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NEUROPSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR


Leonor Bezerra Guerra
Laboratório de Neurobiologia - Departamento de Morfologia – Instituto de Ciências Biológicas – UFMG
Bacharel em Medicina, Mestre em Fisiologia e Doutora em Morfologia pela UFMG
Especialista em Neuropsicologia pela Universidade FUMEC
Professora Adjunta de Neuroanatomia do ICB – UFMG
Coordenadora do Curso de Especialização em Neurociência e Comportamento da UFMG
Coordenadora do Projeto NeuroEduca – UFMG

(Guerra, LB. Neuropsicologia e educação: perspectiva transdisciplinar. IN: Macedo, E.C., Mendonça, L.I.Z.,
Schlecht, B.B.G., Ortiz, K.Z., Azambuja, D.A. Avanços em Neuropsicologia: das pesquisas à aplicação
clínica. São Paulo: Livraria Santos Editora, 2007. p. 207-219)

Educar é orientar para a aquisição de novos comportamentos. As estratégias pedagógicas


utilizadas por educadores durante o processo ensino-aprendizagem são estímulos que produzem a
reorganização do sistema nervoso em desenvolvimento, resultando em mudanças comportamentais.
Cotidianamente, educadores, entre eles pais e professores, atuam como agentes nas mudanças
neurobiológicas que levam à aprendizagem, embora conheçam muito pouco sobre como o cérebro
funciona. O desenvolvimento das neurociências nas últimas décadas permitiu uma abordagem mais
científica do processo ensino-aprendizagem, fundamentada pela compreensão de alguns, mas não
de todos os processos cognitivos, explicitando a necessidade do estabelecimento de uma interface
entre a neurociência, notadamente a neuropsicologia, e a educação, pautada por princípios éticos
necessários na abordagem e intervenções sobre o comportamento humano.
Comumente diz-se que alguém aprende quando adquire competência para resolver
problemas e realizar tarefas, utilizando-se de atitudes, habilidades e conhecimentos que foram
adquiridos ao longo de um processo de ensino-aprendizagem. Ou seja, aprendemos quando somos
capazes de exibir, de expressar novos comportamentos. Aprendizagem seria, então, a aquisição de
novos conhecimentos, habilidades, atitudes, competências que nos permitiriam transformar nossa
prática e o mundo em que vivemos. Dessa forma, realizaríamo-nos como pessoas vivendo em
sociedade com o objetivo de alcançar boa qualidade de vida.
E como ocorrem nossos comportamentos? Diríamos que resultam da atividade de nosso
cérebro, ou melhor, de nosso sistema nervoso. Nossas sensações e percepções, ações motoras,
emoções, pensamentos, idéias e decisões, ou seja, nossas funções mentais são produzidas pela
atividade do sistema nervoso. A mente é o cérebro em funcionamento. Assim sendo, aquisição de
novos comportamentos, importante objetivo da educação, resulta de modificações que ocorrem no
cérebro do aprendiz, promovidas pelo processo ensino-aprendizagem, em especial nos casos de
crianças e jovens nos quais a neuroplasticidade, propriedade de reorganização do sistema nervoso é
mais eficiente. As estratégias pedagógicas utilizadas nesse processo, aliadas às experiências de vida
às quais o indivíduo é exposto, constituem os principais fatores que estimulam as modificações
cerebrais. Tais modificações caracterizam os novos comportamentos adquiridos durante a
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aprendizagem. Assim, a promoção de estratégias pedagógicas, realizadas para atuação no sistema


nervoso, deveria requerer o conhecimento do funcionamento deste, que é objeto de estudo da
neurobiologia. Educação, então, teria como uma das áreas fundamentais para o seu
desenvolvimento, o conhecimento de como o cérebro funciona.

