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Do Direito e Da Arte de Governar

I - A DIFERENÇA ENTRE CONDIÇÃO E ESTADO NO DIREITO NATURAL E ESTATAL

Em um país que confunde direito posto com direito positivo, positivismo jurídico com
segurança jurídica, convencer as pessoas que a violência oficial não é garantia de direitos e só
faz espalhar o ódio e o desejo de revanche, é uma tarefa hercúlea, quase insana. Atendendo à
votação deste blog, contudo, deixei que a imaginação misturasse – para variar! – meus
pensamentos e me fizesse desobedecer às regras do texto prosaico. Assim, à guisa de
desculpas antecipadas, aqui estou de improviso, mas não menos comprometido. Vamos a ver!

A primeira coisa que me assola o espírito é essa coisa de “pessoa”. Não posso esquecer a
genialidade de Roberto DaMatta quando afirmou que no Brasil “o cidadão é aquele que o
policial chama de meliante” (A Casa e a Rua). Efetivamente não é raro que os brasileiros se
refiram à cidadania com descaso e desdém, esquecendo que ser cidadão é uma conquista das
massas frente às elites. Entre outras coisas, essa é a razão pela qual o povo elege um terceiro,
um soberano em cujas mãos se depositam a esperança jurídica da igualdade. Entretanto, no
Brasil é mais comum que, uma vez que “pessoa” não é exatamente “cidadão”, os indivíduos
precisem emprestar o benefício do poder alheio, tradicional ou econômico, para que possam
ser atendidos e respeitados. Quem ainda não ouviu a expressão “sabe com quem está
falando?”. “Pessoas” no Brasil são “suspensas”, como homo sacer (Agamben), conceito
romano para designar aquele que o Estado não pode exigir compromissos de cidadania, mas
igualmente não pode lhe garantir direitos, inclusive integridade física. Podemos imaginar em
um sistema de poder destes qual a consciência política do “cidadão”!

O segundo ponto é a diferença entre esses conceitos do direito. É muito frequente que direito
“posto” seja confundido com direito “positivo”. De certa forma, todo o direito é posto, na
medida em que todo o grupo humano algum tipo de normatividade possui para regular o
convívio social – por exemplo, a normatividade oral e mítica das sociedades primárias é neste
sentido direito posto. Positivo é o direito que formalmente se organizou para o exercício da
regulação política desse convívio, com a redação de leis e códigos processuais específicos a
orientar as instituições jurídicas constituídas para julgar e punir o ilícito e seus executores –
por exemplo, o código de Hamurabi de há aproximadamente 2800 anos atrás já era direito
positivo. No entanto, só a partir da segunda metade do século XIX, com a filosofia positivista
de Auguste Comte é que se pode falar em “positivismo jurídico” – por exemplo, quando o
ordenamento jurídico é iconizado como único instrumento de pacificação social e unicamente
em virtude dele se consegue a ordem.

Agora penso que talvez seja importante dizer da diferença entre direitos naturais “da condição
humana” e os direitos dos homens “em estado de natureza”. A concepção contratualista do
direito, tão propalada, à falta de melhor justificativa para o poder muitas vezes arbitrário do
Estado, ajuda a confundir um pouco mais os enunciados jurídicos. Com efeito, os direitos
naturais inatos são considerados inalienáveis e universais porquanto originários da “condição
humana” (Grócio/Pufendorf) e não se confunde com os definidos em grupo e empiricamente
observados nas comunidades - tal é o caso dos costumes (direito consuetudinário). Uns são
direitos de “condição” de ser, enquanto os outros são direitos de um “estado” de estar. Como
Hobbes, Locke e Rousseau pouca ou nenhuma importância deram a esta distinção, todos o
direitos ditos naturais estão contidos, por assim dizer, no estado hipotético de natureza, a
partir do qual pactuamos o ordenamento jurídico positivo pertinente ao Estado moderno. A
consequência disso é que o homem moderno, para bem-estar do soberano, acredita ser
factível, e infelizmente o é, contratar direitos como liberdade, igualdade, transterritorialidade,
expressão e linguagem, crença e virtude. Pelo contrato podemos negociar todos os direitos e o
poder pode ser efetivamente absoluto, inalienável e indivisível, como propunha Hobbes
(Leviatã) e seus “modernizadores” (Kant, Kelsen, Schmitt, Blackstone, Hart, Rawls – todos
extremamente “normapositivistas”, ainda que por razões diferentes).

