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1 O QUE NOS TORNA HUMANOS

O QUE NOS TORNA HUMANOS – UMA VISÃO


DARWINISTA
Peço licença para apresentar essa palestra de uma maneira
antiga, ou seja, lida. Esse método, cada vez menos usado na
Universidade, onde a pirotecnia crescente do final do século XX tornou a
imagem mais forte que a palavra, necessita e deve ser resgatada.
Conceitualmente, palestra é uma forma de exposição verbal sobre um
determinado tema; deriva do grego παλαίστρα do verbo que significa
lutar e designava o local de treino dos jovens gregos, onde mulheres
não eram permitidas. Não pretendo retroceder tanto, abandonando
quaisquer intenções pugilistícas, restringindo o embate ao campo das
ideias, e sem o caráter misógino dos antigos gregos. Há pelo menos
duas grandes vantagens neste tipo de metodologia: primeiro por que
permite organizar o fluxo de ideias de maneira mais racional e
encadeada, facilitando a compreensão e diminuindo o risco de uma
digressão diversiva, comum em temáticas subjetivas, e, segundo,
permite que o material possa ser arquivado e consultado posteriormente.
É minha intenção dispor o texto no site scribd.com/schleper brevemente.
Acrescento, após a apresentação, que evitei citar em demasia nomes
ciêntificos, datas e estratos geológicos, devido à discussão sobre
nomenclaturas e datações, o que pode ser verificado na bibliografia ao
final do texto, sem perder o sentido da presente palestra, que é provocar
intelectualmenteo estudante, estimular e ver o mundo como um
patologista: com olhos diferentes.

Desde que a humanidade começou a registrar suas impressões de


modo permanente e consultável com o advento da escrita há cinco mil
anos, uma pergunta é recorrente – quem somos nós? A mera
existência humana per se, apesar de ser considerada uma regra no
pensamento neodarwinista, não é suficiente. O homem precisa
encontrar um propósito na sua existência, não basta dizer quem somos,
mas devemos saber porque somos e para o quê somos. Essa busca
pelo propósito é causa de aflição para muitos e base para uma série de
mecanismos de compensação, indo da esfera do pensamento mágico e
religioso até a prática de esportes radicais.
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Quando fui convidado para esta palestra, há algumas semanas, fiquei entre
assustado e curioso pelo tema proposto. Assustado porque foge da minha área de
conhecimento, que é a dermatopatologia. Não sou teólogo, filósofo ou psiquiatra
para fazer uma análise nessas áreas. A curiosidade me levou a aceitar o desafio e
em tentar responder pela minha linha de pensamento, seguindo um raciocínio
evolucionista, despido de preconceitualizações, especialmente finalistas, tentando
evitar algumas armadilhas éticas e não parecer pessimista ou cínico. Pelo menos
não em demasia. Vou tentar apresentar o tema em dois pontos:

1. as condições necessárias para a formação da vida; e


2. o impacto das grandes mudanças geológicas e ou ambientais na evolução
humana.

1- As condições necessárias para a formação da vida.


Pergunte a diferentes especialistas sobre o que nos faz humanos e obterá
diferentes respostas:

 é Deus que nos fez humanos, dirá um teólogo;


 é a Razão e o Livre Arbítrio, dirá um filósofo;
 é o Cérebro, ou melhor, a maneira como ele está estruturado, dirá um
neurocientista;
 é o Quadril, dirá um ortopedista;
 é a Pele, dirá um dermatologista.

