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Foi num passeio pela Cidade de Goiás, sobretudo numa visita ao museu das
Bandeiras, que eu pensei e criei esta história que agora apresento como uma modesta
contribuição para o conhecimento do Brasil e de nossas instituições jurídicas, numa
perspectiva filosófica.
Tem sido muito difícil nos cursos de filosofia jurídica dar uma explicação a respeito
da Teoria Tridimensional do Direito e das várias escolas que buscam os fundamentos do
ordenamento jurídico: o jusnaturalismo, o positivismo jurídico, contratualismo, sociologismo,
marxismo jurídico etc.
Este texto é uma tentativa de tornar mais suave esse caminho, ganhando em
comunicação, sem perder em seriedade. Para mim, as idéias sérias podem ter roupagens
agradáveis.
Jogado num porão da cadeia de Vila Boa, preso por uma parede de um metro e
meio de espessura, grades reforçadas de ferro em cada parede por onde se via o sol nascer
quadrado, sal no chão para aumentar o sofrimento e tortura dos condenados, num ambiente
fétido‚ cujo cheiro vinha de um grande barril de fezes depositado a um canto e que era
removido a cada 15 dias, Oludamam, que tinha sangue de rei de tribo africana, na sua tristeza
mortal, pensava, consigo mesmo:
Por que estou aqui neste porão, por que vim para essa terra de sofrimento e dor?
Que fiz para merecer tamanho castigo? Eu fazia as leis, eu era a lei, mas não era tão mau
assim!
Oludamam estava ali, pagando por um crime que cometera há seis meses. Ele
reagira, ferindo o filho do senhor da casa grande que, além de usar sexualmente sua filha
pequena, a torturava por puro prazer. Oludamam não suportava mais tal sofrimento. Por mais
que a escravidão o tivera dobrado, corria nas suas veias o sangue da nobreza africana. Ele
chegou no momento em que sua filha estava sendo espancada por não querer colaborar com
um dos caprichos do sinhozinho. Oludamam, negro forte, não se conteve e, à força libertou
sua filhinha das mãos do pequeno bárbaro. O garoto, mesmo sendo fisicamente bem inferior,
por se enxergar numa casta superior, tentou reagir, o que lhe custou vários arranhões e
hematomas. O senhor, para manter os escravos sob domínio, acusou o negro de muitos crimes
que seus próprios capatazes haviam praticado a seu mando e, num tribunal composto por
brancos, Oludamam foi condenado a passar muitos anos naquela masmorra. O negro tinha o
orgulho da coragem de ter reagido mas, ao mesmo tempo, a tristeza absoluta da prisão que,
certamente, não teria fim. Um dia ele seria morto e diriam que tinha sido numa briga entre os
presos. "Por que eu?", perguntava para seus deuses, aqueles deuses que ele representara
naquele paraíso que era um lugar reservado pela natureza para a sobrevivência do seu povo.
Um verde exuberante, muita caça e aquela cachoeira de águas limpas que, além de refrescar
o calor, era o ponto de celebrações da história, dos deuses e da vida da tribo. Rituais de vida e
purificação, passavam todos por ali, por aquele rio. Oludamam presidia tudo. Era chefe civil
e sacerdote também. Muitas léguas de sertão e o Atlântico separavam sua masmorra do
paraíso perdido. Quando padre Ignácio lia para eles a história da criação, Oludamam pensava
no seu paraíso perdido. Lágrimas rolavam de seus olhos, de saudades. Ao mesmo tempo, no
olhar brilhava a esperança de quem se vergara à escravidão mas não se quebrara no seu
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orgulho de rei. Paraíso era também uma esperança. Entre a saudade e a esperança estavam os
brancos, católicos, catequizados pelo mesmo padre Ignácio das Dores. "Das Dores" pensava o
negro, sou eu. Ele vive comendo na mesa da Casa Grande.