Também, diferentemente do que se supõe muitas vezes, o pensamento de Rousseau é


inclinado a um certo tipo de soberania absoluta ou intervencionista, isto devido à necessidade
do Estado resgatar a igualdade entre os homens, algo supostamente existente no estado de
natureza de Locke (Dois Tratados Sobre o Governo), o que não acontece de fato. Rousseau
tem o benefício de pensar essa força maior do Estado como derivada da “vontade geral”, quer
dizer, da vontade da maioria, algo irrefutável quando se percebe que de fato a liberdade pouca
serventia tem para as massas miseráveis (O Contrato Social). Como se sabe, mais tarde, Karl
Marx irá propor sua “ditadura do proletariado” a partir desta mesma concepção, “vontade
geral”, soberano forte, indivisibilidade ideológica, unidade e supremacia partidária (esta última
mais a feitio de Lenine). Desta precariedade contratualista deriva uma continua dificuldade do
Estado moderno em aceitar que soberania absoluta, inalienável e indivisível é apenas aquela
que repousa ao mesmo tempo na origem e objeto de direito e poder, o povo, e que o poder do
soberano não o sobrepuja a não ser pelo absoluto arbítrio. Daí as atrocidades indizíveis e
imperdoáveis do nazismo e do stalinismo.

Montesquieu, por exemplo, percebeu o risco que corria a democracia no contratualismo.


Preferiu as leis e a divisão de poderes para regular a soberania do poder. Viu na democracia
uma impossibilidade de fato, vez que o princípio filosófico desta é a “virtude”, algo impossível
de se verificar na maioria dos cidadãos. Deixou, entretanto, de explicar como as leis poderiam
regular os poderes do Estado, sem a legitimidade conferida pela maioria, ou, se se quiser, uma
legitimidade constitucional advinda de pessoas sem “virtude”. Mas ele oportunamente
defende que os direitos naturais são anteriores à sociedade, “derivam sua força inteiramente
de nossa estrutura e existência” (O Espírito das Leis).

Por fim, assola-me a poesia e a arte espiritual de Hegel. Para dizer que a metafísica deste autor
pode ser vista como o princípio de um “direito de valores” para o mundo moderno. De onde
provém e onde se podem localizar os “direitos de condição”? “A base do direito é o espírito”
(Filosofia do Direito)! A dialética idealista hegeliana é sem dúvida, ao lado do existencialismo
teológico de Kierkegaard e do niilismo renovador de Nietzsche, a revolução em direção a um
direito humanizado e a humanizar. O “espírito absoluto” de Hegel é aquele que tendo
observado que sua liberdade encontra limites nas cercanias da liberdade alheia, forma sua
condição em conformidade com o Outro. Um direito posto assim recoloca a soberania no
indivíduo e, destarte a necessidade de contrato, este não necessitaria sobrepor-se aos
homens, pois o respeito e tolerância derivada da intersubjetividade prescindem do
exacerbamento da lei e violência oficial do Estado. Para Hegel o espírito humano tem
condições de apreender isto e por isto criar as condições de direito recíproco entre as partes,
semelhante quando Montesquieu rejeita a violência originária de Hobbes e coloca que “sendo
recíprocos os sinais desse medo, logo se empenhariam em associar-se”. Uma tese freudiana
muito tempo antes de Freud!

Como terceiro pensamento, então acho que deveria afinal distinguir penas alternativas de
direito alternativo. O direito alternativo é aquele que entre contratação e justiça defende a
segunda (Portanova). Isto quer dizer que os “direitos de condição”, mais que os costumes e
estes mais que o positivismo jurídico, não podem ser desconsiderados, distorcidos, alterados
ou omitidos pelo legislador e pelo soberano, que pese o ato jurídico contratual. Uma coisa leva
à outra: até por simples dedução, lógica e coerência, o cidadão não pode ser sobrepujado pela
força policial do Estado, não pode ser submisso aos discursos e práticas arbitrárias do
governante. Penas alternativas (por exemplo, prestação de serviços à comunidade),
considerando-se a luta da sociologia pelo direito, fazem sentido porquanto se inserem neste
contexto de soberania política plena, do cidadão portador absoluto de direitos e, obviamente,
de deveres, entre eles pagar com dignidade pelos delitos cometidos e ser condignamente
reinserido na comunidade que integra.

