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A diferença que estorva a elite

O debate sobre o livro didático de português distribuído pelo MEC para educação de
jovens e adultos, Por uma vida melhor, que é permissivo com variações da “norma culta” da
língua portuguesa, gerou uma celeuma tratada livremente na mídia e nas redes sociais, e com
mais atenção na academia, retomando um velho embate entre o monopólio que uma “norma
culta” teria da língua portuguesa e a legitimidade daquelas manifestações destoantes. Os
argumentos estão dados para todos os lados e não preciso retomá-los. Valeria apenas notar como
o assunto revela uma mídia despreparada – para não dizer tendenciosa – que mesmo sem tomar
posição enuncia a discussão como a defesa ou crítica de “erros” de concordância 1, pontuando de
início que a correção, ou seja, a verdade do enunciado, estaria em um dos pólos. O veredito do
leitor, portanto, a se basear na notícia que lê, seria apenas concordar ou não com o “erro” e,
assim, de qualquer modo aceitar a “norma culta” como a única correta. A partir desta posição da
mídia, a questão fundamental é borrada: quem torna uma norma na norma “correta” e quais os
processos de legitimação desta norma que, necessariamente, desconsideram as práticas e desejos
de boa parte dos falantes desta língua e é capaz de tornar práticas cotidianas em erros? Mas não
quero fazer uma crítica à mídia – caminho fácil a tomar na discussão – nem resumir o debate à
língua. A questão é maior.
Entendo não ser coincidência que isso ocorra no mesmo momento – na mesma semana,
na verdade – da briga pela construção de estações de metrô em bairros de elite de São Paulo.
Muito embora esta discussão tenha sido polemizada de um modo bastante sensacionalista, a frase
de repúdio de uma moradora do bairro de Higienópolis a uma “gente diferenciada”, que seria
trazida ao convívio da elite pelo sistema de transporte, é a deixa que quero tomar. Noto que tanto
no debate sobre o livro didático quanto neste sobre o metrô o que está em jogo é uma negação ou
uma afirmação da diferença.
Lembro que a valorização da diferença é um tema de nossa contemporaneidade. Está na
academia (com a filosofia pós-estruturalista e os debates dos pós-modernos), nas políticas
nacionais (que se traduzem pelas políticas da diferença ou políticas multiculturalistas presentes
em vários países, como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália, Israel etc), nos
1
Os exemplos são vários, e aqui apresento apenas um:
http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI5129462-EI8266,00-
MEC+distribui+livro+didatico+que+defende+erro+de+concordancia.html
organismos internacionais (como UNESCO), no mercado (com a proliferação de produtos
étnicos ou voltados para o público homossexual), na educação (com as cotas para minorias ou
com a aceitação da literatura proveniente de fora do cânone europeu) e nas artes (como se nota
pela valorização das “músicas do mundo” e da quebra do padrão eurocêntrico na determinação
artística e da própria História da arte).
Todo este processo, contudo, é proveniente de conflitos que o Brasil parece ter assumido
como resolvido em suas terras: teria sido, afinal, nosso processo de formação nacional
competente o suficiente para integrar nossas diferenças em um todo pacífico e harmônico. Se até
a virada do século XIX para o XX ainda buscávamos controlar nossa “composição racial”
(lembro aqui dos esforços de intelectuais como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Roquete Pinto,
mas também de textos legais como a Constituição de 1891 e as determinações do Estado Novo
em negar as diferenças estaduais em prol de uma unidade nacional 2), especialmente a partir da
década de 1920 e 1930 a diferença passou a ser vista em nosso benefício, sempre, portanto, como
algo positivo. Somos, desde então, o povo sem racismo, da democracia racial de Gilberto Freyre;
também somos o país da antropofagia, das misturas culturais, que nos levam sempre à criação de
algo novo e, necessariamente, harmonioso; o povo da tolerância extrema, que não discrimina e
cujos conflitos não são traduzidos por conflitos de classe.
Desta forma o Brasil cansou de se definir para dentro – para sua própria população – e
para fora. Lembremos, por exemplo, do mote brasileiro no programa cultural do Ministério da
Cultura para a Copa do Mundo de Futebol ocorrida em 2006, na Alemanha: “Brasil: o país da
diversidade”. E por que não nos lembrarmos da resposta de Gilberto Gil naquele ano, enquanto
ministro da cultura, a um jornal alemão que lhe perguntou o que seria ser brasileiro? “Ser
brasileiro”, ele define “não significa ser algo. Significa ser muitas coisas. Em primeiro lugar, o
que se tem de fazer, para se tornar brasileiro, é reconhecer a diferença como valor”. O mesmo
mote está também na campanha promocional organizada pela APEX-Brasil na Rússia, em 2004,
chamada Brasil Fashion Exhibition, cujo plano de comunicação dizia querer mostrar “imagens
fortes, alegres e coloridas, o fashion, a beleza e a diversidade brasileira de forma elegante e a
humanização”. E, mais além, que “essa diversidade é o que faz [o Brasil] ser o país alegre e
criativo”.

2
Há vários livros sobre o tema. Indico dois: Jeffrey Lesser. A Negociação da identidade nacional: imigrantes,
minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: UNESP, 2001; e Cynthia Machado Campos. A política da
língua na era Vargas: proibição do falar alemão e resistências no sul do Brasil. Campinas: Unicamp, 2006.
Mas não é que, de repente, a diferença tão celebrada resolveu nos incomodar? Aquela
gente diferenciada resolveu agora abrir buraco de metrô em bairros nobres e contestar que o
modo como ela fala não é errado, propondo que a norma culta é um modo apenas de usar a
língua, entre tantos outros possíveis. E, então, a tal alegria que a diferença gera parece agora nos
mostrar também sua fonte de discriminação e o fato de que esta diversidade que nos importa,
esta diferença que queremos valorizar e cantar ao mundo só pode ocorrer se é filtrada e seus
elementos selecionados até o ponto em que não se mexa na estrutura social vigente.
As celeumas abertas nos casos aqui pontuados nos escancaram, então, uma realidade que
ainda lutamos por deixar em segredo e, assim, ordenar nossa sociedade em favor de poucos:
nosso amor à diferença é condicionado. No momento em que a diferença se veste de conflitos de
classe – conflitos estes permitidos justamente pela ascensão recente das classes mais baixas e por
uma certa autonomização de suas decisões em relação à elite –, que reivindicam mudanças
importantes na estrutura que a elite assume como sua, esta diferença passa a ser assumida como
um estorvo. Irônico, se não fosse perverso. Mas no estorvo, revela-se que o Brasil, longe de ser o
país da tolerância, é o país da discriminação controlada, estetizada no mesmo momento em que o
debate político é oprimido.
Contudo, a elite não terá vida fácil. O estorvo da diferença não parece acidental, mas
embasado em uma nova condição social, no qual se a diferença continua existindo e pode ser
tomada por positiva, ela não deve mais ser definida a partir do interesse de poucos, nem
tampouco gerenciada por estes. E, assim, se a elite quiser continuar celebrando em suas roupas
os pontos das bordadeiras de Saubara, na Bahia, ou a ciranda de Dona Lia de Itamaracá em seus
iPods, também precisará aceitar que “os livro” dizem tanto quanto “os livros”. Como, de fato,
dizem!

Michel Nicolau Netto


michelnicolau@gmail.com

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