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1 -INTRODUÇÃO

Noventa e oito anos nos separam da abolição da escravatura. Estamos,


pois, às vésperas do centenário do fim da escravidão negra no Brasil.
Neste já longo período, poucos estudos sérios dimensionaram coerente-
PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO: mente o passado histórico do negro, tanto no período da escravidão, como no
as famílias escravas na agricultura fluminense (1835-1885) posterior, com a integração traumática do negro à sociedade brasileira.
— uma perspectiva comparativa* Os estudos perpassam, em geral, uma visão discriminatória do negro,
oscilando entre o preconceito explícito, por um lado, que exclui ou reduz o
seu papel, e por outro, não menos discriminador, que, embasado em um pa-
Renato Rocha Pitzer** ternalismo irritante, enaltece e idealiza a negritude, confirmando a grande
estranheza que nossa sociedade ainda possui em relação aos 'de cor'.
Se, para além disso, vislumbramos o problema da discriminação das
mulheres em nossa cotidianidade, e por extensão, a questão de ser mulher
negra neste Brasil, entramos em um campo bem mais delicado da história do
país.
Considerando que o estudo detalhado das famílias escravas é de grande
valia para o melhor esclarecimento e redimensionamento destas questões até
aqui levantadas, procuramos, a partir de três localidades distintas — localiza-
das no atual Estado do Rio de Janeiro —, perceber o que em cada uma delas
há de particular, e o que existe de semelhante entre elas, circunscrevendo tem-
poralmente a pesquisa, em um período que precede e sucede o fim do tráfico
negreiro, a fim de verificarmos as possíveis alterações provocadas por este na
consecução de famílias negras cativas.
Desde logo, faz-se necessário definirmos o que entendemos por família,
evitando que a generalidade do conceito termine por invalidar a pesquisa.
Para a existência de famílias escravas, consideramos essencial a existên-
cia "do laço conjugai (legítimo ou ilegítimo) ou de um laço de paternidade ou
maternidade"1.
Fugimos, assim, das interpretações que, procurando as noções de com-
padrio e parentesco, entendem a família de maneira mais ampla. A família
que nos interessa, pois, possui um caráter restrito, podendo-se compor de ape-
nas dois elementos (mãe/filho,pai/filho, marido/mulher).

Este trabalho mereceu o 1? lugar do prêmio de Ciência e Tecnologia (Área da Ciên-


cias Humanas) — 1986 da Universidade Federal Fluminense (UFF), contando com a 1.1 - REVISÃO HISTORIOGRAFICA
orientação do professor João Luiz Fragoso do Dept?de História da UFF. O Coletivo
Editorial optou por publicar o texto em sua forma original, em virtude de ser um tra- Este tema da família escrava nos pareceu interessante e polêmico quan-
balho premiado, tendo o autor incluído, ao final, um posfácio onde discute os desdo- do, observando a historiografia brasileira, notamos a ênfase dada à inexistên-
bramentos e autocríticas ao projeto.
cia de famílias escravas no escravismo sul-americano. Esta tese é por vezes
defendida de maneira dissimulada mas, na maioria dos casos, de forma enfáti-
ca. As principais argumentações utilizadas por diversos autores, como Vera
Ferlini, Jacob Gorender, Emília Viotti da Costa, Katia Mattoso e Stanley
" 24 anos, licenciado e mestrando em História pela UFF e membro do Coletivo Edito- Stein2, são as seguintes: a) precariedade ou inexistência de vida familiar; b) a
rial da Revista Arrabaldes. forte possibilidade de serem os escravos cônjuges ou filhos separados pela

