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Parecia mesmo que Ana Vera havia perdido a Razão.

No carro da reportagem em direção à estação, o câmera e o motorista se


entreolhavam e olhavam no retrovisor, alternadamente. No banco de trás, Ana Vera
Cabral, com os olhos ora cheio de lágrimas, ora sorrindo.

- Endoidou! Pensavam os dois.

O narrador que deve permanecer objetivo vai ordenar os fatos para o leitor pois
mesmo “se” ou “quando” houver leitor, devem ser sempre bem informados.
Portanto, vamos dar uma olhada na agenda da manhã dos nossos três personagens.

Antonieta João Ana Vera

6h30 Acorda. 7h45 João está plantado na 7h45 atravessa a rua


porta da pastelaria. Segue correndo, mete-se na
Sai do quarto às 7h05 com o olhar Ana Vera. Às multidão toda
arrumada, vaporosa, 7h46 o celular começa a esbaforida e as custas
maquiada, perfumada e tocar e sem ser atendido de algumas cotoveladas
toda elegante, como de toca novamente às 7h48, e da ajuda do seu
costume. 7h50, 7h58. câmera, que fala,
espantado:
Desce para o café da Às 7h59 o menino de 6
manhã com o filho Bruno, anos parado ao lado - Anda Ana! O que te
que pergunta pelo pai e esquerdo de João na porta deu? Você está
distraída responde: da pastelaria passa o atrasada!
bolinho de bacalhau da
- Trabalhando, querido. mão direita para a As 7h46 está cara a cara
Ele está trabalhando. esquerda, com a direita com o Raposo,
segura a calça de João na posiciona o microfone e
Sai em seguida e chega no altura do joelho, dá dois faz a pergunta mais
portão do colégio às 7h45. puxões e fala; imbecil de toda sua
Despede-se do filho com vida profissional:
um beijo, a recomendação - Moço! Não vai atender
de que não se suje, a seu celular, não? - Como está se
seu celular, não? - Como está se
declaração de que o ama sentindo?
muito e de que virá busca- João ouve essa vozinha
lo às 17h00, como de como se fosse a do Grilo Todas as perguntas
costume. Falante e obediente atende feitas nos minutos
o homem berrando na seguintes foram tão
Tudo absolutamente linha: irrelevantes para o
normal e como de entendimento do
costume. - João! O que te deu? Você assunto em pauta e para
está atrasado! o esclarecimento da
E, como de costume população quanto esta.
dirige-se, para a casa de - Já chego aí. No entanto, Ana Vera,
Maria Felicidade, está sorrindo.
sorrindo. Diz, sorrindo.

Para a pergunta:

- O que te deu?

Bem que, tanto João quanto Ana, gostariam de dar a resposta verdadeira:

- Acabo de encontrar a(o) mulher (homem) que amo.

Falar de amor a essas horas? Seriam tachados de loucos, irresponsáveis,


xingados e amaldiçoados por perder tempo com besteiras quando há a tanto por
fazer, por resolver. Para o Cotidiano, Amor não é prioridade.

Sabem que essa resposta - apesar de ser a mais estrita verdade - soaria
incompreensível e mesmo ridícula para qualquer pessoa.

Talvez, apenas o menininho que fez o papel de Grilo Falante - e se


aproveitou disso para deixar uma grande mancha de gordura e um ou dois
pedacinhos do bolinho de bacalhau na calça de João - poderia ouvir isso assim e se
dar por satisfeito:

- Ahhh tá. Que legal, moço.

E seguiria feliz mastigando seu resto de bolinho e bem satisfeito com essa
resposta. Pois seja lá o que for esse tal de Amor, pelo sorriso que João tinha
estampado na cara, pareceria mesmo ser bem legal.

Mas, o menino não ouviu essa declaração, ouviu foi Dona Brilhantina comentando
no balcão enquanto João se afastava, sem pedir sequer um cafezinho:
- Viram só que antipático como ele derrubou a moça?

Ana Vera não era por natureza disciplinada e metódica como João. Apaixonada,
impulsiva, pediu sua transferência para a universidade do sul quando não suportou
mais a indiferença e a covardia dele. Esperou durante toda a semana, carregando “A
Cidade e as Serras” na bolsa, ainda emocionada e transbordante de amor, apesar da
decepção quando percebeu que João ao sair naquela noite, não voltaria para sequer
ver no lençol a pequena mancha de sangue de sua virgindade que se fora.

Uma semana esperando por algo tão desejado é de matar qualquer um de


exasperação.