Thomás Antônio:
Manoel, que passava por ali, fez sinal de satisfação e concordância plena com o
Alcorão. Thomás, sem percebê-lo, continuou:
E que diriam as esposas dos brancos sobre essa outra
passagem:
Aquelas de vossas mulheres que forem suspeitas de
adultério, chamai quatro testemunhas dos vossos contra elas.
Se as testemunhas testemunharem, confinai-as então em vossas
casas até que a morte as leve ou até que Deus lhe indique um
caminho.2
O que significa tudo isso?, continuou Thomas. Pode haver contradição entre as leis
naturais e as normas, por muitos motivos, dentre os quais vou elencar alguns mais
importantes:
1. As leis naturais são universais, eternas e imutáveis. Mas a natureza é como
uma grande e complicada cartilha que nós precisamos aprender a ler. A cartilha sempre
esteve aí. Mas, quem consegue lê-la integralmente? Nós vamos aprendendo a ler trechos
dessa cartilha, parte por parte. É assim que os homens vão descobrindo as leis da física, da
química etc e vão inventado novas coisas. Mas, não dá para ler e descobrir tudo ao mesmo
tempo. Há uma evolução nessa descoberta. E essa evolução depende do desenvolvimento da
razão humana e do contexto histórico em que vivem os homens. Até agora descobriu-se a
importância da ordem, da disciplina, da obediência. Agora estamos descobrindo o valor da
liberdade e da autonomia do indivíduo. No tempo em que vivemos, você sabe que é perigoso
falar em indivíduo, em sujeito. Mas nós enfrentamos e corremos os riscos. E por tudo o que
dissemos até agora, podemos concluir que, muitas normas entram em contradição com as
leis naturais porque essas normas foram escritas há muito tempo e só agora descobrimos a
importância desses novos valores. Há, portanto, uma defasagem entre norma e lei natural.
Essa defasagem precisa ser superada.
2. Pode ser também que a classe dominante de cada época crie normas para
defender só a sua felicidade em detrimento da felicidade da maioria. Os brancos fizeram as
normas que permitem a escravidão dos negros! Os senhores feudais elaboravam as normas
dos feudos. Por isso, em alguns feudos, havia o direito da primeira noite. O senhor tinha o
direito de gozar a primeira noite com as noivas que se casassem em seus domínios. Era uma
norma para a felicidade dos senhores e não dos noivos, obviamente. E diziam que era um
"direito natural".
Oludaman estava inconformado com sua sorte (ou azar) e não havia explicação nem
na sociedade civil, nem no estado de natureza.
Você está aqui, continuava Thomas, porque esta é a nossa triste realidade e não
temos força para lutar contra ela. As leis dos homens são fruto desta realidade histórica em
que estamos vivendo. Eles são mais fortes, eles dominam, fazem as leis. Nós somos fracos,
obedecemos. Como se fosse a lei da selva. Este é um fato e "contra fatos não há argumentos".
As leis são feitas para manter uma determinada ordem na sociedade, a ordem de quem
domina. Eles precisam de vocês, escravos, para garimpar o ouro que faz sua riqueza. O
Senhor da Casa Grande domina, seu filho domina. Resta-nos a resignação ou a resistência e
os riscos da resistências, os castigos e a morte.
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Mas, os deuses dos que dominam são mais fortes e sempre têm razão,
continuou o companheiro. Este é o fato, esta é a realidade. Guerras de homens, guerras de
deuses... arrematou Thomas.
O leitor poder estar estranhando a erudição dessa conversa. Thomas Antônio era
branco, português e já alimentava idéias liberais e revolucionárias. Ele era um preso político
que deveria estar no outro compartimento, daqueles presos que tinham o direito de tomar sol
uma vez por semana. Mas estava cumprindo um castigo no compartimento dos presos
comuns, regado a sal e sofrimento.
Final de março, próximo ao dia da Páscoa, padre Ignácio cumpria a desobriga
anual, pregando, ouvindo confissões e rezando missa para os presos. Era momento certo para
catequizá-los e confortá-los.