Tudo isso para dizer afinal, apenas, que justiça e liberdade só podem estar dentro de nós e em
nenhum lugar mais!

II - DOMINAÇÃO, IMPUTAÇÃO E PARTIDOS POLÍTICOS

Estava na cara que este mês o pessoal do blog ia querer ler matéria sobre a vitória à
presidência da candidata do PT, Dilma Rousseff. Isso me dá a oportunidade de refletir sobre
alguns temas abordados nas últimas aulas que ministrei. No mundo contemporâneo a
economia, a filosofia, o direito e a política são esferas predominantes, e da sua interconexão,
nem sempre harmoniosa, deriva o modelo vigente de governabilidade de uma sociedade em
particular e do mundo globalizado. Essas esferas ou blocos (Giddens) misturam-se de forma
dialética através de processos de comunicação (Habbermas) dinâmicos constituindo uma
malha ou rede onde indivíduos e governos são, a todo instante, suscitados a permanecerem
atentos e a participarem de alguma forma nos seus destinos, nos destinos dos povos e no
destino da humanidade. Isso é bom, pois como sabemos, se a democracia nos alimentam as
esperanças de liberdade, igualdade e justiça, por outro lado nos obriga a uma vigilância e
construção diuturna onde não existe mais espaço para omissões e desculpas do tipo “não
sabia” ou “não era comigo”. Existe uma coisa maravilhosa nas tecnologias de informação
atuais: as redes telesociais nos aproximam de tal forma que é impossível que o mal prolifere
em que não interfira em nossa apatia. O PT, e seus aliados (pelo menos até agora),
conseguiram vitórias importantes no último pleito: maioria de deputados na câmara federal,
maioria de senadores, maioria de governadores nos Estados, um aumento significativo de
deputados nas assembleias legislativas dos Estados (inclusive em São Paulo), e, claro, a eleição
da futura e primeira presidente mulher do Brasil. A outra coligação também tem motivos para
comemorar: elegeram os governadores dos maiores e mais ricos estados da União (Minas
Gerais, São Paulo e Paraná), os maiores colégios eleitorais, vários governos em Estados antes
governados pelo PT ou PMDB, apesar de ter perdido espaço significativo no Congresso
Nacional. Mas eu acho que o grande fenômeno político pós-ditadura no Brasil é mesmo o PT e
o papel surpreendente do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Vou contar um episódio, que foi
alvo da entrevista que duas alunas fizeram comigo esta semana, que caracteriza bem a luta
pelo poder e a nossa história democrática recente. No fim da ditadura, em 1984, a Emenda
Constitucional do deputado Dante de Oliveira, que permitiria as eleições diretas, foi rejeitada
pelo Congresso. Tancredo Neves e o seu vice, José Sarney, foram eleitos pelo colégio eleitoral,
conforme rezava a cartilha da ditadura, apesar de naquele momento constituírem oposição ao
regime militar. Sinistro desfecho das últimas eleições indiretas para presidente da República,
quando o então presidente Tancredo morreu após ter sido eleito, vítima de infecção
generalizada devido a uma apendicite. Bem, Tancredo morre e quem assume é José Sarney.
Durante o governo Sarney várias tentativas para controlar a inflação e acabar com ela foram
efetuadas, como o Plano Bresser em 1987, e o Plano Verão (de Mailson da Nóbrega), que
entre outras coisas também mexeu com o bolso dos brasileiros (expurgo da renumeração das
poupanças em ambos os casos). Finalmente em 1989 tivemos as primeiras eleições diretas
para presidente: concorreram o Fernando Collor e o Luis Inácio Lula da Silva. Naquele tempo, o
discurso do PT e do Lula era “esquerdista” e para o povo brasileiro parecia muito radical. De
qualquer forma a direita ficou assustada, as velhas oligarquias se juntaram à burguesia
nacional e, com o apoio de uma campanha milionária, Fernando Collor vence as eleições (só
para lembrar, Collor era do PRN, um partido sem qualquer expressão no cenário político de
então), o primeiro presidente eleito diretamente pelo povo após vinte e nove anos desde a
última eleição direta (do presidente Jânio Quadros). O grande problema do Brasil continuava
sendo a inflação. O presidente Collor passou para a história como o vilão de um plano
econômico que confiscou o dinheiro das poupanças dos brasileiros – o Plano Collor foi