30 Revista Arrabaldes. Ano l, n°. 1, maio/agosto 1988 Arrabaldes 31


venda a proprietários distintos; c) a prática de aborto proposital entre as es- negreiro deu-se de maneira indiferenciada em todo o Brasil, nos parece uma
cravas; d) a alta taxa de mortalidade infantil no meio escravo; e) a superiori- fórmula um tanto ingênua, decorrente das generalizações correntes na histo-
dade numérica de escravos do sexo feminino, o que levaria a um baixo índice riografia brasileira, que carecem dos devidos embasamentos empíricos.
de nascimentos.
Estas posições nos parecem problemáticas se não forem tratadas com o
devido cuidado. Raramente os estudos sobre a família escrava são acompanha- 1.2 -PERSPECTIVA COMPARATIVA
dos de um estudo da família de homens livres, onde se atentasse para o per-
centual de procriação destas famílias. Somente um estudo neste nível poderia Acreditamos, em vista disso, que o estudo comparativo é o mais fecun-
revelar se o índice de procriação e a existência de famílias eram tão insignifi- do para a construção de sínteses gerais, a partir do estudo minucioso de mais
cantes no meio escravo como pretenderam demonstrar os autores citados. Al- de uma localidade. E no caso de um trabalho detalhado a respeito das famílias
guns estudos recentes sobre a família têm demonstrado que a 'família nuclear', escravas, destacamos este método de pesquisa.
rigidamente estabelecida, não era hegemônica entre a população livre no O método comparativo é a única forma de superarmos a perspectiva po-
século XIX 3 . Como se exigir, portanto, tal rigidez da família escrava? A res- sitivista da descrição, passando para a explicação, distinguindo os elementos
peito do desequilíbrio existente entre os homens e as mulheres escravas, gos- específicos daqueles ocasionais, no dizer de Ciro Cardoso:
taríamos de recordar que, também aí, a preferência recai em demonstrar-se o "Esta é uma tendência que de fato constitui um processo
essencial no caminho para a sistematizaçSo dos conhecimen-
baixo índice de nascimentos de escravos em relação ao número de cativos tos, entre outras causas porque possibilita ao observador afas-
do sexo masculino. Ao nosso ver, a perspectiva mais frutífera seria a de per- tar-se de seu próprio ponto de observação, de sua sociedade
guntarmos quantas escravas em idade madura procriaram neste ou naquele particular: sem o que nSo há objetividade possível nas ciên-
período, e quantas das que procriaram eram casadas (legítima ou ilegitima- cias sociais" .
mente). As localidades em que pretendemos nos deter estão circunscritas ao
Dois pontos parecem importantes para a tomada de posição daqueles atual Estado do Rio de Janeiro, no período que vai de 1835 a 1885, e são as
autores por nós citados: seguintes: Paraíba do Sul, Petrópolis e Capivary.
a) Em primeiro lugar, a retomada, ainda que despida da roupagem racis- Paraíba do Sul caracteriza-se fundamentalmente pela produção agro-
ta, dos pressupostos de Gilberto Freire4, que compreendia a impossibilidade exportadora de café, fundada na exploração da mão-de-obra escrava. Petró-
da existência da família escrava, na medida em que a autoridade do senhor da polis distingue-se pela pequena produção agropecuária, realizada majorita-
fazenda impediria que o marido ou mulher escravos possuíssem qualquer riamente por imigrantes livres alemães com destino ao mercado local. Final-
autonomia familiar. A família patriarcal do senhor abrangeria sua mulher, mente, Capivary caracteriza-se pela produção, pequena e média, de café (de
seus filhos, seus afilhados, agregados e escravos. Esta família ampla, somada qualidade inferior ao do Vale do Paraíba) e alimentos, ambos para o mercado
aos diversos elementos acima arrolados, inviabilizaria a família escrava. interno, utilizando tanto o negro cativo no processo produtivo, com os ho-
b) Em segundo lugar, o referencial utilizado por estes autores — para mens livres pobres do município.
afirmarem a 'esterilidade' do escravismo brasileiro — é o Sul dos Estados Uni-
dos da América, que se caracteriza por um alto índice na formação de famí-
lias escravas e uma alta taxa de natalidade entre os cativos. Como já objeta- 1.3 -PROPÓSITOS E PRESSUPOSIÇÕES
mos, o mais razoável seria termos como referencial a sociedade em que os pró-
prios cativos vivem, rompendo com a dualidade (Escravismo na América Lati- Nosso objetivo é, portanto, demonstrar a existência de vida familiar cati-
na = Estéril x Escravismo no Sul dos EUA = Fértil) 5 . Além disso, quando va nestas localidades distintas, procurando perceber as nuanças destas famílias
pensássemos em influências efetivas provindas do exterior, deveríamos estu- em relação ao processo produtivo em que se inserem. Vida familiar que, ape-
dar com mais atenção as sociedades africanas de onde provêm os negros cati- sar de dever obediência, respeito e favores ao Senhor, possuía uma relativa
vos, a fim de desprezarmos as interpretações correntes que persistem, por autonomia em face deste.
exemplo, em associar a poligamia africana à promiscuidade, devassidão, etc.6. Como pressuposto principal, procuraremos demonstrar que as famílias
Outra tese criticável é aquela que advoga o fim do tráfico negreiro escravas interferiam efetivamente no cálculo econômico do senhor escravocra-
(1850), cujos defensores vêem uma ruptura imediata e uma relação direta de ta. Quando estes transmitiam herança ou vendiam seus escravos, deveriam
causa-efeito (fim do tráfico negreiro = maior incentivo por parte dos senhores pensar como partilhar ou vender sem dissociar as famílias escravas estabele-
â procriação) 7 . Esta interpretação despreza a heterogeneidadeeconômica bra- cidas. A transmissão desta propriedade dava-se hegemonicamente, ao nosso
sileira em meados do século passado. Pensar que o impacto do final do tráfico ver, de forma coletiva (o 'lote familar') e não individual (a unidade escrava).

32 Arrabaldes Arrabaldes 33
Subsidiando esta hipótese, verificar, a partir da construção de séries, Conforme o censo de 1840, a população do município era de 11.586
se há um impacto imediato, decorrente do fim do tráfico negreiro, na taxa de habitantes, com uma densidade demográfica bastante baixa (9 habitantes por
procriação e de famflias escravas, ou se — como pudemos averiguar em Pa- km 2 ) 14 . Torna-se claro que esta baixa densidade coloca em evidência a ques-
raíba do Sul — este reflexo se sentirá posteriormente e de maneira diferencia- tão da mão-de-obra necessária a mover esta economia.
da nas diversas localidades. Estudar se há uma variação (tanto no tempo como A mão-de-obra utilizada será a do negro cativo, provenientemente majo-
no espaço) do período intergenético das negras cativas. Verificar, ainda, se as ritariamente da África, como podemos verificar na Tabela I.
uniões entre escravos, explicitadas nos inventários post mortem, eram reali-
zadas à luz da Igreja Católica (casamentos legítimos) ou eram relações de TABELA I: Distribuição Entre Africanos e Crioulos em Relação ao
concubinato (casamentos ilegítimos). Plantei Total-Paraíba do Sul (1835-1869).
Finalizando esta parte do trabalho, devemos salientar que a pesquisa
em Paraíba do Sul já está relativamente amadurecida9 e que os principais
questionamentos sobre as famílias escravas surgiram a partir do contato com período africanos crioulos n? de escravos n? de inventários
esta localidade, sendo, pois, ela norteadora de nossas presentes preocupações.

