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ções de tipo burocrático-racional da era mo- remonta pelo menos aos princípios da meta-
derna, também elas agora postas em causa fisica. A ideia de instrumentalidade foi no
pelas tecnologias digitais. Tais tecnologias, entanto abalada, primeiro por Heidegger e
estão a criar uma rede crescentemente com- depois por MacLuhan, ao recusarem o ca-
plexa de ligações, que abarca já todo o pla- rácter instrumental da técnica, ambos fun-
neta, criando nos indivíduos uma verdadeira dando a sua crítica da instrumentalidade na
compulsão à conexão. recusa da ideia de instrumento. Se bem que
os dois tivessem reconhecido a cibernética e
a ‘idade da informação’ como o estádio fi-
1 Ligações técnicas
nal da evolução da técnica, não anteciparam
A técnica estende actualmente o seu domí- a forma como os computadores viriam a pôr
nio sobre toda a experiência. O pressuposto em causa tão radicalmente a ideia de ‘instru-
de que a sua natureza é essencialmente ins- mento’4 .
trumental, está presentemente a ser posto em Com efeito o advento das tecnologias di-
causa pela proliferação das tecnologias di- gitais aprofundou a crise da mediação como
gitais. que constituem um novo desenvolvi- instrumentalidade. A instrumentalidade, que
mento do dispositivo técnico. reconhecia a existência das noções de su-
As novas ligações são actualmente indis- porte, objecto e meio, entrou em crise com
sociáveis da técnica. A sua análise torna-se o digital, dado o computador não ser já re-
por isso inseparável da análise das categorias conhecidamente um instrumento (um meio
técnicas que as descrevem como a mediação, para fins) mas aglutinar em si todos os meios.
interactividade, conectividade, links, on line, Esta crise está ligada a uma crise da relação
emergência, interfaces, virtual, tempo real, meios-fins: na concepção clássica os fins são
instantaneidade, etc. determinados pelos meios, sendo os instru-
A questão que se coloca actualmente, é de mentos vistos como meios para fins, o digital
que forma a teoria da mediação é ainda útil veio alterar esta ideia, na medida em que os
para descrever o que se passa quando a liga- meios passam a ser determinados pelos fins.
ção é imediata ou directa, e se terá ou não O digital veio mesmo pôr em causa a pró-
chegado ao fim uma certa visão da mediação pria mediação. Com efeito para haver me-
como instrumentalidade. diação é preciso admitir uma separação en-
A categoria da mediação, que assumiu no tre o analógico e o digital: actualmente mui-
decurso dos séculos diversas faces: a te- tos discursos sobre o ciberespaço anunciam
ológica, a filosófica a simbólica, a tecno- o fim da mediação visto tudo ser passível de
científica3 , está agora a adquirir uma nova ser imaterializado através da digitalização.
faceta com o digital. Mas é preciso não esquecer que se conti-
A teoria da mediação clássica, fundava-se nua num regime de separação do analógico e
na noção de instrumentalidade, cuja origem do digital, o qual exige ainda uma mediação,
3 4
Cf. José António Domingues, “Em torno da Cf. Paulo Serra, “O Problema da Téc-
Mediação e da Constituição da Experiência”, 1999. nica e o Ciberespaço”, 1995/96. URL:
URL: http://bocc.ubi.pt/pag/domingues-jose-antonio- http://www.ubi.pt/∼comum/jpserra_problema.html
mediacao.html
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Corpos ligados 3
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4 Maria Teresa Geada
vida que, segundo este autor evoluirão para continuidade entre este desejo tecnologica-
entidades tão complexas como os seres hu- mente aumentado e o antigo desejo cartesi-
manos8 . ano e teológico de transcender a carne. Es-
A tese da desincorporação é também cen- tas críticas dizem que se está a operar uma
tral nas novelas de William Gibson, au- radicalização do dualismo cartesiano e teo-
tor da definição do ciberespaço como uma lógico que admitia a separação entre o corpo
"consensual alucinação". O protagonista de e a alma, devido ao contexto fornecido pela
“Neuromancer”, Case personifica a tendên- expansão dos media de comunicação interac-
cia ao repúdio da carne do corpo, a favor tivos.