anunciado em 1990, com grande adesão e emoção de especialistas renomados (p.ex., Maria da
Conceição Tavares). Para quem tinha dinheiro foi um desastre, claro. Mas agora vem o fato
que eu queria salientar: o Collor chamou o PSDB para ajudar a acabar com a inflação, antes
mesmo do confisco. O PSDB sabia como fazer, mas se recusou a participar do governo Collor e
a ajudar a combater a inflação (segundo Fernando Henrique Cardoso, esta foi orientação do
falecido Mário Covas). O PSDB gosta de dizer que o PT foi contra o Real, no tempo em que o
Lula era deputado federal. Mas o PSDB não gosta de dizer que segurou o Plano Real até que o
Collor fosse deposto, com maciça propaganda da rede Globo convocando as “caras pintadas”
para a Paulista em nome da decência etc. O que o Collor fez para ser cassado seu mandato?
Gastou parte do dinheiro não declarado pelo seu tesoureiro da campanha, Paulo César Farias,
no jardim da sua casa em Brasília (se pensarmos naquilo que já houve de escândalos depois
disso, uma ninharia de fato). Então, com o impedimento do Collor, aprovado no Congresso
(grande parte desse Congresso ainda era composto por políticos da “velha guarda”), o vice
assume: a primeira coisa que Itamar Franco (PMDB) fez foi chamar o PSDB e colocar o
Fernando Henrique Cardoso como ministro. E assim, finalmente se implantou o Plano Real
(1994), e o Brasil pode sair da inflação. De lá para cá, o PSDB tem se fortalecido como partido
tornando-se uma força partidária nacional à custa do Plano Real, que ele recusou ao Collor,
mas que serviu para que o FHC se tornasse presidente e se reelegesse. Além disso, era
necessário desenvolver o país, muito atrasado com relação à infraestrutura e a serviços
públicos. O problema é que a Constituição proibia o livre trânsito do capital estrangeiro em
áreas consideradas de segurança e soberania nacional, como comunicações, siderurgia,
energia, transportes etc. Por isso o governo FHC teve que promover uma reforma
constitucional, motivo pelo qual temos tantas emendas constitucionais. É curioso que muitos
dos que apregoam a formulação de uma nova Constituição sejam exatamente aqueles que a
emendaram tanto. Não vamos duvidar que o governo FHC criou as bases para que o Brasil
pudesse dar a volta por cima, sair da inflação e atraso, em pouco tempo se colocar como uma
potência econômica do mundo (5º PIB/ 11º no ranking geral) e se mostrar como um dos países
emergentes mais promissores para as futuras gerações (por isso não vou discutir a forma com
que se privatizou o patrimônio nacional, se o preço de venda foi justo e a pertinência da
moeda com que os investidores internacionais pagaram nossas empresas). Agora vamos
pensar no PT. De radical esquerdista, que apregoava a luta armada e a revolução socialista, o
PT “aceitou” a composição com as classes mais abastadas e com certas alas das elites
tradicionais e oligárquicas brasileiras. Impressionantemente, Lula, depois de ter perdido três
eleições presidenciais (para o Collor, e duas vezes para Fernando Henrique Cardoso), faz uma
“revolução” ideológico-partidário no PT, aliando-se a empresários (o vice José Alencar) e a
velhas lideranças provenientes da aristocracia regionalista que conviveu muito bem com os
militares (como José Sarney). Obviamente que a reforma é mais lulista que petista, quer dizer,
mais um aprendizado e opção de governabilidade de Lula do que do próprio partido ao qual
pertence, motivo pelo qual houve uma debandada importante de intelectuais orgânicos e
fundadores do partido (p.ex., Francisco de Oliveira e Hélio Bicudo), estes mais socialistas afinal
do que o próprio Lula. Este abandono dos quadros fundadores e diretivos do PT é um dos
motivos, senão o mais importante, dos desmandos que logo no inicio do governo Lula o PT foi
protagonista, como o escândalo do Mensalão do Valério (ou valerioduto) denunciado pelo
então deputado federal do PTB, partido aliado do governo, Roberto Jefferson (segundo o qual
o governo pagava aos partidos aliados para que orientassem os seus deputados no Congresso
a votar nos projetos do governo e a rejeitar os que a oposição sugeria), e posteriormente das
