença, vulgo, laudo psicológico, tendo-se garantido a realização
do ritual processual necessário para formulação da convicção do profissional. Naquele
momento...na matéria de sua competência... o técnico se tornava um pouco juiz. A partir
de seu exame das coisas formulava sua sentença.
Foulcault vai nos trazer as raízes dessa história, como que o surgimento dos
saberes disciplinares foram regimentados pela batuta do direito e foi ai, neste campo, que
ele demarca a sua origem. O Direito deu origem a estes saberes ao exigir, para cumprir o
seu ordenamento, a produção de saber sobre os mais diversos conflitos. Para ele é como

21
se os indivíduos em conflito usassem duas espadas e lutassem, agora diante de um
tribunal, através do processo. O encontro das espadas produzia a centelha...no seu ponto
de conflito o técnico é chamado a ler esta centelha... a produzir um saber sobre
isso...saber disciplinar...que o direito transformou em sentença, jurisprudência...em
norma. Serão necessários passar alguns anos para que Habermans anuncie que a
sentença é uma aposta... e não a verdade.
Se no discurso da revolução francesa, “liberdade, igualdade e fraternidade”
extraímos o assentamento do pensamento moderno, extraímos também a face
dogmática, utópica e positivista do direito e consequentemente da “perícia” trabalhando a
serviço de uma regulamentação das relações e do comportamento, com diagnósticos
positivos onde a fratura de sua inconsistência permanecerá encoberta pelos suportes
dogmáticos teóricos. ‘Todos iguais perante a lei’, um movimento de exclusão da diferença,
impedindo a emergência de novas leituras capazes de fazerem uma ruptura com o
sistema instituído, obturando a possibilidade de invenção de novas formas de intervenção
no conflito a partir do ponto de inconsistência da ordem social.
Qual outro lugar seria possível para a psicologia jurídica intervir sobre a demanda
jurídica, pensando na reformulação de seus conceitos e paradigmas, dentro da discussão
atual de um estado plural, onde a diferença esteja incluída em seu projeto em oposição a
um estado intervencionista que através de sua intervenção exerce o controle das
demandas sociais para ajustá-las a um projeto ideológico do poder?
Um lugar a ser inventado no caso a caso, um lugar comprometido com a ética, um
lugar mediador, promovendo a possibilidade de uma operação onde o saber daquele que
está envolvido no conflito tenha seu lugar na formulação da sentença...um lugar que dá a
palavra...escuta e não apenas examine e sentencia a partir de uma lupa míope que
transforma os vestígios em verdade.
A implicação do sujeito no processo de subjetivação conduz o deslocamento da
posição alienada da vítima que necessita da proteção intervencionista do Estado para
uma posição responsável de quem sustenta na própria carne a operação de perda que
toda ruptura traz. O que está em discussão não são as técnicas e dogmas teóricos ou
jurídicos, mas um modelo de sociedade, o lugar do sujeito no projeto da civilização. A
questão que somos chamados a examinar enquanto psicólogos judiciais vai muito além
de um órgão, uma fratura, uma ruptura ou subjetividade. Devemos levar em conta que a
demanda é apenas um recorte de uma tecitura muito mais ampla e que o parecer pericial
tem efeitos sobre esse tecido que muitas vezes, no afã de realizarmos a nossa tarefa...
fazer o que o mestre mandar... nem nos preocupamos em investigar. Devemos nos

22
interrogar porque essa questão judicial causa tanto conflito, colocando a máquina para
funcionar.
Maria Helena Souza Patto disse, na I Mostra de Práticas em Psicologia, que
devíamos ter em nossa formação um pouco de história e política, para não nos
transformarmos em meros técnicos ignorantes que fizeram uma universidade. Para
transformar é preciso ir além do exame... é preciso olhar em volta, para aquilo que causa
a nossa intervenção.
Uma nova proposta:

“Na orientação que se trata de articular com o universo subjetivo do sujeito as


suas implicações simbólicas, desvendam-se lugares pouco explorados que
envolvem a inscrição de seres humanos em mundos que eles próprios terão de
ressignificar sem a mediatização de nenhuma instância superior que lhes retire
aquilo que lhes compete originalmente, isto é, a capacidade de construir e
reconstruir os caminhos de suas existências.”(10)

Contudo, é inegável que a produção de saber sobre o aparelho psíquico oferece


hoje, alguns instrumentos científicos para fazer a avaliação de um indivíduo. As técnicas
de avaliação psicológica podem ser utilizadas de forma séria e oferecem ao examinador
condições de apontar algumas características do sujeito examinado. Mas a pergunta que
devemos fazer, tendo em vista os labirintos da demanda, a complexidade instaurada em
cada conflito, os direitos humanos e o compromisso social da psicologia, nestes casos,
não se referem à cientificidade do instrumento e sim ao uso dos resultados que daí
surgem. Estamos aqui, nos referindo ao sentido segregativo que a interpretação dos
resultados podem trazer, ao excluir alguns indivíduos que apresentam-se fora dos
padrões estipulados pelos critérios de mensuração da avaliação, como desviantes do
perfil estipulado como adequado.
Neste aparelhamento do Estado com novos recursos não sejamos ingênuos de
ignorar a pretensão política e ideológica de repressão da agressividade, recuperação,
ortopedia, a reforma do indivíduo agressivo ou agredido naquele modelo seguro-
normalizador - das representações sociais.
Uma leitura crítica do sistema Jurídico é suficiente para nos informar que o Direito
não garante o justo e que é a mais antiga forma de reger o gênero humano de acordo
com o poder instituído politicamente. A interpretação da lei, faculta aos seus intérpretes as
mais diversas formas de fazer justiça, sendo que cada caso é julgado e sentenciado de

23
acordo com o jogo de forças que encenam a cena jurídica, no instante de sua apreciação,
jogo que muitas vezes, para além das falácias retóricas de seus operadores, engendram
forças de poder vindas do arcabouço político, ideológico e moral, acarretando em alguns
casos, com violência da imposição jurídica, o massacre da subjetividade, a tortura
simbólica da singularidade, forjando uma massificação, uma submissão, típica aos
interesses opressores e coercitivos do poder. É sempre bom lembrar que esse é um uso
possível da intervenção do saber acerca do sofrimento psíquico nestes campos e pode
ser esta a demanda... pode não o ser em todos casos, mas é possível que assim o façam.
Exemplifiquei com o Sistema Jurídico, mas não me parece que o discurso seja
diferente nas instituições policiais, nas delegacias, penitenciárias, manicômios, etc...
Todas estas instituições são indubitavelmente atravessadas pela ideologia de seu tempo,
e não estão isentas das pressões políticas advindas do poder instituído. Esta instituições
não escapam do totalitarismo ideológico. Não seremos ingênuos de acreditar que a
equipe técnica destas instituições não sofrem a marca desta direção... no cotidiano desse
trabalho. A dureza de sustentar um trabalho interdisciplinar se apresenta neste rasgo,
quando o poder aniquila a discussão e impõe sua ordem. Poder que desce como uma
navalha decepando a construção de um trabalho possível àquele caso.
É preciso estar sempre na posição de estranhamento, não perder jamais a
capacidade de indignação, mesmo que esta postura cause uma posição de ruptura com o
que está instituído. Esse pode ser um lugar transformador... um lugar de interrogante do
funcionamento da estrutura, apontando outras saídas... saídas que o caso informa e não
propriamente fazer a reforma ou adaptação desejada pelo poder instituído. Saber o que
oferecer e não arredar daí. É justamente neste ponto onde se coloca o desafio de não
responder a demanda nos termos como é formulada, mas em subverte-la, redefini-la,
dizer NÃO, ali onde o pedido supera as nossas possibilidades.
Não podemos retroceder desta posição ética, voltando-nos a uma prática,
convertendo-nos em positivistas, respondendo como adivinhos ou possuidores de um
saber oracular, um saber que presumidamente nos faria ostentar um título acadêmico,
reconhecido pelas instituições de poder, a seu serviço, crendo ser possível dar respostas
prontas e acabadas a estes interrogantes do poder.
Creio que o desafio neste campo é interrogar-se continuamente ... interrogar-se
sobre a legitimidade de prestar-se a este jogo. Mesmo porque há muito trabalho para ser
feito... Temos procurado sustentar uma prática através da pesquisa acadêmica,
chamando outros atores para participarem da construção de uma nova forma de tratar o
conflito jurídico naquilo que ultrapassa os limites de sua competência. Para além da

24
perícia, tem possibilitado aos indivíduos que recorrem ou são interceptados pelo sistema
jurídico, um trabalho que resgata a dimensão subjetiva de suas ações e recolocam o lugar
da responsabilidade de cada um no projeto social, em consonância com o ordenamento
jurídico. Considerar a dimensão do sujeito nas expressões do sofrimento psíquico
engajado num determinado tempo, enredado nos ditames de uma cultura.
Isso nos remete não a uma realidade histórica, palpável e verificável, mas a uma
verdade relativa, parcial, subjetiva, incomensurável, impossível de mensurar em valores
nos termos que o poder pretende determinar. Se trata de uma realidade que nos fala de
um sujeito em sua relação com o mundo, pela linguagem. É Foucault que nos diz:

" A consciência moderna tende a outorgar à distinção entre o normal e o


patológico o poder de delimitar o irregular, o desviado, o pouco razoável, o
ilícito e também o criminal. Tudo o que se considera estranho recebe, em
virtude desta consciência, o estatuto de exclusão quando se trata de julgar e de
inclusão quando se trata de explicar."

Mas se nos detivermos àquilo que causa a entrada do profissional neste campo,
aquilo que o Estado por não ter, pede auxílio, podemos elevar aquilo que Freud
descobriu, que não há verdades totalizadoras, teorias gerais que garantam uma eficiente
harmonia, que o mal estar é próprio da cultura e que atrás do discurso manifesto do
sujeito, sempre é possível emergir a produção de um processo de subjetivação inédito,
desde que amplie para o sujeito as possibilidades de elaboração do conflito e a rede de
recursos para construção de novas saídas. Deste modo em cada sujeito sempre é
possível advir uma outra ordenação, própria do registro intrapsíquico da subjetividade.
Devemos apostar que em algum momento o indivíduo será capaz de um processo
de subjetivação, com possibilidade de retificar a sua posição frente ao mundo. Não
abandonar esse pressuposto pode dirigir nossas intervenções de uma forma implicada
com a ética, com a saúde mental.
As intervenções dos operadores neste campo de interface podem oferecer uma
outra fonte de interpretação... Escutar a experiência subjetiva sempre causou nas
Instituições um lugar de desconforto, pois o que se deflagra neste ato é interrogar o saber,
escutando o saber que o sujeito declara e que não é da ordem do universal e sim do
particular e que só o indivíduo poderá informar. Trata-se ainda de apontar a carência das
políticas públicas na atenção ao cidadão, contribuir para construção de um projeto social
onde tenha cabimento a diferença, as exceções produzidas pelos modos de subjetivação.
Trata-se de uma posição ética.

25
Diante das inquietações que neste campo se revelam, sobremaneira se faz
importante marcar uma posição política... Não se trata simplesmente de atender a
demanda sem uma reflexão sobre o enredo que causa esta demanda. Se o espetáculo da
miséria humana, da criminalidade, do abandono de crianças e adolescentes, a fome
nacional por recursos básicos de sobrevivência, dentre tantas catástrofes sociais espoem
o sofrimento psíquico desses protagonistas e os projetos sociais passam a executar
políticas de tratamento à saúde mental, numa perspectiva restauradora, pensamos que
temos mais alguma coisa a fazer além de simplesmente atender a demanda.
É preciso acordar que a segregação social advém de uma certa divisão do bolo
econômico onde não sobram recursos para investimento em projetos sociais na medida
em que a necessidade brasileira exige...mas para além da carência de recursos básicos e
sociais na constituição dos bens primários, precisamos considerar uma segregação
histórica e bem mais profunda... uma exclusão que é transmitida no discurso da cultura,
nas entrelinhas das falas cotidianas, na convivência com o outro. Exclusão que se dá
entre vizinhos, nos elevadores das grandes cidades ou nos quintais desse Brasil. Uma
segregação que é medida pelo valor que a cultura manifesta...exclusão de cor, de raça,
das deficiências físicas e dos diferentes em sua organização psíquica...excluídos do
projeto que só inclui aqueles dotados de uma certa racionalidade... A segregação se
manifesta pela expressão da carência, uma queixa em evidência... exigência. Os efeitos
disso pode se manifestar pela submissão e apagamento do desejo em forma de sintomas
ou até na exigência violenta de inserção. Violência, alcoolismo, drogas e depressão são
os sintomas mais visíveis do sofrimento psíquico causado pela segregação.
Diante desta cena o Estado pede a intervenção de profissionais no sentido da
restauração da saúde mental... mas será preciso um pouco mais do que simplesmente
uma intervenção técnica... será preciso uma intervenção política... construir em cada ato a
dimensão política da clínica . Participar efetivamente na formulação de políticas públicas
que viabilizem a expressão da subjetividade, na elaboração e execução de projetos
criativos, corajosos e sobretudo implicados com a construção da cidadania e com a
defesa dos direitos humanos. Um trabalho de pesquisa e um fazer prático que tenta
resgatar a dimensão política da intervenção do psicólogo neste campo de interface. Para
além do modelo standard de consultórios, se dispor a atender aquele que sofre das mais
diversas formas, sem abdicar da ética e do seu compromisso com a saúde mental.
Em todos os casos, é inegável a implicação de todos os atores envolvidos nestes
projetos e podemos afirmar que subvertendo o sistema de intervenção tradicional,
apontando suas falhas e avançando dentro das diretrizes contemporâneas de pensar a

26
saúde, o sujeito e a função social do Estado, estamos inventando novos operadores de
intervenção neste campo.
Angustiados pelo real que desses casos emana, os psicólogos jurídicos
enveredam-se pelos labirintos da demanda. Sua coragem, determinação e entusiasmo
com a pesquisa e com a expressão da subjetividade reafirmaram a minha crença na
função política da clínica e em seu sentido revolucionário, imprimindo uma direção ética
de intervenção nesta clínica do social, uma orientação possível no resgate da cidadania e
da saúde mental em casos de violência e exclusão. Afinal, estamos trabalhando por isto.