de uma existência livre do constrangimento Claudia Springer assinala que a extracção
corporal9 , recorrente na ficção cyberpunk. da mente humana do cérebro, antevista por
Este discurso enfatiza o potencial que o com- Moravec, literaliza a metáfora da separação
putador oferece aos humanos para transcen- mente/corpo enunciada por Descartes11 , en-
der/escapar do corpo, associando as tecnolo- quanto que a figura do Cyborg se bem que
gias digitais à oportunidade para a mente de aparentemente representando o culminar do
imergir no fluxo de dados. dualismo cartesiano, suprime essa dicoto-
Também Donna Haraway no influente mia, por representar uma nova visão de fusão
“Manifesto Cyborg”10 defende que o corpo e simbiose com a tecnologia electrónica.12
está obsoleto, e que a mente pode libertar-se Outra crítica é a de Rosanne Stone, que
das constrições da carne. A condição corpo- não aceita a ideia de o corpo esteja obsoleto,
ral é vista como um impedimento para uma e que a mente possa ser transmitida ou de-
relação pura com a tecnologia. O Cyborg se- legada pelas redes informatizadas. Rosanne
ria a representação mais próxima deste ideal: refere que este esquecimento do corpo pro-
um humanóide híbrido conjugando tecnolo- vém também ele da persistência do dualismo
gia informática com carne. cartesiano.13
Estes desejos de incorporeidade, atraíram Com efeito os sonhos tecno-metafísicos
muitas críticas contemporâneas, principal- de desinvestir a alma do seu envelope cor-
mente de feministas, que apontam para a poral, estão imbuídos da concepção dualista
8
ocidental de que corpo e alma são esferas
Cf. Hans Moravec, “Homens e Robots: O Futuro
da Inteligência Humana e Robótica”, Lisboa, Gra- distintas. A dualidade clássica, segundo a
diva, 1992. qual o homem é visto como bi-polar, consti-
9
Gibson depois de relatar a forma como Case foi 11
exilado do ciberespaço comenta: “For Case, who’d li- Cf. Claudia Springer, “Electronic Eros: Bodies
ved in the bodiless exultation of cyberspace, it was the and Desire in the Postindustrial Age”, Austin, Uni-
Fall. . . The body was meat. Case fell into the prison of versity of Texas Press, 1996, p. 29.
12
his own flesh”. Cf. William Gibson, “Neuromancer”, Cf. Claudia Springer, op. cit., p. 19.
13
Nova Iorque, Ace Books, 1984, p. 6. Cf. Allucquère Rosanne Stone, “Will the
10
Cf. Donna Haraway, “A Cyborg Manifesto: Sci- Real Body Please Stand Up? - Boundary Sto-
ence, Technology and Socialist-Feminism in the Late ries About Virtual Cultures” in David Bell e Bar-
Twentieth Century” in David Bell e Barbara M. Ken- bara M. Kennedy (org.), “The Cybercultures Rea-
nedy (org.), “The Cybercultures Reader”, Nova Ior- der”, Nova Iorque, Routledge, 2000, p. 525. URL:
que, Routledge, 2000, pp. 291-324. http://www.rochester.edu/College/FS/Publications/St
oneBody.html
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Corpos ligados 5
tuído por um corpo material e por uma essên- dade da informação, que considera o corpo
cia imaterial, descende directamente do es- como uma estrutura imaterial e informacio-
quema neoplatónico corpo-mente, em que o nal.14
corpo é representado como irracional, fraco e Segundo Hayles a pressão contempo-
passivo em contraste com a mente que é con- rânea para a desmaterialização está a
siderada espiritual, racional e activa e ten- efectuar a deslocação de uma dialéctica
tando constantemente ultrapassar as limita- presença/ausência para uma dialética pa-
ções da carne. As heranças grega e cristã da drão/acaso15 , facto que tem diversas impli-
cultura ocidental sempre associaram de resto cações culturais, sendo a mais importante a
imaterialidade com espiritualidade. sistemática desvalorização da materialidade
Estes discursos constituem pois uma in- e da corporalidade.
terpretação radical do dualismo cartesiano, Esta deslocação implica que a questão da
porque mantendo a distinção entre corpo e presença ou ausência do sujeito e da sua
mente, defendem que a consciência já não representação - o Avatar, é substituída por
está contida no corpo podendo de alguma questões relacionadas com padrão e acaso:
forma escapar. Enquanto o dualismo carte- que transformações governam as conexões
siano considerava corpo e mente como es- entre sujeito e Avatar, que padrões pode o
feras distintas, constituindo o corpo o limite sujeito encontrar através da interacção com
espacial da mente onde se situaria o autên- o sistema, em que ponto é que esses padrões
tico Eu, estes discursos defendem não ape- se transformam em acaso.16
nas a ideia de que a mente ou consciência é Como refere Hayles a constante busca
uma entidade diferente do corpo, como tam- dos corpos para habitarem o ciberespaço
bém já não se encontra limitada por este. actua como uma pressão dos corpos a
Por outro lado o desejo de transcender as transcreverem-se em código, levando a que
limitações do corpo tem sido, nos últimos as subjectividades que operam no ciberes-
anos, alimentados por uma mudança filosó- paço, se tornam tal como este, padrões de
fica. A concepção de que o homem não é de- informação em vez de entidades físicas, pa-
finido pelos átomos do seu corpo mas por có- drões esses que tendem a subjugar a pre-
digo de informação parece dar razão à ideia sença, criando uma nova imaterialidade que
de que a essência do ser humano, reside não já não depende da consciência mas da infor-
na matéria mas num padrão de dados ima- mação.17
teriais. Enquanto os átomos apenas podem Catherine Waldby, salienta também a ins-
construir o corpo físico, os dados podem re- tabilidade da localização corporal na ocupa-
criar corpo e mente. ção do ciberespaço. Esta ocupação está li-
Katherine Hayles refere precisamente que 14
Cf. N. Katherine Hayles, “How We Became
as teorias sobre o desaparecimento do corpo Posthuman - Virtual Bodies in Cybernetics, Literature
devem ser tomadas como uma evidência não and Informatics”, Chicago, The University of Chi-
de que o corpo desapareceu mas de que cago Press, 1999, p. 193.