educação processo ensino-aprendizagem estratégias pedagógicas

modificações no sistema nervoso em


mudança de comportamento desenvolvimento

O conhecimento em neurobiologia cresceu muito nos últimos anos devido, principalmente, à


chamada Década do Cérebro (1990-1999) que deu grande impulso aos diversos ramos da
neurociência. Em especial, os avanços das técnicas de neuroimagem e eletrofisiologia, e aqueles
obtidos pela genética e pela neurociência cognitiva, possibilitaram o estudo das áreas cerebrais
envolvidas em funções cognitivas específicas. Embora os processos cognitivos ainda não sejam
integralmente conhecidos devido às limitações técnicas e éticas que o estudo do comportamento
humano impõe, grande progresso já foi alcançado.
Sabendo que o cérebro é o órgão responsável pela aprendizagem, qual seria a contribuição
da neurobiologia para a Educação? O conhecimento do funcionamento do cérebro poderia
contribuir para o processo ensino-aprendizagem mediado pelo educador? Não podemos imaginar
nenhuma outra profissão ou profissional que lide tanto com o sistema nervoso como a educação, o
educador. Profissionais, cuja prática é tradicionalmente relacionada ao sistema nervoso,
especialmente ao cérebro, tais como psiquiatras, neurologistas, psicólogos, realizam intervenções
em situações em que esse sistema não está funcionando adequadamente. No entanto, educadores
contribuem para o desenvolvimento da estrutura cerebral, cuja função resulta no comportamento.
Durante o processo de aprendizagem, professores e pais fornecem estímulos para reorganização de
circuitos cerebrais durante períodos nos quais este sistema é mais sensível, responsivo e vulnerável
a mudanças. O educador, cotidianamente, através de suas práticas de ensino, provoca
transformações neurobiológicas que levam à aprendizagem A capacitação do educador em
neurobiologia da aprendizagem poderia contribuir para o melhor aproveitamento do conhecimento
sobre a interface neurociência/educação divulgado pelos diversos meios de comunicação,
preparando-o para a leitura crítica das descobertas científicas. Além disso, essa capacitação
estimularia o educador a refletir sobre a educação numa perspectiva interdisciplinar, o que
fundamentaria, ainda mais, seu trabalho. Mas, saber como o cérebro funciona, tornaria o processo
de ensino e aprendizagem mais eficiente? Será que a compreensão do processo ensino-
aprendizagem através do olhar da neurobiologia poderia trazer contribuições importantes para a
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prática pedagógica? A resposta a essas questões demanda saber como o cérebro aprende e como o
professor pode aproveitar esse conhecimento para o ensino.
Por que algumas crianças se adaptam melhor a uma determinada metodologia pedagógica do
que a outras? O que faz com que algumas crianças tenham grande facilidade para a matemática mas
amarguem dificuldades em português ou história? Ensinar uma segunda língua a uma criança em
processo de alfabetização é proveitoso? Qual é a melhor idade para a iniciação musical? O bebê já
aprende no útero enquanto ainda é feto? Crianças desnutridas apresentam necessariamente
dificuldades escolares? É o neurologista quem está capacitado a opinar sobre os chamados
problemas de aprendizado? Por que ir a museus, ao zoológico, ao parque e uma boa convivência
familiar melhoram o desempenho escolar e social das crianças? Como o brincar colabora para o
aprendizado? As habilidades para matemática, linguagem, música, entre outras, são determinadas
geneticamente? Por que as emoções interferem com a capacidade de cálculo, de raciocínio, de