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Laboratório Temático
Adoção

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A Habilitação de candidatos no processo de adoção: a demanda endereçada
ao psicólogo
Marta Baims Machado da Costa

Coube a nós falar sobre a Habilitação. Esclareçamos àqueles que desconhecem os


procedimentos judiciais, o que vem a ser isso.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a adoção é um
instituto legal que visa possibilitar à criança, a alternativa de ser inserida em um novo
núcleo familiar através de afiliação legal a um indivíduo ou casal que, por sua vez,
passará(ão) a exercer em todos os sentidos o papel de pai, mãe ou ambos na vida desta
criança.
Para tanto, as pessoas que desejam adotar uma criança são consideradas pela
Justiça, em um primeiro momento, como postulantes ou candidatos à adoção e devem,
através de uma série de procedimentos, comprovar ao Juízo sua idoneidade e condições
de arcar a contento com este compromisso, qual seja o de amar, criar e educar uma
criança, assumindo todas as responsabilidades inerentes ao Pátrio-Poder. Pois bem,
esse processo é chamado de “Habilitação para Adoção” e é corrente em todas as
Comarcas do Estado, com algumas variações na forma como é conduzido.
No caso da Comarca de Petrópolis, após a comprovação documental de uma série
de exigências legais, o(os) candidato é submetido à uma “avaliação” pela equipe técnica,
realizando entrevistas com o setor de Serviço Social e Psicologia, de forma separada.
Nos deteremos aqui a comentar algumas preocupações que se colocam para nós, como
vemos nosso papel atual nesse processo de “habilitação”, nossas ansiedades atuais e
apresentaremos exemplos de casos reais.
Em um primeiro momento, a demanda que se apresenta ao psicólogo pela
instância judiciária nesse processo é a de fazer uma avaliação psicológica do candidato
que pretende adotar uma criança a fim de concluir se ele apresenta adequadas condições
pessoais satisfatórias que favoreçam o desenvolvimento da criança ou, ainda, se existiria,
a priori, alguma dificuldade ou restrição dessa natureza que poderia prejudicar o
adequado exercício da função parental – seja materna ou paterna.
No bojo dessa demanda, outras tarefas são agregadas, tais como comunicar e
esclarecer aos postulantes uma série de informações relativas ao processo de adoção,
tais colmo as características do processo legal, mitos mais comuns relacionados à
adoção, dificuldades mais freqüentes no estágio inicial de convivência entre criança e pais
adotivos, pré-concepções acerca da criança que dificultam o entendimento da

29
especificidade de sua história e de sua singularidade, bem como de suas necessidades e
uma série de outras questões que vão surgindo de acordo com as dúvidas e temores de
cada indivíduo ou casal específico.
Além disso, diante de elementos que possam sugerir dificuldades dos candidatos
na concretização da adoção naquele momento, há a tentativa de refletir com o(os)
postulante(s) tais questões, no intuito de produzir novos sentidos e significações para
aquela demanda que, por vezes, tem como finalidade a satisfação de necessidades e
desejos outros, alheios e estranhos ao exercício realístico da parentalidade, com grande
risco de manejos inadequados por parte do adotante em relação à situação de adoção.

Como nós, psicólogos, percebemos esta demanda


O que verificamos, via de regra, é que a função de “avaliador” imposta ao psicólogo
é sentida como bastante desconfortável e ansiógena, cercada de questionamentos acerca
da legitimidade ou possibilidade de se ocupar esse lugar a contento.
Se por um lado a ocupação deste lugar é impossível, porque remete ao lugar do
“sujeito suposto saber” e da onisciência, como se o psicólogo, a par de uns poucos
contatos com o outro, pudesse desvendar as verdades e ficções conscientes e
inconscientes de seus analisandos e determinar quem poderá ser “bom pai” ou “boa
mãe”, por outro, desconsidera a imprevisibilidade e as inúmeras variáveis desconhecidas
que se apresentam em uma situação de vinculação parental e familiar, que são da ordem
do devir e do futuro, e portanto, ignoradas.
A começar, em nosso entendimento, essa imprevisibilidade se dá pela própria
criança que será adotada, com toda a carga de sua bagagem genética, psicológica e
social, que lhe conferem o status de ser único, com necessidades e características
específicas que podem imprimir maior facilidade, empatia, identificação e amor na relação
com seus pais, ou pelo contrário, maiores dificuldades, rejeições, desentendimentos e
desencontros, a depender das necessidades e desejos de seus pais, bem como do grau
de maturidade, realização e desenvolvimento afetivo-emocional de cada postulante.
Ou seja, o entrecruzamento e combinatória de variáveis diversas que podem afetar
tal empreendimento é de tal ordem que qualquer avaliação acerca do adequado exercício
parental é no mínimo probabilística e incerta. Desconhecer tal situação é proteger-se da
ansiedade que tal situação suscita, diante da possibilidade de equívocos na avaliação,
com conseqüências mais ou menos sérias na vida da criança ou de postulantes à adoção.
Por outro lado, o reconhecimento de tal situação pode levar a outro extremo, qual
seja, o da paralisia. Se a tarefa é complexa, incerta e dada a equívocos, então nada se

30
pode dizer a esse respeito. Também não vemos a situação dessa forma. Há que se
ponderar aqui, a necessidade de contribuições e esclarecimentos, dentro de certas
limitações, que poderão lançar maior luz tanto para o casal ou indivíduo que deseja
adotar, quanto para o próprio Juízo, que em última análise, tem a prerrogativa de deferir
ou não a habilitação para adoção daquele casal ou indivíduo que postula tal direito.

A que demanda escutamos e atendemos – a do requerente ou da criança?


Dentro desse contexto, em nossa visão, há que se ter em mente ainda outro
aspecto fundamental quando avaliamos a situação. Trata-se aqui de reconhecer que em
um lado existe um indivíduo ou casal com necessidades, desejos e uma bagagem
psicossocial adquirida ao longo de sua história, que demanda a adoção de uma criança;
por outro, há uma criança, que também apresenta suas necessidades, desejos e uma
bagagem adquirida em sua curta história de vida, que necessita, para o seu adequado
desenvolvimento como ser humano, de um ambiente de acolhimento no qual as funções
de sustentação, nutrição e cuidados bem como de discriminação, limites e demarcação da
lei, lhe sejam oferecidas de forma consciente e contínua.
Dessa forma, em uma primeira análise, a criança pode mesmo corresponder às
expectativas, desejos e necessidades do casal, mas o contrário pode não ser verdadeiro.
Ou seja, dada a existência de determinados indicadores, pode ser possível inferir-se que
provavelmente aquela família não conseguirá prover condições psicológicas, afetivas e
emocionais desejáveis para o atendimento de necessidades fundamentais da criança em
questão.
Nesse aspecto, um conflito de interesses ou de desejos se faz presente e como
todos sabemos, a primazia aqui é ou ao menos deveria ser da criança. Nesse aspecto,
uma eventual avaliação negativa das condições do casal ou indivíduo adotar naquele
momento, se por um lado, criam desconforto para o psicólogo por colocar-se no lugar do
objeto frustrador (paterno), já que via de regra seu desejo é o de ocupar o lugar materno,
de sustentação e nutrição e cuidados, por outro, tal posicionamento se faz necessário
para salvaguardar o desenvolvimento afetivo e emocional de um ser que já sofreu
rupturas, abandonos, rejeições, violências, indiferenças de várias ordens e que deve ser
poupado de novas experiências que indiquem alto risco de dificuldades.
O grande dilema que surge aqui é quando a possibilidade de adoção para a criança
em questão é já difícil e diminuta, seja pela idade, sejam pelas deficiências variadas, seja
pela raça e cor, etc., havendo probabilidade de crescimento em instituição até a sua
maioridade. Nesse aspecto, há que se ponderar, para aquela criança específica, os

31
diversos riscos implicados e a situação que lhe ofereça maiores oportunidades de
atendimento às suas necessidades específicas dada a sua história de vida.

Algumas motivações que fundamentam o desejo de adoção


Conscientes desse enquadramento que circunda a nossa avaliação, devemos
ainda identificar algumas questões importantes vislumbradas na situação de adoção, que
iniciam-se pela motivação do casal/ indivíduo para adotar e que devem ser consideradas
no processo de habilitação. Dados os limites dessa exposição, deteremo-nos em alguns
aspectos que consideramos importantes, procurando ilustrá-los com casos clínicos,
sabedores, entretanto, que há uma riqueza inumerável de questões que poderiam ser
abordadas.
Em primeiro lugar, a nosso ver, há que se ter em mente que tanto na família
biológica quanto adotiva, a convivência entre pais e filhos opera o estabelecimento e
consolidação de vínculos afetivos parentais com os filhos, sejam eles biológicos ou
adotivos e ausência de distinções entre eles. É o caso, por exemplo, de inúmeros pais
que tendo filhos biológicos e adotivos afirmam amá-los indistintamente, citando a origem
biológica ou não da criança como um fator secundário de menor importância.
Entretanto, a fundação e a constituição da família adotiva não é igual e da família
biológica. A negação desse fato é, a nosso ver, a negação de outras realidades dolorosas
ou de sofrimento que foram imputadas à família adotiva e à criança adotada e das quais
os seus membros gostariam de esquecer e que podem ser variáveis em sua forma e no
grau em que afetam os vários implicados.
Do lado da criança, podemos citar algumas questões tais como a ruptura ou
abandono ou rejeição que esta sofreu por parte de sua família biológica e como tal fato foi
por ela significado; o eventual desconhecimento e enigma de sua origem e genealogia
que aponta para uma lacuna existencial por vezes angustiante para ela; eventuais
temores e fantasias, muitas vezes inconscientes, de não pertinência ao grupo familiar
adotivo e de vir a sofrer discriminação ou novas rejeições, etc.
Quanto ao casal/ indivíduo que adota, há que se considerar o desejo que motiva a
adoção. Mas via de regra, a maioria das adoções legais que temos observado em nossa
comarca ainda se dá por impossibilidade de geração de filhos biológicos e, nesse caso,
tal decisão é posterior à decepção, frustração e tristeza de se deparar com a
incapacidade de gerar filhos próprios. Há aqui, um ferida narcísica decorrente dessa
impossibilidade de gerar uma descendência natural e de não concretizar a fantasia de se
perpetuar em sentido amplo e irrestrito na prole.

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Tais realidades implicam em dor, privação, sofrimento e de alguma forma devem
ser elaboradas para que possam ser assimiladas e integradas à história de vida e de
auto-conhecimento do indivíduo, proporcionando-lhe maior gama de riqueza de vivências
emocionais. Há um dito popular que afirma que só se cresce no sofrimento. A própria
psicodinâmica do indivíduo implica estágios sucessivos de ganhos e novas aquisições e
perdas e lutos, em períodos alternados de equilíbrios, transições, desequilíbrios. É assim
na infância com o desenvolvimento de autonomia da criança, na adolescência, quando há
a difícil luta de se superar a dependência infantil e entrar no mundo adulto, na escolha de
novos parceiros, em que se troca a liberdade de solteiro pelos compromissos com o outro
e assim em vários momentos e fases da vida.
No caso em questão, a realidade dolorosa deve ser aceita, integrada e superada
para que novas alternativas psicologicamente saudáveis possam se configurar. Se a dor
e as feridas narcísicas são negadas, reprimidas, na verdade continuam a ocupar seu
espaço inconsciente, espreitando derivativos para virem à tona, através de lapsos,
sintomas, sonhos, atuações, etc. e causando profundo mal-estar no indivíduo, quando
emergem, por lembrar-lhe, com pungência, a sua condição de mutilação ou deformação
narcísica.
As expressões dessas dificuldades, em nosso modo de ver, se expressam no
desejo de esconder a realidade da adoção, no fato do casal não se dispor a falar e
conversar entre eles sobre a esterilidade do outro que os afeta conjuntamente, de
encontrar dificuldades ou resistências para revelar à criança o segredo da adoção, de
negar-se a falar sobre a família biológica da criança, mesmo que disponham de tais
informações e que a criança/ adolescente os solicite, de negar a fazer qualquer referência
que lembre à criança que ela foi gerada por outros pais biológicos, etc. Demonstram
dessa forma, claramente, que a realidade da adoção lhes é desconfortável e
desqualificadora, de alguma forma, motivo pelo qual procuram escondê-la e negá-la.
Devemos estar atentos à esses sinais, pois a nosso ver, são indicativos de que há
que se fazer um trabalho de elaboração psicológica para que essa realidade seja melhor
assimilada e vivida pelo indivíduo ou casal.
Não nos esquecemos por certo, que há ainda aqui, os casos de casais ou
indivíduos que desejam adotar uma criança apesar de já terem seus filhos biológicos. A
nosso ver, o desejo de adoção inscreve-se aqui em outra ordem, diferente do anterior,
porém tal desejo também está inserido dentro do campo de necessidades narcísicas do
ego.

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Na leitura psicanalítica do narcisismo proposta por Bleichmar, o campo narcisista
se constitui num sistema de preferências ou menosprezo, no qual determinados atributos
são almejados pelo sujeito, na crença de que em sendo detentor de tais atributos, ele
ocupará o lugar de privilégio (falo) para o outro. Segundo este autor, como
desdobramento do desejo infantil através do qual a criança buscava encarnar o lugar de
objeto de desejo da mãe, o desejo narcisista tem como essência o “sentir-se único,
diferente, superior a todos os demais, recebendo um olhar que assim o ateste”
(Bleichmar, 1985).
Sem aprofundarmo-nos neste assunto, cabe apenas aqui situar o desejo de adoção
como uma representação valorativa inscrita como positiva no ideal de ego do sujeito e
cuja concretização lhe agrega valor e aumenta sua auto-estima. Cite-se aqui que
variadas imagens e crenças inconscientes ou mesmo conscientes, podem estar
subjacentes a tal desejo de adoção – mas há um denominador comum que é a idéia do
adotante de colocar-se no lugar de alguém que dá, que provê, que cuida, que nutre um
ser necessitado, carente, vulnerável e fragilizado. É essa idéia ou imagem, na qual a
existência de um outro viabilizada pela sua “bondade”, “amor”, “desprendimento” ou
qualquer outra qualidade que se queira utilizar (comum também em várias outras
atividades de cunho filantrópico), que é considerada como uma representação narcísica
positiva, que o sujeito busca concretizar para realizar seu desejo narcisista, sentindo-se
bem consigo mesmo e melhor pessoa humana.
Observamos, nesses casos, que de fato não há grande preocupação do casal em
adotar crianças recém-nascidas ou que guardem semelhanças físicas, de cor e traços,
como os adotantes, como já é uma demanda comum de muitos casais que tentam
reproduzir a família biológica. Não é o vínculo biológico ou a “aparência de família
biológica” o que importa nessa situação e sim, a possibilidade de nutrir, criar, amparar e
“dar vida” à outro ser humano carente. Vê-se aqui, que muitas vezes o fator que
sensibiliza o casal para a adoção é o sofrimento ou dificuldades impostas à criança,
parecendo que quanto mais sofredora é ou foi a criança, maior o mérito em adotá-la para
compensá-la ou livrá-la de infortúnios.
Outra motivação que pode ser detectada nos casos de adoção é a dos pais ou
indivíduo que mediante a existência de um “vazio”, de carências e frustrações, procuram
uma redenção, compensação ou superação através da adoção de uma criança. Esta
motivação não é exclusiva de famílias adotivas, já que ocorre também com freqüência em
famílias biológicas, mas em ambos os casos, família adotiva ou biológica, observa-se a
existência de uma configuração rígida ou filho idealizado, que deve ser portador de certos