2 -PARAÍBA DO SUL: UM PONTO DE PARTIDA 1835/39 56,7 43,3 712 31


2.1 -BREVE RELATO HISTÓRICO 1840/49 62,3 37,7 509 23
1 850/54 64,5 35,5 411 14
O município de Paraíba do Sul localiza-se no médio vale do rio que lhe 1855/59 50,7 49,3 1.021 31
dá o nome, a meia distância entre as Minas Gerais e Rio de Janeiro, marcado 1860/64 42,2 57,8 1 .009 24
por uma topografia com relevos de pouca elevação — as chamadas 'meias la- 1865/69* 32,6 67,4 478 16
ranjas' — que tanto se adaptariam ao cultivo do café.
Em conjunto com Vassouras e Valença constituem-se nos municípios
Total 4.140 139
que mais produziram café, no já lendário Vale do Paraíba, durante o século
XIX.
* Inclui os inventários de 1870.
No início do séc. XIX, se caracterizava pela presença abundante de Fonte : Inventários Cartório de Paraíba do Sul.
matas e florestas virgens, e ainda por uma baixa densidade demográfica. Se- (Citado em FLORENTINO, Manolo G. e FRAGOSO, João L. R. Marcelino, filho de Ino-
gundo um cronista da época, "o total das pessoas adultas não passava de 500 cência, crioula, neto de Joana, cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do
(segundo o rol do Pároco)" 10 . Margeando-se a estrada nova, por ranchos de Sul (1835-1872). S,P. Revista de Estudos Econômicos. 17(2): 151-173. maio/ago. 1987.
arrear tropas — locais utilizados pelos tropeiros que vinham e voltavam de
Minas ao Rio de Janeiro, para descansarem a si e a seus animais —, contras- No entanto, podemos perceber, pela mesma tabela, a não desprezível
tando o intenso tráfego da estrada com a precariedade dos estabelecimentos participação dos crioulos — negros escravos nascidos no Brasil — à reprodução
que ali se encontravam. do plantei. Percebe-se que eles representam nunca menos que 35% do total
Em meados do séc. XIX, o desenvolvimento urbano não é significativo, dos escravos.
mas a agricultura apresenta diferenças notórias, para João Fragoso: Em síntese, os principais fatores para a reprodução do sistema escravis-
"Já nesta época o sistema agrário da economia de expor- ta-agrário-exportador em Paraíba do Sul são a terra e a mão-de-obra. No que
tação imprimia uma nova fisionomia aos campos de Paraíba
do Sul, As matas estavam sendo substituídas pelas fazendas
tange à mão-de-obra, existem duas formas de reprodução: a primeira ligada à
de café" 11 . compra de Africanos, e a segunda — que nos interessa em particular — ligado à
É, pois, o café que dará nova forma e vida ao nosso município, forma reprodução dos negros no Brasil (os crioulos).
esta indissociada do mercado externo, devido às características e valor inter-
nacional desta cultura. A técnica utilizada era a derrubada e queimada das 2.2 -A FAMÍLIA ESCRAVA
matas, demonstrando o caráter extensivo da produção. Segundo João Frago-
so, "a presença e disponibilidade das matas substituem a aplicação de um tra- Como salientamos anteriormente, a historiografia tem relutado em acei-
balho adicional na refertilização dos solos12", sendo portanto a fronteira tar a idéia da conformação de famílias escravas no seio do escravismo colo-
móvel da produção um elemento fundamental para sua reprodução13. nial, no século XIX. Apontando problemas como o do alto índice de mortan-

Arrabaldes Arrabaldes 35
dade infantil, a preferência de compra de escravos homens em idade produtiva TABELA III: Distribuição dos Escravos de Acordo com as Famílias —
(15 a 40 anos) 15 . Paraíba do Sul (1835-1869).
. Se é certo, como consideramos, que a mortalidade dos infantes fosse
altíssima, e que a desproporção entre homens e mulheres flagrante, como se
atesta pela Tabela II, não nos parece correto depreendermos daí, que este período n?de escravos unidos por n? de total de n? de
fato inviabilize a existência de famílias escravas. Nos inventáriosposf mortem famílias parentesco (%) mães escravos inventários
podemos verificar a existência das mesmas, como é possível aferir através da
Tabela III. 1835/39 66 39,2 61 525 10
1840/49 30 38,6 30 241 8
TABELA II: Distribuição Entre Homens e Mulheres em Relação ao 1850/54 43 31,7 35 378 4
Plantei Total - Paraíba do Sul (1835-1869). 31,7 96 935 16
1855/59 106
1860/64 129 44,3 124 951 15
1865/69* 60 42,5 60 459 7
período homens mulheres n? de escravos n? de inventários
(%) (%) T~*.,I /n/i arifi t ÍHQ m

1835/39 66,9 33,1 719 32 * Inclui os inventários de 1870.


1840/49 63,7 36,3 509 21 Fonte: Inventários Cartório de Paraíba do Sul.
(Citado em FLORENTINO, M. e FRAGOSO, J. -Marcelino. . ., p. 14).
1850/54 62,8 37,2 470 15
1855/59 64,6 35,4 1.301 15
1860/64 57,5 42,5 1.789 35
1865/69* 60,9 39,9 595 17 Uma variação de apenas 2,3% em 35 anos. Podemos, assim, afirmar que a ten-
dência à conformação de famílias precede o final do tráfico.
Durante as décadas de 1850 e 1860, o município sul-paraibano vive
Total 5.383 135
seu apogeu com a cultura do café. Sendo, pois, grande comprador de negros
cativos pelo mercado interno, no chamado tráfico interprovincial e, portanto,
* Inclui os inventários de 1870. ressentir-se-á tardiamente dos males do fim do tráfico internacional.
Fonte: Inventários Cartório de Paraíba do Sul.
(Citado em FLORENTINO, M. e FRAGOSO, J. - Marcelino. . . p. 11)

2.3 -MERCADO DE FAMÍLIAS ESCRAVAS?

Se cruzarmos as informações contidas na Tabela l com as da Tabela III, A questão do tráfico, ou melhor, da forma de se adquirir escravos, nos
verificaremos que, ainda que a opção dos senhores escravocratas fosse clara remete a uma outra problemática. A de sabermos como se devam as compras/
pelo tráfico negreiro, pelo menos 1/3 dos cativos estava ligado por laços de vendas de escravos e como se transmitiam os mesmos em heranças. O fato de
parentesco e conformando famílias. estarem eles ligados por laços familiares intervinha nesta transmissão? Estes
Mediante as informações contidas nestas três tabelas podemos, ainda, laços eram respeitados, ou as famílias eram desagregradas neste ato de trans-
contestar as posições que vêem o final do tráfico negreiro como um momento ferência de propriedade?
de grande ruptura na mentalidade do senhor escravocrata, ocasionando maior Uma primeira aproximação aos registros de compra e venda de escravos
incentivo por parte deste à procriação dos escravos. Se é óbvio que tal incen- em Paraíba do Sul nos levou a desenvolver a idéia de um 'mercado de famí-
tivo existiu com o fim do tráfico, isso não quer dizer que no período que pre- lias', ou seja, ao nosso ver as famílias escravas interferiam no cálculo econômi-
cede à sua revogação não existissem famílias escravas. A Tabela III demonstra co dos senhores escravocratas16. Temos em favor desta hipótese as partilhas
claramente que no período 1835/9 os escravos unidos por parentesco reu- constantes nos inventários post mortem. Em síntese, no ato de transmissão de
niam 39,2% do total do plantei, enquanto no período 1865/70, ou seja, 20 herança ou negociação de escravos, os seus proprietários, na maioria das vezes,
anos após a abolição do tráfico negreiro este número alcança a cifra de 42,5%. não disssociavam as famílias escravas estabelecidas. No inventário de Manoel

