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Capítulo III

OS MAUS USOS DA FÉ

Ignorância e fé

Por vezes os dogmas não têm sido compreendidos e expostos segundo o seu verdadeiro conteúdo,
assim como se tem confundido tradição com verdade religiosa. Simples opiniões difundidas numa
determinada época foram consideradas verdades de fé. Já SÓCRATES foi condenado à morte por
uma situação destas.

J.L. David – Morte de Sócrates


http://en.wikipedia.org/wiki/The_Death_of_Socrates

Esta estranha associação entre ignorância e um conceito errado de fé foram em determinadas épocas
um grande entrave para o avanço da ciência e a evolução do pensamento. Vejamos alguns exemplos.

Dissecção de cadáveres

A dissecção de cadáveres já se praticava em Alexandria no tempo dos Ptolomeus. ERASISTRATO


(310-250 AC) e HERÓFILO (335-285 AC) deviam os seus conhecimentos anatómicos às autópsias
que efectuaram.
Todavia estas práticas deixaram de se efectuar, e a anatomia galénica já era baseada exclusivamente
na dissecção de animais. No início da Idade Média as dissecações humanas estavam proibidas devido
à crença na ressurreição da carne ao medo inspirado pelos cadáveres. Foram necessárias muitas lutas
e muita perseverança para se chegar até VESÁLIO.
Rembrandt- Lição de anatomia
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Anatomy_Lesson_of_Dr._Nicolaes_Tulp

Miereveld
http://www.wga.hu/index1.html
Copérnico e Galileu

Durante catorze séculos foi aceite como indiscutível o modelo proposto por Ptolomeu para explicar o
movimento dos astros, chamado geocêntrico por considerar que a terra estaria imóvel e todos os
astros se moveriam sobre a terra segundo um sistema combinado de circunferências excêntricas e de
epiciclos.
No século XVI COPÉRNICO no livro Revolução das órbitas celestes, dedicado ao Papa Paulo III,
propôs um sistema heliocêntrico em que o sol estaria imóvel e a terra se moveria à volta do sol, a lua
à volta da terra e os outros planetas à volta do sol. Este sistema pondo em causa conhecimentos
aceites como definitivos e “desvalorizando” o papel central da terra no Universo, suscitou muitas
críticas, nomeadamente de TYCHO-BRAHE, o maior astrónomo da época e de LUTERO que o
apelidou de louco. Todavia a sua ideia foi bem aceite por altas personalidades da Igreja como o
Cardeal SCHONBERG que se propôs mandar copiar o livro à sua custa e o Bispo TIEDMAN GIESE
que lhe encontrou um editor.

GALILEU abraçou com entusiasmo essas ideias. Numa polémica com SOZZO e IDELLE
COLOMBE que acusaram o sistema de COPÉRNICO de contrariar as Escrituras, GALILEU para os
combater fez uma exegese pessoal da Bíblia. O Santo Ofício, pressionado pelo grande número de
heresias existente sobre a Bíblia, condenou GALILEU e proibiu a leitura do livro de COPÉRNICO,
interdição que levantou quatro anos depois.

C. Banti- Galileu e a inquisição


http://en.wikipedia.org/wiki/Galileo_Galilei

Do lado protestante apareceram reacções iguais. A Universidade de Teologia Protestante de Uppsala


após um julgamento solene condenou NILS CELSUS por ter defendido as ideias de Copérnico e
proibiu-o de ensinar durante quarenta anos.
Evolucionismo

Quando DARWIN defendeu o evolucionismo, as suas ideias foram mal aceites, particularmente por
protestantes que as consideraram contrárias às Escrituras.

Miguel Angelo- Criação de Adão


http://en.wikipedia.org/wiki/The_Creation_of_Adam

Nos Estados Unidos, particularmente nos Estados do Sul, mantém-se uma polémica entre os
criacionistas (os que seguem literalmente a versão bíblica da criação) e os evolucionistas. Tornou-se
célebre devido à sua divulgação nos mass-média a condenação em 1925 de John Scopes pelo tribunal
de Dayton (Tennessee) por ensinar o evolucionismo. Em 1981 o juiz Overton em Little Rock
(Arkansas) após ter ouvido um grande número de especialistas decidiu que o criacionismo não
poderia ser considerado como uma hipótese científica válida e assim não poderia ser ensinado como
verdade científica, por ser contra o princípio da liberdade religiosa. Pela mesma razão condenou o
balanced treatment (tratamento equilibrado) ou seja o ensino simultâneo do criacionismo e do
evolucionismo. Todavia o Kansas School Board of Education retirou o ensino obrigatório do
evolucionismo das escolas públicas e George Bush Jr., retomou a ideia do balanced treatment com o
nome de morality based education.