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atributos e realizador de certas ações, de forma a tamponar carências e dissolver
frustrações de seus pais. Nesse caso, o filho aqui constitui-se como uma possessão
narcisista do ego (Bleichmar), no qual os atributos referidos a esse filho são somados
algebricamente ao ego dos pais e a valorização de um passa a ser a de outro.
Não se trata aqui de identificação, segundo esse autor, pois nessa última sempre
está implicada uma modificação do ego do sujeito, “uma adaptação baseada na
propriedade do objeto, um ser como o outro”. Na identificação, para incorporar a
valoração do objeto, o ego incorpora atributos desse objeto. Na possessão narcísica,
outro fato se dá, o ego incorpora a valoração do objeto por sentir que detém a “posse”
desse objeto – “meu” filho – e que esse tem valor em função de alguma capacidade ou
virtude de seu possuidor. “Com isso, o meu filho significa ‘o filho que por havê-lo criado é
minha possessão e, fala, por isso, de mim.’” (Bleichmar).
Essa situação impede que os pais consigam ver, compreender e respeitar a
existência de outro ser humano, que têm outras verdades, outros interesses e
necessidades, condenando-o à infeliz missão de ser o pagador de “dívidas”, realizador
dos desejos frustrados e preenchedor das faltas de seus pais, sem possibilidades de
reconhecer e perseguir a realização de seus próprios desejos.
No caso de adoção, essa dificuldade dos pais é ao nosso ver mais crítica, pois
muitas vezes a criança não tem escolha ou caminho menos árduo: ou está condenada a
ser alienada no desejo dos pais, desconhecendo-se e não vivendo a sua verdade e o seu
desejo ou se, ao contrário, tenta se rebelar e causar uma ruptura com os desejos
parentais, a fim de buscar seus próprios caminhos, corre grande risco de ser julgada e
condenada como ser “ingrato”, de “má-índole”, que degenerou aos seus, pois não
reconheceu os esforços e sacrifícios que os pais fizeram em seu benefício (como se isso
fosse uma barganha – “eu te adoto e te dou um lar e tu farás todas as minhas vontades e
me darás a tua alma”).
Nesse caso, as próprias dificuldades dos pais em compreender a situação de forma
mais realística, apercebendo-se da ilegitimidade de suas demandas, são aumentadas,
pois podem refugiar-se no álibi tentador de que o comportamento do filho é decorrente de
sua herança genética e que um filho natural não incorreria em tamanha ingratidão,
novamente fazendo uso aqui de idealizações indevidas.
Tais situações são mais facilmente percebidas durante a convivência da criança
com os pais e em muitos casos, são geradoras das dificuldades de adaptação entre os
membros da família, ocasionando mesmo “devoluções” da criança ao Juizado. No
processo de habilitação, poderemos ter indicações de tais dificuldades, quando

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percebemos que há impossibilidades do casal/ indivíduo de aventar várias alternativas de
comportamento para a criança, quando vislumbram perspectivas já solidamente traçadas,
sem consideração por acidentes e desvios de percurso, quando demonstram convicções
exageradas acerca de desdobramentos da relação pais-filho que a rigor, não autorizariam
tais crenças, etc.
De qualquer forma, a nosso ver, evidenciam imaturidade afetiva dos pais, já que a
criança é vista não como um ser diferenciado, independente, que deve ser nutrido e
sustentado de forma a desenvolver-se e andar sobre suas próprias pernas e realizar suas
potencialidades e desejos, e sim como um “objeto” que deve estar sempre a disposição
dos pais a tempo e hora, para satisfazer suas necessidades e carências infantis
egoísticas.
Ao examinarmos mais atentamente as motivações acima assinaladas, observamos
que se fundam em necessidades narcísicas, nos parecendo mesmo que todo o ato de
conceber, gerar e criar um filho está profundamente relacionado com a gratificação de tais
necessidades do indivíduo, que se mesclam e se concretizam de formas variadas. No
caso da adoção, como acima citado, entendemos que a primeira ordem de motivação
(quando o casal não pode e deseja ter filhos) decorre do desejo de curar uma ferida
narcísica, já que o sujeito, segundo sua crença, não conseguiu corresponder ao que dele
seria esperado por um “outro”, no terceiro caso, o desejo de adoção é amparado na
fantasia de atingir ou concretizar o ideal narcísico frustrado através da chegada de um
filho “salvador”, que fará o que os pais não fizeram e os elevará aos olhos do “outro”.
Obviamente apresentamos aqui algumas idéias de forma esquemática e
simplificada, entretanto o desejo humano é complexo e dinâmico. Às vezes mais de uma
motivação implicada, às vezes elas se modificam durante o processo de adoção, outras
situações são possíveis e não pretendemos esgotar aqui a questão, apenas
apresentamos tais idéias dessa forma para melhorar a compreensão do leitor, ressaltando
que não se pode perder de vista que o desejo humano é bem mais complexo do que o
aqui apresentado e perpassando por motivações conscientes e inconscientes de várias
origens e vertentes.
Para finalizar por hora a questão da motivação para adoção, devemos ressaltar
que quando se trata de um casal postulante à adoção, há que se ter em mente que
existem aí dois indivíduos e duas motivações em jogo. Nos processos de habilitação por
vezes observamos que os membros do casal apresentam-se em momentos diferenciados
de sua história e seus desejos, motivações e dificuldades quanto à adoção de uma
criança são díspares naquele dado momento. Inúmeros exemplos poderiam ser dados,

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mas citemos apenas um, que nos parece mais sério: é o caso em que um membro do
casal deseja muito adotar e o outro, condescende, mais intimamente não deseja efetuar a
adoção. Diante do par capitula e aprova, mas emite inúmeros sinais de que não está
comprometido com aquele projeto e às vezes até o teme e rejeita, entretanto, receia
frustrar o parceiro e incorrer em sua desaprovação, motivo pelo qual “finge” que deseja
adotar.
Tais situações temos visto inclusive quando um dos membros já tem filhos
biológicos de uma união anterior e une-se novamente a outro parceiro, que não podendo
ter filhos próprios, deseja adotar. A dificuldade maior nesse tipo de situação é que
implícita na demanda desse casal, há a fantasia de que o amor de um só membro seria
suficiente para proporcionar tudo o que a criança precisa. Por outro lado, a criação de um
filho coloca situações nas quais se faz absolutamente necessária a participação de ambos
os pares, sob pena do casal acarretar severos prejuízos para o favorável desenvolvimento
psicológico da criança e cair na armadilha de acusações e culpabilizações mútuas. Uma
situação é a criança ser adotada por um único membro, que buscará algum tipo de
arranjo para que a criança seja assistida pelas funções materna e paterna. A outra, bem
diferente, é a criança ser desejada por um dos pais e ignorada ou rejeitada por outro,
percebendo nitidamente essa situação.
Inúmeros outros aspectos poderiam ser aqui aventados e discutidos, entretanto,
por uma questão de tempo, limitaremo-nos aos acima enunciados. Passemos então a
ilustrar tais situações com alguns casos que tivemos a oportunidade de acompanhar em
processo de habilitação.

Casos de habilitação
CASO 1
A habilitação foi pleiteada por uma senhora de 48 anos, que chamaremos M,
solteira, formada em Direito, professora do município. Vivia sozinha em apartamento
próprio, sendo independente financeiramente e ocupando a função de professora de
crianças em idades escolar.
Na ocasião de seu pleito, encontrava-se em plena crise existencial e afetiva,
deflagrada por um caso amoroso há muitos anos com um homem casado, que apesar da
vida notória e de conhecimento das famílias de ambos (segundo ela), nunca se dispusera
a deixar a esposa para se unir a ela.
Naquela ocasião, algum evento precipitador propiciou uma reflexão acerca de sua
vida, chegando a penosa constatação de que estava com quase 50 anos e dois grandes

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projetos de sua vida não tinham ainda se concretizado; o de construir uma família com um
companheiro e o ter filhos, alimentando grande rancor contra o amante a quem parecia
atribuir a culpa por seus projetos fracassados.
Segundo declarou, apesar de não ter sido identificado nenhum problema orgânico
que a impedisse de gerar filhos, não tinha até aquela data conseguido engravidar,
acreditando tratar-se de algum desígnio do destino de Deus.
Dera um ultimato ao amante, advertindo-o que iria adotar uma criança e que queria
que ele a acompanha-se nessa empreitada, adotando a criança conjuntamente com ela.
Não precisavam morar juntos, mas se ele realmente a amasse, haveria de ajudá-la a
concretizar esse grande sonho que acalentava já há longa data.
Nas entrevistas de habilitação, declarou desejar um menino recém-nascido e
gostaria de recebê-lo no quarto de hospital, ela de camisola e lembrancinhas para os
visitantes, como se tivesse acabado de parí-lo.
Diante da expectativa de que o seu parceiro viesse para as entrevistar, solicitou à
assistente social que gravasse sua entrevista para que ela se assegurasse de que ele não
a enganava quanto à sua pretensão de adotar uma criança.
Afirmara que quando tivesse o seu bebê ele seria tudo para ela e ela se dedicaria
integralmente a amá-lo e assisti-lo em todas as suas necessidades.
Após a série de entrevistas com M, esta ficou de trazer seu parceiro para realizar
uma entrevista e desapareceu por cerca de três meses, retornando para saber quando
poderia receber o seu bebê.
Foi marcada entrevista de devolução, na qual procuramos refletir com ela a crise
que se abatera em sua vida e o uso que fazia da criança para resolver sua crise amorosa,
funcionando esta como uma isca para comprometer o seu parceiro, bem como o lugar
que atribuía à criança como objeto de desejo que satisfaria todas as suas carências e
necessidades. Tal entrevista, como em qualquer devolução, foi feita com cuidado,
procurando-se conscientizá-la das dificuldades mais expressivas que não recomendavam
a adoção naquele momento.
M sentiu-se atacada, demonstrando indisponibilidade para defrontar-se com
questões tão cruciais para ela. Preferiu atacar o Judiciário, afirmando ser pessoa idônea
e íntegra e não entendia como se lhe negava a habilitação quando existiam milhares de
crianças abandonadas pela ruas.
Conversamos demoradamente com ela, informando-lhe que poderia renovar seu
pleito ao final do ano, devendo nessa ocasião passar por outras entrevistas para melhor
compreensão de sua situação de vida. Não mais retornou.

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CASO 2
A habilitação foi pleiteada por um jovem casal, a quem chamaremos. Ada e Mauro,
ela de 30 anos e ele, 32 anos. Ambos já tinham um filho natural, na época com 4 anos e
não existia nenhum impedimento para que tivessem outros filhos biológicos.
Ada era veterinária e trabalhava como sócia em clínica própria e Mauro era
microempresário, administrando negócio próprio, herdado de sua família, no ramo de
confecções têxteis. Sua situação financeira era estável, possuidores de casa própria e
envolvidos ambos com sua profissão. A criança contava com a assistência de uma babá
quando a mãe não estava em casa.
De acordo com Ada, sempre alimentava o desejo de dedicar-se a um outro ser
carente, procurando compartilhar com alguém que precisava um pouco daquilo que
acreditava possuir. A idéia de filiar-se a algum movimento filantrópico não a animava, pois
sua contribuição seria distante e anônima. Queria envolver-se profundamente com o
outro, através da adoção de uma criança. Este era um projeto antigo, que originava-se em
sua adolescência.
O casal desejava ainda ter mais um filho biológico e na ocasião não utilizava
nenhum método contraceptivo. Mas além disso, queria adotar a criança de cerca de dois
anos.
Ada declarou ter tido muitas dificuldades para assumir a maternidade de seu
primeiro filho, pois na época estava muito envolvida com investimentos profissionais e a
maternidade a sugava e a exauria, num momento em que estava profundamente
envolvida com outros projetos de vida. A situação de ter uma criança absolutamente
dependente dela para tudo não lhe foi muito positiva, estressando-se muito com tal
situação. Na verdade, a situação melhorou muito depois que o filho fez dois anos e entrou
em um novo patamar de autonomia e independência.
Neste caso específico, apesar das evidentes dificuldades que Ada tivera para
desempenhar sua função materna no início da vida de seu filho, negava tais dificuldades,
buscando aumentar sua família, com a presença de dois novos filhos, um adotivo e outro
biológico, que inclusive poderiam chegar simultaneamente, já que pleiteava a adoção e
não evitava filhos, podendo vir a engravidar a qualquer momento. Tal situação era digna
de nota, pois apesar de suas acentuadas dificuldades em lidar com a dependência infantil
de seu primeiro filho, dispunha-se repentinamente a ter de lidar com a situação de
dependência de três filhos, o de quatro anos, um filho adotivo de dois anos e um recém-
nascido, situação exaustiva física e emocionalmente para qualquer pessoa.

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Mauro, por sua vez, apesar de corroborar verbalmente o desejo da esposa de
adoção, demonstrava de inúmeras maneiras seu receio com a situação de adotar uma
criança, referindo-se diversas vezes ao assunto como a um “problema”. Tanto, que
pensava em colocar o filho biológico em psicoterapia para prepará-lo adequadamente
para o “problema” que enfrentaria quando surgisse um “intruso” que invadiria sua vida e
desorganizaria sua rotina, seus pertences, sua vida familiar. Na verdade, tal situação nos
parecia uma projeção dos sentimentos do adotante em relação a presença de um filho
adotivo.
A avaliação do caso nos fez considerar que haviam questões importantes
envolvidas no projeto do casal que não estavam suficientemente claras ou amadurecidas
entre eles. O projeto de adoção de Ada, parecia a realização de um desejo idealizado,
que gratificava necessidades narcísicas de sua mentora, ao entender provavelmente
valores de seu ideal de ego, delineados em etapa muito anterior de sua vida, mas que no
momento não estavam bem sintonizadas com as condições reais de vida daquele núcleo
familiar, mostrando-se francamente ameaçadores para seu companheiro.
O diálogo entre o casal, no que concernia a esta questão, não estava
suficientemente aprofundado, haja visto o projeto da esposa se mostrar francamente
ameaçador para o marido, sem que ela tivesse consciência disso e sem que ele, apesar
do evidente desconforto e ansiedade que o assunto lhe causava, se sentisse confortável
para conversar e ponderar sobre seus temores e necessidades junto à ela.
Nesta caso específico, acreditamos que uma maior amadurecimento dessas
questões se faziam necessários, recomendando que o casal aprofundasse seu diálogo
para melhor conhecimento de suas necessidades e temores recíprocos.

