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ADEUS (0 Ihe pedi que viesse: Pedi-lhe s6 que:as dez da noite, e pela Gltima vez, a sua lembranca me esperasse ao caminho. Cheguei cedo e€ sentei-me. Juando soasse a hora, eu queria senti-la ao pé de mim, no bem no seu corpo, nao bem nas. suas palavras, mas apenas naquele sossego harmonioso que tomava o mundo perfeito. No momento combinado, eu havia de respirar 0 sonho de quando nao sabia que era sonho. Tudo isto esté errado. Vejo-lhe daqui 0 erro fecha- doe exacto como um cubo' de pedra. Mas sei que: la dentro nao ha erros para fora. Por isso, espero. Nao Ihe pedira que viesse. Também nao tinha pedido a lua, ea lua veio, precisamente, quando pensei que era bom haver lua. Nao fiquei pois surpreendido, quando, & hora marcada, no caminho que vai a fonte, Marta apare- ceu tao leve como a sua lembranca. Percebi entio que as mimosas rescendiam através da noite sem medos. E que havia em roda pinheiros e veios de agua e que eu estava ali no meio de tudo. ‘Agora, mais perto de mim, ela trazia jé um cAntaro no brago. Mas nao parara na fonte e subira 0 carreiro até onde, do fundo da sua casa, devia despedir-se para sempre do meu destino. Quando saiu da sombra e me viu, parou. A lua vestia-a de noivado, a cauda do véu estendia-se por toda a terra que tinhamos pisado juntos. Assim queda, em pé diante de mim, eu se verdadeira como tudo 0 que era verdade a nossa volta. — Paulo! © caminho da serra corre ali aos nossos pés. Olho ancha branca, direita por entre os pinhais, até a0 alto de uma colina. Depois € tudo a vaguidao da noite, ndo © escuro de passos audazes, nem a luci- dez bastante dos pasos exactos, mas apenas uma luz velada, boa para todos os caminhos de quem no escuta as razdes do caminhar. Entio ela pousou o cantaro € o restolho rangeu quando se sentou. Eu tinha a certeza de que ela iria falar de qualquer coisa misteriosa e longinqua, qual- quer coisa ja morta, mas onde pudéssemos, dali donde estivamos, ver-nos ainda vivos, sem pensarmos no depois em que agora podfamos pensar. Tinha a certeza de que cla me levaria para um presente sem mem6- ria do pasado nem receio de um pasado no futuro. Eu estava ali de maos abertas e olhos d6ceis, encos- tado a um tronco de pinheiro. Entio ela contou dos patos que criara nessa primavera, das manhas altas de sol, do pao que vira semear. E eu gostei, naquela hora harmoniosa, de que ela falasse nos patos, no pio e nas _manhis. Agora todo 0 campo e toda a serra abriam num mistico perfume a lua e a cria¢do. Nao fugiamos pro- priamente a dor do momento; apenas escavavamos ‘com 0s dedos 0 chao da nossa angiistia, para tocarmos 10 © que © vento cobrira. Depois ficamos de novo em siléncio. Tinhamos mil coisas a dizer, mas todas elas nos ficavam to perto que podiam estrangular-nos se quisessem. Era conveniente dizer delas nfo 0 corpo rigoroso de unhas e dentes, ndo os pés de botas cardadas, mas apenas 0 bafo ligeiro ou os olhos que a distancia nao fossem senao olhos de olhar. Por isso ela me perguntou, quase assustada, quase supersticiosa de turvar os rios ¢ lagos de lua, coalhados a nossos pés: — Paulo! Porque escolheste esta vida? A aldeia estava a0 fundo, quieta, sem respirar, os ces uivavam das eiras para 0 céu. Ao longe, na serra um comboio silvou pela noite fora. Ouvia- -se perfeitamente o martelar das ferragens € 0 apito. E eu pensei: «Vai chover. Amanha ou depois chove. Quando se ouve © comboio, chove sempre» — Porque escolheste esta vida? ‘Agora a pergunta era tao clara que eu. ndo achei uma sombra para me esconder. De outras vezes, outra gente me perguntara o mesmo, E nunca soube respon- der. Falavam-me de fora, de outro mundo, com uma espreitando-me donde me nao suspeitasse, nao tinha razoes talhadas 4 medida do meu sonho. Os princi- da justiga, talvez tivessem envelhecido ‘acompanhar 0 meu anseio. S6 meti dentro de mim eu me compreendo todo sem razoes. Hei-de um dia tombar € arrefecer. Talvez entio me est4 sempre forgando os limites, mesmo da regra il que julgo dar-me, Um vento largo ergueu-se nao sei donde € arrebatou-me. Lembra-me bem como tudo aconteceu, Mas quando penso no que eu fui, ndo me parece que tenha acontecido nada de extraordindrio, £ como se eu tivesse jé nascido para isso. Meu pai as vezes dizia: «hoje vou ter sorten; ou: «hoje vai-me acontecer uma desgraca», O mais dificil era conven- cerse de que seria assim. Porque depois, durante © dia, s6 tinha de andar atento para achar a des- graca ou a sorte que profetizara. Mas nunca fui capaz de entender que arranjos da vida o faziam acredi- far assim nos antincios do seu destino. Havia sol ou chuva no céu, nem sempre o comer estava pronto a horas, as vezes filho mais novo chorava sem raz6es adultas, ou qualquer coisa parecida. Mas é dificil pensar que factos desses decidissem das certezas de meu pai. — Como explicar-te porque parti? ‘Tenho pés para andar e olhos para ver. Posso sentar-me ou posso fechar os olhos ¢ dizer que ndo ha sol nem estradas. Mas eu sei que hi estradas ¢ sol € que os olhos véem © os pés andam. Por mais que eu queira, quando sei por dentro que uma coisa estd certa, eu tenho de saber que esté certa. E ainda que os outros saibam que esta errada, isso ndo me ajuda, — Nao me ajuda nada, Marta Mas como convencé-la? As razdes sio tanto 0 que somos, que s6 nascendo outra vez as poderemos renegar. Talvez Marta o acreditasse enfim, porque, sentada, enlagou as maos a frente dos joelhos unidos € se calou de vez, Jé ndo tinhamos que dizer, mas © eco das nossas vozes € 0 vapor quente 12 fluido es- jim acharmos (© que nos tomnava distintos. A lua vogava agora pela Agua alta do céu. Marta foi a primeira a erguer-se. Entio eu ergui-me também € apertei-lhe as mdos devagar: — Adeus! Caminhei pela vereda branca, lavado numa pureza desconhecida, anterior 4 minha humanidade, ¢ onde, ho entanto, eu me sentia todo inteiro, Quando cheguei a0 topo da colina, olhei ainda atras a auséncia de Marta. Mas lentamente, surpreso e todavia calmo, fui desc brindo Marta em pessoa, em pé, no meio do ca vestida de lua, esperando decerto como eu que to a serra e toda a aldeia ¢ tudo o que nos fora prome- tido ficasse enfim Wo diferente como quando ainda nao tinhamos nascido.

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