Passou o final de semana ainda mais irritada com a atitude dele. Na segunda-
feira foi para a aula cheia de esperanças, de mini-saia e blusa justa. Na terça,
acordou atrasada, menstruada e com cólicas, vestiu-se de qualquer jeito e quando
finalmente o viu, explodiu sua frustração chicoteando seu próprio nome contra a
cara de um João sem reação. E as palavras que eram um vaticínio:

- Tu vais querer muito pedir-me perdão.

Depois disso ao vê-lo por algumas vezes se aproximar todo vacilante, sentiu seu
desconforto e falta de determinação como uma ofensa e se afastou, esperando no
íntimo que ele a chamasse, que corresse, que fizesse algum gesto mais determinado
para não perde-la. Mas, não. Ele apenas se conformava e se afastava, cabisbaixo.
Isso doía, e doía cada vez mais fundo e fazia com que Ana desejasse ao mesmo
tempo: bater violentamente nele / sair correndo / sentar no meio-fio chorando
desconsoladamente / enche-lo de beijos e pedir que não se fosse embora jamais...

Achou que longe dele, esqueceria.

Era jovem e não sabia ainda que essas coisas que se acham em situações assim logo
são perdidas.

Como esquecer sequer a primeira vez que notou João?

Na lanchonete da faculdade procurava um lugar vago para sentar e comer seu


sanduíche. No lúgubre galpão estreito e de imenso pé direito que servia de
lanchonete as mesas foram separadas com paredes de treliça onde folhagens
artificiais entrelaçadas procuravam dar um ar mais jovial e aconchegante ao lugar.
Espelhos estratégicos nas laterais disfarçavam a pouca largura. E foi ao lado de uma
dessas mesas espelhadas que Ana achou lugar, sentou e viu então João refletido no
espelho.

Sem a poder notar, lado a lado com ela, separados por folhas de plástico,
João conversava com amigos, todo entusiasmado com um livro que encontrara há
alguns dias.
Ana reparou primeiro em seus olhos. Expressivos, levemente puxados,
escuros, tinham uma certa inocência misturada com uma surpreendente ironia mal
disfarçada. Ironia , sinal de inteligência aguçada, nem sempre percebida pelos
colegas, como Ana reparou. Notou em seguida as mãos grandes que pontuavam com
elegância a conversa.

Mãos, olhos, a bonita voz. Ficou ali esquecida, involuntariamente ouvindo a


conversa, mastigando cada vez mais lentamente seu sanduíche. Um bem estar
crescente, físico, inusitado, um prazer doce em estar ali ouvindo e vendo aquele
rapaz e seus comentários, às vezes João até lia um trecho para os amigos e na voz
carinho e admiração pelas palavras do autor.

Ana sabia que eles precisavam estar juntos! Que ela e ele fariam uma
combinação preciosa e rara como um vaso chinês.

Quando naquela noite na livraria sentiu sua presença, seu corpo se aqueceu
na mesma sensação deliciosa da primeira vez. Era a sua oportunidade de se fazer
notar, de conversar com ele. Sair dançando completamente encantada em sua
perseguição pelas estantes, foi absolutamente natural. E ao iniciarem a conversa no
início meio sem sentido, viu todas as concordâncias que tinham e as que
discordâncias lançavam apenas mais coisas por saber, por entender, por conhecer.
Harmonizavam-se em suas diferenças, cúmplices e companheiros.

E agora, encerrando às 18h45 a última reunião de pauta do dia, após a


bronca do editor, o espanto dos colegas pela matéria chocha e pelo seu ar ausente,
sentia a dor de ter ficado tantos anos longe. E a extrema maravilhosa, louca alegria
de ter reencontrado.

Passou todo o dia revendo mentalmente as cenas do seu breve encontro. E


agora se dá conta de que havia aquele leve brilho dourado na mão esquerda de João.

Até o noticiário da noite ser exibido João e Ana seguiram seus


compromissos a custo e como puderam. Antonieta, esta seguiu em seu caminho
suave.

Antonieta? Ela sempre soube ser homossexual. É claro que alguém como ela
jamais sairia declarando isso em praça pública. Antonieta não era do tipo que
empunharia nenhuma bandeira, não lutaria por nenhuma causa, não causaria sequer
o constrangimento de uma transgressão de transito quanto mais de vida. Caçula das
três irmãs com uma boa diferença de idade, era tratada como uma bonequinha por
elas. Cheia de mimos e cuidados de toda a família, o bom e o melhor para ela. A
sua beleza e delicadeza fazia com que todos a tratassem como se fosse um anjo.