CASO 3
A habilitação foi pleiteada por um jovem de 30 anos, que chamaremos Ney,
cabeleireiro, que vivia maritalmente com um namorado mais jovem, de 22 anos, em uma
opção de relacionamento homossexual. O casal vivia na mesma residência que a mãe de
Ney, senhora idosa de cerca de 70 anos, pensionista de seu viúvo.
Ney foi o único filho sobrevivente de seis gestações de sua mãe, que perdeu todos
os filhos em abortos espontâneos. Ao nascer, foi cercado de cuidados pela mãe, haja
vista ser o único filho “a vingar”, muito querido e desejado.
Seus pais eram oriundos do campo e sua união conjugal não era feliz. O pai era
alcoólatra e impôs uma série de problemas e transtornos à mulher e ao filho com suas
bebedeiras. Ney dizia envergonhar-se do pai que tinha.

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Cedo iniciaram-se as experiências homossexuais, quando Ney ainda era criança,
aliciado por jovens adolescentes que o chatageavam com agrados e pequenos subornos,
para que permitisse a realização de jogos sexuais. Ao que parece, Ney já era portador de
trejeitos e gestos efeminados em função da identificação com a figura feminina.
Ao longo de sua adolescência e juventude, por um lado vivenciou uma série de
experiências e relacionamentos de caráter homossexual e jamais se interessou ou se
atraiu por uma mulher, sendo o homem claramente o seu objeto de desejo sexual e
afetivo. Esta disposição era tão clara que negá-la a si mesmo e aos outros parecia inútil e
despropositado.
Concluiu o segundo grau e trabalhou por dez anos como enfermeiro, atendendo a
diversos tipos de pacientes, do doente mental ao paciente terminal, politraumatizado,
adultos, idosos e crianças. Tais experiências lhe angariaram amplo espectro de vivências
com a fragilidade e o sofrimento do ser humano, demonstrando imensa sensibilidade e
disponibilidade para atender e cuidar do outro.
Nessa ocasião, conheceu uma criança com distúrbios neurológicos, deficiente
física, que fora abandonada no hospital e iniciou um relacionamento mais estreito,
levando-a para casa aos finais de semana. Os dois acabaram por estabelecer um vínculo
afetivo intenso, ao que parece, mas ao pleitear a guarda da criança do Juizado, esta foi
negada, a seu ver por preconceito e discriminação. Tal experiência foi considerada
traumática por Ney, que nunca mais viu a criança, ao que ele saiba internada em uma
clínica de pacientes neurológicos.
As dificuldades da profissão, não só financeiras como emocionais e o desgaste a
que se via submetido, levou Ney a dar uma guinada em sua vida, procurando novas
alternativas de trabalho e de sustento.
Interessou-se pela profissão de cabeleireiro, dedicando-se a investir em cursos e
aprendizado enquanto conciliava com o trabalho de enfermeiro particular, em uma fase de
transição. Posteriormente, passou a dedicar-se apenas a atividade de cabeleireiro,
profissão que exerce na presente data.
Mostra-se muito consciente de suas opções, de suas escolhas e do preço social
que paga por isso. Na atualidade vive um relacionamento afetivo estável e preocupa-se
de forma significativa com as repercussões que suas escolhas possam ter nas pessoas
que o redeiam. É discreto e procura preservar sua intimidade.
Seu companheiro é jovem, bissexual e Ney está consciente que este pode buscar
outras opções no dia de amanhã procurando viver intensamente os momentos positivos
que a relação lhe proporciona na atualidade.

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A adoção, ou seja, ter uma filha é um projeto e um sonho intensamente desejado,
entretanto contido e reprimido pelo preconceito e discriminação que já sofreu e sofre da
sociedade. Sua mãe é idosa e não têm irmãos, nem familiares próximos. Deseja uma
criança de cerca de 5 a 6 anos, que já tenha adquirido um relativo grau de independência,
autonomia e individuação, suas condições de vida, outro aspecto que se faz fundamental
é a atenção aos reflexos que a opção sexual do candidato podem ter sobre a criança, já
que como filha, estará identificada e associada com a figura de seu pai, sofrendo as
implicações e conseqüências de suas opções conjuntamente com ele.
No presente caso, julgamos ser importante atentar para o fato de que o candidato
teve oportunidades de vivenciar experiências, ponderá-las e confrontá-las com seu
desejo, fazendo suas escolhas. Se por um lado, estas lhes proporcionaram gratificação
para esferas importantes de sua vida, por outro, lhe impuseram retaliações sociais sob a
forma de discriminação, desaprovação e rejeição social. Ele é consciente do que quer e
do preço que paga para sustentar o seu desejo no meio social e cultural em que vive.
Entendemos que adoção necessariamente implica a adesão de uma criança a essa
forma e opção de vida, a de seu pai adotivo, e a imputação das conseqüências que
derivam dessa opção para a criança, sofrendo ela por tabela, talvez de forma mais
amena, as discriminações dirigidas a seu pai adotivo.
Nesse caso, mais complexo é o fato de que a criança por ele almejada já e
detentora de conceitos morais, advindos do meio social em que esteve inserida, que
chocam-se e confrontam-se com os conceitos escolhidos e vividos por seu pai,
observando-se dessa forma, contradições e conflitos bastante disruptivos no sistema de
valores e crenças da criança, já que nessa idade ela ainda não consegue relativizar seus
conceitos morais com flexibilidade.
No caso em questão, apesar de consideramos que o candidato reúne, em nosso
ponto de vista, condições favoráveis para exercer sua função parental, entendemos que
especialmente nesse caso, a habilitação deve ser feita considerando-se conjuntamente a
relação da criança com esse candidato e a sua inserção nesse meio familiar.
No presente momento, a criança encontra-se sob a guarda provisória do candidato
e estamos acompanhando o seu processo de inserção e adaptação nesse núcleo familiar,
bem como sua vinculação afetiva com o candidato em questão.

42
Adoção
Mônicca de Carvalho Moreira

Tomando-se a adoção enquanto a assunção de uma criança como filha, sabe-se


que não há um instinto - sequer o tão falado instinto materno - que faça brotar um
sentimento de amor materno/paterno5.
Os vínculos de filiação não são dados, não se trata de um automatismo. Muito ao
contrário, mesmo os filhos biológicos precisam ser adotados pelos genitores. Adotados
enquanto desejados, pois é inerente ao desejo a assunção da responsabilidade por uma
escolha em detrimento de outras. Nesse sentido, todas as mães e todos os pais são
adotivos. Só por essa via é possível ocupar esses lugares.
A adoção guarda traços específicos em relação à filiação biológica: os filhos
adotados têm outros pais, melhor dizendo, genitores, que por algum motivo não adotaram
sua prole. Outro traço freqüente na adoção é a infertilidade dos pais adotivos, aspecto já
apontado por Marta, razão pela qual a grande maioria dos pretendentes à adoção chega
ao Juizado.
A adoção é um processo que envolve vários profissionais e confronta cada um
deles com as questões da filiação, que são apreendidas de forma particular, segundo seu
discurso de referência6. No entanto7, há um mal-estar que atravessa todos esses
profissionais que atuam no Poder Judiciário ao serem convocados a partir do lugar de
“representantes da Lei”. Diante dos efeitos do declínio da função paterna, percebe-se que
a Justiça é convocada a restaurar a família, a “tirar o pai da forca”. Essa é a demanda
dirigida a nós do Judiciário.
Na fala de Laurent:

“É necessário apreciar a função do pai na atualidade. No exercício atual se


constata que a certeza de saber o que é um pai, se evapora. Cabe explicar,
multiplicar as explicações jurídicas sobre a posição do pai; podemos dizer que

5
Sobre a maternidade enquanto uma construção, analisada sob uma perspectiva histórica, ver BADINTER, E. Um amor
conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
6
Rego Barros, Maria do Rosário Collier. Adoção e Transmissão. IN: 1º Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Gráfica do TJERJ. Rio de Janeiro, 2001, pp. 83-94.
7
As considerações que se seguem baseiam-se parcialmente no trabalho apresentado no 1º Colóquio do CIEN, em maio
de 2001: BLORIS, Daniele e MOREIRA, Mônicca de C. Dos impasses da filiação pela via da adoção: a “devolução” e
os caminhos do desejo na trama institucional. IN: CIEN: Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança
(organização Ana Lydia Santiago e Angelina Harari). Belo Horizonte: Editoração Eletrônica: Fernando Antônio Soares,
p. 24-8.

43
o pai moderno não é o pai ausente, humilhado, ele pode ser tudo isto, mas o
principal é que se trata de um pai juridificado”.8

O que vou apresentar aqui é o resultado do trabalho de reflexão empreendido em


conjunto com outros psicólogos e profissionais de outras disciplinas9, levados a dar conta
do mal-estar e dos impasses atravessados, no meu caso, atuando como psicóloga da 1ª
Vara da Infância e Juventude da Capital, onde grande parte dos processos refere-se à
adoção.
Escolhi falar dos impasses colocados em nossa prática em casos de adoção onde
houve dificuldades no momento anterior à colocação em família substituta ou durante o
estágio de convivência e, conseqüentemente, a adoção foi colocada em questão. Na
verdade, foram escolhidas situações em que a dificuldade estava referida, principalmente,
à desconsideração do desejo da criança em sua singularidade.
Há o modelo jurídico e há o caso a caso, situações tomadas uma a uma. Estas
recolocam a discussão sobre o espírito das leis, sendo contingentes, exigem
interpretação. Sobretudo, “introduzem o enigma ali onde o ‘para todos’, o geral, leva a
uma massificação, a uma injunção. Assim, frente à imposição moderna de tudo saber, o
caso em sua particularidade oferece a resistência de um limite no qual o inconsciente
pode se alojar”.10
Muitas das vezes, ao falarmos de forma descuidada a partir de uma generalização,
somos surpreendidos pela reação de um sujeito que afirma a sua singularidade.
Um menino de nove anos, abrigado quando bebê, ao ouvir de uma psicóloga que
estava sendo adotado porque não tinha nem pai nem mãe, respondeu: “Quem disse que
eu não tenho pai nem mãe, eu não vim do nada, não!”.
O recorte escolhido para esta apresentação corresponde à adoção de crianças
maiores de dois anos. Nesses casos, a fala da criança intensifica os impasses colocados
pela adoção como via de filiação
Freqüentemente, a família de origem costuma ser depositária de comentários
depreciativos e acusatórios por parte dos adotantes. Em contraposição, eles se colocam
como os salvadores da criança, como a oportunidade da família estruturada e ideal.
Paralelamente, há um apelo de que a criança apague, em lugar de elaborar, o seu triste

8
LAURENT, Eric. Entrevista. IN: A criança no adulto. Revista Carrossel. Ano III, nºs 3 e 4. Centro de Estudos e
Pesquisa de Psicanálise e Criança. Escola Brasileira de Psicanálise-BA. Novembro de 1999. Pág. 11-5.
9
Um espaço privilegiado de interlocução tem sido o do Laboratório de Investigação sobre Adoção do CIEN (Centro
Interdisciplinar de Estudos sobre a Infância), que iniciou suas atividades em maio de 1999.
10
DHERET, Jacqueline. Les surprises du CIEN dans les économies de l’enfant. IN: 1 er Colloque du CIEN. Institut du
Champ Freudien. Paris, 1999. (tradução de Elisa Monteiro). Pág. 43-53.

44
passado e faça uma escolha impossível. Escolher entre o passado e o presente.
Sabemos que o luto não se dá pelo esquecimento, ele exige que algo seja dito sobre a
dor da perda. Na verdade, percebemos que é imprescindível que a criança tenha
disponibilidade e desejo de adotar esses pais que se colocam como uma possibilidade.
Sobre a importância dessa disponibilidade nos fala Rego Barros:

“Este processo pode ser facilitado quando a criança pode separar-se dos pais
que a deixaram, antes, durante ou mesmo depois de ter sido adotada. Isto
porque quando ela não consegue se separar do lugar em que ficou fixada, na
história anterior, tem grande chance de se instalar na nova família na mesma
posição e não conseguir entrar em contato com o desejo que a acolhe para
assim poder encontrar um outro lugar na existência. Ficar fixado na posição de
abandonado quer dizer não ter podido interpretar como falta o desejo daquele
que teria lhe abandonado...O que acontece em muitos casos é que o sujeito
fica aderido a este significante “abandonado”, do qual obtém uma satisfação
que não troca por nenhuma adoção. Pode-se também ficar fixado na posição
de “criança mal tratada”....Todos esses tipos de fixação, de aderência,
dificultam a separação e, em conseqüência, o processo de adoção, que requer
consentir com uma nova posição, frente a um novo desejo. É um alerta para os
profissionais que trabalham com adoção, não contribuir, nem incentivar esta
posição de “abandonado”, para dar chance ao sujeito de produzir suas próprias
interpretações e encontrar suas próprias saídas, podendo optar por acolher o
que lhe é oferecido e assim consentir em ser adotado ou preferir manter seu
nome e suas referências de origem sem ser obrigado a ficar aprisionado a um
destino funesto”.

Nessa vertente, temos observado que na maioria dos casos em que há um


impasse em torno de uma adoção, esse trabalho da criança, que abriria a possibilidade de
uma escolha, não foi realizado.
Muitas vezes a intervenção a partir da escuta da criança e dos requerentes,
possibilita a retomada do projeto de adoção. Em outros casos, o desfecho pode ser a
desistência da adoção e o reconhecimento de que houve um equívoco.
Vamos nos deter em dois casos em que a adoção foi colocada em questão, onde
foi necessário um trabalho de escuta junto aos envolvidos.

45
CASO 1
Trata-se de um menino que colocou que precisava de mais tempo para considerar
a possibilidade de ser adotado. Na ocasião, ele tinha seis anos de idade. A mãe o havia
abandonado quando bebê, deixando-o aos cuidados do pai. Ele esteve sob a guarda
paterna até dois anos atrás, quando foi abrigado, por uma suspeita de abusos físicos. O
pai morreu meses depois, situação que colocou a criança disponível juridicamente para a
adoção.
Esse menino, que chamaremos de Pedro começou a ser atendido em abril de
2001, ocasião em que estava abrigado em um CIEP-Residência, sendo visitado por
Joana, mulher de 39 anos, habilitada para adoção na Comarca da Capital e manifestava a
intenção de vir a adotá-lo.
O atendimento deu-se a partir de uma demanda da assistente social responsável
pelo caso, que observou indícios na criança de uma ambivalência quanto o desejo de ser
adotado por Joana.
A fala mais significativa do menino, que veio a corroborar a dúvida dos
profissionais envolvidos, deu-se no momento em que foi apresentada à criança a
possibilidade de iniciar o estágio de convivência com Joana. Na ocasião, ao ser
perguntado se desejava tomá-la como mãe, indo para a sua casa, respondeu: “ainda não;
eu quero, mas só na primavera”.
Essa fala da criança foi tomada como demanda de um trabalho anterior à
colocação em família substituta, visando não só avaliar o desejo de Pedro em tomar essa
mulher como mãe, como ajudá-lo a construir um espaço interno para a assunção de
novas figuras parentais.
Assim, desde abril de 2001, estou atendendo Pedro e a família substituta (Joana e
sua mãe de 60 anos). Podemos classificar esse atendimento em três etapas:
atendimento pré-colocação na família substituta, atendimento durante o estágio de
convivência e atendimento pós-adoção formal.