Cada qual na sua especialidade apresentará uma visão do todo, e de modo


puntiforme, estarão corretos. Quando o especialista extrapola sua visão para outros
campos, especialmente quando os ignora tecnicamente, fatalmente incorrerá em
impressões subjetivas e falaciosas. Continuamente nos deparamos com visões
relativamente equivocadas devido a esses problemas de avaliação. Dois pontos são
extremamente recorrentes; o antropocentrismo e o finalismo. O antropocentrismo
é mais fácil de explicar: medimos o mundo com nossa própria régua. Apesar de nos
encontrarmos momentaneamente no topo da cadeia alimentar e, até prove o
contrário, constituirmos a espécie mais inteligente, nem de longe somos a mais bem
sucedida. As bactérias habitam muito e mais diferentes locais que nós, de poços
escaldantes de parque nacional de Yellowstone até resíduos de plutônio em usinas
nucleares, e por muito mais tempo, pelo menos 3,5 bilhões de anos. Besouros e
fungos são mais diversificados, tubarões têm melhores sistemas digestivos, abutres
melhores sistemas imunológicos, dinossauros reinaram por 160 milhões de anos.
Somos a espécie dominante do momento e, como uma bela canção, podemos ser o
sucesso de um único verão ou tornar-nos um clássico. É pueril achar que sempre
seremos. Há cerca de uma semana, assistindo um programa sobre o futuro do Sol
(a série “o Universo”, History Channel, episódio “O futuro sombrio do Sol”,
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reprisado sábado, dia 21 de maio, às 15 horas), lá pelas tantas relatam sobre
quando o Sol ameaçar a Terra devido a sua expansão daqui a uns cinco bilhões de
anos. À medida que o Sol envelhece, ele aumenta de volume e potência, enquanto
houver hidrogênio disponível em seu núcleo. Sugerem, no programa, que a espécie
humana poderá partir do planeta em gigantescas naves e procurar paragens mais
agradáveis. Se descobrirmos uma maneira de fazer o mesmo processo de fusão
nuclear usado pelas estrelas, de maneira econômica e segura (as tentativas atuais,
especialmente no Laboratório Nacional Lawrence Livermore na Califórnia, não
chegaram nem perto desse objetivo, com custos de centenas de milhões de
dólares), tornamo-nos independentes e poderemos ir a qualquer lugar. Mero
engano, aliás uma característica tipicamente humana: a arte de auto-enganar-se.
Primeiro, tirando as bactérias, nenhuma espécie conseguiu ultrapassar a barreira de
cem milhões de anos mantendo-se “intacta”. Segundo, o planeta já estará inabitável
daqui a 500 milhões de anos, quando o sol estiver 30% mais quente, elevando a
temperatura para mais trinta e oito graus centígrados além da atual temperatura
média. Terceiro: o que nos torna humanos e permitiu nossa evolução como tal, foi
justamente estarmos no nosso planeta com as características que conhecemos. Aí
entra o aspecto finalista ou teleológico, explicando a causa como secundária à
consequência, numa inversão do pensamento lógico. Um exemplo recorrente nos
programas ditos científicos: a Terra é o planeta mais adequado à evolução humana,
pois se encontra numa distância correta do sol e apresenta água em estado líquido.
É exatamente o contrário: nós evoluímos por que a Terra é assim, e se fosse
diferente, seríamos outra coisa, provavelmente lêmures pululando alegremente em
Madagáscar ou amebas num fundo de poça. Nosso universo é um lugar grande
demais, instável, frio, violento e com distâncias inconcebíveis à nossa experiência. É
praticamente impossível montar um modelo em escala visível mesmo do nosso
sistema solar; para dar uma ideia, se a Terra fosse do tamanho de uma ervilha,
Júpiter estaria a 300 metros de nós e Plutão a dois quilômetros e meio, com o
tamanho de uma bactéria, impossibilitando sua visualização e merecendo seu
rebaixamento a nova categoria de planeta anão. Na mesma escala, a estrela mais
próxima, Alfa Centauro, estaria a 16 mil quilômetros de distância. O universo é um
lugar realmente espaçoso. A única maneira de haver alguma possibilidade de
continuarmos sendo humanos, num hipotético e longínquo futuro seria dominar a
fusão nuclear e levarmos nosso planeta mais a Lua para um desses espaços vazios
e tranquilos. Pequenas mudanças na ordem planetária acarretam profundas
mudanças na evolução, mudando completamente sua configuração. Saindo da Terra
ou mudando o planeta de local, evoluiremos para outra espécie.

As casualidades que levaram a formação da Terra e a evolução da vida são


quase exclusivas: a distância certa de um único Sol, visto que a maioria dos
sistemas planetários são binários, uma composição química adequada, a criação da
Lua pelo choque com outro planeta ao mesmo tempo em que se adquiriu um maior
núcleo de ferro e consequentemente uma magnetosfera mais eficiente na proteção
contra as radiações solares, a posição dos continentes através da deriva continental,
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a evolução das espécies em determinada ordem e uma série de acidentes, mais ou
menos conhecidos e propagandeados, como o meteoro em Chicxulub que teria
exterminado os dinossauros e permitido a evolução dos mamíferos. A posição e
formato dos continentes são fundamentais na formação do clima, podendo mudar
completamente a evolução das espécies, como ocorreu quando da criação do istmo
do Panamá há sete milhões de anos.