Darwin’s Transhumanisitic Theory of Evolution


http://www.agoracosmopolitan.com/home/Frontpage/2008/11/18/02834.html
Estes exemplos demonstram como a ignorância associada ao poder temporal da Igreja ou do Estado
pode dificultar o avanço das ideias e da ciência. Também se pode passar o mesmo nos meios
científicos. Algumas vezes atitudes intransigentes de cientistas altamente conceituados impediram o
avanço de novas ideias.

Fundamentalismo religioso

O fundamentalismo religioso é certamente o exemplo mais evidente e mais lamentável de uma má


interpretação e uma má utilização da fé. O raciocínio levando ao fundamentalismo é muito simples –
a fé dá-me a certeza de possuir a verdade divina; por conseguinte se eu tenho a verdade absoluta, os
que não têm a minha religião são hereges.
Já os romanos tratavam por bárbaros os que não tinham a mesma religião e a mesma cultura e
chegaram a massacrá-los, mas foi com o advento do cristianismo que o fundamentalismo se
generalizou. Começou com perseguições generalizadas aos cristãos mas quando o cristianismo se
tornou poder, a situação inverteu-se.
Em 313, CONSTANTINO proclamou pelo édito de Milão a liberdade de culto. Com TEODÓSIO,
em 380, o cristianismo tornou-se religião de Estado. Chegou rapidamente a tentação da Igreja utilizar
o braço secular para combater as heresias e de os imperadores utilizarem a Igreja para aumentar o
seu poder através de uma religião unitária. A jurisprudência pagã não distinguia a autoridade civil da
autoridade religiosa. CONSTANTINO promulgou um primeiro decreto contra as heresias a que se
seguiram outros promulgados pelos imperadores que lhe sucederam, decretos reunidos mais tarde
num Codex. Inicialmente estes decretos permitiam várias sanções mas raramente a morte. Era missão
dos bispos pronunciarem-se sobre a heterodoxia e dos juízes promulgar a sentença. Pouco a pouco os
bispos foram assumindo poder temporal como foi o caso de ARIBERTO, bispo de Milão, que
ocupou o castelo de Monfort e prendeu e supliciou os hereges.

É particularmente interessante considerar o que se passou na Península Ibérica. No reino dos Godos
observou-se sempre uma aliança completa entre a Igreja e o poder temporal. Antes de chegarem ao
Ocidente, os godos tinham-se convertido ao cristianismo. No fim do Século IV converteram-se ao
arianismo tendo começado imediatamente a discriminação contra os cristãos até ao ponto do rei
Leovigildo ter procurado impor o arianismo ao seu povo. Quando o seu filho Hermenegildo, cristão,
se revoltou contra ele, este dispôs-se a perdoá-lo se ele abjurasse a sua fé, tendo sido morto por se ter
recusado.
F. Herrera- Triunfo de S. Hermenegildo
http://en.wikipedia.org/wiki/Hermenegild

Após a conversão de Recaredo ao cristianismo a maior parte da população abraçou esta religião e as
perseguições viraram-se contra os judeus. Os concílios de Toledo confirmaram esta política.
Após a conquista da península pelos árabes surgiu uma época de tolerância religiosa que só não foi
seguida pelas duas últimas dinastias, os almoravidas e os almoadas. Esta tolerância continuou a ser
praticada pelos cristãos após a Reconquista ao contrário da política seguida por outros povos
cristãos, como os francos.
Esta tolerância manteve-se até ao século XIII altura em que, devido à heresia cátara, nomeadamente
a albigense, a Igreja chamou para si o direito de punir pela morte os hereges, nomeando inquisidores
que actuavam com aval da sociedade civil.
As cruzadas são um outro exemplo de fundamentalismo.

Cerco de Antioquia durante a primeira cruzada


http://en.wikipedia.org/wiki/Crusades

A Inquisição foi criada em 1220 e a tortura autorizada em 1225. A justificação teológica foi dada por
S. Tomás de Aquino.