decisão? Criança e adulto aprendem em qualquer idade, qualquer assunto? Existe época melhor para
se aprender determinado conteúdo? Por que meu aluno não aprende e nem tem atenção? O que é
hiperatividade? Qual é o efeito do meio ambiente no desenvolvimento da criança? A repetência se
justifica? Ou a aprovação automática é fundamentada pela ciência cognitiva? Por que a criança não
aprende? O que fazer com o aprendiz com dificuldades? Para quem encaminhar? Como incluir uma
criança com necessidades especiais?
Essas são questões presentes no dia-a-dia do professor e de outros profissionais da educação.
Muitas continuam sem resposta, mas algumas dessas questões já têm sido atendidas através de
teorias e estudos bem divulgados sobre neuroplasticidade e mielinização durante o
desenvolvimento, neuropsicologia da linguagem, da atenção e memória, da função executiva, da
aprendizagem e da emoção (Andrade, Santos & Bueno, 2004). Ainda assim, suas respostas
continuam a ser desconhecidas do grande público e mesmo dos profissionais da educação.
Segundo o relato dos fóruns mundiais promovidos pela OCDE – Organização de
Cooperação e Desenvolvimento Econômicos entre 2001 e 2002 (OCDE, 2003), cujo objetivo foi a
discussão da interface entre neurociência e educação, são muitas as questões a serem investigadas
sobre o aprendizado humano. Estas incluem, dentre outras, a verificação do peso da influência da
natureza (genética) e da criação (“lar saudável e uma boa escola”) no sucesso da aprendizagem; a
real importância dos primeiros anos para um aprendizado bem-sucedido pelo resto da vida; a
influência da idade na aprendizagem de atitudes específicas, habilidades e conhecimentos; as
diferenças na aprendizagem de jovens e adultos; o significado de inteligência; o funcionamento da
motivação; as bases neuropsicológicas para aprendizagem da escrita, leitura e matemática.
Desde então, observou-se um aumento no número de trabalhos científicos dedicados à
interface neurociência e educação. Alguns ressaltam a importância da fundamentação científica dos
processos cognitivos que fundamentam a aprendizagem e as estratégias pedagógicas. Muitos
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chamam a atenção para o julgamento crítico necessário à utilização correta dos conhecimentos
obtidos e divulgados, evitando o aparecimento de mitos e teorias precipitadas que ignoram os
critérios rigorosos para a aplicação de dados obtidos pelas ciências básicas (.Geake, 2003; Geake &
Cooper, 2003; Koizumi, 2004; Ansari, 2005; Blakemore & Frith, 2005; Goswami, 2004, 2005,
2006; Howard-Jones, 2005; Gura, 2005; Posner & Rothbart, 2005; Stern, 2005; Ansari & Coch,
2006; Fawcett & Nicolson, 2007).
A divulgação científica relativa às diversas áreas do conhecimento, mas especialmente
aquela relacionada à saúde e ao comportamento humano, tem crescido muito. Divulga-se através de
mídias diversas como televisão, jornal, internet, revistas diversas, livros, congressos, entre outros, o
que demanda seriedade e compromisso ético dos meios de comunicação e leitura e julgamento
crítico do público.
A Neurociência por si só não pode fornecer o conhecimento específico necessário
para elaboração de ambientes de aprendizagem “poderosos” em áreas de conteúdo
escolar específicas, particulares. Mas fornecendo “insights” sobre as capacidades e
limitações do cérebro durante o processo de aprendizagem, a neurociência pode
ajudar a explicar porque alguns ambientes de aprendizagem funcionam e outros
não. Como parte de colaborações interdisciplinares, a neurociência pode ajudar a
estruturar a sala de aula do futuro. Isto seria uma reforma da educação “baseada em
evidências” que valeria a pena apoiar (Stern, 2005).