Atendimento pré-colocação na família substituta


Na primeira etapa do atendimento, o trabalho com a criança esteve centrado na
elaboração interna do luto pelo genitor, falecido no final de 2000.
Pedro colocava fantasias que atualizavam os conflitos vivenciados entre seus
genitores, onde a requerente, assumindo o lugar de mãe através da adoção, matava o
seu pai por envenenamento.

46
Nesse período suas brincadeiras recorrentes, encenavam uma situação em que o
pai de um boneco o proibia de visitar a casa de duas mulheres de sua família. Explicava
que a proibição do pai decorria do medo de ser abandonado pelo filho.
Num momento posterior, a brincadeira reproduzia a situação em que o menino
fugia da casa do pai e ficava na casa das mulheres até ser recapturado pelo genitor.
A criança sempre iniciava e terminava o atendimento arrumando a sala,
modificando o lugar dos objetos. Dizia que queria arrumar “do jeito dele”.
Nessa etapa, Pedro passava os finais de semana com a família substituta e,
quando fazia referência a sua mudança para a casa da requerente, a quem chamava de
mãe, reafirmava que ainda não era o momento, repetindo a frase “só no inverno, na
primavera, no verão, etc”.
Nas entrevistas, Joana mostrou-se sensível à necessidade de respeitar o tempo
demandado por Pedro e demonstrou seu investimento afetivo na criança e o desejo em
assumi-lo no lugar de filho.
O momento sugerido para o início do estágio de convivência, deu-se a partir de
brincadeiras em que o menino passou a arrumar a casa de brinquedos em que um bebê
morava com a mãe, encenando situações cotidianas entre mãe e filho. Numa ocasião,
Pedro disse que havia chegado a hora de mudar-se para a casa da mãe.

Atendimento durante o estágio de convivência


Esse trabalho objetivou auxiliar a criança e a família substituta nos impasses
colocados pelo estabelecimento dos laços de filiação.
Nessa etapa, Pedro falava mais sobre o seu relacionamento pretérito com os
genitores, parecendo já ser capaz de tomar paralelamente os dois ramos de filiação
(biológica e adotiva), sem a marca da rivalidade que lhe exigia uma escolha impossível:
apagar o lugar dos genitores como condição para o estabelecimento de novos laços de
filiação.
Observamos que as dificuldades enfrentadas no relacionamento entre Pedro e a
família substituta, como por exemplo, uma certa relutância da criança em aceitar os
limites e momentos de insegurança de Joana em que ela sente-se rejeitada como mãe, já
estavam codificadas dentro de um contexto familiar.
Ou seja, percebemos que houve uma consolidação dos laços de filiação entre
Pedro e Joana, de forma que os impasses vividos já se constituíam como próprios a uma
relação mãe e filho.

47
Atendimento pós-adoção
Desde a formalização da adoção, o atendimento tem sido mais centrado na mãe, a
partir das dificuldades enfrentadas em posicionar-se nesse lugar, especialmente, no que
se refere aos atravessamentos colocados pela rivalidade mãe-filha. Essa rivalidade
passou a se atualizar na disputa pelo lugar de mãe da criança. Joana ora vê-se como
uma estranha para o menino, ora como o “pai”, fazendo par com a mãe, percepção que
gera profunda angústia.
Mais recentemente, Pedro lhe pediu para visitar o túmulo do pai.

CASO 2
Uma mulher solteira, a quem chamaremos de Leila, foi habilitada para a adoção na
1ª VIJ. Após duas visitas a uma menina de três anos, Maria, ela pleiteou sua adoção.
Decorridos cinco meses de convivência, ela retornou ao Juizado com o fim de “devolvê-
la”.
Na ocasião, a adotante justificou sua intenção de “devolver”, colocando que a
menina “tinha acessos de raiva, era intratável, arisca ao contato físico, já fora expulsa de
três escolas e recusava-se a conversar sobre como foi o dia”.
Como é o procedimento habitual, ela foi encaminhada para a Divisão de Psicologia
do Juízo, onde passou a ser atendida pela profissional que havia realizado o trabalho
durante a Habilitação para Adoção.
Inicialmente, percebendo que apesar das dificuldades enfrentadas pela adotante,
havia vínculos entre ela e Maria, tentamos realizar um trabalho que a levasse a atravessar
essas dificuldades.
Nossa percepção inicial foi de que Leila estava responsabilizando quase que
exclusivamente a criança pelos problemas no relacionamento. Assim, nossa intervenção
foi no sentido da adotante se implicar nas dificuldades, assumindo a sua responsabilidade
na situação, como única possibilidade de transformação do quadro.
Na primeira entrevista, a adotante colocou que havia “mudado de idéia” e pretendia
“lutar para adotar Maria”. Justificou essa nova atitude pelo fato da menina ter “mudado da
água pro vinho”, tornando-se doce e amorosa.
A “mudança de Maria” teria se dado a partir de uma conversa que teve com ela na
ocasião em que pretendia “devolvê-la”. Na sua fala, “eu estava tão desnorteada, que
esqueci que ela era uma criança e falei tudo que estava sentindo; porque estava
desistindo dela; abri meu coração; nem sei se ela tinha condições de entender o que eu
estava falando, mas alguma coisa mudou nela a partir daí, ela ficou um doce”.

48
Na interpretação da adotante, o novo comportamento da menina permitiu uma
aproximação entre elas, de forma a estabelecer-se uma relação mãe/filha. Disse: “eu
nunca mais pensaria em desistir dela, porque a gente devolve uma criança, mas não
devolve um filho”.
Sobre seu ato de desistência, colocou que estava “desesperada com o
comportamento de Maria”, pois a criança era agressiva e não se adaptava a nenhum dos
colégios onde a matriculou. Segundo ela, a “gota d’água” foi o dia em que “perdeu a
cabeça” e agrediu a criança. Disse ter ficado chocada com “a covardia dessa atitude” e
tomou a iniciativa de “devolvê-la”. Perceber-se “um monstro”, teria sido o seu limite.
Na escuta da criança, percebemos um crescente estado de angústia.
Especialmente nas entrevistas conjuntas, ela mostrava-se arredia, amedrontada e
costumava se isolar num estado de mutismo. Isso se constituiu como o limite desse
atendimento, que visava o atravessamento das dificuldades e uma aposta na adoção.
Com esse limite, sugerimos que a criança retornasse ao abrigo. Nesse momento
assim como durante todo o atendimento, esta escolha exigiu um deslocamento da
culpabilização à responsabilidade. Na ocasião, a requerente nos falou: “como você que
me habilitou, agora vem dizer que eu não posso ser mãe?”. Esse tipo de pergunta coloca
ao técnico a armadilha de tomar-se como o “selecionador fracassado”.
Após o abrigamento, continuamos a atender a menina Maria com o objetivo de
ajudá-la a elaborar a tentativa de adoção fracassada. A maior dificuldade da criança foi
recuperar-se dos efeitos da atitude ambivalente e caprichosa da adotante, vividos como
uma constante ameaça de “devolução”. Tal comportamento foi tomado como uma
repetição da relação estabelecida com outras figuras femininas, particularmente com sua
genitora, onde também era colocada como objeto de um capricho.
Esse atendimento resultou na possibilidade da criança colocar-se disponível para
reinvestir em uma nova adoção, a qual veio a se concretizar no tempo de Maria.

49
Laboratório Temático
Violência Doméstica

50
PSICOLOGIA JURÍDICA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES11
ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA12
NAURA DOS SANTOS AMERICANO13
1.INTRODUÇÃO:
Nas intervenções da Psicologia no âmbito do Judiciário, cada vez mais se faz
presente a temática da violência doméstica perpetrada contra crianças e adolescentes.
Neste contexto, aos profissionais diretamente vinculados aos Tribunais de Justiça
têm chegado ampla demanda no sentido de avaliação e pronunciamento técnico acerca
das alegações de atos violentos praticados por familiares, em sua maioria os próprios
genitores das crianças e adolescentes envolvidos nos litígios. Esta demanda, segundo
nossas experiências, fazem-se ainda mais presentes nas Varas de Família e Varas da
Infância e Juventude.
Apesar de a demanda dos operadores do direito, via de regra, estar concentrada
na expectativa de uma intervenção pericial – que entendemos também legítima no âmbito
de que se trata –, consideramos o processo de avaliação das alegações supracitadas
como um momento que traz em si especiais possibilidades de "ajuda" às famílias que são
atendidas. Este tipo de intervenção – para além da demanda explícita dos tribunais –
pode dar-se em termos de sua releitura – por parte do profissional de psicologia – e
conseqüente re-significação junto às famílias, favorecendo sua percepção dos conflitos
motivadores do litígio o que, em alguns casos, pode redundar na retomada para si da
responsabilidade de gestão, encaminhamento e tentativas de solução de seus próprios
conflitos. As diversas propostas de acordos que surgem no decorrer de processos de
avaliação, por iniciativa dos próprios envolvidos, são expressões concretas deste tipo de
resultado da intervenção não meramente orientada para a perícia.
Neste artigo, à luz de nossas experiências e reflexões nos âmbitos de atendimento,
supervisão, pesquisa e/ou ensino acerca do fenômeno da violência doméstica contra
crianças e adolescentes, procuramos levantar questões – mais que respondê-las
cabalmente – relevantes para a atuação do psicólogo nesta área em que, como diz
Furniss, "estamos em um estágio no qual meio cegos falam para cegos".

1.DEFINIÇÕES DOS TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:

11
Texto elaborado com base no laboratório temático "Violência Doméstica".
12
Psicólogo, Mestre em Psicologia (PUC-Rio), Coordenador Executivo da ONG NOVA Pesquisa e Assessoria em
Educação e Professor do Curso de Pós-Graduação lato sensu “Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de
Violência Doméstica” (PUC-Rio).
13
Psicóloga em exercício na Vara de Família de Madureira, Pós-Graduada em Psicologia Jurídica (UERJ) e em
formação psicanalítica pelo Grupo de Estudos Psicanalíticos Rio3.

51
A questão das definições de violência doméstica contra crianças e adolescentes é
um assunto bastante controverso.
Em se tratando de um fenômeno extremamente complexo e multifacetado, permite
a colocação de ênfases maiores ou menores em aspectos diversos, de acordo com
autores e profissionais que objetivam defini-lo.
De qualquer forma, cabe registrar que sempre se estará operando com algum nível
de definição – mais ou menos formal ou precisa –, aqui entendendo definição como os
parâmetros que norteiam a compreensão e/ou intervenção diante do fenômeno.
Como toda definição consiste na "construção" de um objeto de estudo ou
intervenção, consideramos realmente tarefa inglória e pouco produtiva pretender chegar-
se a uma definição única e universal para utilização das diversas áreas do conhecimento
e das variadas profissões. Antes disto, insistimos na necessidade de explicitação, por
cada autor ou profissional, das referências utilizadas para a própria abordagem das
questões aí envolvidas.
Assim, as definições que se seguem consistem nas referências que utilizamos na
tentativa de compreensão do fenômeno e que, portanto, balizam nossas intervenções
profissionais e as reflexões que ora nos propomos a compartilhar.
Inicialmente, consideramos importante registrar que, a nosso ver, todas as formas
de violência praticadas contra crianças e adolescentes no âmbito familiar ou doméstico
assentam-se sobre relações de poder desiguais, com imposição do desejo e/ou das
necessidades do/a mais forte sobre o/a outro/a. Pressupõem, ainda, certa inadequação –
de variadas formas e em maior ou menor grau – da pessoa que ocupa esta posição
privilegiada de ascendência sobre crianças e adolescentes. A partir destas premissas,
operamos com as definições que seguem.

 ABUSO FÍSICO:
“Uso – por parte de pais, responsáveis, familiares e/ou cuidadores – da força física
com o objetivo de punir, ferir, causar danos ou destruir criança ou adolescente, deixando
ou não marcas evidentes em seu corpo.”
 ABUSO PSICOLÓGICO:
“Atitudes ou omissões – por parte de pais, responsáveis, familiares e/ou cuidadores
– que dificultam, comprometem ou impedem o desenvolvimento psicossocial sadio de
crianças e adolescentes, concorrendo para a construção de auto-imagem negativa e
baixa auto-estima e, em casos extremos, para a instalação de patologias psíquicas.”