Jesus sofreu muito nas mãos dos homens, foi dizendo o padre. Foi despido,
carregou o lenho do seu suplício, foi açoitado, pregado e morto na cruz por causa de nossos
pecados. Se ele, que era santo sofreu calado, vocês que são pecadores devem aproveitar o
sofrimento pela expiação dos pecados para não irem parar nos infernos, onde haverá choro e
ranger de dentes.
O sofrimento de vocês é pequeno diante do sofrimento de Cristo, porque,
além de tudo, ele sofria muito por causa da ingratidão dos homens que ele amava tanto.
Quem repara hoje os seus pecados com paciência e resignação, estará juntando méritos para
ganhar o céu. Vocês estão aqui, cumprindo uma pena imposta pelas autoridades que são os
representantes de Deus na terra.
Todo poder emana de Deus e em seu nome é exercido. Se não tivéssemos as leis, o
mundo seria um caos de misérias e pecados, como Sodoma e Gomorra. Mas, Sodoma e
Gomorra foram castigadas, não ficando pedra sobre pedra. Por isso, precisamos preservar a
lei que se baseia na moral e nos ensinamentos dos evangelhos... Se perdermos os valores da
vida em sociedade, se abandonarmos os valores pregados pela Igreja Católica, esse será o
fim de nossa sociedade, da ordem e da paz. Não se revoltem. Cada um tem um plano traçado
por Deus. É preciso aprender a cumprir a vontade de Deus.
Depois da pregação, cada preso era conduzido por dois guardas até um
confessionário improvisado, onde contava seus pecados ao representante de Deus que, após
lhe dar uma penitência, o absolvia, em nome do Pai...
Oludamam e seu companheiro que já estava na outra cela, pensavam, cada um
por si:
Esse é o deus dos brancos que dominam. O padre Ignácio vem falar de
sofrimento e de cruz para nós? E ainda ousa ouvir pecados (que pecados?) e dar penitência!
Mais penitência do que nossos sofrimentos!? Estes são valores importantes para eles: manter
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a gente em ordem na miséria para que eles tenham paz na fartura! Esse padre defende uma
lei que chama de "lei natural" que serve para a defesa da vida e da liberdade, além da
igualdade que aqui não existem, pois há senhores e escravos. Eu estou achando que esta
história de "lei natural" pode servir a qualquer interesse ideológico: depende de quem
domina para dizer o que é "direito natural".
Era o dia de julgamento, no andar de cima, onde ficava a Câmara, que fazia leis
e julgava os homens. Fazia-se silêncio em baixo para se poder ouvir as histórias do provável
futuro companheiro de masmorra. João Manoel Joaquim Lins Albuquerque Pereira de Souza,
juiz daquele tribunal profere sua sentença:
"Lei, ora lei", murmurava baixinho Thomas Antônio de sua prisão, antecipando
um famoso político brasileiro que viria quase 200 anos depois.
Veio mais um preso, rolando escadaria abaixo para se somar aos outros
condenados pela lei.
Thomas Antônio foi enforcado, por alta traição. Oludamam morreu alguns dias
depois da Páscoa, "numa briga interna"... Sua filhinha continuava sendo explorada pelo
sinhozinho.
A abolição da escravatura viria 100 anos depois, quando os negros já não seriam
tão interessantes. Novos fatos acabaram mudando os valores e as normas. A lei áurea foi
assinada. Viva princesa Isabel ou viva o mercado internacional? Por via das dúvidas, viva
Zumbi, viva Oludamam!
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O fundamento é
• um valor absoluto?
• a norma?
• por ser um fato, algo que se me impõe, por si, através de instituições sociais?
também a lei tem uma dimensão que sustenta a escravidão. Se o modo de produção é
capitalista, as leis seguem o espírito liberal que é o fundamento do capitalismo, por pregar a
liberdade, igualdade, livre iniciativa, tolerância etc.