É mais grave corromper a fé, que assegura a vida da alma, do que falsificar moeda que permite
sobreviver à vida temporal. Por consequência, se os falsificadores são imediatamente condenados à
morte pelos príncipes seculares, por maioria de razão os hereges que estão convencidos da sua
heresia poderão não só serem excomungados mas também com toda a justiça condenados à morte.

Em 1478 o papa SISTO IV a pedido dos Reis Católicos aprovou a instalação da Inquisição em
Espanha que mais tarde se estendeu a Portugal. O papa Paulo III confirmou a constituição da
Companhia de Jesus.
P.Berruguete - S. Domingos presidindo a um auto de fé
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Auto_de_f%C3%A9.jpg
GOYA – Inquisição
http://www.artchive.com/ftp_site.htm

LUTERO indignado com a venda de indulgências e a corrupção da Igreja escreveu um texto


altamente crítico. Como resposta o papa LEÃO X ordenou que fossem queimados todos os escritos
de LUTERO. Foi criado assim o maior cisma as igreja cristã e mais uma vez a intolerância esteve na
sua génese.

Todavia e Reforma surgiu como um novo foco de intolerância. CALVINO com a ideia da
predestinação absoluta governou Geneve com autoridade e tomou atitudes extremas com a morte
pelo fogo de Michel Servet. Esta intolerância espalhou-se pelos países de maioria protestante.

Ussi – Execução de Savonarola


http://www.wga.hu/index1.html
Hogenberg
http://www.wga.hu/index1.html
The Calvinist Iconoclastic Riot of August 20, 1566

J.D. Zunner
http://en.wikipedia.org/wiki/Inquisition
Dois padres pedem a um herético para se confessar depois de ter sido torturado
http://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_Inquisition

Circa 1500, A prisoner undergoing torture at the hands of the Spanish Inquisition.
Monks in the background wait for his confession with quill and paper
http://history.howstuffworks.com/european-history/spanish-inquisition.htm/printable
Porquê o fundamentalismo?

O fundamentalismo tem estado associado aos regimes políticos absolutos. Tratou-se de uma aliança
contra natura apenas compreensível pela filosofia política da época. Tenhamos presente que a
palavra tolerância entrou no nosso vocabulário apenas no Renascimento, devido a LOCKE.

MOISÉS, CRISTO E MAOMÉ representam as três religiões monoteístas mais seguidas representado
muitos milhões de crentes, religiões que se poderiam ter inspirado parcialmente do monoteísmo solar
do século IV AC.

Todas estas crenças serão falsas? Haverá só uma verdadeira? Julgo que temos que aceitar a fé de
quem acredita, seja que religião for. Provavelmente a limitação da nossa inteligência e as diferentes
culturas e tradições impedem o homem de ver Deus em toda a sua grandeza, conseguindo ter apenas
visões parcelares não totalmente semelhantes mas todas capazes de levar a uma fé absoluta.
Por esta razão todos os crentes deveriam amar-se, respeitar-se como irmãos e procurarem
compreender-se.

É totalmente incompreensível como o fundamentalismo continua neste século – fundamentalismo


árabe, ETA, IRA, limpeza étnica, continuando a observarem-se ideias erradas e deturpadas de fé
associadas a abusos de autoridade em domínios religiosos, filosóficos, políticos e mesmo científicos.
É importante reflectir como isto é possível num mundo que se intitula democrático e solidário,
respeitando a ideias e a dignidade dos outros.

CONCLUSÃO

Vimos como a partir do inteligível o cientista pôde chegar à hipótese Deus e como a fé pode
transformar a hipótese em certeza. Vimos como a fé não esclarecida se pode misturar com a
ignorância e como uma fé mal compreendida pode levar ao fanatismo.
O cientista crente será um cientista diferente dos outros? Certamente não esperará uma intervenção
miraculosa de Deus na sua vida científica. Contudo sente que o seu trabalho o leva a descobrir e a
participar nas maravilhas da obra de Deus, sentirá uma alegria em conhecer que aumentará a sua
perseverança, o seu rigor e a sua responsabilidade e sentir-se-á chamado para colaborar a sacralizar
um mundo dessacralizado.

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