52
 ABUSO SEXUAL:
“Utilização – por parte de pais, responsáveis, familiares e/ou cuidadores – de
criança ou adolescente para sua gratificação sexual, através de atos os mais diversos.”
 NEGLIGÊNCIA:
“Deixarem os pais ou responsáveis, em dispondo de todas as condições para fazê-
lo, de prover os meios, recursos e cuidados necessários ao pleno e sadio
desenvolvimento físico e mental de crianças ou adolescentes sob sua guarda e/ou
responsabilidade. O abandono pode ser considerado uma forma extrema de negligência.”
1. PRINCIPAIS DEMANDAS:
Nesta seção pretendemos elencar e discutir algumas das demandas que, segundo
nossa experiência, costumam ser mais freqüentes no âmbito do Poder Judiciário, mais
propriamente no das Varas de Infância e Juventude e Varas de Família. Cabe ressaltar
que este "levantamento" consistiu em processo empírico, no qual juntamos às nossas
próprias percepções as de alguns profissionais que também atuam, em algum nível, com
estas demandas. Portanto, não se trata de uma abordagem que se pretenda
representativa do universo da Justiça da Infância e da Juventude e de Família.
A metodologia aqui adotada consiste na discussão, a partir do referido
levantamento, das implicações e desdobramentos possíveis e freqüentes nos tipos de
casos elencados.
É importante registrar, ainda, que na maioria dos casos ocorre a simultaneidade de
dois ou mais tipos ou categorias de violência, quase nunca correspondendo à necessária
divisão a que procedemos para fins acadêmicos – de definição e estudo do fenômeno.
Por vezes, não há nenhuma alegação de violência no processo; entretanto, no
decurso da avaliação psicológica – motivada por outras questões –, o próprio profissional
encontra indícios de sua ocorrência, adotando procedimentos adequados para sua
cessação.
Ainda quanto à coexistência dos tipos variados de abuso e de seu tratamento no
âmbito da Justiça, nossa experiência aponta para uma diferenciação nos procedimentos –
não só, mas principalmente, iniciais – nos casos de alegação de abuso sexual, quando
comparados aos demais. Nestes casos, dada a gravidade da denúncia, os operadores do
direito tendem a deflagrar, de imediato, um processo que visa a proteger a(s) possível(is)
vítima(s) quanto à exposição a novas situações de abuso. Isto implica, em geral, na
separação total ou na restrição de contato da criança ou adolescente com o alegado
agressor, muito freqüentemente seu genitor. Aqui, o desafio que se coloca é que somente
no fim do processo de avaliação da alegação poder-se-á ter a medida da adequação ou
53
não desta decisão inicial, bem como dos benefícios ou prejuízos causados à criança ou
adolescente com a separação ou restrição supracitadas. Assim, resta saber se, em
termos da intervenção da psicologia no âmbito do Poder Judiciário, haveria uma
contribuição específica para a construção de alternativas a este impasse?
Ainda do ponto de vista do olhar da psicologia sobre o fenômeno, cabe ainda
perguntar se os possíveis danos decorrentes de abusos psicológicos ou negligência para
o processo de subjetivação de crianças e adolescentes não exprimem também tamanha
gravidade que justifiquem a adoção de medidas similares?
E o que dizer dos prejuízos decorrentes do afastamento do convívio de um dos
genitores em qualquer caso de alegação de violência doméstica contra crianças e
adolescentes?
Estas são só algumas questões – para as quais não pretendemos ter respostas
gerais ou cabais – que ilustram a complexidade das situações com as quais tem de se
haver o/a psicólogo/a no seu fazer diário no âmbito jurídico, indicando o quão pouco ainda
sabemos.
☛ VARA DE INFÂNCIA E JUVENTUDE:
Nas Varas de Infância e Juventude, segundo nossa experiência, os distintos casos
de violência doméstica se apresentam com os seguintes destaques.
➡ ABUSO FÍSICO:
 Ação:
 Representação Cível
 Suspensão ou Destituição do Pátrio Poder ( quando os abusos considerados
graves envolvem especificamente os pais)
 Como se apresenta:
 denúncias de escolas ou hospitais contra pais ou responsáveis
 denúncias de criança e/ou adolescente contra pais, responsáveis ou outras
autoridades (principalmente professores, inspetores, diretores e profissionais de
programas de atendimento)
 denúncias de pais ou responsáveis contra autoridades (sobretudo, professores
e policiais), vizinhos ou “cuidadores”
➡ ABUSO PSICOLÓGICO:
 Ação:
 Adoção

 Como se apresenta:

54
 pedidos de adoção para satisfação das mais variadas necessidades subjetivas
dos “postulantes” sem considerar as da criança/adolescente
 geralmente em estágios de convivência, preocupação dos “postulantes” com
relatos ou “sintomas” da criança (pesadelos, medos, etc.)
 “pressão” (chantagem, sedução) dos “postulantes” sobre crianças e
adolescentes para que apresentem discurso favorável a estes últimos
 desqualificação indireta da criança ou adolescente através da desqualificação
de sua “origem” biológica
➡ ABUSO SEXUAL:
 Ação:
 Pedido de Providência

 Como se apresenta:
 denúncias de escolas, hospitais, conselho tutelar contra pais ou responsáveis
 denúncias de criança e/ou adolescente contra pais, padrastos, responsáveis ou
outros (parentes, vizinhos professores, profissionais de abrigo, etc.)
 denúncias de pais ou responsáveis contra terceiros
 geralmente em estágios de convivência, preocupação dos “postulantes” com
relatos ou “sintomas” da criança (pesadelos, medos, etc.)
➡ NEGLIGÊNCIA:
 Ação:
 Pedido de Providência
 Representação Cível

 Como se apresenta:
 pais e/ou responsáveis que querem que a Justiça “dê um jeito” em seu/sua
filho/a (sobretudo, adolescentes)
 pais e/ou responsáveis que vêm à Justiça “entregar” seu/sua filho/a (sobretudo,
adolescentes) para que ela cuide “porque não agüentam mais” ou “não têm mais controle
sobre ele/a”
 denúncia do Conselho Tutelar em relação ao não cumprimento de orientações
fornecidas (representação cível)
☛ VARA DE FAMÍLIA:
No caso das Varas de Família, há outras especificidades, conforme pode-se constatar
abaixo.

55
➡ ABUSO FÍSICO:
 Ação:
 Disputa de Guarda

 Como se apresenta:
 Relato verbal de agressões
 Apresentação de exame do corpo de delito
➡ ABUSO PSICOLÓGICO:
 Ação:
 Disputa de Guarda
 Regulamentação de Visitas

 Como se apresenta:
 O guardião deprecia continuamente o outro genitor na presença da criança
 O guardião deprecia a própria criança quando esta exprime concordância com as
idéias do outro genitor
 Aterroriza/ ameaça a criança a fim de impedir que ela manifeste a vontade de visitar o
outro genitor
 A criança é deliberadamente seduzida com promessas e compras de presentes a fim
de se manifestar contrária às visitas
 A criança é intencionalmente levada a sentir-se culpada por afastar-se dos pais
 A criança tem os brinquedos recebidos de presente destruídos ou é impedida de
brincar com eles
 A criança é proibida de utilizar seus próprios pertences
➡ ABUSO SEXUAL:
 Ação:
 Regulamentação de Visitas

 Como se apresenta:
 A queixa em geral é feita pelo guardião que pretende suspender as visitas do outro
genitor que é apontado como o suposto abusador
 O Conselho Tutelar já foi notificado e acompanha a família
 A criança foi examinada no IML
 A criança foi avaliada por diversas instituições (casos extremos)
 Ocorrência de falsa alegação de abuso em decorrência do litígio

56
 As visitas são suspensas preventivamente
➡ NEGLIGÊNCIA:
 Ação:
 Disputa de Guarda

 Como se apresenta:
 O guardião impede o acesso do outro genitor à criança
 A criança é humilhada por seus familiares
 A criança não é levada à escola
 A criança não é levada ao médico, dentista, psicoterapia ou outros
atendimentos necessários quando recomendado
 A criança permanece em casa sozinha durante um longo período ficando a
cargo de tarefas para as quais não possui autonomia
 A criança se apresenta com vestimenta inadequada e sem higiene
 A criança vive num lar sem regras, passa a maior parte do tempo na rua, sem
horários para se alimentar, fazer os trabalhos escolares, banhar-se, dormir, etc.
 A criança freqüenta habitualmente lugares inadequados para a sua idade
 A criança tem acesso a material inadequado à sua idade (vídeos, revistas, etc.)

2. FATORES ESPECIALMENTE RELEVANTES EM ENTREVISTAS


O que segue não constitui outra coisa senão um elenco parcial de dicas e
sugestões – retiradas de nossa prática clínica e/ou acadêmica com casos de violência
doméstica – que visam contribuir para a compreensão das dinâmicas de famílias
enredadas em padrões violentos de relacionamento.
Ressaltamos que, se bem utilizadas – de forma não dogmática e não perdendo de
vista seu limitado alcance –, podem contribuir para um olhar do/a psicólogo/a no âmbito
jurídico que aponte para além da intervenção pericial permitindo-lhe, ao tempo em que
não se exime desta função, aportar uma contribuição efetiva à família que lhe chega como
cliente legítimo.
 ENTREVISTAS COM VÍTIMAS:
O atendimento às vítimas de violência doméstica, por vezes, implica em lidar com
crianças muito pequenas e que, portanto, ainda não dominam os códigos da linguagem
convencional adulta. Igualmente, há que se ter em conta que mesmo crianças maiores e
adolescentes apresentam-se especialmente fragilizados e vulneráveis em decorrência

57
quer da possível vitimização, quer das pressões de familiares e/ou do agressor, ou
mesmo estressadas/os em função do próprio processo avaliativo.
Ainda assim, ao profissional cabe a função de "traduzir" os dados fornecidos pela
criança ou adolescente – envoltos em possibilidades e limites dados pela idade e pelo
contexto – em um discurso consistente, coerente e crível, uma vez que estes são
requisitos fundamentais para sua proteção no âmbito das medidas judiciais possíveis.
Esta tarefa requer um bom nível de proficiência que possibilite atentar
adequadamente para alguns aspectos essenciais, a saber:
 desenvolvimento cognitivo e emocional
 tipos de linguagem e terminologia utilizada
 relacionamento, sentimentos e níveis de dependência em relação ao alegado
agressor e demais familiares
 existência (ou não) de referências de proteção
 sinais e sintomas presentes em vítimas do tipo de violência alegado ou revelado
(segundo bibliografia especializada)
 ENTREVISTAS COM FAMILIARES NÃO AGRESSORES:
Os familiares não diretamente envolvidos na interação violenta em questão
também exercem papéis importantes para compreensão da dinâmica familiar que a
possibilitou ou provocou. Igualmente relevante é ter condições de avaliar o quanto tais
familiares podem significar referências de proteção ou ameaça para a(s) alegada(s)
vítima(s), bem como os recursos – objetivos e subjetivos – de que dispõem para tal.
Assim, vale estar especialmente atentos/as ao/à:
 nível de empatia com crianças e/ou adolescentes

 relacionamento, sentimentos e níveis de dependência em relação ao alegado agressor


e demais familiares
 relacionamento, sentimentos e níveis de dependência em relação à alegada vítima
 presença e efetividade de possíveis atitudes de proteção à alegada vítima
 tipos de linguagem e terminologia utilizada (em comparação ao discurso da alegada
vítima)
 ENTREVISTAS COM ALEGADOS AGRESSORES:
No caso dos alegados agressores, a literatura demonstra que, salvo raríssimas
exceções, estes somente não utilizam o recurso da negação explícita – consciente ou não
– do(s) ato(s) violento(s) nos casos em que as evidências – entendidas como provas
objetivas – o impedem totalmente de fazê-lo. No entanto, ainda assim, seu discurso –
58
explícito e velado – pode auxiliar o profissional em sua tarefa de avaliar a alegação, bem
como formular as sugestões de encaminhamento mais adequadas. Neste sentido, vale
perceber principalmente os seguintes aspectos:
 nível de empatia com crianças e/ou adolescentes

 tipos de argumento utilizados

 forma de referir-se à alegada vítima

 relacionamento, sentimentos e níveis de dependência em relação aos


demais familiares
 nível de negação em relação à(s) alegada(s) violência(s)
 existência (ou não) de algum nível de admissão de autoria do(s) ato(s), ainda que com
outra avaliação do(s) objetivo(s) e da(s) intenção(ões) que o motivaram a praticá-lo(s)
 tipos de linguagem e terminologia utilizada (em comparação ao discurso da alegada
vítima)
Finalmente, gostaríamos de reiterar que este artigo busca recuperar o conteúdo
apresentado e as discussões travadas durante um laboratório temático de 03 horas de
duração, em um encontro dirigido especificamente para a discussão das intervenções da
psicologia frente aos labirintos da demanda que se lhe apresentam no âmbito jurídico.
Desta forma, nunca é demais ressaltar tratar-se de algumas considerações baseadas em
nossas experiências de pesquisa, atendimento, supervisão e/ou ensino envolvendo casos
de alegação de violência doméstica contra crianças e adolescentes e que, neste contexto,
não pretende abarcar as inúmeras facetas de fenômeno tão complexo e ainda pouco
conhecido.

BIBLIOGRAFIA:
AZEVEDO, M. A. & GUERRA, V. N. A. (orgs.) Infância e Violência Doméstica: fronteiras do
conhecimento, São Paulo: Cortez, 2000.
BECKER, G. Agressores Sexuais. In: Como Proteger seus Filhos, Rio de Janeiro: Sextante,
2001.
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60
Laboratório Temático
Medidas Socioeducativas

61
O psicólogo frente à execução de medidas socioeducativas
Elizabeth Pereira Paiva

Minha contribuição nesta parte do evento “Psicologia Jurídica - Os labirintos da


demanda” é a de discutir com vocês o trabalho que venho desenvolvendo, na Baixada
Fluminense, junto aos adolescentes que estão cumprindo medidas socioeducativas
naquela área da cidade do Rio de Janeiro.
Há 5 anos trabalho numa Unidade semi-aberta (CRIAM)14 de atendimento a
adolescentes em conflito com a Lei, estabelecimento subordinado à Secretaria de Justiça
e Direitos do Cidadão.
O trabalho da equipe do CRIAM é pautado no respeito à condição peculiar dos
adolescentes e suas famílias.O objetivo central do atendimento é a possibilidade de
refletir com o adolescente e sua família o significado de estar em conflito com a lei, as
etapas do processo, o que vem a ser uma audiência, o significado de uma medida
socioeducativa e seu cumprimento, reflexão sobre a identidade de um adolescente em
conflito com a lei e as possibilidades de mudanças.
Diante desse quadro é necessária uma análise do papel e das formas de
atuação do Psicólogo ao ver-se confrontado com a tarefa de participar na execução
de medidas sócio-educativas.
Tradicionalmente o psicólogo era visto como:
- um profissional a serviço do Judiciário, prestando informações capazes de
orientar as decisões dos operadores da Justiça (juízes, promotores, defensores). Sendo o
seu cliente principal o judiciário;
- um profissional a serviço da coerção e da disciplinarização dos jovens em
conflito com a lei;
- um profissional que buscava as patologias capazes de explicar a
delinqüência juvenil e as patologias familiares que sobre elas incidiam.
Estes papéis eram compatíveis com o preconizado no Código de Menores de 1979,
elaborado inteiramente por juristas durante os governos militares. Em conseqüência, os
psicólogos produziam laudos, pareceres, sínteses e relatórios informativos nos quais o
adolescente em conflito com a lei e sua família eram os depositários daquelas patologias.
Ou seja, o problema do menor era tratado no âmbito privado e não como fenômeno
gerado socialmente.

14
Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor.

62
Em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, opera-se
uma radical mudança do eixo orientador. A questão do adolescente em conflito com a lei
sai do âmbito da “doutrina da situação irregular” e passa para o âmbito da “doutrina da
proteção integral”. Abandona-se a categoria “menor” (desvalidos, abandonados e
infratores) e passa-se a falar de todos os adolescentes e crianças brasileiras. Esta
guinada modifica completamente a perspectiva de atuação do psicólogo – o adolescente
deixa de ser um “objeto” da lei e passa a ser “sujeito” de direito. O trabalho do psicólogo
não é mais o de buscar patologias, mas o de assegurar direitos fundamentais
preconizados em lei e garantir o acesso dos adolescentes a cuidados em saúde mental.
Na verdade, a operacionalização da passagem de uma a outra lei é mais complexa
do que se poderia supor. Trata-se, verdadeiramente, de um labirinto no qual se movem
diferentes categorias profissionais, em cada uma das quais estão presentes
simultaneamente a velha e a nova forma de atuação.