Atualmente a literatura conta com a contribuição de autores que têm transformado a


linguagem científica numa linguagem acessível aos profissionais com formação não-biológica,
possibilitando ao educador compreender o funcionamento cerebral e obter orientação sobre como
aplicar este conhecimento no cotidiano escolar.
Quando relacionamos o desenvolvimento cerebral à educação, um assunto
especialmente importante é se intervenções na sala de aula podem alterar redes
neurais relacionadas à cognição de forma mais generalizada, além do domínio
específico da instrução. Este assunto depende da compreensão de como circuitos
neurais se desenvolvem sob a influência de genes e da experiência. Os resultados
obtidos parecem suficientes para propor intervenções “baseadas em investigação”
que se mostrem úteis em melhorar a capacidade da criança para se ajustar ao
ambiente da escola e adquirir as habilidades como linguagem, raciocínio lógico
matemático entre outras (Posner & Rothbart, 2005).

Acreditamos que conhecer a organização do cérebro, suas funções, períodos críticos, as


habilidades cognitivas e emocionais, as potencialidades e limitações do sistema nervoso, auxiliará o
professor a enfrentar as dificuldades de aprendizagem fazendo intervenções a elas relacionadas.
Dessa forma, o trabalho do educador tornar-se-á mais significativo, criativo e autônomo.
Atualmente, no Brasil, a Educação ainda não faz uso do conhecimento disponível sobre o
funcionamento do sistema nervoso para orientação de sua prática, embora se observe um
movimento neste sentido, caracterizado pela busca de educação continuada pelos educadores em
cursos de especialização, atualização, participação em seminários e encontros científicos de áreas
biomédicas e relacionadas à neurospicologia.
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Desde 1994 temos tido oportunidade de participar de disciplinas para grupos de alunos de
especializações em psicopedagogia cujos objetivos são abordar os fundamentos neurobiológicos do
processo ensino-aprendizagem, estabelecendo as relações entre a organização morfofuncional do
sistema nervoso central e as funções cognitivas envolvidas no processo ensino-aprendizagem,
fundamentadas pela neuropsicologia, com vistas ao entendimento dos processos de
desenvolvimento e aprendizagem e suas alterações. É surpreendente perceber que a maior parte das
professoras e pedagogas participantes ignoravam, hoje menos, as propriedades, a organização e as
funções do sistema nervoso central, deixando de utilizar esses conhecimentos para melhorar o
desempenho das crianças e fazer as intervenções adequadas. Dados de Scaldaferri & Guerra (2001)
demonstraram que 50% de 60 cursos de pedagogia investigados, no Brasil, não apresentavam, em
sua matriz curricular, disciplinas ou atividades que contemplassem temas da biologia ou
neurobiologia. Dos cursos, 38% abordavam biologia e apenas 12% neurobiologia, o que denota
pouca preocupação dos responsáveis pela formação inicial, em relação à inclusão de temas
relacionados ao sistema nervoso na formação do educador. A inclusão dos fundamentos
neurobiológicos do processo ensino-aprendizagem, na formação inicial do educador, contribuiria
para uma perspectiva nova e diferente da educação e suas estratégias pedagógicas. Esta perspectiva
influenciaria também os aspectos sociais, psicológicos, culturais e antropológicos tradicionalmente
estudados pelos pedagogos, e sujeitos a novos significados sob o olhar da neurociência.

O conhecimento de como o cérebro aprende poderia, e poderá ter um grande


impacto sobre a educação. Compreender os mecanismos cerebrais que
fundamentam a aprendizagem e memória, e os efeitos da genética, do ambiente, da
emoção e da idade sobre a aprendizagem poderia transformar estratégias
educacionais e nos permitir elaborar programas que otimizem a aprendizagem para
pessoas de todas as idades e necessidades (Blakemore & Frith, 2005).

Se olharmos, com a lente da neurociência, o processo de alfabetização, durante o qual se


pretende alfabetizar letrando, identificaremos que, neuropsicologicamente, alfabetizar implica em
desenvolvimento da linguagem e habilidades a ela relacionadas, e letrar demanda o
desenvolvimento da função executiva associada à ativação de circuitos límbicos, relacionados às
emoções. Ou seja, a alfabetização depende da atividade de sistemas funcionais diferentes,
complementares e interconectados. As habilidades básicas para ler e escrever envolvem as
percepções auditiva, visual, tátil, a motricidade, linguagem, atenção, memória. A capacidade de
utilização da escrita e leitura na produção de textos na vida cotidiana ou na escola, relacionam-se à
função executiva, às emoções, à interação social. Ou seja, para alfabetizar letrando são necessárias
estratégias que atuem sobre atributos neuropsicológicos específicos, promovendo seu
desenvolvimento e, assim, aprendizagem, aquisição do novo comportamento. As etapas da
alfabetização incluem introdução, retomada, trabalho e consolidação que se correlacionam com as
funções cognitivas de atenção, sensação, percepção; memória, re-elaboração associativa; função
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executiva, além de discriminação de símbolos e posições, percepção visual, reprodução e visio-