Arrabaldes 37
, Arrabaldes
Joaquim de Oliveira, fazendeiro de café em Paraíba do Sul, a inventariante, escravo, uma demonstração da capacidade de autonomia relativa do escravo
esposa do finado e meeira dos bens, requer que, para pagamento de sua mea- em relação ao senhor.
ção, lhe seja dada "parte dos cafezais do Sítio, Tapera, Gaite, Inhane, a Famí- "Não é diffcil perceber o peso do que aqui chamamos de
comunidade de cativos na própria gestão econômica das-em-
Ha do escravo Romão, a do escravo Augusto, Anna Parda. . ,"17. presas em questão, mais clara a partir de 1850, quando o mer-
As questões referentes à presença de famílias escravas, à existência de cado interno e a reprodução endógena se transformaram nos
um mercado para estas famílias, e à sua recorrência no tempo, apresentam-se pilares da reprodução do sistema" .
ainda como hipóteses a serem precisadas — apesar de a pesquisa em Paraíba Para concluir esta parte do trabalho, reiteramos que Paraíba do Sul é a
do Sul já estar um tanto encaminhada neste sentido. Não podemos deixar de referência teórica de nossa pesquisa, o ponto de partida para as demais regiões
lembrar que o presente texto não possui um caráter conclusivo, na medida em fluminenses, onde pretendemos verificar estas proposições até agora levanta-
que os registros de compra/venda de escravos n3o foram por nós trabalhados das.
sistematicamente.
Através dos inventários é possfvel reconstruir algumas árvores genealó-
cas de escravos, o que nos permitiria aferir a recorrência destas famílias no 3 -SOBRE A GENERALIDADE NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA/
tempo, visto que, OS CONTRAPONTOS: PETROPOLIS E CAPIVARY
"na verdade, na medida em que a famflia se repete no
tempo juntamente com o próprio sistema produtivo, ela deve- "A idéia de que um produto possa estruturar toda a eco-
rá ser considerada como um elemento estrutural para a estabi- nomia não parece comprovada nem por aqueles historiadores
lidade deste último" . que acreditam no poder organizador do produto-Rei. No fun-
do, o que permanece é a concepção de que os vínculos co-
merciais de um produto com o mercado mundial s3o suficien-
tes para dotá-lo de certa magia, que se irradia por todos os
2.4 -BRECHA CAMPONESA/FAMÍLIAS ESCRAVAS demais setores da economia colonial, dando-lhe um sentido
-COMUNIDADE ESCRAVA inequívoco; é incapaz de perceber que o sentido é dado a
posterior! pelo historiador que relaciona, organiza, seleciona
e expõe o seu material histórico. Entretanto, tal concepção
Algumas reflexões teóricas nortearam a confecção do presente projeto só tem favorecido uma visSo compartimentada e estanque
de pesquisa. No caso sul-paraibano, ganham particular importância as reflexões da história, como numa projeção de diapositivos: sai o pau-
desenvolvidas por Ciro Cardoso sobre a brecha camponesa no sistema escravis- brasil, entra o açúcar e assim por diante. Durante o período
de dominância do ouro ou dos diamantes, o aluno de histó-
ta. No chamado protocampesinato escravo, eram as "atividades agrícolas reali- ria — sobretudo os adolescentes — poderia indagar se o açú-
zadas por escravos nas parcelas, e no tempo para trabalhá-las, concedidas para car, ou mesmo o Nordeste continua existindo" .
este fim no interior das fazendas"19. Nesta 'brecha camponesa' o escravo pos-
A idéia central, criticada por Yedda Linhares e Francisco Carlos, é aque-
suía uma relativa autonomia produtiva, à margem da produção do senhor.
la que preconiza a existência de ciclos na economia brasileira, ou seja, após
Nos terrenos comuns "o trabalho era de tipo familiar, embora a abertura das
clareiras fosse realizada coletivamente"20. Em sua conclusão, esclarece que; o início de sua colonização, o Brasil vivenciaria diversos ciclos econômicos —
ciclo da extração do pau-brasil, da cana-de-açúcar, da mineração, do café,
"(. . .) nem todos os cativos se beneficiavam com o siste-
ma mencionado: os escravos domésticos e urbanos, e nas fa- etc. . . —, ciclos estes que teriam um período de ascensão, apogeu e decadên-
zendas em muitos casos os solteiros, não dispunham da possi- cia ou desaparecimento e que se sucederiam no tempo.
bilidade de exercer atividades econômicas"21. Tal análise leva, sem dúvida, a um desprezo das atividades econômicas
Ciro Cardoso vê na brecha camponesa um componente estrutural da menos lucrativas. Ainda que estas possam manter uma grande parcela popula-
economia escravocrata, na medida em que, contribuindo para a subsistência cional, são ignoradas ou relegadas a segundo plano por não se integrarem na
da mão-de-obra escrava, reduzia sobremaneira as perdas do senhor com a ali- 'economia de ponta' da sociedade. Para além de um desprezo às'atividades
mentação dos mesmos, além de atuar como uma válvula de escape para as desenvolvidas em outras regiões, desprezam também aquelas desenvolvidas
insatisfações dos escravos22. na própria localidade onde o 'ciclo' ocorre. Por exemplo, em Paraíba do Sul
Se introduzirmos a estas reflexões a idéia de famílias escravas estáveis havia a produção de alimentos realizada tanto por homens livres pobres como
no tempo, temos quase um círculo que se fecha em torno de si mesmo. Uma por escravos, nas parcelas a eles destinadas para este fim. No entanto, tal pro-
vida na lavoura de café, mas, sobretudo, uma vida marginal que não nega a dução ligada ao abastecimento interno é-negada pela historiografia, em virtu-
a, e ao contrário, é um fator de 'estabilidade' social na relação senhor- de de "uma visão plantacionista da sociedade colonial"25.