PERFIL DA CLIENTELA ATENDIDA NO CRIAM


Dos 95 adolescentes atendidos atualmente no CRIAM em que trabalho, 25 estão
cumprindo medida de semi-liberdade e 70 em regime de liberdade assistida/ prestação de
serviço à comunidade. A faixa etária predominante no grupo fica entre 15 e 17 anos.
100% dos adolescentes são do sexo masculino. Com relação à escolaridade, 95% dos
adolescentes não conseguiram completar o ensino fundamental e uma parte significativa
deles, mesmo informando que foram promovidos automaticamente na seriação escolar,
não se consideram alfabetizados. A promoção automática acionada pelas escolas
públicas do Estado tem como conseqüência exclusivamente a regularização do fluxo
escolar, deixando de lado o aprendizado de regras de socialização e a aquisição de
ferramentas básicas como o domínio da leitura e da escrita, não permitindo às crianças e
jovens que freqüentam tais unidades escolares o acesso ao mundo social e do trabalho
fortalecidos por instrumentos básicos.
O referencial familiar dos adolescentes acompanhados pela equipe do CRIAM é
em grande parte pontuado por mães chefes de família, inseridas em atividades informais
de trabalho (trabalho precarizado, entendido aqui como ocupação sem proteção social,
com desenvolvimento de atividades múltiplas e jornadas extensas), vários filhos,
precárias condições de moradia, alimentação e saúde. A figura paterna é, em muitos
casos, ausente ou fragilizada por circunstâncias de alcoolismo/desemprego. As famílias
não se mostram ausentes nem omissas. Revelam com tristeza que gostariam que seus
filhos pudessem ter um destino diferente, contam histórias de luta e cuidados com a prole

63
para que não fosse capturada pelo mundo do narcotráfico. Narram uma vida de
confinamento social em suas pequenas moradias e o medo com relação à violência que
enfrentam dentro dos bairros e favelas onde residem e na cidade em que transitam.
Marcam com precisão a tensão vivida no relacionamento muito próximo com os “chefes”
das áreas e com a PM, além de sempre contarem histórias de assassinatos de jovens da
família ou vizinhos/amigos de seus filhos.
A veracidade de tal situação constata-se nos dados estatísticos que atestam a
brutal escalada de homicídios de jovens do sexo masculino: entre 1980 e 1995, no Rio de
Janeiro, os coeficientes de homicídios (por 100.0000 habitantes) passaram de 58,8 para
183,2 – na faixa de 15 a 19 anos – e de 112,4 para 272,6 – na faixa de 20 a 24 anos
(Mello, 1998). Alguns adolescentes em entrevista inicial, quando indagados sobre as
razões que os levaram a praticar o ato infracional, responderam:
“ Ah! Eu queria comprar umas roupas de marca, sair com a minha namorada para
um lugar legal, ter dinheiro no bolso para passear no shopping. Trabalhei (no tráfico) uma
semana e fui preso, nem ganhei nada. ” (F., 17 anos)
“ Eu tava a fim de ter umas roupas bonitas, um chinelo Kenner, jogar flipper até
cansar” (J.,15anos)
“ Arrumei um revólver sem munição para dar um rolé e depois comer no
MC’Donalds e andar no shopping” (R. C., 17 anos)
“ Fui trabalhar na boca pra arrumar um dinheiro lá pra casa e comprar roupa de
marca e um tênis Nike” (A.,17anos)
“ Saí com um colega pra roubar as velhinhas, aquelas que andam assim (gestos de
pessoas idosas caminhando nas ruas) e depois a gente ia comprar roupa nova, a nossa
tava feito mulambo.”(B.D.,16 anos)
“ Roubei na rua, fui tomar sorvete e os budas (PM) foram atrás”. (R., 15 anos)
“ Eu e um colega ficamos na porta do banco lá no calçadão (bairro), aí um mulher
saiu do banco com um envelope com cara de assustada, aí a gente seguiu, entrou no
ônibus e a gente foi, eu tava com um revolver 22 sem bala, um PM tava dentro do ônibus
me baleou duas vezes, meu colega foi preso também. A gente queria comprar roupa de
marca.” ( R., 17 anos)
Eles revelam, por um lado, a necessidade de sobrevivência numa sociedade com
altas taxas de desemprego, subemprego em alta e poucas chances para que
adolescentes com baixa escolaridade ingressem no mercado de trabalho. Por outro lado,
mostram as contradições da vida numa sociedade cujo permanente apelo ao consumo
desperta no jovem o desejo de sair desse apartheid em que foi confinado e afirmar-se

64
numa identidade social de juventude moldada pela indústria e corroborada pela mídia (o
jovem tem que ser atlético, usar roupas de marcas - socialmente valorizadas),
confirmando a idéia de que a cidadania só está garantida pelo acesso ao consumo. Este
paradoxo facilita o agrupamento de jovens em quadrilhas de furto e roubo e sua adesão à
seleção e recrutamento para os “empregos” no narcotráfico que acenam com “boa e
rápida remuneração”, possibilidades de ascensão na “hierarquia empresarial”, aliando a
lógica da necessidade com a lógica “cultural - relacionada a um ethos da masculinidade”
(Zaluar, 1990: 16).
No tocante à inserção no mundo do trabalho (formal e informal) dos adolescentes
em conflito com a lei acompanhados no CRIAM em que atuo, os registros desnudam a
história do trabalho infantil no Brasil. A maioria informa que ingressou no mercado de
trabalho precocemente por volta dos 8/9 anos como vendedores de balas, biscoitos,
refrigerantes, guardadores de carros, entregadores de compras em feiras e
supermercados, empacotadores do comércio em geral, auxiliares de pedreiros/
borracheiros/de lava-jatos, trabalho doméstico (cuidados com a casa e com os irmãos
para que as mães possam trabalhar). Isto corrobora a afirmação de Ferretti e Madeira
(1992) de que, “para a grande maioria da população, o trabalho antecipa a escola ou se
dá concomitantemente” (p.83).
O trabalho precarizado (sem proteção social), o abandono da escola após
sucessivas reprovações e um mercado de trabalho cada vez mais exigente quanto
aos níveis de escolarização imprimem de forma perversa a marca da exclusão,
reforçando para os jovens a idéia da possibilidade de sucesso através do exercício
da transgressão.
Segundo dados estatísticos dos últimos dois anos, 50% dos 400 adolescentes que
estavam cumprindo medida socioeducativa de semiliberdade e liberdade assistida no
CRIAM haviam praticado atos infracionais ligados à questão das drogas, os outros 50%
estavam associados a: roubos, furtos, porte de armas.
No trabalho com esses adolescentes o desafio é desconstruir esta identidade
“marginal” (esse lugar em que ficou colado); é personalizar este sujeito transformado em
“representado”, “adolescente infrator” pelo Direito, é dar nome ao número do processo, é
subjetivar o objeto, é ouvir sua história, desvendar seu passado, seu presente, apontar o
futuro. É subjetivar uma narrativa (Coimbra, 2000). Portanto, o papel do psicólogo nestas
instituições é potencializar esses adolescentes para uma compreensão do seu lugar
singular na cultura, dos seus vínculos sociais e ajudá-los a refletir sobre seus direitos e
deveres.

65
Muitos autores chamam a isso um processo de humanização (Legendre, 1996;
Brito, 2000). É importante não cairmos na cilada ingênua de confundirmos humanização
com o caminho fácil da domesticação, que muitos segmentos da sociedade ainda
demandam do trabalho junto aos adolescentes em conflito com a lei.
Gostaria, para finalizar, de comentar alguns casos em que atuamos no CRIAM.

Exemplo 1:
A direção de uma das escolas públicas que atendem adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas num CRIAM da Baixada entrou em contacto
telefônico solicitando a presença de um psicólogo da instituição para uma conversa sobre
o afastamento escolar de um adolescente residente do CRIAM. A Diretora alegava que o
adolescente estava colocando em risco de vida as outras crianças e roubava a merenda
dos colegas. Ela demandava um encontro entre ela e o psicólogo do CRIAM, no qual
pretendia consumar o desligamento.
A psicóloga ouviu o aluno, que confirmou o roubo de merenda e as ameaças. No
entanto, estas eram feitas em nome de uma entidade fictícia: o Comando do Lagartixa. A
menção do CL era suficiente para provocar temor nos professores, direção e alunos, que
facilmente entregavam seus pacotes de biscoitos15. O adolescente alegava que não
levava merenda e ficava desejando os tais biscoitos. Diante do relato, a psicóloga
resolveu levá-lo no encontro com a diretora. Foram recebidos com certo constrangimento.
No entanto, após os esclarecimentos dados pelo adolescente a diretora entendeu suas
razões e necessidades e decidiu fazer-lhe uma proposta: - ele ficaria encarregado do livro
de ponto dos professores e receberia em troca um pacote de biscoitos todos os dias.
Este tipo de desdobramento foi tão terapêutico para o adolescente que – a partir de
então – começou a se interessar pelos estudos, a se preparar para as provas, a fazer
sistematicamente os deveres de casa e modificou sua imagem na escola.

Exemplo 2:
Ao longo do trabalho com os adolescentes, senti necessidade de modificar a
dinâmica de produção dos relatórios (antes eram elaborados por mim e só depois
discutidos com o adolescente e seus familiares). Atualmente passei a registrar as
entrevistas com os adolescentes desde sua chegada, levantando suas histórias de vida,
trajetória escolar, a prática do ato infracional, a inserção no mundo das atividades ilícitas e
ilegais, as relações familiares e as vivências dentro do DEGASE e no Judiciário. Estes
15
Os biscoitos a que o relato se refere são imitações grosseiras do tipo “fandango”, fabricados e vendidos no comércio
ambulante da Baixada Fluminense; custam em média R$0,30, o pacote de 100gr..

66
registros ficam no arquivo pessoal, ao qual o adolescente tem acesso a qualquer
momento.
Este material passou a ser fonte para a produção de relatórios e síntese a serem
enviados ao Judiciário. Antes de qualquer audiência de reavaliação de medida
socioeducativa, tais relatórios são discutidos integralmente com o adolescente e seus
familiares. A cena jurídica é, nesta ocasião de “entrevista de devolução”, explicada ao
adolescente e sua família: quem são os operadores da justiça, o que fazem e o que eles
podem esperar de cada um (o que significa um promotor, um defensor, um juiz, um
comissário de menores, etc.).
Em termos terapêuticos tal procedimento eliminou o caráter persecutório dos
informes técnicos, relatórios e sínteses, o que já significa um ganho para a saúde mental
não só do adolescente e sua família, mas do próprio profissional que trabalha junto à
clientela. Exemplo: R., após progressão de medida de SL para LA, retornou ao CRIAM
animadíssimo, dizendo que tinha gostado muito da audiência porque tanto a juíza quanto
a promotora tinham lido o relatório que tínhamos feito juntos. Ele pôde explicar na
audiência seus altos e baixos, seus ganhos e retrocessos na execução da medida sem
maiores constrangimentos e temor. Isto também só é possível quando o Judiciário
assume uma atitude menos ritualística e burocrática e adota uma postura implicada com o
destino desses jovens e suas famílias – este é caso das juízas das Comarcas de S. João
do Meriti e de Nilópolis.

Exemplo . 3
Reparação de dano e prestação de serviços à comunidade são, no meu de ver,
medidas socioeducativas que poderiam ser mais freqüentemente aplicadas: Foram
recebidos num CRIAM 3 jovens de classe média punidos por terem causado danos ao
patrimônio público num estabelecimento de ensino (pichação). Foram julgados e
receberam como medidas socioeducativas a reparação do dano e a PSC no próprio
CRIAM. Inicialmente a psicóloga atendeu os 3 adolescentes explicando cada medida e
levantando a história do ato infracional por eles cometido. Dois deles aceitaram o PSC no
CRIAM; o terceiro recusou-se a trabalhar “para um bando de vagabundos”, em suas
palavras, razão pela qual na sua reavaliação sua medida foi regredida para SL no mesmo
CRIAM por 30 dias. Após este período, na segunda reavaliação ele terminou por avaliar
criticamente o seu ato infracional e refletir sobre seus preconceitos anteriormente
expressos.

67
Os outros dois adolescentes concordaram em trabalhar (na cozinha e na oficina de
informática) e se integraram ao demais residentes durante os intervalos. Na primeira
reavaliação tiveram extinção do processo, mas voltaram ao CRIAM para agradecer à
equipe técnica a oportunidade de terem convivido naquele espaço com os demais jovens.
O profissional, seja ele psicólogo ou não, que vai atuar junto a adolescentes em
conflito com a lei, deve ter clareza de que seu cliente não é o judiciário ou os operadores
da Justiça. Seu cliente é o adolescente que ingressa no sistema socioeducativo e seus
familiares.
Toda a produção de material sobre um caso precisa ser contextualizada. Não deve
estar carregada de preconceitos e patologias - muitas vezes teoricamente justificadas nos
livros, mas sem proximidade e empatia com os jovens concretos em questão e suas
famílias. É preciso não confundir exclusão social com patologia individual.
O psicólogo vai encontrar em qualquer instituição um conjunto de regras, normas,
procedimentos instituídos. Cabe a ele procurar caminhos instituintes, renovando as
práticas e modos de atuação em benefício da saúde mental de seus clientes, no nosso
caso, os adolescentes que cotidianamente encontramos nas Unidades do DEGASE.

Bibliografia
BRITO, Leila M. T.de (2000) in 1º Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro.
COIMBRA, José C. (2000) in 1º Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro.
FERRETTI, Celso J., Madeira, Felícia R. Educação/Trabalho: reinventando o
Passado?.Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Nº 80.
LEGENDRE, Pierre (1989) Le crime du caporal Lortie. Traité sur le père. Paris, Fayard.
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Nº 15. Instituto de Estudos da Religião (ISER).

68
Demanda e resistência: um pouco do trabalho do psicólogo na 2ª vara da infância e
da juventude da comarca da capital com adolescentes que cometeram ato
infracional.
Itala Povoleri

“O que conta é que estamos no início de alguma coisa.”