construção. O trabalho do educador passa, assim, a ter sua fundamentação na neuropsicologia que,
por sua vez, está relacionada às estruturas do sistema nervoso e suas funções. Educação e
neurociência aí se encontram.
Postula-se que o avanço do conhecimento neste milênio só será possível a partir de uma
perspectiva transdisciplinar. Através dessa perspectiva, as diversas áreas do conhecimento utilizarão
seus pressupostos para avançar em direção a um conhecimento novo. Nesse enfoque, acreditamos
que a educação poderia se beneficiar dos conhecimentos da neurobiologia para abordagem das
dificuldades escolares e suas intervenções terapêuticas, permitindo aos profissionais explorar as
potencialidades do sistema nervoso, sugerir intervenções precoces e contribuir para o
desenvolvimento neuropsíquico, o aprendizado escolar e a boa qualidade de vida.
Sabemos que, em sua prática, o educador se depara com diversos problemas. Mas, talvez
não exista situação mais incômoda para o professor do que a chamada dificuldade de aprendizagem,
ou seja, dificuldade de um aprendiz adquirir novos comportamentos, apresentando, assim, uma
evolução diferente no seu processo de ensino-aprendizagem. As dificuldades de aprendizagem
resultam de aspectos que interferem na aquisição de novos esquemas, ou seja, na reorganização do
cérebro na produção de novos comportamentos.
Aliás, se perguntarmos aos educadores quais são as causas das dificuldades de
aprendizagem, eles mencionarão: tipo de escola, disciplina, condições materiais, dificuldades dos
profissionais, falta de orientação para desempenho das tarefas, situações de risco, problemas
emocionais, auto-estima, falta de diálogo, problemas familiares, falta de interesse e motivação,
trauma de infância, falta de estímulo, atenção, nutrição, sono, maturidade do sistema nervoso,
características genéticas, afecções neurológicas (pré-natais, perinatais e pós-natais), transtornos
psiquiátricos, transtornos de aprendizagem, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH), déficits sensoriais entre outros. Esses aspectos são categorizados como sociais,
psicológicos ou orgânicos conforme suas características, mas todos eles, de uma forma ou de outra,
dependem da função do sistema nervoso, que elabora respostas que possibilitam ao indivíduo a
adaptação aos diversos fatores. Tais respostas representam comportamentos que podem dificultar ou
propiciar a aprendizagem.
Vejamos, então, alguns exemplos. Uma criança, cuja mãe tenha sido infectada pelo vírus da
rubéola durante a gestação poderá apresentar comprometimento de funções sensoriais e/ou
cognitivas, entre outras, pois o vírus da rubéola modifica a organização dos neurônios no sistema
nervoso em desenvolvimento. Assim, a criança, portadora de um sistema nervoso diferente,
apresentará, também, comportamentos, habilidades, potencialidades cognitivas diferentes daquela
cujo sistema nervoso não sofreu alteração. Isso vale também para casos em que ocorrem alterações
genéticas e/ou cromossômicas, por exemplo, como acontece na síndrome de Down. Uma criança
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também poderá ter ou não a organização do seu sistema nervoso comprometida caso sofra infecções