Arrabaldes Arrabaldes 39
l
De tudo que foi dito, fica patente a generalidade despropositada da his-
Imperial de Verão e o arrendamento da fazenda para o encaminhamento de
toriografia tradicional brasileira. Generalizações que não levam em conside-
um projeto de colonização, criando-se assim o núcleo de povoamento que um
ração as diversidades econômicas e sociais da sociedade em questão, e que
dos projetistas (Paulo Barbosa, Mordomo da Casa Imperial) denominou de
revelam sobretudo um baixo embasamento empírico às afirmações que se
"Povoacão-Palácio de Petrópolis".
querem gerais.
Em 1845, chegam a Petrópolis aproximadamente 2.000 alemães. Vi-
Entretanto, não desejamos com isso voltar-nos a um empiricismo posi- nham eles em famílias e a cada família era dado um 'prazo' de terras que os
tivista. Pleiteamos alcançar o geral através de um estudo do particular, e "nes- colonos poderiam dispor em usufruto, cabendo a propriedade ao Imperador.
te caso é perfeitamente válido e possível abordar a análise das estruturas Provinham os colonos em sua maioria de zonas rurais, expulsos de suas terras
parciais, com a condição de não perder de vista as determinações globais"26.
pelo processo de capitalização dos campos europeus. No entanto, não se pode
É neste sentido que consideramos imprescindível a uma pesquisa sobre negar que existissem entre eles grande parcela de artesãos, com uma vida urba-
famílias escravas no Rio de Janeiro, um estudo do comportamento destas fa-
na bem desenvolvida.
mílias em localidades tipicamente distintas. Procurando formular um modelo
Em 1846, o Arraial do Porto da Estrela é elevado à categoria de Vila da
que esteja aberto às suas vicissitudes conjunturais e distinguindo-se o compor-
Estrela, freguesia de S. Pedro de Alcântara de Petrópolis.
tamento familiar particular do geral.
Desde princípios da fundação da colônia, salta aos olhos o caráter urba-
Desta forma, passamos a uma discussão sumária dos casos que farão con- no que ela vai tomando: os prazos de terras não erarn suficientes para que os
traponto ao modelo sul-paraibano.
colonos se dedicassem exclusivamente à agricultura, terão logo de início que
desenvolver atividades não agrícolas para sobreviver. Praticam com freqüência
a criação (de porcos e vacas principalmente), que atendia tanto ao mercado
3.1 -PETROPOLIS
interno como reduzia a necessidade de comprar tais produtos e seus derivados
no mercado, reduzindo assim as despezas caseiras. Participam da construção
3.1.1. - PARA NOS SITUARMOS
do Palácio, das obras para abertura da Estrada Normal da Estrela, e da cons-
trução de pontes, escolas, igrejas, etc. . . Tendo, ainda, do ponto de vista da
A localidade que pretendemos estudar está situada na Serra do Mar, a
urbanidade, o surgimento desde o princípio de um artesanato (marceneiros,
uma altitude de 840 metros, mais precisamente, no alto da Serra da Estrela,
oleiros, ferramenteiros, etc.) que desempenhava papel importantíssimo no
distando 40 km do Rio de Janeiro. A altitude imprime ao clima temperaturas
estabelecimento da Colônia.
baixas, e a floresta, ainda hoje abundante, contribui para que a região petro- Vale esclarecer que estas atividades não possuíam um caráter antagôni-
politana seja bastante úmida. As chuvas são freqüentes o ano todo, ocasiona- co ou contraditório. Ao nosso ver tinham um caráter complementar. Ao que
das pelo encontro das massas úmidas, advindas do mar atlântico, com a Serra
parece, existia uma relativa divisão familiar do trabalho, saindo o homem a
do Mar. Tanto a topografia como o clima desestimularam, desde os primór- trabalhar em atividades mais distantes da terra, e a mulher e filhos desenvol-
dios da ocupação, o plantio de café, ocasionando um povoamento tardio nes-
vendo a criação e a agricultura.
ta região.
Em 1854 é inaugurada a estrada de ferro unindo a Praia da Estrela à
Com o descobrimento de ouro nas Minas Gerais no século XVIII, pas- Raiz da Serra de Petrópolis. Dois anos após, tem início a construção da Estra-
sou a ser urgente a construção de um caminho que facilitasse o acesso e o
da União-lndústria, que ligaria Petrópolis a Juiz de Fora (MG) 28 . Em 1857, a
transporte do interior mineiro ao litoral fluminense, sendo então, em 1725,
Vila de Petrópolis é elevada à condição de Cidade, instalando-se em 1859
concluída a construção do chamado 'Caminho Novo', que ligava Minas Ge-
a Câmara Municipal de Petrópolis.
rais ao Rio de Janeiro, saindo do Porto da Estrela, localizado ao fundo da A manufatura e a indústria também aumentaram, e Petrópolis chegará
Baía de Guanabara, atingindo o Alto da Serra petropolitana, cortando o Rio ao final do século com um parque industrial que congregava cerca de 2.000
Paraíba do Sul e chegando finalmenteà capitania de Minas Gerais27. Em 1837,
operários, tendo como atividade principal a produção têxtil.
são feitos melhoramentos no 'Caminho Novo', empregando-se alguns traba- Enfim, a comunidade de Petrópolis se desenvolve de modo claramente
lhadores alemães nesta obra, sob a gerência do Engenheiro Júlio Koeler. Este
distinto das formas escravistas agroexportadoras encontradas no decorrer do
caminho seria, durante o século XIX, o principal escoadouro do café produzi-
século XIX. Sua produção não se destina ao mercado externo e nem se baseia
do no Vale do Paraíba.
na mão-de-obra escrava.
Em 1830, a família imperial adquire, por compra, a Fazenda do Córre- A bibliografia a respeito de Petrópolis possui diversos problemas ligados
go Soco, que corresponde a grande parte da área onde atualmente situa-se Pe-
à formação dos historiadores que a produziram. Marcados profundamente pe-
trópolis. Treze anos depois, D. Pedro II aprova a construção de um Palácio
lo positivismo, preferem exaltar personalidades e a operosidade do colono ale-