O início da vida na Terra é tão complexo que não sabemos ao certo quando e
como se deu, apenas vislumbramos alguns indícios. Essa sequência de eventos
parece tão incrível que é tentador considerar a mão de alguma entidade superior,
base do criacionismo, e de um determinismo finalista que nos coloca no ápice da
evolução.

Tentando resumir essa primeira parte: a vida evolui como tal por que a Terra
tem características quase únicas, numa série inacreditável de eventos
sequencialmente postos e que culminaram não intencionalmente na humanidade.
Se não fosse assim, não estaríamos aqui nessa noite. Um livro que aborda esse
tema de maneira mais abrangente é Rare Earth, de Peter Ward, professor de
Paleontologia da Universidade de Seatle, Washington.

2- O impacto das grandes mudanças geológicas e ou


ambientais na evolução humana.
Quando se lê sobre evolução da espécie humana, nos deparamos com uma
série de imagens equivocadas. A mais conhecida é uma sequência linear
começando por um gibão, com seus longos e lânguidos braços, e terminando no
homem moderno. Essa imagem, repetida e parodiada ao extremo tem pouco a ver
com a provável história real. Além de não ser linear e haver muitos ramos paralelos
e becos sem saída, falta a maior parte das evidências físicas. Pode parecer que há
mais sobre dinossauros que sobre nós mesmos. Ideia errada: dinossauros
formavam dois grandes grupos de animais que existiram por muito mais tempo e
com espécies mais diversificadas. Para dar uma ideia da raridade do processo de
fossilização: calculou-se que, se os 300 milhões de americanos morressem ao
mesmo tempo no acaso de uma fatalidade hipotética, toda essa população seria
representada por apenas meio esqueleto daqui a alguns milhões de anos. Sabemos
muito pouco de nosso passado, e o que sabemos encontra-se fragmentado e
incompleto. O que temos são alguns fosseis de cinco mil indivíduos diferentes
(citado em Ice Age Lost, de Gwen M. Schultz, 1974), raras pegadas e muitas
hipóteses, além de embates famosos, como o entre Donald Johanson, descobridor
de Lucy, e Richard Leakey, que descobriu as pegadas de um grupo familiar em
Laetolia, Tanzânia em 1976. Por sinal, Lucy, um exemplar de Australopithecus
afarensis, não é nossa antepassada distante, não caminhava como nós e nem se
sabe se era uma fêmea ao certo.
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O que sabemos:
Contando a partir do fim dos dinossauros e ascensão dos mamíferos, há 65
milhões de anos, nossa espécie parece derivar-se primeiro do grupo que inclui
lêmures, gálagos e társios. Posteriormente dividem-se em macacos do novo mundo,
macacos do velho mundo e primatas. Esse grupo continua dividindo-se, dando
origem aos orangotangos e gorilas, para, finalmente, há cerca de cinco ou sete
milhões de anos (logo explicarei essa discordância), separar chimpanzés dos
primeiros hominídeos. A maior parte do tempo nós dividimos o mesmo passado dos
chimpanzés, mas não sabemos quase nada desse passado, não havendo muitos
exemplares fósseis dos antepassados dos chimpanzés.