como meningites ou traumatismos cranianos que provoquem lesões definitivas em seu cérebro.
Também as crianças, vítimas de deficiências nutricionais, protéica, calórica, de vitaminas e/ou sais
minerais poderão apresentar um sistema nervoso com funções comprometidas, pelo menos
temporariamente. Isso ocorre porque os neurônios, células que constituem o nosso cérebro,
dependem desses nutrientes para funcionar adequadamente. Nesse caso, a criança poderá apresentar
dificuldade de aprendizagem, dada a uma disfunção cerebral, causada por um fator nutricional.
Também o indivíduo que tenha dormido pouco pelos mais diversos motivos, poderá ter sua
aprendizagem comprometida. Isso se dá porque o cérebro, para consolidar as memórias, necessita
das condições químicas que o sono promove. Durante o sono, nosso cérebro produz determinadas
substâncias químicas - os neurotransmissores - entre outros fatores, que são importantes para o
estabelecimento de novas ligações – sinapses - entre os neurônios. Para aprender, precisamos estar
despertos e atentos para absorver a experiência sensorial, mas necessitamos do sono para garantir
que essas experiências sejam transformadas em memória e, portanto, apreendidas.
Outro fator que interfere na aprendizagem é o chamado fator psicológico. Assim, quando a
criança está exposta a um ambiente familiar agressivo ou de insegurança, ou está ansiosa devido a
mudanças em sua vida, como a chegada de um irmão, mudança de comunidade, morte na família,
separação dos pais, entre outras, o seu cérebro estará processando os estímulos gerados por essas
mudanças de forma a produzir um comportamento que a adapte melhor às situações vividas, que
chamaremos de risco. Ou seja, circuitos neuronais em seu cérebro estarão funcionando permitindo a
ela comportamentos para fugir do agressor, procurar outros ou novos amigos, chamar a atenção
daqueles que não lhe dão atenção, entre outros. Assim, os circuitos neuronais que deveriam estar
envolvidos nas tarefas escolares estarão envolvidos com comportamentos que, naquele momento,
serão mais relevantes para a sobrevivência e bem estar dela. Em outras palavras, o cérebro dessa
criança não apresenta nenhum problema. O que ocorre, nesses casos, é que o sistema nervoso
funciona com o objetivo de melhor adaptar o indivíduo ao contexto ao qual ele está exposto.
Outro fator que poderá interferir na aprendizagem diz respeito às crianças portadoras de
déficits sensoriais, principalmente auditivos e/ou visuais, pois as vias sensoriais são as portas de
entrada para nossa comunicação com o mundo, o que leva o cérebro a processar diferentes
estímulos. De fato, insistimos, esses indivíduos não apresentam alterações cerebrais, mas devemos
oferecer-lhes estratégias de ensino que lhes possibilitem o contato com o mundo. Por exemplo: o
uso da linguagem de sinais para os deficientes auditivos e recorrer aos estímulos táteis para
comunicar com os deficientes visuais.
Também podem enfrentar dificuldade para aprender, as crianças que não têm condições de
adquirir material escolar, não têm ambiente para estudo em casa, não têm acesso a livros, jornais,
não têm incentivo ou estimulação dos pais e/ou dos professores, embora não sejam portadoras de