15
um certo tipo de subjectividade pós-moderna Cf. N. Katherine Hayles, op. cit., p. 29.
16
Cf. N. Katherine Hayles, op. cit., p. 27.
emergiu, constituída pelo cruzamento da ma- 17
Cf. N. Katherine Hayles, op. cit., pp. 35-36.
terialidade da informática com a imateriali-
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gada a novas formas de corporeidade e in- Este é em suma para McHoul, um espaço
tersubjectividade que se estão a desenvol- técnico corporizado, que só pode existir de-
ver com as novas tecnologias digitais.18 Se- vido à mediação do corpo, o qual se projecta
gundo Walbdy a comunicação electrónica in- no ciberespaço como interface entre o espaço
troduziu distúrbios nos conceitos clássicos fisico e o virtual.
de presença e ausência e na deslocalização As qualidades de interacção e de imediati-
da experiência sensorial que define a condi- cidade do ciberespaço abrem-no pois a novos
ção corpórea. Os novos tipos de corporei- tipos de práticas que dependem da ocupação
dade não se poderiam descrever em termos imaginária deste espaço tecnológico.
puramente de presença e ausência, proximi- O que está em causa, na ocupação do cibe-
dade ou distância, precisamente por se estar respaço, é o delinear de novas formas de cor-
a dar uma redistribuição destas qualidades. poreidade e de intersubjectividade, que exi-
Tal redistribuição é particularmente evidente gem o repensar do modelo cartesiano, numa
em sistemas de Realidade Virtual, devido à era em que a possibilidade de telepresen-
capacidade desses sistemas de duplicarem a ças de vários tipos, veio deslocar as clássi-
localização do sujeito e mascararem simulta- cas distinções presença/ausência e proximi-
neamente a sua localização no espaço físico, dade/distância, criando modos de existência
através do uso de capacetes de RV e outros (Avatares) que co-habitam e interagem num
equipamentos. espaço imaginário, contíguos com represen-
Para Alec McHoul a indeterminação da tações de outros individuos.
materialidade e novas formas de agencia- A nossa experiência do corpo e da mente
mento são as qualidades ontológicas que dis- do material e do imaterial nunca são separa-
tinguem o ciberespaço de outros espaços dos definem-se sempre um ao outro. Estes
produzidos tecnicamente. novos modos de corporeidade estão ligados
O ciberespaço não existe como um espaço à forma como entendemos a espacialidade:
pré-determinado, produzido tecnicamente ao a nossa condição corporal tem uma influên-
qual os corpos, espacialmente localizados, cia decisiva na forma como percebemos o
têm acesso apenas como estados de consci- espaço - incluindo o ciberespaço. A noção
ência, mas os corpos habitam esse espaço de corpo não é fixa, mas muda com as tec-
imaginariamente. As entidades que habi- nologias que o investem e com os discursos
tam o ciberespaço não são reais nem virtu- que sobre ele se produzem. Assim o ciberes-
ais, mas antes residem em espaços intermé- paço não pode ser visto como uma realidade
dios que não estão presentes nem ausentes, desincorporada, mas como um meio em que
não são materiais nem imateriais.19
terial nor immaterial, ‘as’ nor ‘as if’ ”. O ciberes-
18
Cf. Catherine Waldby, “Circuits of Desire: In- paço exige pois para McHoul a intervenção de um
ternet Erotics and the Problem of Bodily Location”, agente corporizado que possa mediar entre o ‘as’ e
1998. URL: http://wwwmcc.murdoch.edu.au/Readin o ‘as if’ e estabelecer relações entre eles. Cf. Alec
gRoom/VID/Circuits3.html McHoul, “Cyberbeing and ∼Space”, 1997. URL:
19
“The cyber is neither actual nor virtual alone; http://wwwmcc.murdoch.edu.au/ReadingRoom/VID/
rather it resides in the ranges of space between-spaces cybersein.html
that are neither here nor there, present nor absent, ma-
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10 Maria Teresa Geada
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Cf. Brian Massumi, “Interface and Active
Space: Human-Machine Design”, 1995. URL:
http://www.anu.edu.au/HRC/first_and_last/works/in
terface.htm
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Cf. William Burroughs, “Refeição Nua”, Lisboa,
Livros do Brasil, 2000.
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