Quando se tenta descobrir o motivo da separação da nossa espécie daquela


que culminou nos chimpanzés, a geologia e a climatologia ajudam a responder.
Eventos geológicos catastróficos associados a mudanças climáticas serviram como
propulsores para a evolução e a diferenciação de diversas espécies, incluindo a
nossa. O fim de um ciclo, geralmente recebe nomes pomposos como “a grande
extinção do permiano”, ocorrida há 250 milhões de anos, ou crípticos, como a
“fronteira KT”, conhecida como o fim da era dos dinossauros há 65 milhões de
anos. Cada extinção em massa gera novas oportunidades para as espécies
remanescentes e uma explosão de diferenciação para o preenchimento dos nichos
ecológicos vazios. Porém, como as lacunas são muitas e a ciência permite não só a
livre discussão como ser revista a cada nova descoberta, ocorrem muitos equívocos
explorados à exaustão pelos contra-evolucionistas. Richard Dawkins, no seu
impressionante livro “A Grande História da Evolução – na trilha de nossos
ancestrais”, editora Cia das letras, 2009, refere o que denominou de soberba do
presente. Cientistas eventualmente caem na tentação de achar que o passado tem
por objetivo o tempo atual, como que obedecendo a uma coreografia previsível e
adequadamente linear. Essa presunção da interpretação a posteriori não ocorre
somente na religião ou história. Ela é bastante usual na física, tida como a mais
exata e intelectual das ciências, onde é denominada de visão antrópica, a tal régua
de medida citada anteriormente. É frequente a tentativa de demonstrar que as
constantes fundamentais do universo são perfeitamente ajustáveis às leis da
matemática, o que está correto, porém sempre na ilusão de aprontar o caminho da
humanidade, que é a visão teleológica. John Reader, no seu livro Missing links
(1989), faz a seguinte observação: “é notável a frequência com que as primeiras
interpretações de dados novos confirmam as ideias preconcebidas de seu
descobridor”. A evolução ocorre sem a necessidade de privilégios ou significados,
obedecendo às regras da física e na dependência de inúmeros fatores aleatórios. Se
tudo isso culminou na humanidade como a conhecemos, sorte nossa.

Um evento geológico com grandes repercussões climáticas parece ter sido o


motivo da separação do chimpanzé dos primeiros hominídeos. Entenda-se que
esses hominídeos iniciais são mais macacos que humanos. Podem-se resumir as
mais de vinte espécies aceitas em cinco grandes grupos, seguindo mais ou menos a
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ordem pela antiguidade: ardipithecus, australopithecus, kenyanthropus,
paranthropus e Homo. A formação do istmo do Panamá, interrompendo as
correntes marinhas entre os oceanos Atlântico e Pacífico, o soerguimento de uma
cadeia de montanhas no nordeste africano e a formação do grande Vale do Rift,
ocorrido entre sete e cinco milhões de anos atrás, mudou totalmente o clima do
continente africano, tornando-o mais árido. Separam-se as zonas secas, o Saara e
áreas das altas montanhas, como o Kilimanjaro, ao nordeste, da África equatorial
subsaariana com florestas tropicais úmidas e luxuriantes. Nas áreas de florestas
úmidas e luxuriantes ficaram os chimpanzés. Nossos antepassados ficaram com o
quinhão pobre e seco, constituído pela savana característica com capim alto e
chuvas esparsas e mal distribuídas. A falta de árvores levou ao favorecimento
daqueles que se tornaram bípedes, pois movimentavam-se melhor, podiam vigiar os
possíveis predadores e liberava as mãos, uteis para a proteção e na coleta de
alimentos. Num primeiro momento, ganham os ortopedistas – a primeira grande
mudança é no quadril e no joelho. Porém, somente o bipedalismo não explica nossa
evolução; em 2002, uma equipe francesa no Chade descobriu uma nova espécie de
hominídeo com sete milhões de anos, antes do que se imaginava a data da
divergência entre homens e chimpanzés, denominada Sahelanthropus tchadensis,
que também andava ereto e que parece não ter deixado descendentes. Ou seja, o
bipedalismo é importante mas não fundamental para a evolução humana. Do ponto
de vista fisiológico, o bipedalismo é realmente caro. Com o maior esforço muscular
para manter o equilíbrio, estimulam-se novas funções cerebrais, maior gasto
energético impele a busca de alimentos mais calóricos, como a medula dos ossos
desprezados pelos felinos de médio porte. Tudo isso gera um ciclo virtuoso,
favorecendo a evolução do mais bem adaptado, incluindo uma maior sofisticação do
SNC. Esse maior esforço muscular também gera mais calor, o que torna os pelos
corporais não apenas desnecessários no clima quente da época, como
contraproducentes. Assim, foram-se os pelos corporais, mantidos apenas nas zonas
de atrito e no topo da cabeça como proteção solar. Ao mesmo tempo, a pele
escureceu, pelo aumento na atividade dos melanócitos com maior produção de
melanina, fundamental na proteção contra a radiação ultravioleta nessas zonas
expostas de pradaria. Para perder o calor excessivo, a rede capilar do plexo
vascular superficial cutâneo triplicou de tamanho, funcionando como um radiador. As
glândulas apócrinas modificaram-se em glândulas écrinas, permitindo a produção de
um suor mais econômico e mais eficiente na refrigeração do corpo. Nossa pele é
exclusiva: uma biópsia permite afastar qualquer indivíduo não humano. Apesar de
todas essas mudanças, esses primeiros hominídeos não se parecem em nada
conosco: o grupo denominado grácil corresponde a pequenos macacos, com no
máximo 1,20 cm de altura e que andam sobre duas patas.