De fato, Antonieta sempre teve corretos sentimentos com relação a todos,


agindo sempre com a maior boa educação, só se inflamava em sentimentos
acalorados com a amiga Maria Felicidade.
Momentos descompostos. Eram as horas em que ... digamos assim, ela
perdia a classe que tão bem a caracterizava.

Aceitou o casamento meio arranjado com João de boa cara, desejava ter um
filho e o status de esposa para dar sua cota de satisfação à sociedade. Maria
Felicidade também era filha de uma das tradicionais famílias da Velha Cidade e
todos achavam muito natural a amizade íntima e até grudada das duas.

- São como irmãs, que lindo isso! Diziam todos, aprovando tão elevados e
fraternos sentimentos entre as representantes do que havia de mais tradicional,
respeitável e bem educado na sociedade.

Antonieta e Felicidade mantinham as aparências, afinal existiam fortunas em


jogo nos negócios das duas famílias. Felicidade, filha única, tocava os negócios da
família desde a morte do pai, com mão de ferro, e todas suas delicadezas eram
dirigidas apenas para Antonieta. Amavam-se, de fato.

Por João, Antonieta sentia afeto e cuidados, no entanto suportou João com
uma certa alegria em seu corpo somente até ter engravidado do Bruno e após isso
apenas com resignação. Detestava as diferenças físicas entre ela e o homem. Para a
sua extrema delicadeza apenas as curvas e suavidades de Felicidade a agradavam e
excitavam, jamais os ângulos retos, as mãos grandes, a altura, o peso ou mesmo o
cheiro másculo de João que lhe causavam até repugnância.

Torcia seu delicado narizinho à lembrança das pernas cabeludas do marido,


apesar de ter sido justamente esse um dos motivos de aceita-lo pois João não era do
tipo excessivamente peludo.

Se ele fosse, ela casaria com outro.

João. Esse segue seu caminho para o escritório. Atordoado e com fome entra
na sala e no caos provocado por sua breve ausência. A secretária enlouquecida
arregala os olhos para esse Doutor meio amarfanhado e de calça manchada O
cliente, a quem dera o maior cano na noite anterior, espumava de raiva.

Sentindo que ele mesmo estava enlouquecido - só que de paixão - sequer


reparou que no caminho andando pelas ruas ensolaradas a sua sombra alegremente
voltou a acompanhá-lo.

Com ar ausente cumpriu seus compromissos, deu desculpas vagas ao cliente,


orientações conflitantes para a secretária e uma ordem para si mesmo:

Ir atrás dela.

A soma das intensas emoções vividas por João desde o dia anterior, a noite
pouco e mal dormida, somada a falta de alimento mais o violento encontrão físico
com Ana Vera resultou em um safanão na sua psique. Aquelas caixas internas onde
guardava rapidamente todo acontecimento ameaçador à sua disciplinada
personalidade - como um menino que guarda ávido em uma caixa de charutos todas
as suas preciosidades e tão bem escondidas que as esconde até de si mesmo - se
escancaram.

Talvez nunca antes João tenha olhado para esses objetos preciosos de sua
vida emocional assim à luz plena do dia. E, lá no meio de outras menores
resplandecia com todas suas cores, Ana Vera Cabral.

No diálogo cheio de cumplicidade na livraria, na alegre conversa cheia de


risadas de perder o fôlego até chegar na casa de Ana, na intensidade das horas de
amor ele esteve inteiro. Nunca antes a palavra despido fora tão verdadeira.

Com Ana foi inteiro, tudo o que era e tudo o que poderia vir a ser. Na pele
de Ana Vera, cometia ousadias e recuava, encabulado. Para logo em seguida rir e se
desmanchar em delicadezas carinhosas com suas mãos grandes de rapaz nos cabelos
desgrenhados. Afundava-se em seus cheiros.

O medo de João vinha daí. Ana fora a única pessoa que o vira tão
completamente despido, sem máscaras, sem disciplina, sem compromissos.
Simplesmente um ser humano masculino de casual nome João no encontro com
outro ser humano também despido - e esse, feminino até as raízes dos cabelos
encaracolados - de casual nome Ana.

Só agora, vinte anos depois, percebe o quanto sua trajetória de vida foi
determinada por temores.

Nos breves momentos em que seus olhos castanhos cruzaram com os olhos
verdes de Ana Vera, pode ver a dor da separação e mais que isso. Ela ainda o
queria!

O cético e ateu João não se pode impedir de dar graças. Que a penitencia de
sua covardia passada não seja perder Ana Vera em definitivo.

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