Saindo do Brasil, uma outra comparação pode nos ajudar a compreender melhor
essa linha do pensamento jurídico. Dentro da mesma corrente de pensamento, poderíamos
dizer que o nacionalismo exacerbado que provocou o surgimento de uma ideologia totalitária
é fruto de um fato: a humilhação que a Alemanha sofreu pelos acordos impostos depois da
primeira grande guerra. Hitler soube canalizar essa insatisfação gerando um estado totalitário.
Um fato histórico-econômico-político-social produziu um valor chamado nacionalismo que
gerou uma nova norma, um novo ordenamento jurídico, o totalitarismo.
Além disso, direito é fato, no sentido que só aquilo que é eficaz torna-se direito de
verdade.
Pode-se olhar a realidade jurídica por outra dimensão, fácil de ser percebida
entre os povos primitivos. Toda sua vida social e suas relações são organizadas a partir de
suas crenças e tradições. Os valores são tradicionais, passam de geração em geração, e não
podem ser desrespeitados, sob o risco de destruir a coesão social.
Antes de ser NORMA, o direito foi vivido como fato e como fado a que o homem
atribuía a força inexorável e misteriosa dos enlaces cósmicos...
Polinice, morto numa batalha, acusado de traição à pátria, não pode ser sepultado,
por ordem de seu tio, o rei Creonte. Antígona, ao ser surpreendida, quando enterrava o corpo
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REALE, 502.
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de seu irmão, tendo sido condenada, por desobediência, dirigiu-se ao tirano, dizendo-lhe: Eu
desobedeci suas determinações porque não foi Júpiter que as promulgou; e a Justiça, a deusa
que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos;
nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de
infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir
de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoraram...
Origem da palavra Justiça: unir, ligar, Júpiter... o ius expressou uma ligação
propiciatória sob a proteção divina. (505)
O direito foi sentido primeiro como COMANDO, IMPERATIVO (valor), para
depois ser sentido como relação objetiva entre fenômenos (fato).
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No processo de ensino-aprendizagem do Direito, um professor positivista está mais preocupado com a
"regula iuris" (a medida do direito= lei) do que com a "ratio iuris" (a razão do direito, seu fundamento). O
filósofo indaga a "ratio" que fundamenta a "regula".
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Se fatos, valores e normas são importantes, como temos visto até aqui, como
conciliar essas três dimensões sem cair em reducionismos ou em visões parciais que destróem
a totalidade?
Se eu ficar preso à lei, não posso entender a dinamicidade do direito. Afinal, "Uma
ordem social estabelecida contém sempre certa dose de justiça, mas também ela se encontra
praticamente em conflito com uma dose nova de justiça ainda não incorporada" (527)
O direito é dinâmico porque o sentido de justiça se dá em "tensão" permanente. O
estudante de direito deve ser formado para a sensibilidade do "ainda não", que ajuda a superar
a mesmice das soluções pré-fabricadas, como manual de receitas extraídas da legislação em
vigor.
Essa dinâmica só pode ser percebida se levarmos em conta as outras dimensões do
direito que são valor e fato.
Para entender tridimensionalidade do direito, é preciso entender a relação entre valor,
fim e dever-ser.
A descoberta e escolha de valores tem uma carga emocional, afetiva, mas a escolha
dos meios adequados envolve a dimensão racional, pois se trata de adequação de meios a fins,
causas e efeitos.
-três dimensões
percebidas de forma
integrada
concretamente-
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O que torna uma norma jurídica socialmente existente?
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Que é que torna eticamente legítima a obrigatoriedade do Direito?
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Que é que condiciona logicamente a validade das regras jurídicas?
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6. A COLOCAÇÃO DE UM PROBLEMA:
V P
COMPLEXO
AXIOLÓGICO:: PROPOSIÇÕES
VALORES NORMATIVAS
F
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V = valor
F= Fato (complexo fático)
P= Poder
N= Norma
Para Reale,
cada modelo jurídico, considerado de per si, corresponde a um momento de
integração de certos fatos segundo valores determinados, representando uma solução
temporária (momentânea ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos e valores,
solução essa estatuída e objetivada pela interferência decisória do Poder em dado momento
da experiência social.
7. QUESTIONAMENTOS