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O PESCADOR – Parte 1

O ano atual é 2155. Formiga é a capital da província do Centro-Oeste, uma das mais
importantes regiões do estado de Minas-Rio-São Paulo. Hoje, o mundo está divido em dois
hemisférios, sul e norte. As comunicações nesses dias são muito variadas. Temos, além da
Internet interplanetária, a televisão holográfica e até a telepatia, que está oficializada. Por isso,
os telefones já não mais existem. Contudo, a novidade do momento é a recém-inventada
“máquina de retrocesso mental”, que nada mais é do que uma máquina do tempo. O aparelho
em questão, funciona da seguinte forma: quem quiser visitar o próprio passado (ir ao futuro é
proibido), dirige-se à rua Monsenhor João Ivo, número 100, onde, pela bagatela de 10 mentais
- equivalente a uma doação de 10 centímetros cúbicos de energia mental, geralmente usada
para a cura e ajuda aos pobres, aqueles de mente pouco desenvolvida – se dirige para uma
espécie de redoma de cristal envolta por espelhos. Então, utilizando o poder de sua vontade,
potencializada pelos espelhos, geradores de energia, o postulante concentra-se na época em
que deseja “visitar”. Até o momento ninguém conseguiu influenciar seu passado, visando
alterar o próprio futuro. Um acontecimento fortuito sempre re-posiciona a situação. Todo
viajante, portanto, é mero espectador de seu pretérito. No século 22, as classes sociais são
divididas de acordo com a evolução mental. Quem se preocupou em aprimorar a mente,
integra a chamada “elite dos mentais”. Rico é, por conseguinte, os que têm mente forte. O
líder dessa casta chama-se Pedro Advíncula, conhecido como “Justo”. Ninguém sabe ao
certo, mas acredita-se que ele tenha mais de 300 anos (a média de vida é de 200 anos). A
característica dessa poderosa autoridade é que seu corpo já está “sutilizado”, ou seja, ele
adquiriu uma pureza vibracional incomum, graças ao auxílio que presta aos pobres. Dizem
que ele não morrerá, diferentemente da maioria das pessoas. Quando sua missão terminar na
capital formiguense, Justo Advíncula será simplesmente remanejado para a outra dimensão,
onde continuará seu trabalho infindável. A função de Advíncula é dar conselhos, apontar os
melhores caminhos a serem trilhados. Na verdade, ele não fornece o cajado, como faziam
antigamente os pseudos pastores com seus rebanhos de desavisados. Os obstáculos desse
trajeto é que devem ser delineados pelo consulente que aprende a viver melhor de acordo com
a própria iniciativa e esforço. Nessas sessões de aconselhamento, que são públicas sempre
acontece um episódio surpreendente, digno de ser rememorado pela posteridade. Quando o
sábio marcou mais uma da chamada “Sessão da Plena Justiça”, uma onda de curiosidade
agitou à elite do mentais da vizinhança. Mentalistas de Arcos, Pains, Divinópolis, Piumhi e
Campo Belo não perdiam a oportunidade de ouvir seu líder. Assim, sob os olhares atentos da
platéia - composta principalmente por pessoas pobres da cidade - Advíncula, esboçando a
habitual serenidade, estava por encerrar os trabalhos do dia, fechando mais uma fecunda e
benemérita audiência, quando, ao entoar o clássico mantra, foi interrompido pelo seu fiel e
dedicado auxiliar, Paulo, falando-lhe em tom respeitoso: “Sapiente senhor, antes de terminar
este áureo momento, acaba de chegar no recinto uma pessoa ávida por lhe saudar sua
augusta entidade. Trata-se de um pescador que vive na orla da Lagoa...”, disse apontando
para um homem de rosto envelhecido, cenho franzido, muito magro e com o andar lento,
típico de quem estava cansado ou doente. Com uma cesta na mão, o pescador Marcelo,
apoiado numa bengala, manquitolou em direção à Advíncula. Sua aparência era de uns
duzentos e tantos anos, não obstante ser bem mais jovem. Isto acontecia porque era inveterado
dependente de tabaco e bebida. “Claro, Paulo. Aqui todos somos iguais, afinal! Aproxime-se,
jovem!”. O solicitante, curvando-se ante a presença de Advíncula, disse: “Nobre líder. Rogo à
sua infinita bondade que aceite esta honraria, um pequeno, mas significativo presente!” E o
pescador entregou ao Mestre uma cesta com peixes. Mas, contrariando a tradição, a cesta não
estava cheia! Pelo contrário, só tinha peixes pela metade! Murmúrios reverberaram na sala. A
milenar praxe rezava que, ao Mestre só poderia ser dado “regalo de plena significância”!
Aquilo era um desrespeito inominável... (continua)

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