Arrabaldes Arrabaldes 41
mão, desprezando análises de maior profundidade teórica. Os trabalhos de Temos então que lançar mão de fontes que complementem o nosso es-
boa qualidade são poucos, carecendo assim ainda a comunidade de uma pes- tudo. As evidências quanto às famílias escravas, neste período anterior a
quisa mais aprofundada29. 1845, encontram-se em relatos de época, como o depoimento do alemão C.
Schilichthoret, que, descrevendo uma viagem marítima entre o Rio de Janeiro
3.1.2 - NEGROS NA COMUNIDADE BRANCA e o porto da Estrela, nos diz o seguinte:
"Gordíssima negra estabelecera à proa da embarcação
uma cantina ambulante, servindo excelente café. A filha, es-
Os negros poucas vezes são citados nos estudos desenvolvidos por estu-
perta menina de 12 anos, ao trazer-me minha caneca, cha-
diosos dos assuntos históricos petropolitanos. Um leitor inadvertido poderia, mou-me de 'Excelência' e me beijou a mSo (. . .)"31.
facilmente, imaginar a completa inexistência do negro, cativo ou não, na co- Explicitando uma relação mãe-filha, ainda que não saibamos se esta
munidade a que nos curvamos. No entanto, eles estão presentes mesmo no negra era cativa ou liberta.
período anterior à fundação da colônia, e em 1854, já com o núcleo coloni- Outra fonte rica, que pode — e deve — ser utilizada são os testamentos.
zador germânico bastante consolidado, os negros totalizavam 12,5% da popu- A título de exemplo, citamos o do padre Luiz Gonçalves Dias Correia,
lação da Imperial Colônia de Petrópolis. proprietário da Fazenda Samambaia, em Petrópolis, feito em 1844, e que diz
Segundo o Diretor da dita Colônia, a população total era de 5.280 al- o seguinte:
mas, sendo 2.743 colonos alemães, 2.501 extracolonos (de diversas nacionali- "(. . .) Dei liberdade aos meus escravos Guido e a sua
dades), 623 escravos e 36 africanos livres30. Ou seja, os escravos representa- mulher Lucinda, pretos e africanos, igualmente a seu filho
vam 11,7% da população, o que certamente não deve descriteriosamente ser Abraão, etambém a Emerenciana e aGetúlio. (. . .) Por minha
desprezado na análise da comunidade. morte deixo também libertos os meus escravos Gil e sua mu-
lher Damiana, Reinaldo e sua mulher Claudina, com a condi-
E é justamente sobre este núcleo que gravita a nossa preocupação. Com- ção de servirem aos meus herdeiros por espaço de dois anos.
preender como as famílias escravas se comportam em uma comunidade majo- (. . .) Deixo em legado aos meus libertos AbraSo e à sua mu-
ritariamente assentada sobre o trabalho livre, marcada pela urbanidade e n3o lher, se a tiver, a Getúlio e a Emerenciana, se já estiverem
pela união pura e simples do homem à terra. Como se desenvolverão as famí- casados, o usufruto do terreno. Casas, pomar e benfeito-
rias". . . .
lias escravas sem o componente de uma produção agrícola relativamente autô-
noma (como vimos no caso sul-paraibano, com a brecha camponesa)? Ter a A utilização dessas fontes não deve ser feita de maneira aleatória, e sim
família escrava petropolitana a mesma estabilidade que acreditamos terem sistematicamente, a fim de percebermos as mudanças na estrutura das famílias
conseguido as sul-paraibanas? cativas no tempo e no espaço.
Em diversas atitividades, os colonos alemães labutavam lado a lado com Concluindo esta parte, desejamos realçar a relevância do tema das famí-
os negros escravos, como na construção da Estrada Normal da Estrela, inicia- lias em Petrópolis, na medida em que um estudo sistemático pode 'prever', ou
da em 1843, ou nas obras do Palácio Imperial de Verão. melhor, antecipar um pouco daquilo que ocorreria com a mão-de-obra cativa
Interessante observarmos que a vinculação pejorativa, tão freqüente- após a abolição, inserida repentinamente numa sociedade cujo trabalho se tor-
mente feita nas zonas agroexportadoras brasileiras, do trabalho manual en- nara livre no mercado.
quanto o trabalho escravo não parece ter correspondência nesta localidade Enquanto a totalidade da economia brasileira se movia pela mão-de-
que pretendemos estudar. O trabalho manual era exaltado. Poder-se-ia objetar obra escrava, sendo, pois, o trabalho livre marginal, em Petrópolis ocorre exa-
que, pejorativamente, se dissesse que o trabalho escravo era de baixa qualida- tamente o contrário, à margem da produção, encontramos o trabalho cativo.
de, mas não discriminá-lo por ser manual.
Outro ponto que nos chamou atenção é que, segundo os inventários por
nós consultados em Paraíba do Sul, aparecem com freqüência, nas contas dos 3.2-CAPIVARY
fazendeiros falecidos, recibos de compras de escravos feitos na Serra da Estre-
la, o que demonstra que, em Petrópolis, existiria um comércio bastante abun- A última região da qual pretendemos averiguar as famílias escravas é
dante de compra e venda de escravos. Capivary, atual Silva Jardim. Salientamos que o nosso contato com esta região
As fontes que utilizaremos para esta pesquisa serão, preferencialmente, se dá apenas através da leitura da tese de mestrado de Hebe de Castro e do
os inventários post mortem e os registros paroquiais. Entretanto, para o perío- contato com a própria autora33. Sendo assim, o estudo nesta localidade é o
do que precede a fundação da Colônia, necessitamos de um levantamento que se encontra em estágio mais inicial.
mais profundo das fontes a serem utilizadas, devido à quantidade de inventá- Localizado nos contrafortes da Serra do Mar, Capivary se insere em uma
rios, antes da fundação, ser muito reduzida e nos parecer insatisfatória. micro região na qual podemos inserir os municípios de Rio Bonito, Cachoeira