O primeiro espécime do gênero Homo de fato surgiu há cerca de dois milhões


de anos, separando-se de seus antecessores pelo aumento do cérebro. O impulso
que culminou no crescimento do cérebro é pouco compreendido, especialmente
descobrir o que levou a essa diferenciação, mas provavelmente foi mais de um fator.
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Sabe-se que a dieta, além do próprio bipedalismo, teve um papel importante, ao se
consumir proteínas de melhor qualidade. O bipedalismo forçou uma redução no
tempo da gestação, à medida que o perímetro cefálico se expandia e a pelve se
estreitava para aumentar a resistência. Assim, somos literalmente abortados antes
da metade ideal da gestação humana que seria de presumidos 21 meses. Esse
bebê proto-humano foi necessitando progressivamente de mais atenção, indispondo
as fêmeas férteis de participar da caça e coleta. Cria-se o embrião dos núcleos
familiares, com o homem caçador e a mulher coletora e responsável pelos cuidados
domésticos. O recém-nascido humano também apresenta uma característica única
entre todos os primatas conhecidos: grita e chora quando abandonado. Essa
estratégia aparentemente suicida parece ter sido acrescentada à nossa evolução
para manter o cuidado materno contínuo.

Evoluímos aos tropeços e percalços, avançando e retrocedendo, saindo e


voltando a África. Cerca de 100 mil anos atrás, surgiu o homem moderno no Oriente
Médio, rapidamente migrando para a Europa, África e Ásia. O próximo grande
evento geológico foi a explosão do último supervulcão, Toba, na Indonésia, há cerca
de setenta mil anos, causando uma diminuição drástica do clima no planeta por
décadas, reduzindo toda nossa espécie a menos de dez mil indivíduos. Essa é a
causa do gargalo genético característico da espécie humana; somos a espécie com
menor variabilidade genética conhecida.

Há cerca de 40 mil anos, observou-se a mudança na fabricação dos


instrumentos de pedra, porém não se sabe os motivos dessa mudança no
comportamento, denominada o grande salto para frente por Jared Diamond no seu
livro Armas, Germes e Aço, editora Record, 1997. Por cerca de um milhão de anos,
as ferramentas de pedra quase não haviam mudado. Depois do grande salto,
observa-se uma maior variabilidade de formas e materiais, além do aparecimento de
instrumentos musicais, pinturas rupestres, como em Lascaux e Altamira,
sepultamentos e, posteriormente, estátuas de terracota. Não se sabe o que motivou
essa mudança, mas sugere-se que foi a introdução de uma linguagem mais
sofisticada. O último grande evento é revolução agrícola, cerca de mil anos atrás,
inaugurando o período neolítico, com a fixação do homem a um só local, a
formação das primeiras comunidades, a domesticação dos animais, a percepção da
propriedade privada, a especialização profissional com a distinção entre caçadores,
agricultores, chefes, comerciantes, etc., a formação de excedentes agrícolas e o
início do comércio. Essas mudanças impactaram no fenótipo moderno: o uso de
calçados, iniciado há 20 mil anos alterou a forma do pé e a dieta baseada em
cereais, o que foi chamado de “era das papas”, deixou nossas mandíbulas menores,
acarretando em rostos mais delicados, com dentes sobrepostos, o que garante
algum trabalho aos dentistas com a remoção dos sisos. A criação de rebanhos levou
a tolerância à lactose em diversos povos; grande parte da humanidade mantém a
lactase ativa somente até os quatro anos de idade. Povos asiáticos, como chineses
e japoneses, árabes e inuits mantém a intolerância à lactose, observada nas suas
dietas e culinária. Essa mudança na dieta alterou nossa bioquímica, mas qual terá
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sido o impacto no genoma humano após gerações? Uma observação inicialmente
acidental pode apontar a relevância desse fato aparentemente pequeno. Num
famoso experimento envolvendo a domesticação de raposas prateadas siberianas,
iniciado em 1956, o cientista russo Dmitri Belyaev relatou não só a mudança
comportamental das raposas, mas uma mudança fenotípica: essas raposas, com o
passar das gerações, não apenas se comportavam como cães, mas assemelhavam-
se a eles, mantendo características mais delicadas e infantis, um processo
denominado neotenia, como orelhas grandes e rabos felpudos. O mais fascinante
foi a descoberta que elas apresentavam níveis mais altos de serotonina nos seus
cérebros. A mudança não foi somente bioquímica, mas também genética; dois
estudos apresentados em 2005 e 2008 (ver na bibliografia) revelaram quarenta
genes distintos entre animais domesticados e selvagens. O processo de neotenia,
bastante conhecido na biologia, parece também ter exercido algum papel na
evolução humana. A comparação entre fotos de chimpanzés bebês e humanos
adultos revela uma semelhança atordoante, o que inspirou Aldous Huxley a escrever
o livro “Também o Cisne Morre” em 1939, onde o preço da imortalidade é a antítese
da neotenia.