manipulações pouco ortodoxas e transparentes do ministro José Dirceu da Casa Civil (que
perdeu o cargo junto com Antonio Palocci, denunciados por um caseiro que afirmava os ter
visto em reuniões em uma casa em Brasília, e depois teve seu sigilo fiscal e bancário
quebrado), processos que, aliás, José Dirceu ainda não se livrou. Sem uma ética partidária
monitorada pela probidade inquestionável da filosofia que portam os fundadores, o corpo
diretivo, os que ocupam cargos importantes e os filiados de forma geral, tendem a substituir
os princípios e os ideais pelo fisiologismo e pelos benefícios pessoais. Quando um partido
formado a partir de quadros vira um partido de massas, esses quadros precisam manter-se
fieis às ideologias e aos princípios programáticos que levaram à sua fundação. Antonio Gramsci
cunhou esses intelectuais de orgânicos, precisamente para designar a força intelectual e de
princípios que o partido moderno (o Príncipe moderno) deve ostentar com sabedoria e
dedicação diante dos desafios de governabilidade e do embate de forças no cenário político.
Uma classificação comum com relação aos partidos modernos, do ponto de vista de sua
organização interna, é precisamente o partido de quadro e o partido de massa. O de quadro
prima pela “qualidade” de seus filiados enquanto o de massa está mais interessado na
“quantidade” de membros. Claro que esta classificação é apenas didática, visto que um partido
de quadros não precisa ser pequeno do ponto de vista de seus associados e adeptos, e mesmo
que o quisesse, não poderia por força das forças que estão movendo as peças nas sociedades
de massas e por força também da legislação, que exige um mínimo de representatividade. Da
mesma forma, um partido de massa não pode prescindir de quadros intelectuais importantes
o suficiente para que o partido mantenha-se firme quanto a seus ideários e princípios e
principalmente que saiba mover-se com sabedoria no tabuleiro do jogo político. Tanto PT
como PSDB são hoje partidos de massa, assim como os grandes partidos do cenário nacional,
como o PMDB, e não há dúvida de que se partidos menores quiserem ter algum prestigio e
influência nas decisões e destinos do país precisam ser de massa, tanto quanto permanecer
com suas ideologias e princípios de qualidade, como no caso do PV ou do PSOL. Sem quadros
significativos os partidos tendem à fisiologia do poder, e sem um número importante de
filados e simpatizantes os partidos modernos sujeitam-se ao raquitismo político sem condições
de representarem uma parcela da sociedade civil, motivo último pelo qual existem: tendem a
serem organizações parasitárias que financiam projetos pessoais e interesses espúrios de uns
poucos.
Se o PT, que no início era mais um agrupamento de várias facções de esquerda saídas do
enfrentamento à ditadura militar, e abrigava todo o tipo de ideologia socialista, cresceu e se
transformou em um partido de massa e um fenômeno com penetração nacional, mais
fenomenal é a trajetória do presidente Lula da Silva. Não concordo muito com a ideia de que a
história do PT se confunde com a história de Lula, ainda que obviamente exista uma relação
histórica indissociável. Lá no inicio o Lula era um metalúrgico que ousou enfrentar as elites e as
multinacionais para fazer greve, isso quando o pacto entre militarismo e imperialismo obrigava
o Brasil a sofrer na carne a tirania que nos curvava indignamente diante dos poderosos, lá fora
e aqui dentro. Saído das catatumbas em que vivem as classes miseráveis e trabalhadoras,
sobrevivente do descaso e desprezo com que se trata neste país os excluídos, Lula foi de
esfomeado semianalfabeto a metalúrgico, de metalúrgico a líder sindical, de líder sindical a
preso político, de preso político a estudioso do socialismo, do socialismo a presidente de
partido, de presidente de partido a deputado federal constituinte, e daí a presidente da
República por duas vezes. E se isso não bastasse, contra todas as previsões e contra todas as
imposições menos dignas das elites e dos poderosos, sai de um segundo mandato com mais de
80% de popularidade e faz seu sucessor, a primeira mulher presidente da República Federativa