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de Macacu e partes de Campos e Macaé, caracterizados, a grosso modo, pela tráfico negreiro foram bastante distintas daquelas encontradas em Paraíba
baixa altitude e por morros, pequenas colinas arredondadas, as "meias-laran- do Sul. A produção cafeeira escravista deixa de crescer, e o número de escra-
jas", que não ultrapassem algumas dezenas de metros34, quase totalmente já vos novos que entram no local é bastante inexpressivo após 1850.
destruídos em nosso século, devido ao desgaste ocasionado pelo uso exausti- No entanto, a quantidade de escravos que continuou na comunidade
vo, principalmente com a cultura cafeeira. não pode ser considerada inexpressiva:
As dificuldades ecológicas do local impuseram, desde o início, uma as- "Na verdade, o decréscimo geral dos estoques e o pequeno
sociação do café com culturas de subsistência. desequilíbrio, por sexo, dos planteis, em Capivary, comparati-
A ocupação de Capivary se dá tardiamente, e será a produção cafeeira vamente a outras regiões, mesmo nas faixas etárias mais dire-
tamente produtivas, além de indicarem a limitaçSo da entrada
que levara', na 1a metade do séc. XIX, o povoamento a esta região — um po- de escravos na região, n3o deixam de confirmar a tendência,
voamento lento, se comparado com as regiões produtoras do Vale do Paraíba, revelada pela análise dos inventários dos 'fazendeiros', de ma-
e distinguindo-se por um crescimento substantivo das populações livres, du- nutenção de algum m'vel de rejuvenescimento dos planteis a
rante todo o período escravista. partir do crescimento natural, que mesmo negativo deveria
mostrar-se superior ao de outras regiões, ao mesmo tempo
A avidez de terras para o cultivo do café neste período configura uma
que, disperso por toda comunidade, beneficiava preferencial-
fortíssima concentração fundiária na localidade. Quanto à população escrava, mente seus maiores produtores" .
representava, em meados do séc. XIX, 38,5% de toda população recenseada35,
Do dito, depreende-se que há uma tendência ao equilíbrio entre homens
demonstrando a importância da agricultura comercial e exportadora no muni-
e mulheres escravas e um maior incremento do crescimento natural dos escra-
cípio. vos após 1850, levando-nos assim a questionar se a existência de famílias con-
Devemos aqui, relativizar o dito, comparando-o com as zonas 'de pon-
tribuiu ou não para esse crescimento natural.
ta' da economia nacional do período. Ora, se temos um número representa- Outra tentativa que devemos fazer é a de reconstituir o processo de ven-
tivo de escravos em termos locais, em termos relativos eles representam a 6? da dos escravos para outros municípios, verificando como este mercado fun-
menor cifra da Província. Cabendo ainda ressalvar que o café produzido ali cionava, e se, como acreditamos, as transações com escravos eram feitas em
era de baixa qualidade e não tinha como concorrer com aquele produzido no
família.
Vale do Paraíba, estabelecendo-se assim a ocupação, por parte deste café, in-
Enfim, pensar as vicissitudes da família escrava diante de uma comuni-
ferior, no abastecimento do mercado interno.
dade pobre, onde até mesmo seus fazendeiros — se comparados aos de Paraíba
Hebe de Castro demonstra o impacto que ressente a economia local
do Sul — são bem menos abastados.
com o final do tráfico negreiro em 1850, ocasionando um aumento vertigino-
so no preço dos escravos. Agravado em muito, se pensarmos que a localidade
tratada possuía uma baixa produtividade de artigos ligados ao mercado inter-
nacional, advindo daí uma deteriorização financeira precoce, obstaculizando
a sua capacidade de reprodução36. 4 -POSFÁCIO:
Capivary se caracterizará, com o fim do tráfico, como uma região forne-
cedora da mão-de-obra cativa, integrando-se no comércio interprovincial pela Diversos elementos nos levaram a redimensionar a pesquisa que vínha-
enorme sangria de escravos. Tal elemento estimula ainda mais a intromissão, mos desenvolvendo, transformando-a, em parte, em decorrência de algumas
por parte dos homens livres pobres, no desenvolvimento de uma agricultura reflexões posteriores à elaboração do projeto. Eis o porquê do presente posfá-
policultora, com vistas ao mercado local, utilizando apenas tangencialmente cio, onde pretendemos apontar os 'novos' rumos do trabalho.
a mão-de-obra cativa. Como vimos, a problemática das famílias escravas carece de estudos sis-
Sobre a diversidade de culturas desenvolvidas nestas unidades agrícolas temáticos em nosso país, sendo este aspecto ainda mais marcante quando es-
pelos 'homens livres pobres' , cabe-nos observar que se distinguiam dos esta- tudamos o caso do Rio de Janeiro. A polêmica que este tema encerra exigiu,
belecimentos escravistas comerciais de Capivary, mais em grau do que em na- de nossa parte, um cuidado redobrado. Diversos questionamentos surgiram
tureza. Os homens livres também produziam café. Entretanto, este produto acerca da fecundidade da comparação de três localidades diferenciadas no que
não apresentava crescimentos, matendo-se estabilizado em termos de número diz respeito à sua lógica interna. Sendo assim, optamos estudar mais detida-
de cafezais, no tempo. Produzia preferencial e majoritariamente mandioca, mente aquelas localidades que se caracterizassem fundamentalmente pela
árvores frutíferas, milho e feijão. Lembrando-se também, que, as zonas escra- produção agro-exportadora de café, balizada na mão-de-obra escrava. Desta
vistas comerciais desenvolviam estas culturas. forma, resolvemos aprofundar a pesquisa iniciada em Paraíba do Sul e esco-
Ao que parece, no município de Capivary, as conseqüências do fim do lher outra localidade que se aproximasse essencialmente desta - no caso, Va-

44 Arrabaldes Arrabaldes 45
lença -, com o intuito de construirmos um modelo de famílias escravas em 10 Francisco Pizarro, citado por FRAGOSO, João. "Sistemas agrários em Paraíba do
economias tipicamente agro-expotadoras38. Sul", dissertação de Mestrado IFCS-UFRJ, 1983, p. 53.
Enfim, no momento atual, pretendemos aprofundar a tentativa de cons-
11 FRAGOSO, João. op. cit. p. 15.
trução deste modelo para, em seguida, retornarmos com maior embasamento
ao projeto inicial ora apresentado. 12 Idem, p. 19.