Como dito anteriormente, eventos geológicos e/ou alterações climáticas são


elementos importantes na história humana. O clima também é frequentemente
responsável pelo surgimento ou disseminação de doenças, à medida que
avançamos pelo neolítico e começam a surgir as primeiras aglomerações humanas.
Padrões de chuva ou seca podem aumentar a população de pulgas e ratos,
disseminando doenças nas quais são vetores. Doenças levaram ao final do período
máximo da Grécia Antiga, com a peste de Atenas em 500 AC, mataram Alexandre
Magno, provavelmente por febre tifoide e causaram a redistribuição populacional
com a peste negra, influenciando a política europeia após o século XIV. Eventos
geológicos causaram a imigração irlandesa, a diáspora pela grande fome causada
pelo ano sem verão em 1816, devido à erupção do vulcão Tambora, novamente na
Indonésia um ano antes. O terremoto de Lisboa em 1º de novembro de 1755
influenciou fortemente o iluminismo francês e a criação do humanismo laico. Em
curto prazo, somos reféns do clima e das doenças; no longo prazo, da geologia e da
astrofísica. Pode parecer uma visão reducionista e, para alguns, algo melancólica,
mas justamente por ser tão exclusiva, devemos dar valor a simples fato de sermos o
que somos: seres humanos.

Bibliografia recomendada:

 Richard Dawkins: A Grande História da Evolução – na trilha de nossos


ancestrais, ed. Cia das letras, 2009.
 Jared Diamond: Armas, Germes e Aço, ed. Record, 1997.
 Jazin et al.: Selection for tameness has changed brain gene expression in
silver foxes.Current Biology, Vol. 15, R915-R916, November 22, 2005
9 O QUE NOS TORNA HUMANOS
 Kukekova et al.: Measurement of segregating behaviors in experimental
silver fox pedigrees. Behavior Genetics, Vol. 38, Number 2, March, 2008.
 Bill Bryson: Breve História de Quase Tudo, ed. Cia das letras, 2003 – meu livro
de cabeceira, releio a cada semestre.
 Peter Ward: Rare Earth: why complex life is uncommon in the Universe.
Springer, 2003 – meu autor predileto, leiam qualquer livro dele.
 Richard SouthWood: The Story of Life, Oxford University Press, 2003.
 Gregory Cochran e Henry Harpending: The 10,000 Year Explosion: how
civilization accelerated human evolution, Basic Books, 2009.
 Nina G. Jablonski: Skin: a natural history, University2006. of California Press.
 Richard Leakey: The Origin of Humankind, Basic Books, 1994.
 Donald Johanson: Lucy: The Beginning of Humankind. Simon & Schuster,
1981.
 Anna K Behrensmeyer: Climate Change and Human Evolutions. Science 311
(476), 2006.
 Michael Rampino: Bottleneck in Human Evolution and the Toba Eruption.
Science, 262, 1993.

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