do Brasil. “Fenômeno” talvez seja pouco para designar esta trajetória impar na vida das
pessoas e mais ainda na vida política das nações. Não há dúvidas que como brasileiros temos o
privilégio de termos candidatos da envergadura de um José Serra e Marina Silva disputando
eleições. De podermos nos ressuscitar na ideologia inabalável de um Plínio de Arruda Sampaio
e na sobriedade e inteligência de Cristovam Buarque, ou mesmo na coragem de uma Heloisa
Helena. A vida destes personagens é um estímulo a todos, principalmente aos jovens, para que
acreditem na política e tenham orgulho do Brasil e de serem brasileiros. Mas a minha geração
lutou lado a lado com estes personagens e outros que já se foram (Florestan Fernandes,
Octavio Ianni, Teotônio Villela, Henfil, Glauber Rocha, Ulisses Guimarães, Miguel Arraes,
Bentinho, Helder Câmara, Evaristo Arns) para que tivéssemos orgulho de sermos brasileiros
com liberdade e justiça social. Apesar dos sustos e dos percalços, de situações desanimadoras
e reprováveis, o fato é que, como a Dilma falou, o presidente Lula realizou parte de nossos
sonhos, e nos fez crer que é possível falar para nossos filhos, netos e alunos que o amor e a
fraternidade, a solidariedade e a justiça podem sim ser construídos pelos brasileiros.
O carisma do presidente Lula é fundamental. Várias vezes me referi a ele como a encarnação
daquilo que Maquiavel via como essencial ao bom governante: a virtude e a perspicácia
política. Muitas vezes se apregoa o carisma como algo inato ao governante. Sem dúvida que o
governante carismático, por características de sua personalidade e caráter, tem facilidade em
governar porque em última análise ele estará sempre respaldado pelo povo, o último e
definitivo baluarte da legitimidade do soberano (Getúlio Vargas se baseou no seu carisma para
instaurar sua ditadura, com algum sucesso; Jânio Quadros, sem sucesso, renunciou
acreditando que por seu carisma o povo o levaria de volta ao poder). Mas pensando nas lições
de Max Weber, aprendemos que a dominação carismática no Estado moderno dificilmente
será suficiente para garantir estabilidade e eficiência ao plano de governo. Segundo Weber,
nas sociedades democráticas, onde predomina a liberdade, as leis e o desenvolvimento
material, os cidadãos não estão dispostos a abrir mão de sua soberania a não ser em troca de
benefícios pessoais concretos, reais e efetivos. Nas sociedades industriais modernas, onde o
liberalismo burguês conseguiu níveis importantes de justiça social, os indivíduos preferem e
aceitam um tipo de dominação racional legal, ou seja, o poder deve ser exercido pelo
governante de forma que o cidadão veja racionalidade nas suas decisões, racionalidade essa
que é percebida concretamente se estiver contida pelo direito e, ao mesmo tempo, trazer
dividendos materiais – qualidade de vida, acesso aos frutos da ciência, possibilidade de
consumo. Dito de outra forma, tanto a soberania do tipo tradicional – dominação tradicional é
a exercida pelo soberano por herança, hereditariedade, costume –, como a do tipo
carismática, só têm possibilidade de sucesso nas sociedades industrialmente desenvolvidas se
trouxerem aos cidadãos retornos mensuráveis consideráveis à sua qualidade de vida, sem que
com isso se possa prescindir da legalidade que, por segurança, deve policiar o poder em seus
atos de governo. Então, por mais carisma que o presidente Lula, ou outro governante possa
ter, ele será avaliado e medido democraticamente pelas conquistas de bem-estar que
proporciona aos cidadãos. Sem os efeitos da atenção que o governo deu aos brasileiros mais
desprotegidos e sem as conquistas de riqueza e consumo da classe média, e dos mais
abastados, o lulismo não poderia almejar os sucessos fantásticos dos últimos anos. Por isso
mesmo, a ilicitude foi e será daqui para frente, cada vez mais, a preocupação que os partidos e
os governantes devem ter presente com pena de perderem o que conquistaram junto à
sociedade e seus eleitores (p.ex., as denúncias de corrupção e favoritismo no governo Lula
levaram ao segundo turno as eleições). Se o PSDB e o PT chegaram a uma situação de quase