13 Idem, p. 23.

14 Idem, p. 41.
NOTAS:
15 STEIN, Stanley, op. cit.
1 SI L VA, Maria Beatriz Nizza da. Sistemas de casamento no Brasil Colonial. SP, T. A.
Queiroz Edit. e EDUSP, 1984, pág. 4. 16 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João. "Marcelino, filho de Inocência, criou-
la, neta de Joana, cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul
2 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. X» Civilização do açúcar - séc. XVI a XVIII. SP, Edit. (1835-1872)", São Paulo. Revista de Estudos Econômicos. 17(2): 151-173. maio/
Brasiliense, 1984; GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. SP, Edit. Atica, ago. 1987.
1980; COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. SP, DIFEL, 1966; MATTO- 17 Inventário de Manoel Joaquim de Oliveira (1862). Cartório do 1? Ofício de Paraíba
SO, Kátia M. de Queiroz. Ser escravo no Brasil. SP, Edit. Brasiliense, 1982; STEIN, do Sul, p. 56. Grifo nosso.
Stanley. Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba. SP, Edit. Brasilisense,
1961. 18 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, JoSo. op. cit. p. 17.
3 SAMARA, Eni Mesquita de. A família brasileira. SP, Edit. Brasiliense, 1984.
19 CARDOSO, Ciro Flamarion. "A brecha camponesa no sistema escravista". IN: Agri-
4 FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala — formação da economia brasileira sob o cultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis, Vozes, 1982, p. 135.
regime da economia patriarcal. RJ, José Olympio, 1984.
20 Idem. p. 145.
5 A respeito da formação de famílias no sul dos EUA e nas Antilhas, ver o estudo de
KLE|N, Hebert S. Slavery in the Américas. A comparativa study of Cuba and Virgí- 21 Idem, p. 149. Grifo nosso.
nia. Chicago, University Press, 1967.
22 Ver, além de CIRO, Cardoso. LINHARES, Maria Yedda e SILVA, Francisco Carlos
6 GARCIA, Manolo Florentino. La trata Atlântica de esclavos y Ias sociedades agrá- Teixeira da. História da agricultura brasileira: combates e controvérsias. SP, Edit.
rias dei África occidental. México, El Colégio de México, 1985. Brasiliense, 1981, p. 131; FORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João, op. cit. p. 26.

7 "... as fontes de abastecimento de escravos nunca se esgotaram até 1850. Comprar 23 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João. op. cit. p. 27.
negros adultos é mais barato do que criar filhos escravos. . ." — MATTOSO, Katia.
op. cit. p. 127; "A grande alta dos preços dos escravos e a cessação das importações 24 LINHARES, Maria Yedda e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p. 113.
de africanos difundiram entre os fazendeiros de café, em meados do século XIX,
maior interesse na procriação dos seus escravos. Com o aumento da diferença entre 25 Idem, p. 117.
o custo de criação do escravo e o seu preço quando adulto, tornava-se vantajoso es-
timular e proteger a procriação no meio dos planteis" —GORENDER, Jacob, op. cit. 26 CARDOSO, Ciro. "História da Agricultura e História Regional: perspectivas meto-
p. 345; "O tráfico regular até 1850 garantia o abastecimento de negros e comprar dológicas e linhas de pesquisa", in: op. cit. p. 14.
escravos adultos saía mais barato do que criar seus filhos" — FERLINI, Vera, op. cit.
p. 84; "Até a cessação do tráfico, a população masculina representava, em certas 27 PITZER, Jorge Rocha e LAGO, Marta. "Criadores-Artesãos. O processo de proleta-
regiões, a grande maioria: cerca de 70% da população escrava. Essa diferença tendia rizaçSo dos colonos alemães em Petrópolis — 1846-1900". Projeto de pesquisa apre-
a diminuir à medida em que passaram a predominar os escravos nascidos no Brasil" sentado ao CNPq, 1986, p. 06.
- COSTA, Emflia Viotti da. op. cit, p. 267.
28 Idem, p. 05.
8 PEREZ BRIGNOLI, Héctor e CARDOSO, Ciro. Os métodos da história. RJ, Edit.
Graal, p. 410. 29 Trabalhos sobre Petrópolis: MARTINS, Ismênia de Lima. "Subsídios para a história
da industrialização de Petrópolis - 1850-1930". Petrópolis, UCP, 1983; SOUZA,
9 Nosso contato com a localidade sul-paraibana se deu em decorrência de nosso traba- Amélia Maria de. "Considerações sobre a historiografia petropolitana, Petrópolis,
lho enquanto assistente de pesquisa de João Luiz Ribeiro Fragoso, que realiza atual- UCP, 1975, PITZER, Jorge e LAGO, Marta. Op. cit.
mente estudos para a elaboração de sua tese de Doutorado "Escravidão e formas
de acumulação em uma economia agro-exportadora: médio-vale de Paraíba do Sul 30 Cópia do Relatório do Estado da Imperial Colônia de Petrópolis, 1855. Museu His-
(1790-1888)". tórico de Petrópolis.

46 Arrabaldes Arrabaldes 47
31 Citado por RABACO, Henrique. História de Petrópolis, Petrópolis, Instituto Histó-
rico de Petrópolis. UCP, 1985, p. 129.

32 Idem, ibidem.

33 CASTRO, Hebe de. "À Margem da História: homens livres pobres e pequena produ-
ção na crise do trabalho escravo". Dissertação de Mestrado UFF — Niterói, 1985.

34 Idem, p. 31.

35 Idem, p. 77.

36 Idem, p. 91.

37 Idem, p. 104. Grifo nosso.

38 PITZER, Renato Rocha: Tentativa de construção de um modelo de famílias escra-


vas em economias tipicamente agro-exportadoras: Vale do Paraíba (1835-1885).
Projeto de Pesquisa aprovado pelo CNPq, 1987, sob orientação da Professora Maria
Yedda Leite Linhares.

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