“... e se nosso Direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos é porque saímos de um
para entrar no outro.”
Gilles Deleuze16

A minha apresentação é pautada em uma especificidade do trabalho do psicólogo


que vem ocorrendo na 2ª Vara da Infância e da Juventude com os adolescentes que lá
cumprem medida socioeducativa. Vou me guiar nessa especificidade a partir de uma
questão, tentando assim enfeixar situações que naquela instituição eu tenho observado
constantemente, partilhando assim com vocês um pouco das dificuldades do trabalho do
psicólogo enfrentadas ali e as formas como este vem se desdobrando. O que aqui nomeio
como sendo específico daquele trabalho é o fato que nós psicólogos, lotados naquela
Vara, atendermos no Serviço de Psicologia adolescentes que recebem medida judicial
de tratamento psicológico e de tratamento antidrogas. Esses adolescentes recebem ali,
naquele espaço jurídico, suas medidas e devem também cumpri-las naquele mesmo
espaço. Utilizando a divisão tripartida dos poderes de Montesquieu entre legislativo,
executivo e judiciário é como se o judiciário tomasse para si atribuições de execução até
então da alçada do poder executivo. A especificidade do nosso trabalho de psicólogos da
2ª Vara não é algo que ocorre com exclusividade naquele local. O art 151 do ECA, que
trata da competência da equipe multiprofissional, assegura em seu caput que, dentre as
competências por ele elencadas, pode haver algumas outras dispostas pela legislação
local. Certas horas eu penso se não existiriam outros psicólogos trabalhando com a
mesma matéria e lidando com uma situação similar. O trabalho com os adolescentes
usuários de drogas, baseado nas cortes de drogas americanas, que recebe o nome de
PROUD, é uma proposta um pouco próxima do trabalho realizado no Serviço de
Psicologia da 2ª Vara., sendo que naquele caso do PROUD, não existe o processo de
cumprimento de medida, a ISE (Instrumento de sentença de execução) e todo o
procedimento judicial que ele implica. Parece que tanto um quanto outro trabalho estão

16
DELEUZE, Gilles. Conversções. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

69
acontecendo dentro de um movimento maior de justiça terapêutica. Trata-se de um
movimento que pode ser lido como um dispositivo sociotécnico de controle utilizado em
locais abertos ou em instituições nas quais os usuários podem ir e vir. Os dispositivos de
controle podem ser contrapostos aos de disciplina utilizados em espaços fechados, tais
como hospitais psiquiátricos, prisões etc... A implantação e o incremento desses
dispositivos surgem após a 2ª guerra mundial no século passado, como uma alternativa
aos dispositivos disciplinares e eles apontam para uma certa crise das instituições
fechadas, sendo a prisão a instituição exemplar no último caso. A questão da diferença
entre esses dois tipos de dispositivos é desenvolvida em um comentário que Deleuze faz
de Foucault em um artigo sobre as sociedades de controle, presente no livro
Conversações (1992). Ao ler esse artigo de Deleuze, pensei que essa distinção ali
apontada poderia me servir no sentido de iluminar um pouco a minha prática no Serviço
de Psicologia e de pensar acerca da experiência profissional que ali venho construindo.
Assim, tentarei mostrar como no espaço institucional da 2ª Vara esses dois
dispositivos coexistem e como eles se misturam e se distinguem. Para isso procuro tecer
uma análise partindo da idéia de demanda a qual me permite falar um pouco daquele
espaço institucional. A questão da demanda, que considero fundamental, será enfocada
sob dois ângulos: um é o da demanda institucional e o outro é a demanda dos
adolescentes para com nosso trabalho. Como produto dessa análise, tentarei pensar no
modo como estamos lidando com essa questão da demanda atualmente nesse espaço
institucional híbrido, característico de toda mudança.
A maioria dos adolescentes que nós recebemos no Serviço de Psicologia vem
cumprir conosco, por determinação judicial, medida de tratamento psicológico ou
tratamento antidrogas. Em alguns casos, o adolescente também cumpre L.A. (liberdade
assistida) no Serviço Social do juizado acrescida na sentença de uma dessas duas
medidas acima elencadas. Recebemos também adolescentes para encaminhamento e
avaliação por solicitação de outros técnicos do juizado tal como dos comissários de
justiça. Neste último grupo recebemos majoritariamente adolescentes que trabalham no
espaço da 2ª vara e por observação desses técnicos podem vir a ser beneficiados por um
trabalho com o psicólogo. O importante a assinalar é que os adolescentes que nos
chegam não procuram o Serviço de Psicologia motivados por uma demanda espontânea
para ali realizarem um trabalho. Eles vêm, sim, cumprir por determinação judicial uma
medida conosco. Assim comecei a perceber que o trabalho desenvolvido nos
atendimentos individuais com esses adolescentes no espaço da 2ª Vara, como única
forma para cumprimento de medida, encontrava resistência e limitação apontadas pelo

70
próprio adolescente durante os atendimentos. E uma pergunta muito freqüente nesses
atendimentos refere-se a seu término. “Quando isso termina? Quando eu não vou mais
precisar vir aqui?” Não acredito que uma questão tão insistentemente colocada ali
compareça pelo fato de os adolescentes não terem outras questões que possam ser
desdobradas ou de não quererem simplesmente falar sobre elas. Grande parte das vezes
o jovem estabelece uma relação produtiva com o psicólogo mas mesmo assim as
perguntas acerca do fim dos atendimentos ocorrem insistentemente. Encaminharei essa
situação levantando a hipótese de que a insistência acerca do término dos atendimentos
vincula-se ao fato de que tais atendimentos ocupam o lugar de uma sanção recebida por
um ato infracional cometido por ele, adolescente, devendo ,portanto, ter um limite para
seu cumprimento. Essa hipótese permite ver essas resistências como sinalizadoras do
lugar em que estamos inseridos institucionalmente. Permitem também a nós, técnicos,
perguntar sobre a demanda institucional para com nosso trabalho e o modo de lidarmos
com ela.
A fim de abordar essa questão, e também de assinalar um certo pedido de
atendimento a nós endereçado, gostaria de falar um pouco do espaço da 2ª Vara.
A 2ª Vara da Infância e da Juventude é uma típica Vara de Justiça sendo que a
média da idade de seus usuários é um pouco mais baixa do que a verificada nas outras
Varas. É um lugar de passagem. Vários adolescentes vão ali para serem atendidos pelos
técnicos: psicólogos, assistentes sociais e comissários. Alguns vão ali se apresentar para
suas audiências antes da sentença, ou para reavaliação de medida após a sentença.
Assim, a condição dos adolescentes que freqüentam diariamente aquele local é bastante
heterogênea. Uma parte deles encontram-se internados provisoriamente, antes de suas
sentenças judicial ou cumprindo medida de internação após sua sentença judicial. Outra
parte dos adolescentes que lá comparecem vão cumprir medidas sócio educativas mais
brandas, sem estarem internados. Dessa forma, a 2ª VIJ é uma instituição aberta que
recebe diariamente adolescentes submetidos a um regime fechado, disciplinar, e também
adolescentes que cumprem medida em regime aberto, típico dos dispositivos de
controle. O espaço externo aos setores guarda algumas características semelhantes a um
dispositivo de disciplina, embora operantes em uma instituição aberta. Como todo espaço
jurídico, a 2ª Vara exige uma determinada postura que requer desde roupas e
vestimentas adequadas que permitem o acesso e o trânsito pelas dependências internas
da Vara até comportamentos e condutas que garantam um fluir tranqüilo pelo local. Essa
postura é disciplinada por portarias e atos normativos como é de Direito. Vou tentar
ilustrar isto um pouco. Não se pode entrar no juizado de camisa regata, de bermuda,, de

71
top etc... Também não se pode ali permanecer, por exemplo, tendo os cabelos pintados,
pois essa é uma estética apropriada pelo tráfico e o adolescente que pinta seus cabelos
desse modo pode estar dando indícios de seu envolvimento com o narcotráfico. É uma
instituição de passagem onde os dois regimes, o disciplinar e o de controle, coexistem
tanto no espaço físico quanto na trajetória judicial individual da maioria dos adolescentes
que chegam ao Serviço de psicologia. Assim, é muito comum, quando o adolescente
chega à psicologia para cumprir medida que ele nos diga não gostar do juizado pois
aquele lugar lhe traz lembranças ruins. Isto porque grande parte deles já passou por ali
antes de sua audiência estando naquela ocasião internado provisoriamente. Há casos de
adolescentes que pedem que sua mãe compareça para o atendimento no Serviço de
Psicologia em seu lugar, alegando ter medo de ir , porque podem voltar a ser internado.
Nesses casos nós temos de fazer um trabalho de convencimento com o adolescente de
que a sua sentença já foi expedida e sua medida já lhe foi aplicada, sendo importante
que ele compareça para cumpri-la no Serviço de Psicologia. Que a psicologia pode ser
um outro lugar dentro daquele lugar... O que eu acho um pouco difícil de separar. Em
alguns casos essa distinção é bem difícil de ser feita, de modo que é difícil fazer o
adolescente falar de si próprio dentro de um espaço que o disciplina e o observa.
Convidar o jovem a trabalhar em um dispositivo que funciona em um regime de controle
sendo que este dispositivo está inserido espacialmente em uma instituição que tende a
funcionar com traços de um outro regime, o disciplinar...
Acerca da demanda da 2ª Vara da Infância e da Juventude para com o trabalho do
psicólogo destaco que esta demanda não se distancia de um pedido de normatização e
de disciplina. Muitas vezes nos é endereçado o pedido de atendimento do adolescente da
seguinte forma: Esse adolescente deu problema, eu vou mandá-lo para vocês. Parece
que nós então teríamos poderes de ajustar esse jovem de modo que ele não causasse
mais problema. No próprio espaço da 2 ª Vara, já atendi adolescentes que se faziam
valer exatamente pelos problemas que eles estavam nos dando; era o modo de eles se
colocarem enquanto diferença. Suprir essa demanda institucional é como o suprimento de
toda demanda, uma tarefa impossível. Entre aquilo que me pedem e o que eu venho ou
posso oferecer existe um percurso e, no caso do nosso trabalho como psicólogos, este é
um percurso com um adolescente em seus atendimentos, o que tem outras implicações.
Às vezes a impossibilidade de suprir totalmente a demanda institucional a nós
endereçada enquanto técnicos nos é devolvida como um juízo acerca de nosso trabalho.
“A psicologia não faz nada”. Essa frase me soou desde sempre enigmática e com o tempo
creio ter desdobrado esse nada em um vazio criativo e produtivo que me tem permitido

72
criar e me aproximar da singularidade dos adolescentes que nos são enviados. Assim,
penso construir com eles um desdobramento para suas vidas a partir de sua passagem
pela 2ª Vara.
Vou então enfocar mais de perto a questão dessa demanda de trabalho conosco
pelo viés do adolescente. Quando essa equipe de psicólogos chegou à 2ª Vara, havia ali
duas propostas de trabalho com os adolescentes e suas famílias. Uma proposta era a de
atendimento individual para que os adolescentes cumprissem sua medida judicial no
Serviço; a outra era a de atendimento em grupos para receber os adolescentes que
iniciavam o cumprimento de sua medida. Havia também grupos com adolescentes
participando de um encontro sobre uso de drogas enquanto outros grupos ocorriam com
os pais e responsáveis. O que me chamou a atenção foi a não existência ali de um
trabalho grupal com os adolescentes como forma de cumprimento de suas medida
judiciais no Serviço de Psicologia. Certa vez perguntei o porquê de tal proposta de
trabalho não ter sido operacionalizada e me responderam que isso não ocorreu, pois os
adolescentes faziam muita bagunça implicando muito uns com os outros, sendo assim
difícil manejar o grupo e controlar o cumprimento da medida. Nessa justificativa o requisito
de disciplina e postura parecia impedir esse tipo de trabalho grupal com os adolescentes.
Havia também um grande número de descumprimento de medida explicáveis pela falta de
motivação do adolescente para cumpri-las individualmente e pela extensão temporal das
mesmas. Muitas vezes, através dos atendimentos individuais acontece que as medidas
de tratamento e acompanhamento psicológico se tornam muito longas tendo a questão
que trouxe o adolescente até ali sido reconfigurada completamente ou sanada por ele em
poucos encontros conosco, apesar de sua medida ainda não ter sido extinta
processualmente. Assim, a fim de tentarmos experimentar dentro desse contexto
institucional, a equipe atual da 2ª Vara vem fazendo grupos com os adolescentes como
uma outra forma de esses jovens cumprirem sua medida judicial conosco. Tal proposta
tem se mostrado mais genuína para com o espaço institucional que ocupamos e, nos
grupos, quando emerge uma demanda do adolescente para os atendimentos individuais,
é possível trabalhar com ele de forma individuada, considerando sua demanda. O que
me parece fundamental para esse tipo de trabalho. Em certos casos, a demanda para
atendimento individual, comparece no decorrer dos atendimentos, mas às vezes ela não
acontece e esse adolescente descumpre sua medida por falta de motivação. O trabalho
em grupo pode servir como um modo de tangenciar esse adolescente, tão longe e tão
perto, criando alternativas para que sua medida seja cumprida. Delimita também
temporalmente seu cumprimento precisando seu caráter de medida judicial a ser

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cumprida. Se no decorrer dos encontros grupais emergir uma demanda de
acompanhamento psicológico individual por parte do adolescente, é possível oferecer a
esse jovem essa forma de atendimento. Essa estratégia de abordagem vem motivando os
adolescentes a comparecerem ao juizado, permitindo que alguns casos mais refratários
àquele espaço possam ser afetados por uma outra proposta de trabalho no Serviço de
Psicologia, de modo que o adolescente tire algum proveito no cumprimento de sua
medida ali conosco. Após os encontros grupais, o adolescente continua sendo
acompanhado por um técnico individualmente até a extinção de seu processo de
execução, sua ISE. No espaço grupal ocorre a oportunidade de falar coletivamente acerca
de algumas questões, oportunidade que vem se mostrando construtiva e enriquecedora.
Muitos adolescentes redimensionam em poucos encontros conosco os problemas que os
trouxeram até a 2ª Vara. Outros se reorganizam, utilizando o espaço dos atendimentos
que lhes são oferecidos. Outros nos endereçam sintomas, mas em certo momento
colocam um limite de não querer tratar de suas questões naquele espaço e enunciam: “Eu
não gostaria de falar dessas coisas aqui...” Nesses casos acredito que limitar um trabalho
não é descumprir uma medida judicial. Para muitos adolescentes, a 2 ª Vara representa o
outro lado de um mundo que eles tentam de algum modo se inserir. No entanto, para que
isso ocorra, creio ser preciso inventar alternativas de tangenciar esse Jovem, o que só irá
acontecer por meio de algo efetivo relativo à sua passagem por aquele local. Considero
que esses encontros nos grupos vêm trazendo uma brisa nova para a psicologia da 2 ª
Vara. É no frescor dessa novidade e na perspectiva de mudança que ela nos oferece eu
gostaria de finalizar a minha apresentação. Obrigada pela atenção de vocês e que essa
exposição sirva como estímulo desencadeador para o relato e reflexão da experiência
singular de cada um de vocês com esses jovens, o que com certeza será bastante
enriquecedor.

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