hegemonia partidária no cenário político nacional é porque, de formas e em momentos
diferentes, atenderam às expectativas dos cidadãos brasileiros, ao passo que partidos outrora
majoritários como o DEM (antigo PFL) ou mesmo o PTB que já foi um partido de expressão,
continuam a praticar uma política retrógada e oligárquica. Não perceberam que com o fim da
ditadura militar o Brasil que os brasileiros queriam e necessitavam era outro. Alguns veem no
bipartidarismo tendencial um mal ou um perigo á democracia. Em blog anterior eu chamei a
atenção que em potencias mundiais tem secularmente coexistido este tipo de situação. Os
partidos do ponto de vista de sua organização externa podem ser únicos, bipartidários e
pluripartidários. Os partidos únicos são indesejados na moderna teoria do Estado, haja vista
que a democracia fortalece-se na oposição de forças e ideologias, e segundo Montesquieu,
essa oposição e esse embate de forças acaba controlando os apetites exacerbados e a
corrupção no poder. Ora, se países como os EUA e a Inglaterra podem de fato conviver
democraticamente com o bipartidarismo, porque o Brasil não poderia? Por outro lado isto não
significa que partidos menores não possam coexistir e mesmo crescer meio à polaridade entre
PT e PSDB, com o PMDB procurando se beneficiar de uma posição menos exposta, mas
significativa (mal acabou as eleições e o PMDB já manobrou no Congresso para que exista um
“bloco” dos partidos de apoio ao governo para pressionarem o PT na formação dos ministérios
da presidente Dilma e os futuros cargos de presidência da Câmara Federal e do Senado – por
acordo, os presidentes dessas casas são do partido que tem maior bancada, no caso da
próxima legislatura, PT na Câmara e do PMDB no Senado). Não devemos negligenciar a
representatividade dos pequenos partidos e de seu poder de manobra, ora se unindo aos
grandes ora agindo nos bastidores. Para Stuart Mill o importante era que toda a sociedade,
todas as classes e todos os grupos sociais, excluídos e minorias, pudessem estar inseridos no
contexto da democracia liberal burguesa, e assim participar do sufrágio universal. Esta
organização pluripartidária permite “acompanhar” as forças em debate no contexto social e
prestigiar a cidadania de forma tal que ninguém e nenhum grupo ou minoria se sinta alijado do
processo de desenvolvimento e inserção na riqueza social, com pena de que se assim não for
sempre haverá motivação para ações as mais ensandecidas e descabidas. A história da
humanidade mostrou que quando indivíduos acreditam que não têm mais nada a perder,
estão dispostos a se organizarem em torno de um líder e de um projeto megalomaníaco (o
caso do nazismo ou da revolução cultural de Mao). Entretanto, nenhum de nossos partidos
atuais tem pretensões de no âmbito de atuação, ser partido universal, quer dizer, partido que
tem pretensões de se expandir para outros países. Isso não quer dizer que não participem de
associações internacionais, como no caso de partidos de esquerda – Associação Internacional
dos Trabalhadores -, ou da Social Democracia - também chamada de Terceira Via. Nossos
grandes partidos atuais têm âmbito de atuação nacional, sendo alguns apenas representativos
em determinadas regiões geográficas ou dentro de um Estado – atuação regional, ou mesmo
em pequenas localidades – atuação local, como no caso de partidos iminentemente
municipais.
Daqui para frente a garantia da democracia no Brasil virá da capacidade da sociedade
brasileira controlar duas variáveis fundamentais: 1. os anseios legítimos de bem-estar social
em relação ao poder soberano do Executivo (principalmente no caso do futuro governo que ao
que parece governará com facilidade legislativa devido à maioria de sua base de apoio no
Congresso - neste sentido a “traição” do PMDB pode ser um benefício à democracia; 2. os
apetites doutrinários e executórios do Judiciário. Podemos entender melhor isto se
contrapormos direito subjetivo – de Max Weber - a direito objetivo – de Hans Kelsen.
Primeiro, não é porque um governo tenha sido e possa ser eficiente e bem sucedido que não
deva ser controlado e limitado. Soberania é indiscutivelmente apanágio do povo, como nossa