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alterações cerebrais. Nesses casos, elas não têm acesso às experiências sensoriais, perceptuais,
motoras entre outras, fundamentais para funcionamento e reorganização de seu sistema nervoso.
Existem, ainda, os chamados transtornos de aprendizagem. Trata-se das dificuldades na
aquisição de habilidades de escrita, leitura, raciocínio lógico-matemático e, ainda, para alguns
autores, falta de habilidade de interação social, causadas por uma organização diferente do cérebro,
determinada geneticamente. São exemplos disso: a dislexia, a discalculia, o transtorno do déficit de
atenção e hiperatividade, entre outros. Nesses casos, as crianças conseguirão aprender, mas
necessitarão de estratégias alternativas de aprendizagem. É como se o cérebro desses indivíduos
utilizasse outros caminhos, outros circuitos neuronais para atingir o mesmo resultado, ou seja, a
aquisição de um novo comportamento.
Como vimos, muitas são as causas das dificuldades de aprendizagem e todas envolvem o
cérebro. Portanto, sua abordagem pode demandar, conforme o caso, a participação de profissionais
de diferentes formações: educador (professor, pedagogo, orientador educacional da criança),
médico (pediatra, neurologista, psiquiatra), fonoaudiólogo, neuropsicólogo, psicólogo, assistente
social, psicopedagogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, assistente social, educadores na área
de artes e educação física. Assim sendo, para saná-las, necessitamos da avaliação e intervenção
interdisciplinares realizadas por diferentes profissionais.
Ressaltamos que a identificação da dificuldade de aprendizagem possibilita o
reconhecimento de problemas que, mesmo não apresentando solução definitiva, permitem
encaminhamento e intervenção adequados pela equipe multidisciplinar. Incluem-se nesta, sempre, a
escola e a família, para acompanhamento e desenvolvimento do potencial da criança, com vistas à
aprendizagem que lhe for possível. De qualquer forma, aprendizagem é fundamental para a vida,
sobrevivência e desenvolvimento de cidadania do indivíduo.
Pensando em todas estas idéias aqui expostas, desde 2003 o projeto NeuroEduca, projeto de
extensão, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
vem divulgando e incentivando a inserção dos conhecimentos da neurociência na área da educação
(Guerra, Pereira & Lopes, 2003, 2004; Guerra, Pereira, Rocha, Alves, Soares, 2005). O
NeuroEduca orienta educadores na utilização do conhecimento das neurociências no ensino e na
abordagem dos problemas de aprendizagem, visando o desenvolvimento de práticas promotoras da
aprendizagem e preventivas e terapêuticas para suas dificuldades. Compreendendo o cérebro, não
estaríamos estabelecendo os rumos de uma nova ciência da aprendizagem? Conhecer a organização
e funções do cérebro, os períodos receptivos, as habilidades cognitivas e emocionais, suas
potencialidades e limitações, as dificuldades de aprendizagem e intervenções apropriadas, poderia
tornar o trabalho do educador mais significativo, criativo e eficiente, com repercussões positivas
para os aprendizes?
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O projeto é desenvolvido através de palestras – “O Cérebro vai à Escola”- para