Constituição prediz no seu Art.1-Parágrafo Único: “Todo o poder emana do povo" e é exercido
por seus representantes. O problema é que para as massas excluídas e para aqueles que a
duras penas ascenderam na condição social – classe média -, a igualdade pode ser mais
atrativa do que a liberdade. Nisto se acomoda as grandes situações históricas de
autoritarismo, ditaduras, fascismo e totalitarismo (Hannah Arendt), ou seja, na miséria e no
egoísmo. Todo o cuidado é pouco: a democracia é uma condição ética de existência.
Agora temos nas sociedades contemporâneas um fenômeno jurídico interessante: o direito
objetivo se sobrepõe fortemente ao direito subjetivo, em grande parte, lógico, devido à
violência de nossas sociedades atuais e de uma espiral desumana de vingança – o bandido se
vinga do sujeito de bem e o cidadão de bem se vinga ou quer vingança na mesma moeda do
bandido. Disto resulta que pouca ou nenhuma diferença se percebe mais entre o bem e o mal,
pois a diferença é se a truculência é oficial, portanto legal, ou não. E nessa situação, a
legalidade de há muito se tornou sinônimo de legitimidade por si só, e a dominação do Estado
parece ser sempre de direito democrático. No caso de Kelsen, por exemplo, um dos mais
renomados filósofos do direito do século XX, e idolatrado por uma parte importante de nossos
doutrinadores jurídicos como o fundador do direito moderno com seu positivismo jurídico, a
imputação é o que caracteriza o direito, quer dizer, entre o fato social e o ato jurídico perfeito,
a lei se interpõe no sentido de “codificar” e “legitimar” o fato como ilícito. Mas como haverá
sempre a necessidade de interpretar o fato social real - a ele atribuir, pelo silogismo e sentido,
e pela analogia jurisprudencial, levando em consideração as determinações da ação humana,
atenuantes e agravantes, o teor de periculosidade e ilicitude -, pode ser que juridicamente se
chegue à absolvição ou simplesmente exclusão de ilicitude. Ora, o que Kelsen quis dizer com a
afirmativa de que o direito é o mundo do dever-ser, e não do ser, é que a imputação, o ato de
agravamento jurídico do fato sub judice, não é pura causalidade, ou se se quiser, não leva a
uma necessária condenação. Em outros termos, eu diria que o que a lei faz é criar
prescritivamente – antes do fato – expectativas de conduta com antecipada sapiência de
possíveis sanções ou punições. Expectativas de conduta são próprias de um enunciado que
corresponde na argumentação jurídica de Weber ao direito subjetivo, vez que onde existem
expectativas existe de forma igual a possibilidade do agente social racionalmente pensar sobre
as consequências de seus atos e escolher – imaginando que existe uma sociedade de
liberdade, democrática – sua conduta. A lei pode condenar, mas não pode impedir o ato do
sujeito. O sujeito é sempre o que escolhe, e dessa decisão sua decorre a possibilidade da lei e
do direito chegar à conclusão, pelo julgamento indiciado em provas e pelo controverso, que ali
existe um ato ilícito com sujeição de determinada pena. Na verdade, antes do ato consumado
pelo agente social, o que existe é apenas uma “nuvem jurídica”, de onde se espera que os
cidadãos escolham as condutas tidas como desejadas ou adequadas. Mas nada pode
juridicamente antecipar a decisão do sujeito, do cidadão, do contribuinte, do portador último
da soberania. E neste ato decisório soberano, algo passível de imputação, se funda e resguarda
ao mesmo tempo a liberdade. Assim, Weber cunhou a força do judiciário e do Estado, de
coerção jurídica, haja vista que ele está a pensar em sociedades livres e não em ditaduras, pois
nestas, obviamente, a lei e a discussão jusfilosófica pouca serventia tem, já que ao poder
exacerbado e absoluto a lei apenas serve e não controla. O problema é que os homens
modernos preferem aceitar que o conceito de direito objetivo implica na concretude e
completude jurídica no sentido de que a lei posta é a lei cumprida, e assim a prescrição vira de
fato uma imposição, a regulação jurídica solapa a emancipação, legítima e essencial ao livre
desenvolvimento da potencialidade humana, construção da própria humanidade.

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