sensibilização dos educadores sobre os aspectos neurobiológicos da aprendizagem, e de
capacitações organizadas diretamente com os educadores e as escolas, atendendo ao planejamento
do calendário letivo e conforme conveniência da escola. Estabelecemos também parceria com
prefeituras e secretarias de educação para alcançar um número maior de educadores e escolas com
demandas mais específicas. O projeto identifica as demandas do público atendido através de
questionários e caracteriza a formação acadêmica e sócio-cultural do grupo de educadores. Em
reuniões regulares, o NeuroEduca realiza exposições teórico-práticas e leituras de textos abordando
os seguintes temas: introdução às dificuldades de aprendizagem, divulgação científica, organização
morfofuncional e desenvolvimento do sistema nervoso central, córtex cerebral e sistemas
funcionais, funções cognitivas, atenção, memória, emoção e função executiva, sono e
aprendizagem, exame neurológico, afecções neurológicas, avaliação neuropsicológica, transtornos
de aprendizagem, transtornos psiquiátricos e do desenvolvimento, intervenções e reabilitação,
estratégias pedagógicas, educação e neurociências. Promovemos também dinâmicas para motivação
do grupo, grupos de discussão de filmes, textos e de casos e dúvidas relacionados à prática diária do
professor. Incentivamos a investigação e apresentação de temas pelos participantes para
desenvolvimento de autonomia na continuação de seus estudos. Quando há demanda de temas
específicos, convidamos profissionais especializados para abordagem de assuntos como abuso de
drogas, violência, sexualidade, educação inclusiva. O projeto re-avalia regularmente suas atividades
através da aplicação de questionários que verificam a repercussão do NeuroEduca sobre a formação
e desempenho profissional do educador e também através de discussões com os participantes que
informam suas demandas e contribuem para a re-orientação das atividades do projeto.
Os resultados obtidos nos últimos quatro anos mostram que o trabalho realizado pelo
NeuroEduca tem levado à melhoria da qualificação do profissional da educação em relação à
compreensão do processo ensino-aprendizagem e suas intervenções, contribuindo para mudanças na
prática do dia-a-dia do professor. No entanto, ainda não foi possível atestar o impacto do projeto
sobre o desempenho acadêmico e desenvolvimento neuropsíquico dos aprendizes. O aumento da
demanda de palestras e capacitações, e o interesse dos participantes em dar continuidade aos
estudos em cursos de pós-graduação lato e strito sensu constituem indicadores do interesse na
interface entre neurociência e a educação e da receptividade do projeto pelos educadores.
Neste ano de 2007 a equipe do NeuroEduca iniciou, em parceria com a Prefeitura e
Secretarias de Educação e de Saúde e Bem Estar de São Brás do Suaçuí, Minas Gerais, um
trabalhando objetivando a integração entre os setores educação e saúde, mediada pela neurociência,
com vistas a uma abordagem mais integral e a encaminhamentos mais adequados das dificuldades
de aprendizagem. Consideramos também a possibilidade de realizar uma parceria com profissionais
das áreas de saúde (fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia, pediatria, neuropediatria,
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psicologia) e humanas (serviço social, artes e educação). Esta parceria poderia viabilizar a
elaboração de um protocolo para identificação precoce de transtornos de aprendizagem em
escolares, com o objetivo de esclarecer, encaminhar e/ou orientar crianças, professores e familiares
em relação à melhor conduta de cada caso, privilegiando o desenvolvimento neuropsíquico da
criança e minimizando eventuais deficiências. Consideramos também importante desenvolver,
prioritariamente, a capacitação junto aos profissionais da educação infantil e junto às famílias,
primeiros e principais núcleos de influência sobre o desenvolvimento neuropsíquico do indivíduo.
A orientação de pedagogos e professores, mas também dos pais, todos educadores, sobre a
organização geral, funções, limitações e potencialidades do sistema nervoso, permitirá que eles
compreendam como as crianças aprendem, como elas se desenvolvem, como nosso corpo pode ser
influenciado pelo que sentimos a partir do mundo e porque os estímulos são tão relevantes para o
desenvolvimento cognitivo, emocional e social do indivíduo. Conhecendo o funcionamento do
sistema nervoso, os profissionais da educação podem desenvolver melhor seu trabalho, fundamentar
e melhorar sua prática diária, com reflexos no desempenho e evolução dos alunos, interferindo de
maneira efetiva nos processos que permitem o ensinar e aprender .
Finalmente, mas não menos importante, talvez devêssemos rever os pressupostos teóricos
que sustentam a educação no Brasil (Moraes, 2006). A maior parte dos educadores que trabalham
na administração pública e também na “frente de batalha”, ou seja, nas escolas, tem uma formação
fundamentalmente humanística, sociológica, essencial para compreensão da educação, mas
insuficiente, hoje, para o atendimento às demandas de aprendizagem para a vida em sociedade neste
milênio. Os conhecimentos agregados pelas neurociências, que vêm, aos poucos, jogando alguma
luz tanto em soluções como em questões a serem investigadas relativas à educação, poderão
contribuir para um novo salto da educação em busca de melhor qualidade e resultados mais
eficientes para a qualidade de vida do indivíduo e da sociedade. Assim, a visão transdisciplinar da
educação, que inclui necessariamente as neurociências e a ética, é essencial tanto para o
estabelecimento de políticas públicas na área, como para estabelecimento dos princípios éticos
norteadores da divulgação e da utilização do conhecimento em neurociências aplicados à educação.

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